Adriana Deodato Costa
Título da Dissertação: "As cooperativas de produção da economia solidária em Alagoas: limites e (im)possibilidades de uma reorganização do trabalho para o socialismo"
Adriana Deodato Costa.pdf
Documento PDF (757.6KB)
Documento PDF (757.6KB)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ADRIANA DEODATO COSTA
AS COOPERATIVAS DE PRODUÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA EM
ALAGOAS: LIMITES E (IM)POSSIBILIDADES DE UMA
REORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PARA O SOCIALISMO
MACEIÓ
2009
ADRIANA DEODATO COSTA
AS COOPERATIVAS DE PRODUÇÃO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA EM
ALAGOAS: LIMITES E (IM)POSSIBILIDADES DE UMA
REORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PARA O SOCIALISMO
Dissertação de Mestrado apresentada como
requisito Ao Programa de Pós-graduação em
Educação do Centro de Educação, como
requisito parcial para a obtenção do grau de
Mestre em Educação Brasileira orientadora
professor Drª. Maria Edna de Lima Bertoldo.
MACEIÓ
2009
Agradecimentos
À minha família que sempre me incentiva à elevação de pensamentos e atitudes.
À Edna, pelo exemplo de profissionalismo e dedicação a uma causa maior: a
transformação desta sociedade.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa Trabalho, Educação e Ontologia Marxiana pelo
conhecimento e questionamentos precisos.
À FAPEAL, que concedeu a bolsa de estudo para viabilização da pesquisa.
À equipe da IESOL pela acessibilidade e contribuições valiosas.
RESUMO: O objeto da presente pesquisa é a educação de trabalhadores nas cooperativas de
produção da Economia Solidária em Alagoas, analisando a tese segundo a qual é possível
transformar a sociedade capitalista em socialista através da autogestão – gestão da empresa
pelos próprios trabalhadores -, por ser este o meio de unir o trabalhador ao produto de seu
trabalho. Como metodologia, a pesquisa se fundamentou teoricamente em Marx e Lukács
quanto à centralidade da categoria trabalho em seu sentido ontológico, demonstrando que o
trabalho é algo que sempre existiu, mas tomou uma configuração diversa no processo de
produção capitalista, o que permitiu apreender a especificidade da separação entre o
trabalhador e o produto de seu trabalho no capitalismo e constatar que é impossível
transformar a sociedade capitalista em socialista apenas tomando um de seus aspectos,
ignorando que o capital é uma relação que atinge as várias instâncias da vida humana. Além
do pensamento desses autores, foi imprescindível as idéias de Mészáros quanto à
incontrolabilidade do capital e à diferença entre capital e capitalismo, bem como de Chesnais
e Teixeira para um estudo da configuração atual do mundo do trabalho em seu processo de
reestruturação produtiva iniciado desde a década de 1980. Para um aprofundamento acerca da
economia alagoana contou-se com a contribuição dos estudos de Péricles, Diegues Júnior e
Lessa. É importante dizer que o estudo sobre a Economia Solidária foi fundamentado em Paul
Singer, o qual é a maior referência teórica do assunto no Brasil. Foi realizada também uma
pesquisa de campo na Cooperativa de Artesãos da Barra Nova em Marechal Deodoro/AL –
COOPERARTEBAN, a qual recebe assessoria da IESOL – Incubadora de Empreendimentos
Solidários pertinente à Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Nessa cooperativa, foram
realizadas conversas informais, análises de textos e entrevistas com os cooperados e com a
equipe de acompanhamento para a sua formação. O objetivo foi coletar dados sobre o
processo educacional, verificando os limites encontrados nas relações objetivas alagoanas e
suas possibilidades para atuar como estratégia de luta contra o capital, superando a separação
entre o trabalhador e seu produto. Como resultado, a pesquisa aponta que as cooperativas de
produção da Economia Solidária em Alagoas caminham para a reprodução das relações
capitalistas em sua produção, porque dentro delas, os trabalhadores não se apropriam de seu
produto de modo a desencadear um processo de humanização; os cooperados apenas
produzem para o mercado, pois, a organização de seu trabalho não direciona-se para
mudanças estruturais, ou seja, não consegue sequer se impor como resolução ao atraso
econômico alagoano, o que demonstra a necessidade de a educação dos trabalhadores colocarse como uma das categorias que podem mediar o combate ao capitalismo em todas as suas
frentes e não apenas em um de seus males, como proposto pela Economia Solidária na
formação de cooperativa de produção.
Palavras-chave: economia solidária. socialismo. trabalho. educação. economia alagoana.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 07
CAPÍTULO I
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: UM PERCURSO PELAS
UTOPIAS .......................................................................................................... 16
1.1 As idéias de Saint-Simon: ociosos e trabalhadores em conflito ................................... 20
1.2 Robert Owen: o caminho prático do comunismo ......................................................... 23
1.3 Charles Fourier e o novo mundo passional .................................................................. 26
1.4 Marx e o socialismo de sua época ................................................................................ 28
CAPÍTULO II
A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL: A EDUCAÇÃO DE TRABALHADORES
PARA A AUTOGESTÃO ................................................................................... 41
2.1 Os princípios da Economia Solidária: a autogestão como alternativa ao capital ......... 50
2.2 O Princípio da educação e o papel das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares ............................................................................................................................ 54
2.3 A construção teórica e conceitual da ES sobre a realidade: a (in)consistência da
autogestão como alternativa ao capital ............................................................................... 59
CAPÍTULO III
OS LIMITES E POSSIBILIDADES DA REEDUCAÇÃO DOS TRABAHADORES
PARA A AUTOGESTÃO NO CAPITAL CONTEMPORÂNEO ............................... 62
3.1 O cooperativismo e o processo de produção capitalista ............................................... 62
3.2 O cooperativismo da Economia Solidária e a reestruturação produtiva
do Capital ............................................................................................................................ 71
3.3 A educação da classe trabalhadora para o socialismo .................................................. 77
CAPÍTULO IV
A REEDUCAÇÃO DE TRABALHADORES PARA A AUTOGESTÃO EM
ALAGOAS NA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA DO CAPITAL ...................... 81
4.1 A Economia agroaçucareira e a reestruturação produtiva do capital ............................ 81
4.2 Análise do processo educacional da COOPERARTEBAN ......................................... 86
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 102
ANEXO .............................................................................................................................. 105
7
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo analisar a educação de trabalhadores para a
autogestão em cooperativas de produção da Economia Solidária no estado de Alagoas,
investigando a proposta de superação do capital para o socialismo.
A Economia Solidária é tomada no meio acadêmico sob termos diversos – Economia
Informal, Economia Popular; às vezes, confundida com o termo cooperativismo popular,
autogestão, passando a se consolidar ao adquirir caráter próprio, a partir de 1996, quando o
termo Economia Solidária passa a ser difundido na literatura acadêmica, principalmente
através de Paul Singer, seu mais destacado precursor no Brasil.
Para o seu fomento foram criados grupos de pesquisa, sendo os primeiros: o de
professores pesquisadores na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Campus de
Marília, em 1996, com o nome de “Organizações e Democracia”, coordenado por Cândido
Vieitez e Neusa Dal Ri, integrado por Gustavo Gutierrez e Mariza Galvão; e o grupo
composto pelo professor Paul Singer, da USP, o qual, por sua vez, juntou-se ao grupo de
pesquisas e estudos da UNESP, mais tarde atuando com a professora Marilena Nakato.
As idéias da Economia Solidária são difundidas por diversas entidades privadas ou
públicas, a exemplo da Cáritas, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
da PACs (Projetos Alternativos Comunitários) do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra MST, do SCA (Sistema Cooperativista dos Assentados), da ANTEAG (Associação Nacional
dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária), sendo também
fomentada pela UNISOL (União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo), a
qual auxilia a transformação de empresas falidas em cooperativas e pelas ITCPS (Incubadoras
Tecnológicas de Cooperativas Populares), integradas por professores universitários e alunos
de graduação e pós-graduação, os quais dão às cooperativas apoio técnico e jurídico, unindose à Unitrabalho, rede que presta serviços à classe trabalhadora.
Como podemos ver, a Economia Solidária toma forma em vários tipos de entidades e
instituições, incorporando sob diversas roupagens a sociedade civil como propulsora de
mudanças sociais. A Economia Solidária, contudo, toma particularmente a defesa da
autogestão em cooperativas de produção como o arranque definitivo para o socialismo. Em
outras palavras, ela defende a criação dessas cooperativas por acreditar que elas, por sua
organização dita horizontal, podem desencadear relações socialistas.
8
Podemos entender que ela constitui uma lógica que permeia vários movimentos e
instituições no Brasil e afirma ser possível construir uma nova forma de produção superadora
do antagonismo existente entre o trabalho e seu produto no sistema capitalista. Nesse sentido,
suas cooperativas de produção, portanto, seriam uma forma de vida e de sociedade, cuja base
é a unidade entre o processo de trabalho e o seu produto através da autogestão nelas
vivenciada.
Desse modo, educar para o trabalho na ES é educar para que os trabalhadores
cooperados aprendam a se autogestionarem, e isto inclui a participação e autonomia no
processo de trabalho, caracterizadas como a superação da separação do trabalho do produto de
seu trabalho, a qual, por sua vez, é responsável pela subordinação do trabalhador ao controle
capitalista.
Para Galvão e Cifuentes:
A cultura do trabalho experimentada por muitos trabalhadores que hoje são
cooperados exige um outro aprendizado na medida em que precisam se
adaptar à nova lógica, diferente do trabalho mensal, seletista, heterogerido,
comandado por um patrão. Muitos dos novos cooperados precisam aprender
a utilizar o potencial de conhecimento que possuem e a capacidade de se
colocarem como sujeitos das relações sociais que estão desenvolvendo no
interior do processo de trabalho, abandonando, assim, a cultura da
subordinação (2001, p. 33).
Portanto, a autogestão seria a solução para aquilo que a Economia Solidária expõe
como o problema do capital – a impossibilidade do trabalhador de decidir sobre a produção,
subordinando-se ao controle de outrem. Deste modo, o processo de educação cooperativa
oferecida pelas incubadoras segue formando os trabalhadores para a autogestão ou a gestão
autônoma sobre a produção.
Ela se apresenta num momento em que a queda do socialismo real assombra, impondo
a idéia da impossibilidade de superação da contradição existente entre capital e trabalho,
negando o pensamento marxista de que o socialismo implica uma sociabilidade para além do
capital. Por isto, a investigação aqui proposta busca responder à questão: é possível que a
reeducação de trabalhadores em cooperativas de produção da Economia Solidária seja uma
alternativa de transição da sociedade capitalista para a socialista?
Para responder a esta questão partimos do pressuposto de que embora só seja a esfera
estrutural que tem a função de transformar a sociedade, a educação tem um papel decisivo na
9
luta contra o capital e que, portanto, precisa ser compreendida em sua essência para cumprir
de fato o seu papel, articulada à ofensiva socialista.
A fim de investigar os limites e possibilidade da alternativa de transição socialista
proposta pela ES, qual seja, a reeducação de trabalhadores para a autogestão em cooperativas
de produção, consideramos que é preciso entender as determinações do sistema capitalista
proferidas pela Economia Solidária, analisando-as a partir de Marx.
Apreendendo que a intenção da proposta da ES é superar os problemas da
heterogestão e da competitividade oriundas da forma com que o trabalho é organizado no
sistema capitalista, afirmamos que se trata da busca de superação da separação do trabalhador
do produto de seu trabalho, dando-lhe total controle sobre o processo de trabalho; é isso que
as cooperativas impõem como alternativa ao capital. Para elucidar em que consiste a
separação do trabalhador de seu produto recorremos a Marx, em O Capital, mais
precisamente o Livro I, Capítulo V intitulado Processo de Trabalho e Processo de
Valorização.
Sendo as cooperativas de produção uma alternativa de organização do trabalho para o
socialismo conforme apontam pesquisadores como Singer (1999; 2000; 2002; 2003), o ponto
de partida da investigação é o tipo de trabalho que ela propõe, confrontando-o com o trabalho
defendido na teoria marxiano-lukacsiana, o qual é o fundamento da sociabilidade humana e,
por isto, a chave para a compreensão das relações que determinam a construção da realidade
que vivemos.
É preciso entender que ao afirmar ser o trabalho a categoria fundante do ser social,
Lukács expõe que o processo do trabalho se dá por meio de dois momentos: a causalidade – a
natureza em seu caráter de desencadear causas e efeitos - e a teleologia – entendida como a
capacidade de direcionar ações para uma finalidade; defendendo, ao contrário de
interpretações idealistas, que só a partir do trabalho é que a teleologia existe. O sentido dessa
interpretação corresponde à afirmação de que apenas o homem é um ser capaz de objetivar
suas idéias, que só nele há a capacidade de operar realmente atos teleológicos.
Para expor a concepção marxiana do trabalho, tomamos como base o texto As Bases
Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem, no qual Lukács demonstra que o
pensamento filosófico de Marx1 possui lineamentos de uma ontologia histórico-materialista
1
Não vamos nos deter aqui nas considerações acerca das interpretações do pensamento marxista no decorrer da
história da luta do proletariado; basta afirmar que aqui delimitamos o pensamento marxista a partir de uma
10
que supera o idealismo hegeliano. Em outras palavras, o autor defende que em Marx há um
novo modo de pensar o homem e a realidade que supera qualquer sistema de pensamento não
baseado na concepção da humanidade como construtora da realidade e, portanto, da história.
Como conseqüência filosófica, a ontologia inaugurada por Marx afasta elementos
lógico-dedutivos para entender a realidade e põe em evidência que, sendo construída pelo
homem, esta realidade é objetiva, é um complexo concreto, tomada como um processo de
categorias como formas “moventes e movidas da própria matéria” (LUKÁCS, 1978, p. 02).
Em outras palavras, o desenvolvimento do real não ocorreu através de um ente ou de apenas
uma categoria originária, mas por meio do trabalho, o qual desencadeou o desenvolvimento
das várias categorias em seu processo.
Através de sua ação sobre a natureza em um processo dialético entre teleologia e
causalidade, ou seja, entre a capacidade de direcionar para uma finalidade as coisas da
natureza, o homem operou em si mesmo o desenvolvimento de sua consciência. No momento
em que ele se viu diante de necessidades como comer, beber, vestir-se, abrigar-se etc., e foi à
natureza em busca de satisfação, ele não apenas supriu tais necessidades como deu início a
novas necessidades que passaram a se situar não apenas no âmbito de sua sobrevivência
básica, mas de sua subjetividade enquanto ser social.
Ou seja, ao trabalhar, o homem operou uma transformação na natureza que se refletiu
nele mesmo, possibilitando a geração de conhecimentos e necessidades afastadas cada vez
mais de sua condição biológica. Nesse sentido, podemos dizer que o trabalho, para se realizar,
precisou de um ser biológico ou de um determinado grau de desenvolvimento da reprodução
orgânica, contudo, não permaneceu até aí; ao trabalhar, a humanidade saiu da esfera biológica
e passou à esfera social, por meio daquilo que Lukács denomina de salto ontológico (1978, p.
04).
Ao romper com a sua condição apenas de ser biológico, saindo assim, dos limites que
o prendiam ao reino animal, quais sejam, as fixações instintivas e genéticas, o homem, por
meio do trabalho, operacionalizou a passagem de um ser para o outro em um plano
qualitativamente novo. Porém, neste salto, deparou-se com um novo que jamais perde suas
raízes ontológicas. Ao dar movimento às suas ideações para um fim, o homem encontrou na
natureza os elementos apropriados para a objetivação destas ideações, desencadeando um
ontologia do ser social, considerando que a partir de Marx é possível entender a possibilidade de superação do
capitalismo.
11
produto não mais pertinente apenas à sua consciência ou à natureza, mas uma síntese destes
dois, ou seja, um produto social.
Este produto implicou transformações na consciência humana de modo a afastá-la das
sensações e instintos, tornando-a um elemento decisivo na sua atuação sobre o meio natural e
social. É possível entender que a humanidade sempre se lançará para o novo sem jamais
romper com as barreiras naturais. Isto implica dizer que a sociabilidade humana sempre irá
conter elementos biológicos, mas esses não dominarão o homem em absoluto.
Aprofundando o entendimento, podemos afirmar com Lukács que é apenas no homem
que existe a teleologia. No ato do trabalho a ação contraditória entre a teleologia e a
causalidade evidencia que, apesar de a humanidade ser movimentada por meio daquela, pelo
fato de o homem ter de decidir sobre o que faz ou não, esta decisão só pôde se concretizar por
meio de conexões causais (1978, p. 06). Assim, o trabalho é formado por posições
teleológicas que põem em funcionamento relações de causa e efeito.
Neste sentido, afirmamos, a partir do pensamento lukacsiano, que a teleologia não
existe apenas no momento em que se efetiva nas séries causais, mas é ela mesma uma posição
realizada na consciência que movimenta ou põe em funcionamento apenas séries causais.
Diante disso, perguntamos: quais as implicações dessa concepção do trabalho para a
educação? Ou como entender a educação através da categoria trabalho?
Em Lukács vemos que por ser a possibilidade do novo, o trabalho permite a geração
de duas conseqüências:
a) O novo não pôde ser controlado completamente – o que levou o processo de
trabalho sempre para o aperfeiçoamento e desenvolvimento, através de circunstancialidades
que geraram determinações não entendidas em seu conjunto pela humanidade;
b) Esse processo de aperfeiçoamento e desenvolvimento chamou à vida produtos
sociais que possibilitaram o surgimento da divisão do trabalho, pois os homens não apenas se
apropriaram dos elementos da natureza para suas finalidades de sobrevivência, mas também
necessitaram influenciar outros homens para as finalidades predeterminadas de produzir um
produto corretamente (LUKÁCS, 1978, p. 06).
No capítulo “O Trabalho” de sua Ontologia o autor assim expõe:
As dimensões, a força e a periculosidade dos animais a serem caçados
tornam necessária a cooperação de um grupo de homens. Ora, para tornar
essa cooperação funcional e eficaz, é preciso distribuir os participantes de
12
acordo com as funções (batedores e caçadores). As posições teleológicas
que aqui se verificam têm, na realidade, um peso secundário em relação ao
trabalho imediato; deve ter havido uma posição teleológica anterior que
determinou o caráter, o papel, a função, etc. das posições singulares
concretas e reais cujo objetivo é um objeto natural. Deste modo, o objeto
dessa finalidade secundária já não é um elemento da natureza, mas a
consciência de um grupo humano; a posição de um fim já não visa a
transformar diretamente um objeto natural, mas, em vez disso, a fazer surgir
uma posição teleológica que tenha, porém, como objetivo alguns objetos
naturais; da mesma maneira, os meios já não são intervenções imediatas
sobre objetos naturais, mas pretendem provocar estas intervenções por parte
de outras pessoas (2003, p. 40).
Percebemos então que existe um tipo de teleologia denominada por Lukács de
teleologia secundária, originária do processo de trabalho no qual predomina uma teleologia
anterior, a teleologia primária. Para Lukács (1981, p. xxii), a essência da educação consiste
em tornar “os homens aptos a reagir adequadamente a eventos e situações imprevisíveis,
novas, que apresentar-se-ão mais tarde nas suas vidas”. Por isso, é no âmbito da teleologia
secundária que definimos a educação, pois, sendo esta a mediação entre os homens para o
processo de trabalho, sua essência é a de agir sobre as suas consciências, influenciando-os
para alcançarem determinada finalidade.
Essa questão é analisada por Bertoldo em sua tese de doutorado A Relação Trabalho e
Educação na Ontologia Marxiana (2002). Ao aprofundar a relação ontológica do trabalho
com a educação, a autora afirma que as aptidões humanas se desenvolvem e se consolidam
por meio de um processo contínuo de educação, caracterizado pela transmissão de
conhecimentos de uma geração a outra (2002, p. 183).
Nesse sentido, a educação é decisiva para o processo de humanização desencadeado
pelo trabalho, porque ela, na concepção lukacsiana, influencia os homens a reagir de modo
socialmente desejável diante das alternativas que o processo de trabalho gera (LUKÁCS,
1981, p. xxiv).
As conseqüências da essência da educação para o socialismo se evidenciam no fato de
que, para transformar a realidade, os homens precisam se apropriar dos conhecimentos
corretos, mas jamais absolutos e perfeitos sobre esta realidade, a fim de agir corretamente
sobre ela. É possível entender que a subjetividade por meio da educação tem peso sobre o
processo de transformação social superador do capitalismo. E isso é imposto pelo trabalho em
sua essência.
13
Assim, como ponto determinante da investigação dos efeitos da reeducação de
trabalhadores para as cooperativas de produção da Economia Solidária importa comprovar se
o trabalho desenvolvido nelas tem a função de gerar o novo e se possibilita as posições
teleológicas secundárias desejáveis para a transformação social.
A importância da investigação está no fato de vivermos sob o domínio do capital, o
que leva a passagem para o novo aos limites das contradições existentes na essência desta
relação. Ou seja, mesmo sendo a atuação do homem sobre a natureza, o trabalho, dentro do
capitalismo, esbarra nos limites que este sistema impõe, qual seja: a capacidade de
transformar todas as relações em formas de reprodução do capital.
Diante disso, a possibilidade do pôr teleológico no capitalismo é diversa em relação ao
que se pretende, permitindo apenas a realização de um processo causal com normatividades
próprias pertinentes à essência do capital, mas não a realização de finalidades, como acontece
no trabalho em seu sentido ontológico. Contudo, para Lukács, esta discordância entre
finalidade e efeito jamais anula o fator subjetivo das resistências a ela (1978, p. 11), o que
demonstra qual deve ser o papel da educação, em seu sentido amplo, para a luta contra o
capital, a saber: o de levar a classe trabalhadora a um nível de consciência de sua condição e
da objetividade da realidade capaz de contribuir com a grande virada socialista, do contrário,
a educação apenas estará a serviço da reprodução capitalista.
Em outras palavras, o que importa para a pesquisa aqui proposta é a maneira como a
partir do trabalho os seres humanos deram impulso a um desenvolvimento social em que a
discrepância entre as posições teleológicas e os seus efeitos causais aumenta, contudo, sem
inviabilizar resistências nascentes da subjetividade humana para impor modificações.
Para alcançarmos o que propomos, nossa investigação se organiza da seguinte forma:
o primeiro capítulo constitui um resgate histórico da idéia de transformação da realidade sob a
criação de alternativas. Discorrendo historicamente sobre as utopias desde a Antiguidade,
chegamos a Marx e ao confronto de seu pensamento com os socialistas de sua época.
Buscamos, nesse capítulo, apresentar os elementos que servirão de base da investigação a
partir do pensamento marxiano.
O segundo capítulo é a apresentação das cooperativas de produção da Economia
Solidária e, nela, o princípio teórico e prático da autogestão para a luta socialista. Nesse
capítulo tomamos as idéias dos mais destacados defensores da Economia Solidária no Brasil:
Paul Singer, Galvão e Cifuentes, Gaiger, Lechat, sem, contudo, descartar pesquisadores de
14
menor renome que trazem acepções diversas sobre a ES, formando uma unidade de
concepção no que diz respeito à unanimidade de sua defesa na atualidade.
Foram delineados aspectos da ES concernentes às suas principais características e
princípios, na tentativa de formar um conceito que, dentro da linha de pensamento e
compreensão desses autores, pudesse fornecer a unidade de seu entendimento enquanto
alternativa às relações capitalistas.
Aqui, a educação defendida pela ES é apresentada e, nela o papel das incubadoras
universitárias pertinentes à ES (denominadas Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares - ITPCs) é relevante para o desenvolvimento educacional dos cooperados. Foi
importante para o desenvolvimento da pesquisa contrapor características destas com as
incubadoras universitárias de empresas tradicionais. Buscamos perceber as diferenças entre
elas desde o processo de organização interna (a equipe, o tipo de assessoramento fornecido
por elas) até a concepção de educação que permeia sua ação para a formação de cooperativas,
assinalando qual o tipo de educação que deve permear a luta contra o capital.
A análise do objeto a partir de Marx é realizada no terceiro capítulo. Nele,
apresentaremos os limites e possibilidades objetivos do capital impostos a alternativas como a
que é proposta pela ES. Nesse sentido, tomamos a essência do capitalismo no que se refere à
separação entre o trabalho e seu produto na lei do valor desvendada por Marx no capítulo V
do Livro I de sua obra O Capital.
No quarto capítulo analisamos a atuação das cooperativas de produção da Economia
Solidária em Alagoas a partir de uma pesquisa de campo realizada na Cooperativa de
Artesãos do povoado de Barra Nova – COOPERARTEBAN –, no município de Marechal
Deodoro, situado ao leste de Alagoas.
Nesta pesquisa, além dos elementos internos à cooperativa: seu funcionamento, sua
estrutura e organização do trabalho e seu processo de trabalho, foi investigada a posição
socioeconômica de Alagoas na particularidade do capitalismo brasileiro, evidenciando a
análise do objeto em sua conexão com a totalidade, para daí, tratar da influência que ela sofre
da economia agroaçucareira alagoana, entendendo a dinâmica dessa economia sobre as
relações do capitalismo dependente brasileiro. O objetivo se estendeu às implicações da
reestruturação produtiva do capital contemporâneo em Alagoas.
15
A pesquisa de campo se realizou durante três meses, nos quais foi analisado o
processo de formação da cooperativa e o tipo de trabalho engendrado nela, sob a assessoria da
IESOL – Incubadora de Empreendimentos Solidários, pertinente à UFAL.
Dentre os instrumentos de coleta de dados, foram realizadas análises de textos
trabalhados pela Incubadora no processo de formação educacional dos cooperados, entrevistas
com os cooperados e acompanhamento da equipe na formação educativa dirigida à
cooperativa.
O resultado da pesquisa evidencia que a construção de um projeto socialista deve
abranger a realidade em sua totalidade. Por isto, deve expressar-se como superador das
soluções pragmáticas e do pessimismo intelectual. O projeto socialista de que falamos se
alicerça nas objetivações, mediante a busca de posições teleológicas harmonizadas aos
objetivos que desejamos alcançar.
16
CAPÍTULO I
AS RAÍZES HISTÓRICAS DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: UM
PERCURSO PELAS UTOPIAS
A investigação sobre a reeducação de trabalhadores em cooperativas para o socialismo
defendida pela Economia Solidária encontra seu ponto de partida na própria história do
cooperativismo e do socialismo.
Para autores como Pinho (1965), cooperação e cooperativismo são dois conceitos que,
embora diferentes, estão imbricados e condicionados. Segundo a autora, a cooperação diz
respeito às relações de ajuda mútua para fins diversos. A cooperação é um termo do latim
cooperari, de cum e operari, que diz respeito a operar com alguém, prestar serviço de auxílio
para um objetivo comum.
Em Marx (1988), cooperar remonta à produção da própria existência humana. Para
ele, a cooperação entre os homens ou a relação social entre os homens se articula às relações
históricas primordiais da existência humana, quais sejam: a condição de estar vivo, as
necessidades concretas e seu suprimento e à sua reprodução (procriação).
Em seu pensamento, a cooperação se encontra na produção de vida já que “um
determinado modo de produção, ou fase industrial, está sempre ligado a um determinado
modo de cooperação, fase social e este modo de cooperação é ele próprio uma ‘força
produtiva’” (MARX; ENGELS, 1988, p. 32-3). Em outras palavras, no processo de trabalho,
ou seja, de reprodução da própria existência, os seres humanos sempre viveram em
cooperação. Ela, essencialmente falando, é uma condição da existência humana.
Portanto, é impossível o estudo sobre as formas de vida humana sem a abordagem da
cooperação. Muitos foram os feitos realizados pela associação entre os homens, porque o
homem, a fim de buscar os elementos indispensáveis à satisfação de suas necessidades,
procurou a colaboração do semelhante para juntos empregarem os métodos diversos e
desconhecidos à realização de tarefas impossíveis sem a contribuição de outrem.
Na concepção de Pinho (1965), sociologicamente falando, a cooperação é uma forma
de integração social, porque as pessoas se unem para alcançar os mesmos fins, (p. 07). Mas,
dentro do cooperativismo, ela tem uma interpretação peculiar, pois constitui um meio para se
mudar a sociedade. Dentro dessa compreensão é possível definir, segundo a autora, que o
cooperativismo, enquanto doutrina sociológica que apreende a possibilidade de mudança
17
social via relações econômicas, se assenta na defesa da cooperação como meio de transformar
a sociedade. O cooperativismo coloca a cooperação como pedra angular das mudanças nas
relações econômicas. Em outros termos, nele basta renovar ou reelaborar as relações de
trabalho entre os homens para que a sociedade vigente seja transformada, superada, dando
lugar a uma sociedade justa e igualitária. Ele preza por formas de associação entre os
indivíduos, de maneira a torná-los livres.
As cooperativas surgiram no século XIX como expressão dos trabalhadores diante das
condições extremas de exploração e espoliação sob as quais viviam, como é o caso da
experiência de Rochedale como veremos no próximo capítulo. Os operários europeus
formaram associações para sanar os problemas sociais de que se viam acometidos,
conseqüentes da dinâmica do capitalismo. Problemas como grandes jornadas de trabalho,
ausência de meios de atendimento satisfatório aos problemas de doença, habitação, consumo,
entre outros, foram determinantes para a criação de cooperativas como agentes de oposição às
formas de organização de empresas industriais e também como agentes de reprodução de
outra forma de vida; é assim que esta doutrina se une aos ideais socialistas.
O auge da ascensão e hegemonia do sistema capitalista do século XIX foi, sem dúvida,
o fator circunstancial do desenvolvimento do cooperativismo; esta doutrina encontra suas
entranhas no socialismo utópico, ou no socialismo pré-marxista, a qual, tendo diversos
representantes, se delineou no mundo capitalista sob perspectivas distintas. Contudo, é
interessante dizer que as raízes do socialismo utópico, precursor do cooperativismo e
especificamente do que pertence à Economia Solidária, tem origem na Antiguidade. Isto é
evidente na busca de proporcionar mudanças sociais e pretensamente efetivar um projeto
social.
A ligação do cooperativismo com as utopias é clara, pois estas se põem como projetos
e idealizações de um mundo em que os homens viveriam unidos e em comum em todos os
aspectos da vida.
A palavra utopia vem do grego ou, que quer dizer não, e topos, que significa lugar;
daí, a idéia de lugar que não existe. Contudo, ela tomou um sentido na ideação inconformada
e apaixonada de pensadores diversos. Segundo Petitfils (1977, p. 14), a utopia enquanto
descrição de um mundo imaginário e edênico, situado fora do espaço e do tempo, esteve
presente na história desde a Antiguidade, evoluindo conforme a maneira como cada contexto
se refletia na vivência dos homens e no seu modo de visualizar condições de mudanças.
18
Embora as utopias, como um todo, apresentem um descompasso entre o que se sonha e
o que se vive na realidade, não deixam de apontar caminhos – apesar de serem caminhos
indefinidos - ou mesmo reflexões denunciadoras das desigualdades e injustiças. Unidas à
dissonância entre sonho e realidade, as estratégias pensadas e efetivadas por pensadores
utópicos para o alcance desta realidade demarcam o grau de subjetividade que as
interpretações utópicas sofreram. Não há dúvida de que as utopias permeavam projetos
sociais. Partindo da busca de liberdade e igualdade, os pensadores utópicos – como veremos
mais adiante - já apontavam para a necessidade de superação da dicotomia público/privado,
de transpor a divisão das classes e o trabalho parcelado, fragmentado, e de reduzir o tempo de
trabalho (PETITFILS, 1977, p. 17).
De acordo com Petitfils (1977, p. 15), em sua obra Os Socialismos Utópicos, tais
características da utopia se apresentam em A Républica de Antístenes2 e na utopia urbanista
de Hipódamo3 de Mileto, ambos da Grécia. Estes utópicos influenciaram Platão e Aristóteles.
Hipódamo, por exemplo, sugeria uma cidade baseada no civismo e na fraternidade, onde os
homens viveriam em comum, sendo suas relações recorrentes em reuniões, associações e até
mesmo em refeições comuns.
Representa uma utopia A República, de Platão4, cujos diálogos apresentam um
afastamento da propriedade privada, colocando em relevo a causa pública. A igualdade se
estenderia a homens e mulheres, contudo, uma igualdade dentro do regime aristocrático,
composto por “uma elite de mulheres e homens perfeitos, dedicados ao serviço da cidade”
(2004, p. 181).
Ao longo da Idade Média, de acordo com o referido autor, as utopias praticamente
adormeceram, ressurgindo no século XVI na obra A Utopia, de Thomas Morus5, de
significado indiscutível, na qual o autor generaliza as ficções políticas que se seguem na
história. Os elementos de A Utopia diferem em muitos aspectos das idéias oriundas da
2
Antístenes de Atenas (de 444 a.C. a 365 a. C.). Filósofo grego, foi o fundador do cinismo e mestre de
Diógenes. Era filho de um ateniense com uma escrava trácia. Por isso, não tinha nem o título nem o direito de
cidadão ateniense. Foi discípulo de Sócrates, mas consta que também ouviu o sofista Górgias. Sua filosofia
professava a doutrina do esforço combinado com a virtude. Ver www.wikipedia.com.
3
Hipódamo foi um arquiteto grego (Mileto, c. 500 a.C.), um representante da antiga escola jônica, que primava
pelo requinte e pelo luxo. Ele não foi apenas um arquiteto, mas um teórico do habitat urbano. Foi ele que
planejou o Pireu, em Atenas, na época de Péricles. Ver www.wikipedia.com
4
Filósofo ateniense discípulo de Sócrates, não se sabe ao certo o ano de seu nascimento nem de sua morte,
alguns historiadores crêem que Platão viveu entre os anos de 428 a 348 a.C.
5
Sir Thomas More, por vezes latinizado em Thomas Morus ou aportuguesado em Tomás Moro (07/02/1478 a
06/07/1535) foi homem de estado, diplomata, escritor, homem de leis, ocupou vários cargos públicos, e em
especial, de 1529 a 1532, o cargo de "Lord Chancellor" (Chanceler do Reino - o primeiro leigo em vários
séculos) de Henrique VIII da Inglaterra. Um dos grandes humanista do Renascimento.
19
Antiguidade. De caráter mais humano, se bem que em alguns aspectos prevalecessem idéias
de cunho religioso e místico, esta obra revela os impactos das grandes descobertas, progressos
de sua época, mas também as conseqüências destes impactos, sobretudo com respeito às
misérias, vícios e crueldades prevalecentes na realidade propriamente urbana.
É interessante perceber como Morus já traçava as condições sociopolíticas da
Inglaterra de então, corroída pela miséria e latrocínios em oposição à ostentação do luxo,
fineza e riqueza aristocráticos. Denunciando enriquecimentos ilícitos e escandalosos devido à
expropriação da região agrária do país, fato somado à denuncia da desigualdade e da
individualidade fomentadas pelo Estado, Morus já preconiza os males da expropriação –
segundo ele, a causa dos males da Inglaterra de então. Apesar de descrever uma sociedade
diferente, Morus não extrapola a visão pessimista de impossibilidade de transformar a
realidade em que se vive. De caráter fortemente crítico e conscientizador, A Utopia não
desvela esperanças de mudanças concretas; não há perspectivas.
No século XVIII, as utopias reapareceram em Morelly6, cujas idéias já demonstram
raízes cooperativistas unidas ao socialismo. As mudanças sociais deveriam se dar através das
mudanças das leis, o que representava a abolição da propriedade privada – esta, para Morelly,
representava a raiz dos vícios, avarezas e imoralidades (PETITFILS, 1977, p. 37).
Jean-Claude Chappuis, utópico do século XIX, planejou uma sociedade de forma
bastante bizarra7. Para ele a propriedade deveria ser abolida, devendo passar por uma reforma
radical, na qual tudo deveria ser planejado – as horas da refeição, o mobiliário, a roupa dos
indivíduos etc.
Bizarra também foi a utopia de Deschamps8. Ele acreditava que os homens viviam o
estado natural das leis, que era a civilização, e o estado dos costumes, que era a sociedade do
porvir. Segundo ele, no estado dos costumes, os homens viveriam em comum e retornariam
no tempo, vivendo uma vida simples e rústica – dormiriam em palhas, comeriam legumes e
cereais (nada de condimentos ou temperos e iguarias), teriam móveis rústicos, se vestiriam de
6
Étienne-Gabriel Morelly (1717-?), filósofo francês do Século das Luzes. Acreditava que a propriedade privada
era a responsável por todos os males da humanidade. Ver www.wikpedia.com.br.
7
Contudo, este utopista chegou ao absurdo de propor que as mulheres e crianças deveriam ser marcadas a fogo
desde o nascimento, que as relações sexuais deveriam acontecer por revezamento e que para haver um controle
de natalidade poderia haver a possibilidade de “sufocar os recém-nascidos por meio do carvão” (apud
PETITFILS, 1977, p. 41).
8
Dom Leger-Marie Deschamps nasceu em janeiro de 1716 e faleceu em abril de 1774. Ordenou-se na abadia
beneditina de Sainte-Melaine, França, tornando-se historiográfico no convento Marmoutiers onde viveu por
cerca de quinze anos sob um regime de meditação. Deste período de sua vida resultou uma filosofia da teologia
com teor esotérico contrariando o cristianismo de sua época.
20
maneira simples. O trabalho seria incessante, próximo à idéia de prazer e lazer, pois seriam
extintas a produção e a necessidade.
O tempo não seria medido, não havendo calendários e datas; a cultura seria extinta,
todas as obras artísticas e científicas seriam queimadas como indício de que o homem para
ser, de fato, livre não deveria ser influenciado pelas provas de nossa cultura (apud, p. 46).
A extinção do Estado, do Direito e das instituições foi defendida pelo pastor calvinista
William Godwin9. Sua utopia repousava nas comunidades pequenas e as pessoas trabalhariam
apenas meia hora por dia, em ajuda mútua não havendo mais a propriedade privada (idem, p.
48).
É importante perceber nestes utópicos, apesar das extravagâncias e posturas ingênuas,
uma atenção ao coletivo, à comunidade, à extinção da propriedade privada e à redução do
tempo do trabalho. Além disso, a defesa da liberdade, do prazer, da fraternidade e da ajuda
mútua esteve em muitas de suas ideações utópicas que, bem ou mal, serviram de suporte para
a denúncia dos males do mundo dominado pela ganância do lucro e da propriedade, que já
começava a tomar corpo.
Além destes, destacam-se também Saint-Simon, Robert Owen e Charles Fourier,
chamados socialistas pré-marxistas por tratar em suas obras de questões posteriormente
retomadas por Marx com status científico.
São esses, conforme Singer (2002), os precursores mais diretos do cooperativismo da
Economia Solidária, os quais formularam suas utopias, influenciando direta ou indiretamente
os ideais socialistas de sua época, assim como de épocas futuras (algo de muita relevância
para nossas análises, mais adiante). Exporemos suas principais idéias com o propósito de
apreender o seu significado para o momento em que viveram e para a compreensão das
projeções utópicas existentes nos dias atuais. E concluindo, apresentaremos as idéias de Marx
sobre esses utópicos, bem como de outros socialistas com os quais conviveu.
1.1 As idéias de Saint-Simon: ociosos e trabalhadores em conflito
Henri Claude de Rouvroy de Saint-Simon nasceu em 1760 e morreu em 1825 na
França. De família aristocrática, viveu uma vida extravagante e cheia de aventuras. Aluno de
9
Nasceu em Cambridgeshire, em 03 de março de 1756 e morreu em abril de 1836. É considerado precursor do
anarquismo filosófico, ainda que não tenha utilizado propriamente a palavra anarquismo.
21
D’Alembert, aos dezessete anos tornou-se subtenente e depois capitão no exército francês.
Maravilhado com o empreendorismo dos americanos, Saint-Simon preconizou o que, para ele,
seria a mudança que levaria o sistema “feudal e teológico” do Velho Mundo a ruir.
Aderiu aos ideais revolucionários florescentes da Europa, ideais cuja base era a
ascensão do progresso e o avanço da economia capitalista. Sedento de conhecimentos, lançouse às pesquisas científicas da matemática, biologia e anatomia. Ensaiou suas primeiras idéias
utópicas numa obra que causou estranheza, em que ele propõe um culto ao Mausoléu de
Newton, chamada O Novo Cristianismo.
Segundo Petitfils, em 1806 Saint-Simon escreveu a obra A Organização da Sociedade
Européia, na qual defendeu para as nações européias um único “sistema parlamentar
confederado” (1977, p. 54).
Precursor das pesquisas pluridisciplinares, ele atinge maturidade ao defender “o
progresso das ciências e das técnicas” (idem), pretendendo entregar o poder aos que ele
denominava os industriais10, aqueles que realmente trabalhavam. Alguns anos após essas
idéias, Saint-Simon seguiu uma orientação de pensamento que começou a direcionar-se ao
socialismo, e por fim, rompeu com os ideais liberais de sua época.
Nos anos de 1821-1822 publicou obras cujas idéias defendem o objetivo de melhorar a
vida daqueles considerados por ele os desfavorecidos, alertando para a necessidade de estes,
enquanto produtores, adquirirem consciência do papel que lhes caberia – o de mudar a
realidade.
Saint-Simon defendeu a visão de história como evolução, cujo sentido era um
processo de industrialização alternado por ordem e crises. Percebeu aspectos – indefinidos da luta de classes ao afirmar a decadência do feudalismo, a ascensão dos comerciantes
burgueses. Pensou em uma sociedade futura regida pela perfeição da ordem social, na qual o
trabalho teria ressonância forte, pois os detentores do capital e dos meios de produção,
chamados por ele de ociosos, seriam descartados, dando lugar aos, de fato, industriais, ou
seja, todos os que trabalhavam – agricultores, ferreiros, serralheiros, marceneiros, fabricantes,
negociantes, artistas, sábios, enfim, todos os trabalhadores de modo geral.
10
Para Saint-Simon a palavra industrial tinha uma conotação diversa dos dias atuais. Enquanto hoje ser
industrial é ter uma indústria, ou seja, uma empresa cuja atividade produtiva é especialmente mecanizada e em
grande escala, abrangendo a forma extrativa ou de transformação, para esse utopista é ser engenhoso,
trabalhador. Portanto, para ele, ser industrial é trabalhar ou movimentar a produtividade, diferentemente de
apenas viver do trabalho dos outros, como ele acreditava ser os indivíduos das classes dirigentes.
22
As bases da idéia deste socialista estavam em sua afirmação de que se retirássemos do
mundo toda a classe dirigente com seus conselheiros, magistrados, prefeitos, cardeais,
funcionários, bem como todos os ricos e nobres que a compõem, de certo estes não fariam
falta, visto que sua ausência não significaria nenhum prejuízo político para o Estado, porque
esta classe não era a classes dos considerados por ele como os verdadeiramente capazes, os
industriais, os quais, por sua vez, faziam diferença para o progresso da nação e da
humanidade (SAINT-SIMON, 1980, p. 36-7).
Além disso, ele fez uma denúncia dos problemas sociais de sua época, culpando os
dirigentes por problemas como a delinqüência, por exemplo. Na sociedade projetada por
Saint-Simon o Estado teria um papel reduzido, para daí ser de vez dissolvido, já que na nova
sociedade apenas os indivíduos úteis (os industriais) viveriam; apenas aqueles aptos ao
trabalho encontrariam a felicidade, vivendo em união, pois constituiriam uma classe
unificada.
Esta sociedade industrial, porém, preservava um viés mítico e ingênuo. Defendendo a
pessoa de Newton como digno de cultos e homenagens, dividindo a sociedade em Grupos e
Conselhos - denominados Conselhos Centrais de Newton –, Saint-Simon procurava
transformar toda a humanidade, como vemos em suas próprias palavras:
O Conselho de Newton apresentar-se-á na terra: dividirá a humanidade em
quatro grandes grupos, que se chamarão, respectivamente, grupo inglês,
francês, alemão e italiano; cada uma dessas divisões disporá de um
Conselho de composição idêntica à do Conselho Central. Cada indivíduo,
seja em que parte for do globo, estará agregado a um dos quatro grupos e
votará pelo Conselho Central e pelo do seu grupo (1980, p. 30).
Percebemos neste utopista o valor do trabalho enquanto atividade útil, contrapondo-se
ao parasitismo das classes dominantes, e a idéia de que as mudanças seriam progressivas: a
atuação do Estado seria necessária por um tempo, mas desapareceria gradualmente. É
importante dizer que suas idéias influenciaram várias correntes que, vislumbrando uma nova
sociedade expunham a gangrena da propriedade privada e dos problemas sociais oriundos
dela, exaltando a vida em comum e o trabalho em comunidades. As raízes destas idéias estão
presentes ainda na atualidade, como veremos na base da Economia Solidária.
23
1.2 Robert Owen: o caminho prático do comunismo
Robert Owen foi o iniciador do socialismo na Inglaterra. Filho de um pequeno
negociante, Owen se tornou, devido à sua distinta inteligência, monitor de agentes postais aos
sete anos de idade. Aos dez anos, foi a Londres, onde se tornou aprendiz em uma fábrica
têxtil. Sob as circunstâncias advindas no momento em que vivia sua juventude – de
prosperidade econômica nacional – Owen adquiriu fortuna e fama em seus empreendimentos.
Tornou-se diretor de uma empresa têxtil em Manchaster, Inglaterra, comprando, após
nove anos, as fiações de algodão em New Lanark (interior do país), nas quais procurou dar os
primeiros passos para a efetivação de suas idéias sociais. Acreditando que o homem sozinho
não forma seu caráter e, portanto, seus defeitos (preguiça, indolência, vícios) são
conseqüentes das relações estruturais da sociedade, este socialista acreditava que era preciso
modificar o ambiente em que os indivíduos viviam para daí educá-los metodologicamente
para uma nova humanidade. Para ele, “pode-se dar qualquer caráter, o melhor ou o pior, o
mais rígido como o mais esclarecido, e não importa a que grupo social, e mesmo à
humanidade em geral, recorrendo a certos métodos” (OWEN, apud PETITFILS, 1977, p. 73).
Tais métodos se expressavam em reconhecimentos públicos ou recompensas e premiações aos
indivíduos mais engenhosos em seu trabalho.
Para Petitfils, a utopia oweniana tem caráter messiânico, pois ele preconizou, com ares
de profeta, a construção de uma nova sociedade a partir da atuação sobre as relações sociais
(1977, p. 74). Assim foi que em New Lanark Owen empreendeu uma organização com bases
cooperativistas. Para ele, não deveria haver a separação entre a indústria e o campo;
possivelmente esta separação era um dos males da sociedade capitalista. Por isso, a união
entre cidade e campo, indústria e agricultura seria possível através de comunidades
cooperativas, dotadas de característica de indústria, nas quais o trabalhador seria ao mesmo
tempo operário e camponês. Esta comunidade harmoniosa subsistiria nas relações de
solidariedade.
A organização deste modelo social compreendia compartimentos compartilhados:
cozinhas, refeitórios, escolas, altares de cultos, bibliotecas, depósitos, oficinas, enfermaria.
Tudo muito bem arquitetado e minuciosamente medido11. Owen preservava nele o núcleo
familiar, contudo cada família mantinha o espírito de igualdade e solidariedade. Nesta
11
Até mesmo a maneira como deveriam ser distribuídos os espaços (em edifício quadrado em vários
quadriláteros planos cujos lados opostos são paralelos), que se estendiam em meio a quinhentos hectares de terra.
24
comunidade o trabalho seria obrigatório e os salários abolidos. Não mais haveria a
propriedade privada. Porém, Owen não concebia seu projeto socialista como organização
autônoma, conduzida pelos próprios trabalhadores. A administração do trabalho nesta
organização seria regida por proprietários de terra, financiadores e pelo próprio Estado.
As idéias de Owen não encontraram a aprovação esperada por parte das autoridades,
que as viam com desconfiança e mesmo escândalo. Voltando-se para a opinião pública, este
socialista encontrou tentativas de efetivação de sua obra – por meio de financiadores e
comissionários – porém, não encontrando meios, logo se dissolveram.
Este fracasso não desanimou o reformador, conhecido pela persistência e obstinação.
Certo da força de seus ideais, Owen reformulando algumas de suas concepções, projetou,
desta vez, uma comunidade propriamente socialista, no sentido de negar a intervenção
estatal12 e prezar pela autonomia econômica destas comunidades, nas quais os indivíduos
viveriam em comum (se vestiriam em comum, se alimentariam em comum), sem a
necessidade de tribunais e prisões.
Sendo para a realidade em que vivia um projeto irreal, no pensar de Owen, os EUA
seriam o lugar mais apropriado para o estabelecimento de sua comunidade. Foi então que em
1824 ele comprou uma colônia de cinco mil hectares em Harmony, estado de Indiana. Com
apelos propagandistas ele lançou-se a convocar todos os “homens trabalhadores de boa-fé, de
todas as nações” (apud PETITFILS, 1977, p. 79), para a construção da New Harmony.
Novecentas pessoas se agregaram nesta colônia, dando impulso ao socialismo oweniano. Com
base no princípio a cada um segundo seus serviços, esta comunidade de perfeita harmonia se
expressava como um comunismo integral, na medida em que cada um recebia em comum
todos os bens: educação, moradia, roupas, alojamento, alimentação; todavia, em pouco tempo
tal tentativa experimentava o fracasso.
Owen percebeu que na heterogeneidade de sua população faltaram homens sérios e
capazes de administrar adequadamente a comunidade agrícola, assim como também faltavam
técnica e competência, ideais e propósitos nestes homens. Assim sendo, as diferenças sociais
ressurgiram na comunidade, floresceu a propriedade privada e o dinheiro voltou a fazer parte
das preocupações e inclinações dos trabalhadores. Perdendo os laços de solidariedade e
unidade, esses trabalhadores passaram a organizar as relações entre si com base em suas
próprias regulamentações e normas.
12
As comunidades respeitariam as leis estatais na espera da concretização de uma nova sociedade. Suas relações
com o Estado seriam mínimas (PETITFILS, 1977, p. 78).
25
O fracasso iminente da comunidade de New Harmony se deu em pouco tempo, cerca
de pouco mais de três anos. Contudo, obstinadamente, Owen renovou sua experiência no
Texas, na Escócia e até mesmo na Índia, retornando depois de cinco anos à Inglaterra, dando
início a uma nova fase de sua vida. Sem encontrar apoio nos dirigentes, no Estado, e sem
conseguir levar seus ideais avante até mesmo com sua própria fortuna, Owen se volveu ao
operariado com o intuito de unir seu utopismo a este.
Nos movimentos democráticos de artesãos e pequenos comerciantes, as idéias
owenianas ganharam significado distinto em termos de profundeza teórica. Com o intuito de
suprimir o dinheiro foi criada uma grande bolsa de trocas13, cujo bônus de trabalho substituía
o dinheiro. Esmagada pelo mercado, esta bolsa entrou em declínio, fazendo com que Owen se
voltasse para os sindicatos. Através destes, formou uma confederação sindical oweniana com
cerca de quinhentos adeptos. Negando a revolução, este sindicato unificado propunha a
conversão da sociedade vigente ao socialismo. Negando também a luta de classes, os
trabalhadores demonstraram a adesão ao utopismo de Owen sem muita reserva. Contudo, a
exploração dos monopólios ingleses logo pôs as características quiméricas e ilusórias destes
empreendimentos à mostra. O fracasso, desta vez, permitiu a Owen dirigir seu próprio
movimento. Com ares místicos e religiosos o novo movimento se converteu em seita utópica.
A Sociedade para a Comunidade Universal dos Adeptos da Religião Racional, como passou a
ser chamada, se alicerçava numa doutrina messiânica14.
Afastado da denúncia e, quem sabe, próximo ao desânimo e da perda de perspectivas
reais, Owen tornou-se espírita, invocando até mesmo personalidades distintas como o pai da
Rainha Vitória e outros vultos da história. Sua obra passou a se basear na concepção da
segunda vinda do Messias alicerçada na ciência. Tornando-se o pai social da sociedade dos
religiosos racionais – como apreciava ser denominado –, cria que uma humanidade haveria
de vir e ela seria regida pela união e caridade universais, em que os homens em uma única
família, sendo bons, sábios, felizes e educados, falariam uma única língua.
O pensamento oweniano, portanto, se viu aturdido pela realidade. E não mais
encontrando lugar na concretude, valeu-se do pensamento místico, religioso. No que concerne
ao pensamento cooperativista, ele deu impulso à promoção de associações cooperativas com
13
No bônus de trabalho os produtos eram avaliados através das horas consumidas em sua fabricação (idem, p.
82).
14
É interessante perceber a “evolução” do pensamento oweniano. De início, ele era denunciador das superstições
e intolerâncias do mundo religioso, ao mesmo tempo que fazia a crítica da sociedade capitalista. Após, Owen
passou a defender uma religião racional, por tantos fracassos em seus empreendimentos socialistas.
26
base em um projeto educativo correlato a estas associações; este aspecto, sobretudo, é muito
nítido nas experiências solidárias no âmbito da economia, como veremos no próximo capítulo
ao expormos as Incubadoras pertinentes à Economia Solidária. De antemão, é possível
perceber que experiências cooperativas como a que vemos em Owen esbarram nas relações
mercantis, porque não conseguem impor um tipo de trabalho diverso do que é predominante
na realidade, cujo processo não humaniza os trabalhadores, nem põe em movimento uma nova
realidade.
1.3 Charles Fourier e o novo mundo passional
Fourier nasceu no Franco-Condado em 1772. Filho de um comerciante de tecidos e
gêneros e também juiz consular, desde os sete anos de idade declarou seu ódio ao comércio,
embora não se livrando dele; herdou de seu pai um comércio de arroz, algodão e açúcar, bem
como gêneros diversos. Desde sua juventude, trabalhando como caixeiro-viajante, teve
contato com a pobreza e miséria da França, chegando a interpretar as repercussões da
Revolução Francesa como causas diretas destes problemas – para ele, esta Revolução
significou brutalidade e violências que lhe despertaram o ódio e a injúria.
Reconhecendo-se portador de uma nova mentalidade, Fourier chegava a afirmar que
antes dele a humanidade havia perdido milhares de anos de luta contra sua própria natureza. O
mérito deste socialista estava em sua interpretação impiedosa da miséria ocasionada pela
sociedade capitalista.
Sua concepção se baseava no entendimento de que a história era uma sucessão
evolutiva de fatos e acontecimentos. Esta concepção se afirma na idéia de que até o momento
a humanidade vivera o Éden, a Selvageria, o Patriarcado, a Barbárie, para enfim viver a
Civilização – esta última, a fase do capitalismo industrial e fruto da pobreza e miséria
degradantes da humanidade.
Os ideais fourieristas denunciavam, sobretudo, a pobreza e a degradação do trabalho.
Voltou-se sobremaneira para as concepções moralistas do mundo civilizado, denunciando o
casamento, a opressão feminina e a repressão dos desejos e prazeres humanos. O prazer era,
para ele, o objetivo final da existência humana e, portanto, não podia, sob nenhuma
circunstância, ser proibido. O homem, sendo naturalmente bom, tornava-se mau e agressivo
pela repressão de seus prazeres e paixões. O amor, ou em outras palavras, a paixão, era a força
que movimentava o mundo, o universo, e existia sob a oposição, o dever e os preceitos.
27
As paixões humanas foram reprimidas pela ordem social e a liberdade do homem
estava, por isso, atrelada à harmonia de um mundo livre, sem censuras, sem a moral
dominante. Este mundo concebido por Fourier seria organizado conforme as paixões. Os
cinco sentidos tinham centralidade em seus ideais e se distribuíam de maneira intrigante. A
eles se somavam os sentimentos relacionados às relações (amizade, familismo, amor,
ambição) e as sensações relacionadas ao gosto, à comunhão, ao altruísmo. Foi a partir dos
sentidos e sensações que Fourier chegou a identificar oitocentos e dez tipos de caráter, os
quais ganham relevante conotação na organização social que defendeu.
Não se rebelando contra a propriedade, o capital e o dinheiro, Fourier chega a dividir a
comunidade conforme o trabalho, o capital e os talentos. Portanto, as desigualdades
continuariam nesta sociedade, mas os elos societários seriam estimulados. Além disso, as
pessoas não se restringiriam ao seu lugar ou ponto, pois poderiam, no dizer do socialista,
“borboletar”15 entre um e outro prazer conforme seu gosto ou preferência. Ele projetou a
variação de culturas e criação de animais, distribuindo os trabalhos em grupos16. O trabalho
não teria a conotação degradante e negativa que possuía na sociedade capitalista; organizado
conforme as paixões dos homens, deixaria de ser repetitivo, desgastante, monótono. O lucro,
conseqüentemente, seria suprimido e o consumo se daria conforme os desejos e satisfações
dos homens. Para Fourier, a economia seria adaptada ao homem e na nova sociedade ela se
basearia na agricultura sob diversos tipos, bem como na criação de animais; as máquinas não
existiriam nesta nova sociedade.
Como meio de concretizar suas idéias ele pensou no Falanstério, uma espécie de
edifício societário composto de muitas células: alas, salas, galpões, oficinas etc, onde cada
pessoa habitaria de acordo com suas diferenças: “o camponês mais pobre terá o direito a uma
célula simples, mas o mais rico societário não poderá ter mais de três cômodos” (PETITFILS,
1997, p. 101). As refeições seriam feitas em comum; todos desfrutariam do teatro e seriam até
treinados nas artes cênicas.
Todas as paixões e todos os prazeres seriam estimulados sob o pretexto de completa
liberdade e harmonia. Portanto, o sistema social é um reflexo da ordem natural e vice-versa.
15
Borboletar, para Fourier, seria variar conforme seu gosto ou necessidade.
Por exemplo, em uma cultura de maçãs, haveria o grupo das maçãs vermelhas, o grupo das maçãs verdes, o
grupo das maçãs duras, das que seriam comestíveis, das que seriam consumidas de outra forma etc. Em seu gosto
pelo detalhe, Fourier defende a exploração dos talentos, alegando, sem hesitar cair no ridículo, que o gosto das
crianças pela sujeira se reserva aos trabalhos mais repugnantes, como transporte de lixo, estrume, limpeza de
esgotos, entre outros.
16
28
Por esta premissa, Fourier afirmou que até mesmo a natureza inorgânica sofreria os efeitos da
nova ordem social: os mares deixariam de ser salgados, os animais marinhos seriam
servidores anfíbios. Esta afirmação demonstra o esteio profetizante e místico em que o
fourierismo se assentava.
Para se chegar a esta sociedade tão idílica, situada na sexta fase da história, a
Harmonia, Fourier não acreditava no caminho revolucionário, porque os homens chegariam a
ela através do estimulo às paixões. Como meio de alcançá-la, ele ousou organizar uma
comunidade de vinte famílias, um tipo de cooperativa multifuncional na França. Afinal, a
transição para esta aconteceria gradualmente. O ponto relevante do pensamento de Fourier a
respeito da transição socialista é a sua idéia de trabalho como uma atividade prazerosa e
promotora da felicidade humana, quando executada em comunidades.
1.4 Marx e o socialismo de sua época
É possível entender, por meio das idéias socialistas utópicas, que o alcance do
socialismo se daria com base em concepções de mundo e de realidade desprovidos de
cientificidade. Ao criticá-los, Marx não o fez apenas para comprovar a ineficiência destas,
mas, sobretudo, para afirmar sua própria concepção sobre o real.
Como vimos, as raízes do cooperativismo se encontram nas idéias socialistas advindas
de pensamentos utópicos sobre a construção da realidade. Portanto, o cooperativismo
enquanto uma doutrina que defende a transformação social via economia se assenta nos
princípios formulados por socialistas utópicos de épocas diversas. A idéia de ajuda mútua, de
cooperação entre os indivíduos como meio de superar as intempéries da realidade, a mudança
progressiva da realidade como resultado destas experiências, a intenção de mudar o curso da
história são algumas das influências exercidas por eles em todo o mundo.
Destaca-se a validade destes socialistas considerando-se a excepcionalidade deles em
trazer a denúncia e a crítica sobre aspectos da sociedade capitalista, as quais ressoaram em
muitos pensadores e socialistas no decorrer da história. Contudo, em Marx os socialismos
utópicos são analisados tendo como referência a sua apreensão da lei do valor. A maneira
como Marx tratou os socialismos de sua época é encontrada nas obras Do Socialismo Utópico
29
ao Socialismo Científico, da autoria de Engels17, em O Manifesto d’O Partido Comunista, e
em A Miséria da Filosofia, de sua autoria.
Para a compreensão dos limites dos socialismos utópicos confrontados por Marx é
preciso entender o contexto histórico em que estes se situavam, o que faremos a partir de
Hobsbawm, em suas obras A Era do Capital e A Era das Revoluções, cujo referencial
histórico é bastante significativo, já que não possui a preocupação unicamente de descrever os
fatos, mas sobretudo de criticar e apreender a realidade.
Segundo Hobsbawm (1997a, p. 19), o capitalismo consolidado no final da primeira
década do século XIX implicou, já em seus começos, o triunfo de uma sociedade que
acreditou na competição e na livre-iniciativa como os fundamentos do crescimento
econômico. É importante destacar que as nuanças do capital já eram sentidas há cerca de 60
anos. Antes de sua definitiva consolidação, o sistema capitalista já expunha seus contornos no
interior da sociedade economicamente agrária de meados do século XVIII. Tanto é assim que
as relações de propriedade agrárias eram o fundamento da sociedade européia, fazendo desta
um “complexo econômico” por “interagir” com as colônias, cuja maior fonte de renda
provinha da terra, no plantio de açúcar, algodão, frutas, legumes, do vinho, da criação de
animais, para a extração de matérias-primas essenciais como a lã e a fibra de linho. Assim, as
bases locais do sistema agrário se constituíam em produção predominante.
Uma parte da Itália, mais especificamente a área na Toscana, parte da Escandinávia e
da Espanha preservavam lavradores ainda sob o jugo de certas relações de servidão, o que
caracterizava a situação da população como extremamente pobre. Apenas a Inglaterra
constituía uma economia agrária mais concentrada, com poucos resquícios de servidão; lá, “o
agricultor típico era o arrendatário com um empreendimento comercial médio, operado por
mão-de-obra contratada” (idem, p. 33). E é este fato também que leva o país a um
desenvolvimento puramente capitalista.
O desenvolvimento econômico que ganhou o nome de capitalismo surgiu desta
economia, mas não automaticamente. Muitas determinações foram necessárias: o progresso
da produção e do comércio com base na racionalidade econômica e científica. Dentre estas
determinações, a Revolução Francesa (1789) – implicando a liberdade e igualdade entre os
indivíduos, intentava já libertar os indivíduos das amarras da ignorância da sociedade feudal –
17
Afirmamos aqui nossa defesa de que a obra Do Socialismo Utópico ao Socialismo Cieníifico se harmoniza
profundamente com o pensamento marxiano, já que Engels foi um grande colaborador de Marx, contribuindo
decisivamente com seu pensamento e sistema teórico. Não deixaríamos de mencionar tal obra pelo seu
conteúdo, que encerra uma interpretação importante para a investigação aqui proposta.
30
e a Revolução Industrial (1780) - que caracteriza o vôo do capitalismo, seu crescimento autosustentado, sua “partida” rumo à consolidação de sua essência como norma para as relações
capitalistas futuras tendo como palco a Inglaterra - tracejavam-lhe os últimos contornos.
Deste período até o início do século XIX os levantes socialistas apenas arranhavam o
aspecto pouco definido com que o capitalismo se apresentava. O contexto em que eles são
construídos determinou a forma como se pronunciavam, e este fato é abordado por Engels em
sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico (1887), quanto à sua crítica aos
socialistas utópicos. Segundo este pensador, para se converter em ciência torna-se necessário
que o socialismo seja situado no terreno da realidade, pois,
Com efeito, o socialismo anterior criticava o modo de produção capitalista
existente e suas conseqüências, mas não conseguia explicá-lo nem podia,
portanto, destruí-lo ideologicamente; nada mais lhe restava senão repudiálo, pura e simplesmente, como mau (2005, p. 319).
O fato é que os pensadores, segundo o autor, “não podiam romper as fronteiras que
sua própria época lhes impunha” (id., p. 304). Por isto, para Engels (2005, p. 313) as idéias de
Saint-Simon, Owen e Fourier não ultrapassavam o terreno idealista. Sem um entendimento
das leis do capital, só restava a estes socialistas explicar a realidade aproximando-se muito
mais de críticas e desabafos individuais.
O que era válido para Engels, assim como para Marx, era que o sistema socialista não
fosse projetado como um sistema perfeito, mas que fosse projetado através da própria
dinâmica da realidade. Sem um conhecimento do real, os socialismos utópicos consagraram
em suas críticas diversas soluções - a ciência articulada com a restauração da religião, a
organização política com a extinção do Estado, ora com uma concepção de salvar a
humanidade sem um conhecimento que as determinações histórico-econômicas desenhavam a
luta de classe, ora com a concepção histórica que já prenunciava contradições, mas pouco
aprofundadas, por guardarem em seu interior o idealismo – mas não vislumbravam as
contradições históricas da sociedade capitalista nascente, cabendo-lhes apenas apontar
algumas das mazelas do capital que mais tarde se apresentavam como a sua própria razão de
ser: a propriedade privada e a divisão social entre capitalistas e proletários.
As obras em que Marx se defrontou especificamente com as idéias socialistas de sua
época foram O Manifesto do Partido Comunista e A Miséria da Filosofia. A primeira,
publicada pela primeira vez às vésperas da Revolução de 1848, concretizava a evolução do
31
pensamento do proletariado para o conhecimento científico da economia burguesa em
detrimento do pensamento ingênuo e reformista que predominava na denúncia do capitalismo
de então.
Ele foi um documento para a propagação das idéias comunistas, ao mesmo tempo que
consistiu num levante de luta para a classe trabalhadora de todo o mundo. O Manifesto
delineou, sem sombra de dúvidas, a definição do pensamento da classe operária para si18, algo
conquistado mais propriamente por volta de meados do século XIX, por conta da
consolidação da classe burguesa. A compreensão da importância e significado d’O Manifesto
é possível quando se analisa o contexto em que foi escrito e propagado: o ano de 1848, em
que os trabalhadores se configuravam no meio europeu como protagonistas dos rumos da
história.
Na Europa do final da primeira metade do século XIX, os problemas sociais se
identificavam com os problemas do proletariado, no sentido de que expressavam teórica e
doutrinariamente a situação da classe trabalhadora.
É importante dizer, antes de entrar na interpretação da obra, que a palavra socialismo
tem sido interpretada sob muitos aspectos. Há aqueles que a tomam como algo que pode ser
vivenciado ainda sob a hegemonia do capitalismo; estes, tomando roupagens diversas
articulam-se
a
partidos
políticos,
cooperativismo
e
movimentos
sociais;
outros,
contrariamente a esta posição, apregoam o socialismo a partir da superação do capitalismo,
como modo de produção essencialmente contrário a este sistema. Para entender o sentido que
estas duas acepções carregam para a luta contra o capital no pensamento de Marx, é preciso
começar pela história do socialismo, seu surgimento, suas configurações no pensamento dos
vários pensadores que o colocaram no cerne de suas concepções sobre o mundo, sobre a
realidade.
O termo socialismo foi usado pela primeira vez em 1827, em um artigo da Revista
Cooperativa (Magazine Cooperative), designando, segundo Spindel:
Toda uma forte corrente do pensamento político que acreditava ser
necessário radicalizar o modelo de democracia que a burguesia pregava
como ideal para substituir o regime monárquico despótico. Além de
socialistas, os partidários desta corrente também eram conhecidos como
democratas radicais, cooperativistas ou comunistas (1992, p. 16).
18
Classe para si se refere à concepção consciente da classe trabalhadora sobre si mesma enquanto classe. Este
termo é contraposto ao de classe em si, cujo sentido é ausência de consciência de classe.
32
A palavra socialismo guardava uma variedade de correntes: democratas,
cooperativistas e comunistas, as quais, conforme o escopo de suas idéias propunham a luta
por uma sociedade diferente daquela em que se vivia. Ainda no século XVIII, a idéia de
socialismo se modificou profundamente com a Revolução Francesa. Esta foi tida como a
manifestação da luta da população contra a monarquia. Mas, no fim, a tão sonhada Revolução
revelou sua verdadeira face quando os revolucionários, tomando o poder, descartaram, de uma
vez por todas, a presença dos trabalhadores das posições deste mesmo poder; era de fato uma
revolução burguesa em essência.
Tal fato, por sua vez, ocasionou a manifestação de revolucionários da população
contra o novo poder. Estes, após a morte de Robespierre, conspiraram insatisfeitos com os
rumos da revolução, elaborando táticas de luta, e Babeuf, Bounarotti, Saint-Simon foram os
vultos mais marcantes desta luta contra o poder instituído na França. E como já abordado
anteriormente, o pensamento saint-simonista preconizou as idéias socialistas de épocas
futuras, assim como o socialismo ganhou força com as idéias de Owen, sendo este último
influenciador do movimento cartista19, criado em 1830.
Mas o advento do socialismo científico teve primado nas idéias de Marx e Engels, os
quais, denunciando as falhas que as interpretações dos socialistas utópicos teciam sobre a
propriedade privada, a apropriação da mais-valia, a origem do capital, afirmavam que lhes
faltava a força do materialismo histórico-dialético. Por isso, O Manifesto se revela uma obra
sem-par para o pensamento comunista, já que foi escrito em um contexto em que a
democracia ainda se relacionava ao comunismo, na medida em que o proletariado lutava por
algo impossível no plano político sob a hegemonia da classe burguesa: o domínio dos
trabalhadores sobre questões políticas através da ocupação de posições políticas.
O Manifesto foi a prova do amadurecimento da Liga dos Justos, como era chamada a
organização dos proletários ingleses, franceses e alemães que passou a ser de fato socialista,
em uma determinada perspectiva, a partir de 1839. Ele foi o documento que assimilou o
amadurecimento desta Liga no ano de 1847. Envolta em organizações que baseavam a luta
contra as mazelas do capital – esta luta deixava patentes questões mais alicerçadas no plano
político e não no plano da estrutura da sociedade -, representava não os interesses do
proletariado enquanto classe, mas os do poder popular.
19 A palavra cartista vem de Cartismo, movimento reformista britânico que visava a emancipação operária, no
período de 1837 a 1848. Este movimento prezava pelo sufrágio universal masculino (o direito de todos os
homens ao voto), pelo voto secreto através da cédula, pela eleição anual, igualdade entre os direitos eleitorais;
pela participação de representantes da classe operária no parlamento, com a remuneração dos parlamentares.
33
Eram assim as idéias de Babeuf (1758-1795), as quais influenciaram muitos teóricos
nos anos seguintes. Com base na defesa da lei agrária, sua luta se estruturava nos interesses
dos mais humildes. A igualdade era pedra angular de seus ideais, de acordo com suas
palavras:
Desde que começou a existir a sociedade civil, o atributo mais belo do
homem vem sendo reconhecido sem oposição, mas nem uma só vez pôde
ver-se convertido em realidade: a igualdade nunca foi mais que uma bela e
estéril ficção da lei. E hoje, quando essa igualdade é exigida com voz mais
forte do que nunca, a resposta é esta: ‘Calai-vos, miseráveis? A igualdade
não é mais que uma quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos
sois iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?’ Que mais
queremos? Legisladores, governantes e ricos, é agora a vossa vez de
escutardes. Todos somos iguais, não é verdade? Este é um princípio
incontestável, porque ninguém poderá dizer seriamente, a não ser que esteja
atacado de loucura, que é noite, quando se vê que ainda é dia. Pois bem, o
que pretendemos é viver e morrer iguais, já que como iguais nascemos:
queremos a igualdade efetiva ou a morte (BABEUF, 1980, p. 17).
Outro socialista destacado e com o qual Marx teve contato foi Blanqui (1805-1881).
Suas idéias, apesar de conterem elementos da luta de classes, preservavam a tentativa de
modificar e melhorar a vida do povo. E apesar de unir-se ao marxismo, Blanqui não
conseguiu ultrapassar alguns traços do Iluminismo. O socialismo construído por ele tentava
reparar os erros do governo francês, a saber: os elevados impostos a que o povo se submetia e
a negação de espaços nos quais o povo pudesse se expressar e reivindicar benefícios.
Blanqui denunciava a exploração do povo pelos ricos; suas falas aludiam ao
proletariado e desvendavam os mecanismos contraditórios da riqueza; sua denúncia concorria
para o plano da mudança política – ele denunciava a incidência da legislação sobre a
intensificação da pobreza, a partir da garantia dos lucros da burguesia por meio de legislações
sobre produtos agrícolas; negava a monarquia e reclamava, ou melhor, exigia com apelos
apaixonados que os trinta milhões de franceses da época escolhessem a forma de governo e,
através do sufrágio universal, nomeassem os representantes que teriam a missão de promulgar
as leis. Para ele, realizada esta reforma, os impostos que roubam o dinheiro do pobre para o
enriquecimento dos que eram ricos seriam imediatamente suprimidos e substituídos por
outros que carregariam o seu peso na base oposta. Assim,
Em vez de tirar aos [sic] proletariados trabalhadores para dar aos ricos, o
objeto da tributação consistirá em apoderar-se do supérfluo pertencente aos
ociosos para ser repartido entre essa massa de seres indigentes, que se vê
condenada à inação por falta de dinheiro, em carregar os consumidores
improdutivos para alimentar as fontes da produção, em facilitar
34
progressivamente a supressão da divida pública, essa praga purulenta do
país, substituindo, em suma, funestos negócios da bolsa por um sistema de
bancos nacionais, junto dos quais os indivíduos ativos poderão encontrar
elementos de riqueza. Somente então, sim, é que a tributação constituirá em
beneficio (BLANQUI, 1980, p. 48).
Daí que as idéias comunistas se relacionavam mais à luta por igualdade política que
mesmo à superação da ordem burguesa. A reforma era uma constante, e por que não dizer,
uma condição da construção social proposta pelos socialistas com os quais Marx conviveu.
Por isso, o Manifesto representou um marco da luta proletária; o escopo teórico delineado nele
já apresentava as formulações marxianas da realidade, da história, das leis que regem o
sistema capitalista.
O conteúdo teórico da obra revela a radicalidade do pensamento marxista, pautado,
sobretudo, na compreensão da realidade como um sistema universal lógica e materialmente
articulado. A contradição entre capitalistas e trabalhadores era denunciada e sua aparência
natural era posta a nu, deixando à mostra seu caráter determinante e determinado
historicamente. Era possível perceber agora que a realidade social é palco da luta entre as
duas classes: proletariado e burguesia. As implicações desta luta prescreviam a história
humana na era capitalista. Marx e Engels denunciavam a propriedade privada, as relações
mercantilistas, a produção para o lucro e a exploração aberta inaugurada por esta sociedade.
Revelam como única possibilidade de superação do capital o triunfo do proletariado,
daqueles que só possuem a força de trabalho, isto porque:
A condição essencial para a existência e o domínio da classe burguesa é a
formação e o crescimento do capital; a condição de existência do capital é o
trabalho assalariado. Este baseia-se exclusivamente na concorrência entre os
trabalhadores. O progresso da indústria, cujo agente involuntário é a própria
burguesia, substitui o isolamento dos operários, resultante de sua
associação. O desenvolvimento da indústria moderna, portanto, abala a
própria base sobre a qual a burguesia assentou seu regime de produção e de
apropriação. O que a burguesia produz principalmente são seus próprios
coveiros. Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis
(MARX; ENGELS, 2004, p. 57).
Apesar de nos anos subseqüentes os autores d’O Manifesto apresentarem um conteúdo
saturado em alguns aspectos, eles não deixam de apontar a classe possuidora das
determinações históricas para a transformação social, e tampouco abandonam a manifestação
35
da força da História para a efetivação de ações propositivas, o que faz com que esta obra seja
o mais importante documento sobre as bases do socialismo e do comunismo.
É o que podemos ver nos prefácios da edição alemã d’O Manifesto em 1872, no qual
os autores fazem um balanço das mudanças sociais, afirmando que o desenvolvimento da
indústria e da própria organização do proletariado em partido provocou o que eles chamaram
de envelhecimento dos princípios expostos para a efetivação da revolução, o que os levou a
prevenir o leitor da consideração demasiada a tais princípios por conta da própria
configuração da realidade. Em 1882, na edição russa da obra, os autores fazem alusão à
Revolução Russa e à evolução da economia norte-americana, considerando as posições dos
trabalhadores nestes países como a possibilidade de intensificar a luta e ao mesmo tempo
elaborar um novo olhar sobre as estratégias do movimento revolucionário.
Mais uma vez, em 1888, Engels reafirma a saturação de alguns aspectos dos princípios
revolucionários expostos n’O Manifesto. Tratando da panorâmica do movimento operário, ele
confirma a revisão das posições dos partidos revolucionários diante de partidos de oposições,
na edição inglesa da obra. Na edição alemã de 1890 ele alude ao proletariado agrário como
parte da luta. E em 1893, na edição italiana, o autor traz para o centro da luta os operários de
regiões que por volta de 1848 era enfraquecida pela divisão e problemas internos, como é o
caso de Milão e Berlim, demonstrando que as mudanças vividas nestas regiões, como nas
demais que são apontadas, não implicam a rejeição aos princípios d’O Manifesto, mas a sua
consideração conforme a realidade se expressa, sem retirar jamais do seio da luta a força
revolucionária do proletariado.
A crítica de Marx a Proudhon pode ser considerada bastante radical; apesar de possuir
algumas lacunas - o fato de que o valor e as categorias da mais-valia e do tempo de trabalho
socialmente necessário ainda não estarem sendo discutidas por Marx -, a obra A Miséria da
Filosofia (1846) já realça o escopo das idéias que o pensador desenvolveu em O Capital.
A Miséria da Filosofia foi escrita em 1846 como uma contraposição à obra de
Proudhon, Filosofia da Miséria ou Sistema das Contradições Econômicas. Para compreender
o sentido das discussões feitas por Marx em A Miséria da Filosofia é preciso entender o
socialismo proudhoniano.
Pierre-Joseph Proudhon nasceu na França em 1809, falecendo em 1864, logo após
fundar a Associação Internacional dos Trabalhadores. Considerado o pai do anarquismo –
sistema contra toda a forma de governo, em prol da consolidação da liberdade e igualdade –
36
influenciou movimentos na Europa e em muitas regiões do mundo com suas idéias
anarquistas e mutualistas. O socialismo de Proudhon baseava-se na idéia de igualdade entre os
povos, segundo a afirmação de que a realidade é plural, constituída de “força coletiva,
resultante da união, da harmonia, da convergência e da simultaneidade de esforços”
(RESENDE; PASSETTI, 1986, p. 13).
Negando o tipo de estratégia defendida por concepções revolucionárias de sua época,
baseadas na transformação política, Proudhon coloca já em questão a necessidade de se
modificar o âmbito econômico através do mutualismo; para ele, portanto, a forma de se
alcançar uma sociedade igualitária. A palavra mutualismo vem do latim mutuum e quer dizer
empréstimo, reciprocidade, troca. No sistema econômico mutualista as sociedades se
sustentariam com ajuda mútua, solidariedade e igualdade.
Nele se preza pela autogestão em detrimento da heterogestão, sob o pensamento de
que os homens exerceriam sua autonomia organizando-se sem qualquer forma de autoridade,
sendo regidos pela forma política denominada por ele de federação, cujo fim é o de garantir a
integridade das liberdades.
Na federação, de teor agroindustrial – porque este socialista pensa sua organização a
partir da agricultura e da indústria - Proudhon via a possibilidade das instâncias econômicas
se harmonizarem para não haver conflitos entre elas ou ainda para proteger reciprocamente o
comércio e indústria, por meio da “organização dos serviços públicos, com o custo mais baixo
possível” (PROUDHON, apud RESENDE; PASSETTI, 1986, p. 163-164). Para ele, portanto:
A idéia de uma federação industrial que venha a servir de complemento e
sanção à federação política está ostensivamente confirmada pelos princípios
da economia. É a aplicação, em sua mais alta escala, dos princípios da
mutualidade, de divisão do trabalho e de solidariedade econômica,
princípios estes que resultariam convertidos em leis do Estado por vontade
do povo. Que o trabalho seja livre; que o poder se abstenha de tocá-lo, posto
que isto seja mais mortal que o comunismo. Mas as indústrias são irmãs,
umas partes das outras, uma não sofre sem que as demais não sofram.
Federalizem-se, pois, não para absorver-se e confundir-se, mas para se
garantirem mutuamente as condições de prosperidade que lhes são comuns
e não podem constituir monopólio de ninguém (RESENDE; PASSETTI
1986, p. 165).
Ele pensa o governo como um sistema de garantias cujo princípio é a garantia mútua
de instrução, trabalho, livre disposição das faculdades, exercício de aptidões, do usufruto da
propriedade e da troca de serviços e produtos. A base de suas idéias é a compreensão de
37
sociedade, história, relações econômicas expostas na Filosofia da Miséria. A análise de Marx
sobre A Miséria da Filosofia demonstra que, por causa de sua compreensão acerca da
realidade, Proudhon erra na formulação de suas idéias revolucionárias.
Os aspectos da Filosofia da Miséria destacados por Marx são: a compreensão da
História que enviesa o pensamento proudhoniano, seu entendimento acerca de mercado, de
processo de produção e de trabalho.
Após analisar o escopo teórico de Proudhon, Marx evidencia que o método deste
pensador é metafísico, pois, pensa a realidade a partir da dicotomia bom e mau; por exemplo,
ao pensar a concorrência capitalista, Proudhon expõe seu lado bom – a promoção da
igualdade, segundo ele, que a concorrência traz em sua essência – e seu lado mau – a
dispersão daqueles que a envolvem. Daí sua proposta de buscar a síntese entre estes dois
lados, o princípio da acomodação, o equilíbrio entre ambos. As implicações desta idéia para o
socialismo é a afirmação de Proudhon de que a concorrência é necessária, pois é ela que
estimula, em sua visão,
a indústria, o modo atual de ser livre, a responsabilidade no trabalho, a
constituição do valor, uma condição para o advento da igualdade, um
princípio de economia social, uma necessidade da alma humana, uma
inspiração da justiça eterna, a liberdade na divisão, a divisão na liberdade
(PROUDHON, apud MARX, 1985, p. 139).
Ao unir a concorrência ao termo associação, Proudhon acentua que as duas se apóiam
contra o monopólio. As conseqüências desta afirmação para pensar a superação do capital é
que através da concorrência a sociedade superaria o monopólio, já que concorrência é o
oposto de monopólio, logo aquela se manifesta em associação. Sem se ater às determinações
históricas, ele busca transformar o real pela enunciação de palavras.
Através de seu método Proudhon também reflete sobre a divisão do trabalho,
defendendo, semelhantemente à concorrência, que esta possui a positividade de igualar as
condições e as inteligências e a negativatividade de servir de instrumento de miséria, cabendo,
pois, definir qual a síntese entre os dois lados dela que tanto suprima seus inconvenientes,
como preserve sua utilidade. Para ele, as forças produtivas se desenvolveram por meio da
divisão do trabalho, sugerida por um homem que “no início da indústria, trata de igual para
igual os seus companheiros, que mais tarde se tornam seus operários” (PROUDHON, apud
MARX, 1985, p. 127), afirmando, por isto, que “é compreensível, com efeito, que esta
igualdade primitiva deveria desaparecer rapidamente graças à posição vantajosa do patrão e à
38
dependência do assalariado” (idem). É assim que Proudhon explica a fábrica e é assim que
seu pensamento engendra uma compreensão sobre a troca e sobre a mercadoria fora da esfera
histórica.
Ao supor a troca, ele afirma que um homem propôs a outros homens que se
estabelecesse a troca e a distinção entre o valor de uso e valor de troca; explica ele que a
tramitação do valor de uso para o valor de troca é um mistério. E que a diferença entre ambos
os valores se deu por conta da escassez, ou seja, quando os homens se viram sem
determinados produtos, eles resolveram permutar entre si, a fim de sobreviverem.
Ao explicar o valor de troca através da escassez, Proudhon ignora as relações
históricas que lhe dão origem; isto é evidente em sua explicação acerca da abundância de
valores de troca. Segundo ele, esta abundância só se tornou possível por causa da procura
intensa por produtos, ignorando assim a necessidade de lucro que a sustenta. Para evidenciar
tal afirmação, Marx relembra fatos que explicam por que a abundância de certas mercadorias
é reduzida: o primeiro foi a exigência da lei de proibição de produção de novas vinhas na
França; para aumentar o valor de troca dos produtos desta forma de cultura, foi preciso
reduzir a demanda por produtos fora da legalização. O segundo fato foi a queima de produtos
asiáticos na Holanda, elevando assim o valor de troca deste país, levando à demanda por estes
produtos. Portanto, não se trata de simples vontade de definir este ou aquele valor, ou este ou
aquele preço, mas de necessidade de ampliar possibilidades de lucro. (MARX, 1985, p. 45).
Ao dizer que os homens resolveram trocar produtos entre si, Proudhon ressalta
vontade própria, algo que supõe uma idéia de livre-arbítrio. Para ele, foi a partir do livrearbítrio que os homens não apenas definiram o valor dos produtos, como também o preço
deles. Ao explicar o valor da mercadoria, ele chega a afirmar que o produto criado equivale à
quantidade de trabalho requerido para sua produção, o que faz com que o salário seja algo
natural; em outros termos, que seja determinado pelo tempo de trabalho requerido para
produzir tudo o que é necessário à manutenção do operário.
É desse modo que a defesa do mutualismo ganha força em Proudhon. E é dessa forma
que este sistema econômico se alicerça em uma compreensão deformada da realidade, o que
implica sua instabilidade enquanto alternativa ao capitalismo.
Para evidenciar a deformação teórica de Proudhon, Marx recorre à história e
demonstra, apesar de ainda não apresentar a crítica ao capital até às últimas conseqüências –
39
nesse momento Marx ainda não aprofundara o tempo de trabalho socialmente necessário - a
evidência, já em germe, da radicalidade e contundência do materialismo histórico-dialético.
Ao tratar a questão da concorrência proudhoniana, Marx afirma que esta é o
fundamento da sociedade capitalista; ela é a emulação do lucro e não pode haver nela, por
conta de sua própria essência, qualquer benefício, porque o lucro é a razão da exploração da
classe trabalhadora e determina a jornada de trabalho. Para explicar tais premissas, a
explicação de Marx recai sobre a origem da fábrica, expondo a economia doméstica que deu
origem à indústria manufatureira condicionada também pela acumulação de capital, a qual,
por sua vez, se acelerou com a descoberta das Américas.
A decadência do feudalismo, contraditoriamente, deu lugar à ascensão da burguesia;
entre a crescente circulação de mercadorias por causa do comércio incrementado por produtos
orientais, a ampliação de uma massa de trabalhadores oriundos da vagabundagem20 e os
precedentes da divisão do trabalho como a acumulação e a concentração de instrumentos e de
trabalhadores, a nova configuração de trabalho dentro das fábricas deu impulso à sua
intensificação e difusão. Portanto, longe de se originar de acordos voluntários, a fábrica se
consolidou através de condições históricas concretas.
Para explicar o valor de troca, Marx abstrai a troca originada da divisão do trabalho, a
qual nasceu de necessidades concretas. De modo algum em Marx é admitida a idéia de que os
homens decidiram voluntariamente a determinação do valor, pois este nasceu das relações
históricas, de necessidades reais; para Marx, “o valor relativo de uma mercadoria é
determinado pela quantidade de trabalho requerido para produzi-la” (id., p. 55), e, deste
modo, colocando o trabalho como fundamento que explica as relações econômicas em todos
os seus ângulos21, Marx inaugura o pensar a realidade a partir da concretude, abstraindo as
categorias a partir dela.
Em Marx compreende-se que qualquer pensamento fora da realidade concreta resulta
sempre em um pensamento deformado cujas conseqüências acabam por se constituir em
20
Para a elucidação desta questão é pertinente o estudo sobre as condições que deram força à acumulação
capitalista, para tanto, consultar o texto A Acumulação Primitiva, no Livro I d’O Capital.
21
Na Miséria da Filosofia, apesar de contornar muitas das interpretações sobre economia política, Marx ainda
apresenta algumas conjecturas a partir dos economistas políticos de sua época. Ele ainda faz uso de categorias
tratadas por estes sem sair do sentido que eles lhes deram. Assim, é possível vê-lo dialogando com Ricardo, por
exemplo, a respeito de seu entendimento sobre o tempo de trabalho – o que demonstra a não-descoberta do
tempo de trabalho socialmente necessário e o valor de troca, categorias especificamente marxianas. Ver A
Miséria da Filosofia, p. 49-53.
40
posições reacionárias. Nesta obra, Marx sinaliza com profundeza, em suas primeiras
delineações, a articulação das instâncias que formam o real em uma totalidade.
Apesar de seu pensamento tanto n’O Manifesto quanto n’A Miséria da Filosofia ainda
conter limitações acerca da realidade e das leis do capital, ele não deixa de traçar os princípios
que regerão suas reflexões e inflexões futuras, cuja consolidação é encontrada em sua obra
mais famosa, O Capital. Ao desvendar as leis capitalistas nessa obra, Marx apresenta o meio
pelo qual as relações capitalistas podem ser superadas. A lógica do seu sistema de pensamento
sobre o real conduz necessariamente à lógica da análise de como este real deve ser superado.
Assim, tomar a lei do valor em Marx desvendada nela implica desvelar a riqueza desta teoria
para a interpretação da realidade capitalista atual - circunscrita sob a centralidade das finanças
e fluxos monetários –, de seus limites e de suas possibilidades às estratégias da luta socialista.
É neste direcionamento que o pensamento de Marx continua válido para a compreensão do
real em todas as suas determinações.
Ao tratar radicalmente das idéias socialista de sua época, Marx tomou a totalidade da
realidade, destacando as leis que regem o sistema capitalista. Assim foi nos textos
apresentados acima; seu modo de pensar não admitia a desconsideração de que a construção
de novas relações se baseasse em partes do real. Não bastava para ele a melhoria das
condições sociais, a repartição de riquezas pela modificação das medidas tributárias e
financeiras, a luta pela participação da população nas questões políticas ou mesmo a denúncia
dos defeitos da sociedade capitalista – miséria, baixa qualidade de vida da maioria –, ou a
consideração de que certos aspectos do sistema do capital precisam ser fomentados em
detrimento de outros.
Essa obra só vem confirmar o caráter dialético do pensamento de Marx, regido por
movimentos e contradições, conforme se apresenta a própria realidade. Nas obras
anteriormente citadas, porém, já se colocava uma questão relevante: o papel do proletariado
para a revolução e a necessidade de que a nova sociedade, a comunista, seria de fato uma
mudança profunda do estado real das relações em que se vive; e, portanto, estas duas questões
continuam válidas para qualquer investigação acerca das possibilidades do socialismo no
mundo hodierno.
No capítulo a seguir, apresentaremos as cooperativas de produção da Economia
Solidária e o processo educacional desenvolvido pelas Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares (ITCPs), o qual será analisado a partir do pensamento de Marx mais
adiante.
41
CAPÍTULO II
A ECONOMIA SOLIDÁRIA NO BRASIL: A EDUCAÇÃO DE
TRABALHADORES PARA A AUTOGESTÃO
É quase unânime nos estudos sobre o cooperativismo a premissa de que os primeiros
ensaios concretos desta doutrina nos moldes em que vemos hoje começaram com a
experiência na cidade de Rochdale, Inglaterra, pois sua doutrina se alastrou pelos quatro
cantos do mundo.
A Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale foi criada por 28 tecelões em 1844, que,
descontentes com as condições de exploração e miséria em que viviam, tomaram as
experiências de seus precursores, incorporando novas estratégias para sua sustentação. Os
Pioneiros não inventaram as doutrinas do cooperativismo, mas as tornaram efetivas em suas
práticas, daí seu sucesso se espalhar pelo mundo todo. É interessante perceber que a criação
de formas cooperativas é oriunda da própria realidade em que seus formadores viveram.
Condicionados pelas contradições de seu contexto, os sujeitos das experiências cooperativas,
em épocas e regiões diversas, procuraram formulá-las conforme suas necessidades e aptidões.
Com o intuito de fugir das relações de exploração em que viviam e ao mesmo tempo
agir sobre as necessidades mais urgentes de seus cooperados, a experiência de Rochdale pode
ser considerada um marco do cooperativismo, se não a única, sem dúvida, a que fundamentou
as cooperativas de sua época, bem como de épocas posteriores, por trazer em sua estrutura o
atendimento de seus integrantes – quanto às necessidades mais imediatas -, a confiança e
organização de trabalho e de financiamento, conforme atesta o próprio programa dessa
experiência:
A sociedade tem por fim realizar um benefício pecuniário e
melhorar as condições domésticas e sociais de seus membros,
reunindo um capital dividido em quotas de uma libra e suficiente à
prática do seguinte plano:
• abrir um armazém para a venda de gêneros alimentícios, roupas,
etc;
• comprar ou construir casas para os associados que desejarem
ajudar-se mutuamente para melhorar as condições de vida
doméstica e social;
• Empreender o fabrico dos artigos que a sociedade julgar
conveniente produzir, para dar trabalho a seus membros que
estiverem desempregados ou que venham a sofrer contínua
redução de salários;
42
• Comprar ou alugar terras, que serão cultivadas por seus membros
que não tiverem trabalho ou por aqueles cujos salários sejam
insuficientes;
• Logo que for possível, a sociedade procederá à organização das
forças de produção, da distribuição, da educação e de seu próprio
governo com recursos próprios, ou, em outros termos, ela se
constituirá em colônia autônoma, na qual todos os interesses serão
solidarizados, auxiliará as outras sociedades que queiram fundar
colônias semelhantes;
• Com o fim de propagar a temperança, a sociedade abrirá em um de
seus locais um estabelecimento de temperança (IRION, apud MOTA,
2003, p. 38- 39).
Segundo Lechat (2003), foram criados balcões de alimentos e cooperativas de
produção – estas por trabalhadores que tentavam escapar das relações subservientes do
capitalismo. As conquistas da classe trabalhadora em relação à criação de cooperativas podem
ser apontadas por meio de uma lei de 1901 na França; esta, apesar de incentivar e reconhecer
as experiências cooperativas restringiu-as às trocas não monetárias, caso não estivessem
ligadas aos poderes públicos.
Várias foram as experiências cooperativas que surgiram no mundo. Algumas,
recuperando as doutrinas e os princípios do cooperativismo rochdaliano, aderindo a uma luta
contra os problemas gerados pelo sistema capitalista, a saber: competição, vigilância sobre o
trabalho, a não-participação na produção etc. Mas também como simples transfiguração das
empresas capitalistas – as quais, trazendo os moldes de cooperativas, mantinham-se nas
relações capitalistas das empresas tradicionais por meio de relações patronais e de
assalariamento. De um ou de outro modo, o cooperativismo deve ser analisado em seus
efeitos conforme a realidade em que se assenta. Apenas dessa forma é possível perceber seu
significado para a vida dos indivíduos nele envolvidos22.
As idéias cooperativistas chegam ao Brasil com os imigrantes europeus por volta de
1850, os quais, adeptos do pensamento de Proudhon23, defendiam a organização sindical
autônoma, a extinção do Estado, da Igreja e da propriedade privada, sendo contrários a
qualquer atuação política de partido e colocando o mutualismo proudhoniano: a produção e o
22
Não nos ateremos a experiências cooperativas de modo geral, pois isto remeteria a uma pesquisa extensa que
pouco enriqueceria o objetivo deste trabalho. Basta saber que cooperativas de várias modalidades de produção e
serviços foram criadas no mundo inteiro, sempre conforme a demanda de cada região e de suas condições
histórico-econômicos.
23
Para saber detalhes sobre a vida e o pensamento de Proudhon, ver páginas 35-38 deste trabalho.
43
consumo ordenando-se em pequenas associações baseadas no auxílio mútuo entre as pessoas,
como ideal a se conquistar.
As primeiras experiências cooperativistas no Brasil são registradas entre 1891 e 1899.
As mais notáveis foram: a Cooperativa dos Empregados da Companhia Telefônica, em
Limeira/SP; a Cooperativa de Consumo Militar, no Distrito Federal; a de Consumo, em
Camaragibe/PE, e a dos Empregados da Companhia Paulista, em Campinas/SP. Tais
cooperativas chegaram a terras brasileiras por meio de intelectuais e letrados; elas não
partiram de alguma necessidade específica das massas.
Na década de 1930, momento em que o país atravessava uma mudança em sua
estrutura econômica houve uma proliferação intensa de experiências cooperativistas. Contudo,
tais experiências não passaram de simples corretivos à crise de 29 e aos problemas advindos
da guerra, segundo as palavras de Pinho:
A partir de 1932, [...] se verificou um surto relativamente apreciável do
cooperativismo em nosso país devido principalmente a dois fatores: em
primeiro lugar, o Poder Público viu nas cooperativas uma das mais
eficientes soluções para os graves problemas resultantes da conjuntura
econômica mundial (e oriundos, sobretudo, da Primeira Guerra e da crise de
29) e de nossa própria estrutura econômica, tão fràgilmente assentada sôbre
a monocultura extensiva e enfrentando graves crises do café (1965, p. 76).
Sem um conteúdo democrático, as cooperativas brasileiras atendiam a elite; eram
empresas de novo tipo que não poderiam ser estimuladas entre a população, mas entre
fazendeiros, proprietários de terra falidos em busca de alternativas para se sustentar devido às
crises que influíam no país. Sua proliferação, por isso, não pode ser considerada a partir de
seus efeitos sobre a forma de vida da maioria da sociedade, embora algumas experiências
cooperativas prezassem pela reeducação de seus cooperados com vistas ao desenvolvimento
de capacidade de participação política destes. Seu desenvolvimento é muito mais quantitativo,
embora pequeno, em relação às empresas de tipo tradicional nascentes, desde o início de
industrialização do Brasil.
Os maiores problemas apontados por Pinho (1965) quanto à irrisória criação de
cooperativas no Brasil em relação à Europa são: o não-desenvolvimento da industrialização
como revolução; o fato de os grupos de indivíduos não terem uma consciência de classe que
propiciasse a busca de soluções para seus problemas; o fato de esses grupos em sua maioria
não possuírem sequer pequenas propriedades e o fato de o território brasileiro ser muito
44
grande, dificultando o transporte e isolando as regiões, ao mesmo tempo que estimulava o
individualismo. Segundo a autora, esses problemas persistiram até 1960. Ela acrescenta que
une-se a tais problemas, a falta de uma educação cooperativa como veículo de expansão do
cooperativismo.
Em 1971 é aprovada a Lei nº 5764 de 10 de outubro, a qual regula até os dias de hoje
as ações cooperativas no país. Nessa década, o Brasil se assenta na tentativa de levar adiante
seu II Plano Nacional de Desenvolvimento, mais precisamente em 1974, quando vivencia as
conseqüências da crise que assolou o mundo em 1973. Neste Plano, o país tenta se acomodar
à economia internacional, através da aceleração da indústria, e o cooperativismo se expressa,
sobretudo, como instrumento para alcançar algumas metas: a exploração e implantação de
novos setores juntamente à implantação de programas de desenvolvimento social.
Para Rego (1984), é nesse momento que se percebe a oportunidade imprescindível
para a consolidação e ampliação da influência do cooperativismo, pois este promoveria o
verdadeiro desenvolvimento a partir da participação do povo da valorização de nossa história,
de nossa política social e de nossa cultura. A educação, portanto, seria a nova tônica do
cooperativismo, considerado coma a base no processo de desconcentração de renda. Através
dela os cooperados receberiam um maior esclarecimento sobre suas reivindicações de
participação ativa na economia e na rentabilidade como membros da cooperativa.
Atualmente, o cooperativismo vem sendo bastante fomentado por entidades como o
SEBRAE, o SENAC e redes de movimentos afins. Estas têm contribuído para a criação de
cooperativas com vistas ao desenvolvimento econômico, não colocando em pauta a
necessidade de mudar o sistema capitalista, mas de implantar empresas cooperativas para a
inserção dos indivíduos no processo de produção.
Segundo dados da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), há cerca de 200
mil pessoas trabalhando em todo o Brasil, nas 7.500 cooperativas cadastradas nesta entidade.
E este número de empregados é ainda maior se acrescidos os prestadores de serviços aos
cooperados, que não trabalham com carteira assinada, a exemplo de contadores e
fornecedores. As cooperativas vêm ganhando força na economia nacional. Hoje, 33% da
produção agropecuária brasileira passa pelas cooperativas. O faturamento anual delas é de
cerca de R$ 90 bilhões e os números refletem na vida dos trabalhadores, agregando renda24.
24
Ver mais informação em www.ocb.org.br
45
Agricultores25 ligados às cooperativas têm renda três vezes maior do que os que não
participam desse tipo de empresa. Um exemplo claro disso é a Cooperativa dos Agricultores
da Região de Orlândia (SP), a CAROL e a Cooperativa Regional de Cafeicultores em
Guaxupé (MG), a COOXUPÉQUE.
Afirmando as diferenças das características da cooperativa em relação à empresa
tradicional, o SEBRAE apresenta o seguinte quadro:
Empresa Cooperativa
Empresa Não Cooperativa
É uma sociedade de pessoas
É uma sociedade de capital
Objetivo principal é a prestação de serviços
Objetivo principal: lucro
Número ilimitado de cooperados
Número limitado de acionistas26
Controle democrático - um homem, um voto
Cada ação, um voto
Assembléia: “Quorum” baseado no número de
associados
Não é permitida a transferência das quotas-partes
a terceiros, estranhos à sociedade
Assembléia: “Quorum” baseado no capital
Retorno proporcional ao valor das operações
Dividendo proporcional ao valor das ações
Transferências das ações a terceiros
Fonte: www.sebrae.com.br
O fomento de cooperativas sob uma perspectiva dita distinta da lógica capitalista é
vivenciado através da Economia Solidária, a qual traz em suas bases a defesa da autogestão e,
com ela, a solidariedade, a confiança e as relações democráticas. Os benefícios trazidos pelas
cooperativas se configuram no âmbito social, a saber: criação de postos de trabalho, elevação
da qualidade de vida, preservação dos recursos naturais e ambientais e valorização do
humano. Seu diferencial para as experiências anteriores deve-se à adesão acadêmica e política
em extensão significativa no país.
A Economia Solidária surge na década de 80, quando o país se encontra em pleno
processo político, demarcando a busca dos sujeitos sociais por espaços democráticos em todas
as instâncias da vida social, conforme admite Lechat:
25
Abrimos um parêntese para informar que o maior número de cooperativas no Brasil se manifesta no setor
agrícola. Por isso, seu fomento é bastante acentuado nas várias entidades que lhe dão estrutura. Exemplo disso é
a criação de cooperativas no âmbito da agricultura, através do SEBRAE.
26
O acionista é todo aquele que detém uma parte do capital da empresa, que é representado por suas ações. Pode
ser aquele que se envolve na administração da empresa ou no acompanhamento de sua rotina, participando de
suas assembléias ou o que fica a distância observando as ações apenas como instrumentos de renda ou de
especulação no mercado.
46
Os inúmeros movimentos sociais e étnicos trouxeram uma nova visão do
social, da sua relação com o econômico e da relação do homem com o meio
ambiente. A queda do muro de Berlim, símbolo do fim de uma utopia,
levou à produção de novas utopias compostas por comunitarismo,
ecologismo, solidariedade e voluntarismo (2003, p. 05).
Ela começa a se consolidar nas literaturas que surgem na época, as quais ensaiam os
princípios da autogestão, solidariedade e cooperação como meio de suplantar a crise
desencadeada no desemprego estrutural e na competição acirrada, próprias do neoliberalismo,
visando a transformação social.
A Economia Solidária ganha relevante papel na atual conjuntura. Já nas eleições de
2002, o candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva, ressalta em suas propostas políticas
a estratégia de sanar o desemprego no país através de experiências autogestionárias. São
organizados fóruns e conferências reunindo uma não desprezível gama de intelectuais para
discutir a possibilidade da construção de uma sociedade socialista.
Atualmente ela é apoiada pelo governo federal através do Ministério do Trabalho e
Emprego (MTE), com o desenvolvimento de pesquisas na Secretaria Nacional de Economia
Solidária (SENAES), cujo objetivo é fomentar empreendimentos solidários no país.
Segundo o Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, a Economia Solidária
tem sido uma resposta importante dos trabalhadores e das comunidades
pobres em relação às transformações ocorridas no mundo do trabalho. São
milhares de organizações coletivas, organizadas sob forma de autogestão, que
realizam atividades de produção de bens e de serviços, crédito e finanças
solidárias, trocas, comércio e consumo solidário (2006, p. 17).
A SENAES compreende a ES “como o conjunto de atividades econômicas – de
produção, distribuição, consumo, poupança e crédito – organizadas e realizadas
solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras, sob a forma coletiva e autogestionária”
(2006, p. 11).
A partir daí, ela entende que os empreendimentos solidários são organizações coletivas
- organizações suprafamiliares, singulares e complexas, tais como: associações, cooperativas,
empresas autogestionárias, grupos de produção, clubes de trocas, redes e centrais etc, cujos
participantes ou sócios(as) são trabalhadores(as) dos meios urbano e rural que exercem
coletivamente a gestão das atividades, assim como a alocação dos resultados (2005, p. 17)..
47
Para a elaboração do perfil da ES no Brasil a SENAES identificou 14.954
Empreendimentos Econômicos Solidários em 2.274 municípios do Brasil (o que corresponde
a 41% dos municípios brasileiros). A partir daí foi constatado que há uma maior concentração
de EES na região Nordeste, com 44%, tendo o Ceará em primeiro lugar, como o Estado que
possui mais empreendimentos solidários, seguido da Bahia e do Piauí. É importante perceber
que Alagoas aparece como o Estado que possui o menor número desses empreendimentos. Os
restantes 56% estão distribuídos nas demais regiões: 13% na região Norte, 14% na região
Sudeste, 12% na região Centro-oeste e 17% na região Sul, conforme a tabela adiante.
QUANTIDADE E PERCENTUAL DE EES POR
UNIDADE DA FEDERAÇÃO/REGIÃO
UF
RO
AC
AM
RR
PA
AP
TO
NORTE
MA
PI
CE
RN
PB
PE
AL
SE
BA
NORDESTE
MG
ES
RJ
SP
SUDESTE
PR
SC
RS
SUL
MS
MT
GO
DF
Nº de
EES
240
403
304
73
361
103
400
1.884
567
1.066
1.249
549
446
1.004
205
367
1.096
6.549
521
259
723
641
2.144
527
431
1.634
2.592
234
543
667
341
% EES
1,6%
2,7%
2,0%
0,5%
2,4%
0,7%
2,7%
13%
3,8%
7,1%
8,4%
3,7%
3,0%
6,7%
1,4%
2,5%
7,3%
44%
3,5%
1,7%
4,8%
4,3%
14%
3,5%
2,9%
10,9%
17%
1,6%
3,6%
4,5%
2,3%
Nº de
% Municípios/Total
Municípios
de municípios
40
75%
20
87%
32
51%
14
88%
51
35%
13
76%
84
60%
254
56%
73
33%
83
37%
134
72%
77
46%
101
45%
129
69%
48
47%
63
83%
153
37%
861
48%
101
12%
59
75%
82
88%
147
23%
389
23%
109
27%
133
45%
270
54%
512
43%
25
32%
91
65%
127
51%
15
83%
48
CENTROOESTE
TOTAL
1.785
12%
258
53%
14.954 100,0%
2274
41%
Fonte: www.mte.gov.br/empregador/economiasolidaria/atlas
Constata-se que a atuação de cooperativas no Brasil é muito inferior à atuação de
associações e grupo informais, principalmente nas regiões Sudeste e Sul.
ATUAÇÃO DE COOPERATIVAS NO BRASIL
ATUAÇÃO DE
GRUPOS
INFORMAIS
NO BRASIL
DA ES
49
50
ATUAÇÃO DE ASSOCIAÇÕES NO BRASIL
A apresentação desses dados comprova que, apesar de ser entendida como uma
alternativa ao capital, as cooperativas embasadas nos princípios da ES não avançam consoante
aos empreendimentos informais e às associações, que se distribuem, em sua maioria, nos
setores de serviços e de produção doméstica.
De acordo com os dados oferecidos pelo Atlas da SENAES, os motivos que levam as
pessoas a se engajar à ES através de suas várias formas de empreendimentos são: a) ter uma
alternativa ao desemprego (45%), b) complementar a renda dos sócios (44%), c) obter
maiores ganhos (41%). Contudo, há motivos como a possibilidade da gestão coletiva da
atividade (31%) e a condição para acesso a crédito (29%), conforme a demonstração do
gráfico a seguir.
51
MOTIVOS QUE LEVAM AS PESSOAS A INGRESSAR NA ECONOMIA SOLIDÁRIA
alternativa ao desemprego
45
fonte de renda complementar
40
obtenção de maiores ganhos
em uma empresa autogestionária
35
30
para não ter patrão
25
acesso a financiamento e apoio
20
para maior qualificação
15
motivação social, filantrópica ou
religiosa
10
desenvolver a comunidade em suas
capacidades e potencialidades
5
recuperar trabalhadores de empresas
falidas
0
outros
Fonte: www.mte.gov.br/empregador/economiasolidaria/atlas
Para compreender de fato a consistência deste movimento é necessário entender como
ele se apresenta na realidade brasileira, que princípios defende para a transformação social a
que se propõe, a fim de investigar seu conteúdo diante do capitalismo contemporâneo.
Antes de tudo, é preciso entender que a ES se enquadra em uma concepção de
socialismo que se opõe ao socialismo científico inaugurado por Marx porque não nega
profundamente o capital. Por ora, importa descrever as principais idéias desta Economia a
respeito da construção de uma sociedade, apenas para vislumbrar o que será investigado mais
adiante.
2.1 Os princípios da Economia Solidária: a autogestão como alternativa ao capital
A exposição dos princípios da ES não é uma tarefa simples, visto que se trata de um
movimento difuso. Em outros termos, é um movimento que se apresenta sob a forma de
instituições diversas – ONGs, Associações, Centros de Apoio, de Crédito, de Educação,
Cooperativas etc. – ao mesmo tempo que se mostra sob vertentes diversas, desde as de cunho
religioso e às de cunho econômico.
Assim, é necessário delimitar que aqui serão tratadas as cooperativas de produção, por
serem estas o locus do socialismo defendido pela ES. É através de empresas cooperativas,
segundo seus defensores, que a realidade poderá ser transformada. Para o entendimento
52
desses princípios e de suas implicações para a realidade, como também para a luta pela
superação do capital, serão expostos os princípios da ES, aquilo que a sustenta enquanto
teoria e ação ante a realidade.
Como a literatura acerca do objeto é extensa, o que acarretaria redundância, pela
unanimidade de posições dos pesquisadores e autores que estudam o fenômeno, recorremos a
Singer, tendo os trabalhos Introdução à Economia Solidária (2002), Economia Socialista
(2000), A Economia Solidária no Brasil (2003) e Uma Utopia Militante (1999) como fontes
centrais, por ser este o autor que aprofunda os estudos sobre a ES no Brasil, principalmente no
governo Lula – Singer é hoje o secretário nacional de Empreendimentos Solidários e vem
atuando no Ministério do Trabalho e Emprego para o avanço da Economia Solidária no
Brasil.
Na sociedade atual, considera-se que as experiências socialistas do passado nos deram
contribuições valiosas quanto aos seus ideais e princípios norteadores. A ES coloca em
evidência, ao discutir a experiência soviética, a necessidade de se repensar sua lógica
(SINGER, 2000). Nessa discussão ela põe no centro de sua defesa a autogestão enquanto
meio de promover o socialismo, agora não mais nos moldes soviéticos, mas na estrutura da
realidade atual que, dizem, não mais admite aquele modelo. Singer expõe a questão nestes
termos:
Continua sendo verdadeiro que o socialismo pressupõe a transferência do
controle efetivo dos meios de produção dos capitalistas aos trabalhadores.
Mas esta transferência requer muito mais do que um ato jurídico-político de
transferência formal de propriedade ou posse. Ela requer, antes de mais
nada, que os trabalhadores estejam desejosos de assumir coletivamente tal
controle e que se possam habilitar para exercê-lo em nível aceitável de
eficiência. Nas várias experiências stalinistas, o desejo dos trabalhadores
estava meramente pressuposto e o controle efetivo ficou com prepostos do
poder estatal, que jamais permitiram aos trabalhadores que se habilitassem a
exercê-lo (1998, p. 10).
E ainda:
Marx e Engels nos legaram uma crítica profunda e penetrante do
capitalismo como modo de produção, mas sua visão científica do socialismo
deixa muito a desejar, sobretudo no delineamento de sua organização
econômica e de seu ordenamento social e político. [...] O reducionismo de
Marx e Engels teve conseqüências quando a União Soviética tratou de
aplicar à realidade as fórmulas do socialismo científico. Os meios de
produção foram efetivamente estatizados, mas desse primeiro ato do Estado
como representante auto-assumido de toda a sociedade não resultou o
perecimento do Estado, mas o contrário, seu crescimento monstruoso. [...]
Parece claro que a economia socialista precisa encontrar um modo diferente
de regular a economia, que seja democrático e participativo e pelo qual toda
a sociedade possa manifestar suas preferências. Isso leva a crer que esse
53
novo modo de regulação terá de ser explicitamente político, reconhecendo
de partida que os cidadãos têm interesses, percepções e preferências
diferentes e que o modo de regulação deve permitir o confronto e a negação
dessas diferenças com o fim explícito de produzir ou um consenso ou, se
este for impossível, uma posição majoritária (2000, p. 11, 17 e 37).
Com isso, o autor evidencia sua compreensão sobre socialismo, relacionando a
experiência soviética com as idéias de Marx, idéias que o autor julga serem reducionistas, já
que, para ele, o marxismo sobrepõe a economia às demais instâncias da vida social. No centro
deste modo de pensamento está a defesa da autogestão como o meio, a via de passagem desta
sociedade capitalista para outra, socialista, igualitária, cujas características são a coletivização
da produção por meio da associação e a cooperação entre trabalhadores em empresas
autogestionárias, como assinalam suas palavras:
No atual patamar tecnológico parece adequado que a produção esteja
organizada em um número grande de empresas autônomas de diferentes
tamanhos. Elas pertenceriam coletivamente aos trabalhadores associados ou a
uma sociedade de trabalhadores e consumidores. Em nenhuma das empresas o
capital seria de propriedade de terceiros, isto é, de não-trabalhadores ou
não-consumidores. A organização das empresas deveria se submeter aos
princípios do cooperativismo, particularmente ao da autogestão, que tem por
base um voto por cabeça, a soberania da assembléia dos sócios e a eleição
para todas as instâncias de mando. Outro princípio importante seria o da porta
aberta: os indivíduos teriam o direito de ingressar na empresa e de deixá-la,
evidentemente respeitando os interesses dos demais integrantes (SINGER,
2000, p. 45, grifos nossos).
Fica claro que o cooperativismo da ES não se direciona apenas a sanar os problemas
do desemprego e miséria estruturais do sistema capitalista, mas a atuar com vistas a
solucionar esses problemas por meio de sua concepção de socialismo. Nas empresas
cooperativas os trabalhadores se deparariam com um tipo de trabalho cuja organização se
daria sob os princípios da democracia, com efeitos na esfera política e econômica27, segundo
Galvão e Cifuentes (2001). Esta nova organização do trabalho constitui uma nova
racionalidade, não mais baseada na competição e heterogestão, que desconsidera a capacidade
de decisão nos rumos da produção por parte dos trabalhadores. Sobre este aspecto, Singer
afirma:
Talvez a primeira diferença entre economia capitalista e solidária seja o modo
como as empresas são administradas. A primeira aplica a heterogestão, ou
seja, a administração hierárquica, formada por níveis sucessivos de
autoridade, entre os quais as informações e consultas fluem de baixo para
cima e as ordens e instruções de cima para baixo (2002, p. 16).
27
É interessante perceber que comumente os autores abordam a esfera econômica e a esfera política como uma
cisão. Mais adiante veremos que esta cisão é percebida também no pensamento de Singer.
54
Também:
A competição exacerbada entre setores e grupos rivais, embora sempre vise
aumentar a lucratividade do conjunto, pode prejudicar o funcionamento da
empresa como um todo, sobretudo se alguns setores sonegarem informações
estratégicas aos setores rivais para enfraquecê-los (idem, p. 16).
As vantagens apontadas pelas empresas autogestionárias da ES, segundo o autor, se
evidenciam, sobretudo porque “a empresa solidária se administra democraticamente, ou seja,
pratica a autogestão” (ibidem., p. 18). E ainda porque, nas empresas solidárias,
As ordens e instruções devem fluir de baixo para cima e as demandas e
informações devem fluir de cima para baixo. Os níveis mais altos, na
autogestão, são delegados pelos mais baixos e são responsáveis perante os
mesmos. A autoridade maior é a assembléia de todos os sócios, que deve
adotar as diretrizes a serem cumpridas pelos níveis intermediários e altos da
administração (ibidem, p. 16).
Igualmente constitui uma vantagem das empresas autogestionárias, ainda segundo o
autor, o fato de que
Na fábrica capitalista os empregados têm de produzir lucros proporcionais
ao capital investido, obrigação que os cooperados não têm, o que lhes
permite se auto-explorar menos; além disso, os cooperados têm a
liberdade de escolher quando e como trabalhar para tornar sua empresa
competitiva, ao passo que os trabalhadores assalariados têm de obedecer a
determinações da direção (2003, p. 17, grifos nossos).
Para ele, a emancipação humana dos trabalhadores se relaciona ao fato de que na
autogestão se promovem relações de participação e tomada de decisão, já que tal postura é
negada dentro da empresa capitalista. Mais uma vez recorremos às suas palavras:
A economia solidária melhora para os cooperados as condições de trabalho,
mesmo quando estas continuam deixando muito a desejar. Afinal de contas,
assumir o poder de participação das decisões e portanto de estar informado
a respeito do que acontece e que opções existem é um passo importante para
a redenção humana do trabalhador (id., p. 18).
A argumentação desses autores também revela o que a ES entende a respeito da
distribuição da renda produzida pelas empresas autogestionárias. Nestas, os sócios não
recebem salário, mas retirada, a qual é distribuída entre eles igualitariamente, e o que sobra é
destinado para a educação e investimentos. Destarte, os trabalhadores cooperados não
contariam com o sistema de assalariamento vigente nas empresas capitalistas.
55
Assim, fica claro nos autores supracitados, que a ES se materializa em cooperativas
buscando trazer um processo de produção superador do antagonismo entre o trabalho e o seu
produto. A autogestão é considerada, por seus defensores, fator decisivo para a transição a um
modo de produção igualitário; ela se atrela à idéia de que, trabalhando sem competição dentro
da empresa, participando do processo da produção, interferindo nos rumos deste processo,
conhecendo a fundo toda a dinâmica dele, por meio da informação a seu respeito, o
socialismo seria alcançado. Porque nesta forma de gerir a produção o trabalhador poderá
adquirir uma nova mentalidade, em outras palavras, uma nova subjetividade.
2.2 O princípio da educação e o papel das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares
Para aqueles que defendem a ES, se os trabalhadores forem capazes de, em conjunto,
planejar e controlar o trabalho, sustentando, deste modo, seus próprios negócios, então
estaremos a um passo do socialismo. Ao trabalharem por conta própria, sem a figura do
patrão, os trabalhadores estarão fomentando relações democráticas valiosas, assim advogam
os pesquisadores da ES. Para elucidar o conteúdo da educação defendida por este movimento
é importante destacar o trabalho que as suas incubadoras desenvolvem.
Como já foi dito a respeito da autogestão, a ES entende que esta constitui uma via de
transição desta sociedade para outra, a qual, por sua vez, diz respeito à autonomia e à
participação dos trabalhadores nela inseridos. Contudo, sabendo que os trabalhadores trazem a
cultura do individualismo e das relações utilitário-monetárias do capital, a ES traz a novidade
da reeducação dos trabalhadores. E esse processo educativo refere-se à aquisição de posturas
autônomas por parte dos trabalhadores, bem como de vivências de relações horizontais com
base nos princípios democráticos da participação, já que isto lhes é subvertido pela lógica da
competitividade e seletividade, própria das empresas capitalistas. É neste sentido que entra o
trabalho da incubadora. Elucidar o papel desempenhado por elas é imprescindível para
compreender a natureza da educação que lhe enviesa. Antes, porém, uma revisão dos termos é
importante para apreender seu sentido na realidade.
A palavra incubadora tem dois sentidos no dicionário Aurélio: o primeiro se refere a
um aparelho para chocar artificialmente ovos e outros microorganismos, assim como a um
aparelho, também artificial, administrado para manter uma temperatura, oxigenação e
56
umidade adequadas para o desenvolvimento de crianças prematuras; o segundo sentido é o de
planejamento, projeção, predisposição.
Em se tratando de um período de aprendizagem para se estruturar, a fim de adquirir
autonomia, a incubadora da ES apreende os dois sentidos. Por consistir em um período de
desenvolvimento ou amadurecimento pautado em planejamentos e projeções, incubar
empresas cooperativas diz respeito ao processo de aprendizagem de técnicas administrativas e
comerciais que a cooperativa precisa aprender para se dar bem, ou melhor, para obter os
resultados econômicos a que se propõe no mercado. Para discutir o sentido que tal
aprendizagem possui para as cooperativas é importante apresentar seu significado e
características.
Primeiramente, deve-se entender que as incubadoras não dizem respeito apenas aos
empreendimentos cooperativos. Desde 1970, empresas capitalistas foram fomentadas pelo
trabalho de incubadoras e estas, por sua vez, foram estruturadas por universidades em vários
países: Alemanha, Inglaterra, EUA, entre outros.
Segundo Oliveira (2003), aqui no Brasil, na década de 80, elas foram impulsionadas
pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento e Pesquisa (CNPq), também sendo financiadas
pela Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), bem como pela Organização de Estudos
Americanos (OEA); e em 1987 receberam apoio da Associação Nacional Promotora de
Empreendimentos de Tecnologia Avançada (ANPROTEC). A partir de 1998 elas vêm sendo
assessoradas também pelo SEBRAE.
Estas incubadoras têm a característica de operacionalizar recursos materiais e
“humanos”28 para o desenvolvimento das empresas. Sendo elas estimuladas e administradas
por universidades, seu desenvolvimento é incrementado pela pesquisa e tecnologia efetivadas
no meio acadêmico.
Para Oliveira (2003), a incubadora de empresas nas universidades se consolida através
de papel do professor e alunos empreendedores. A sua atuação deve possuir os objetivos,
metas e critérios de seleção considerados relevantes, a fim de que o direcionamento da
incubadora seja fundamentalmente para a formação de empreendedores, o desenvolvimento
tecnológico, a geração de empresas e o incentivo à interação entre a universidade e a empresa.
28
Usaremos o termo recurso humano apenas para efeito de compreensão, sem consentir com o sentido que ele
toma nas ciências administrativas, a saber: o fator humano como mercadoria dentro da empresa.
57
O que está na base dessas incubadoras é a tecnologia e, portanto, o locus para o seu
desenvolvimento tecnológico é a universidade; é deste modo que os planos de negócios das
empresas transformam-se em pesquisa na universidade para efeitos de assessoramento técnico
e é deste modo também que o papel da incubadora de empresa se expressa fundamentalmente
voltado para o gerenciamento.
Ao abordar a gestão de incubadoras, o autor afirma que é necessário traçar as metas e
direcionamentos que se pretende efetivar, a operacionalidade ou processo operacional que diz
respeito aos momentos de assessoramento: pré-incubação, incubação e pós-incubação,
mediante a adequação de recursos (técnicos e humanos), com o fim de promover a formação
dos empreendedores, oferecendo serviços de “orientação empresarial; assessoria em
marketing, assessoria em recursos humanos, assessoria em planejamento, assessoria em
contabilidade e finanças, assessoria em propriedade intelectual e assessoria jurídica”
(OLIVEIRA, 2003, p. 42-43).
Sobre esse aspecto é importante assinalar que na pesquisa efetivada por Oliveira
(2003) o fato de as empresas encontrarem dificuldades ao serem inseridas no mercado se
relaciona às deficiências que as incubadoras têm justamente no âmbito da gestão, deixando
transparecer que tais incubadoras encontram dificuldades para ser aquilo que se propõem.
Como causas deste problema o autor permite a interpretação de que se trata de obstáculos de
ordem estrutural, conforme suas palavras:
A atuação das forças do mercado (esfera privada) se coloca entre a relação
pesquisa-produção. Alguns desses obstáculos são de natureza estrutural, cuja
existência é determinada pelas características da estrutura socioeconômica ou
pelo que se conhece como ‘modelo’ socioeconômico adotado por um país.
Eles podem ser entendidos como sendo de natureza fundamentalmente
econômica e têm sua origem, no caso latino-americano, no próprio processo
de desenvolvimento e no tipo de inserção precoce e subordinada dos países da
região no comércio e na divisão internacional do trabalho. Em relação à nossa
região, cujas raízes remontam ao período da colonização, esses obstáculos
têm origem na sua própria condição ‘periférica’ (2003, p. 48).
Dada a consideração acerca da incubadora de empresa, agora é possível entender a
incubadora de cooperativa pertinente à Economia Solidária, a fim de percebermos o
significado que a educação possui para este movimento. As Incubadoras de Cooperativas da
Economia Solidária são reconhecidas pela sigla ITCPs (Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares) e têm atuado também em prol da formação de empreendimentos
58
solidários diversos – associações, clubes, centros de apoio, de formação etc. Aqui, trataremos
de delimitar o sentido de tais incubadoras especificamente para empresas cooperativas.
Nascidas a partir da década de 1990, como reflexo do movimento solidário propagado
por Betinho, as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares foram uma iniciativa da
UFRJ com o objetivo de auxiliar a formação de cooperativas de trabalho entre moradores de
favelas do Rio de Janeiro. O significado desta experiência logo começou a ser compreendida
como uma tentativa de “utilizar os recursos humanos e conhecimento da universidade na
formação, qualificação e assessoria de trabalhadores para a construção de atividades
autogestionárias visando a sua inclusão no mercado de trabalho” (GUIMARÃES apud
OLIVEIRA, 2003, p. 67).
Compreendidas como um meio de trabalho e renda, as ITCPs têm o diferencial em
relação às incubadoras de empresas capitalistas por educar os cooperados e fomentar um tipo
de trabalho pautado na aquisição de relações sociais estendidas para todos os âmbitos da
administração. Em outras palavras, o que torna o tipo de assessoramento dispensado pelas
ITCPs diverso em relação às incubadoras de empresas, segundo Oliveira, é o fato de que
todos os envolvidos nelas devem aceitar o compromisso social em que elas se assentam
(2003, p. 70).
Atualmente, existem incubadoras ou instituições de subsídios aos empreendimentos
solidários em todas as universidades brasileiras, atuando em redes e através da Unitrabalho. O
desenvolvimento de tais incubadoras se explica pelo próprio crescimento de formas de
trabalho baseadas no movimento solidário, como conseqüência do aumento do desemprego e
da miséria no Brasil. O trabalho dessas incubadoras na universidade é organizado por
“professores empreendedores”, os quais vêm desenvolvendo trabalhos junto a alunos por
meio de disciplinas e pesquisas.
As características da gestão das ITCPs são definidas conforme os objetivos de cada
organização democrática do trabalho, sob os princípios da autonomia e da coletividade. A
metodologia das ITCPS varia em termos de modelo operacional – a forma de assessorar e
administrar o trabalho de incubação. Mas a maior parte das incubadoras vem seguindo as
seguintes etapas:
a) Diagnóstico do grupo a fim de perceber qual a origem de sua formação, suas
características e possibilidades. Esta etapa é denominada de pré-incubação;
59
b) Cursos sobre autogestão e cooperativismo através de oficinas e palestras. Segundo
Oliveira, após este momento, a incubadora é levada a fazer um levantamento das relações que
o empreendimento pode ter com o mercado; esta etapa é a incubação propriamente dita e se
expressa como contínua. Para Oliveira, este momento visa
Identificar o perfil produtivo e a capacidade do mesmo em enfrentar os
desafios a que se propõe. A proposta é verificar as potencialidades e limites
do grupo, tanto nos aspectos sociais, quanto nos de mercado, se o ramo é
viável, tem sustentabilidade, competitividade e tem possibilidades de gerar
trabalho e renda (2003, p. 74).
As assessorias oferecidas pelas incubadoras se apresentam sob a forma de assessorias
jurídica, contábil, de planejamento, econômica, de cunho específico, social e educacional.
É assim que Oliveira entende a ITCP como
a iniciativa de tentar formular um conceito a partir de um empreendimento
que dispõe de uma equipe técnica para fornecer apoio, durante um
determinado período de tempo, visando contribuir para o processo de
aprendizagem de pessoas e grupos dispostos a montar e gerir uma
cooperativa de forma sustentada, sem relação de dependência (p. 67).
O ensino oferecido por essas incubadoras é apontado por Farid (2006) como forma de
promover uma formação que supere o conhecimento fragmentado do trabalho nas indústrias e
empresas capitalistas – os trabalhadores são desafiados a ter uma visão do conjunto do
trabalho, de sua totalidade dentro de empreendimento, e este conhecimento deve estar
constantemente articulado com os princípios da ES – isso envolve formar os trabalhadores
para que possam trabalhar em todos os postos de trabalho, num tipo de rodízio.
A formação oferecida pela incubadora envolve o conhecimento teórico sobre a relação
capital-trabalho, com vistas a superá-la. Esse conhecimento não deve, portanto, estar
dissociado da prática; na verdade, para Farid (2006), se isto ocorrer a prática se converte num
pragmatismo que só se preocupa com o conhecimento técnico. Por isso, o trabalho da
incubadora está relacionado ao tipo de reeducação que a Economia Solidária defende,
colocando-se como um trabalho que visa a formação de indivíduos autônomos e solidários.
Dessa forma, a educação é pensada como a aquisição de comportamentos e atitudes
democráticos de participação e convívio solidário, contudo, como aquisição de conhecimento
também de expressão técnica, já que os cooperados têm de aprender a se relacionar com o
mercado e compreender todas as instâncias da administração.
60
Partindo do conhecimento sobre os princípios da ES, a autogestão e educação de seus
integrantes, cabe delinear as implicações do fomento de cooperativas de produção para a
transformação da sociedade. Para tanto, é preciso inferir como se processa tal transformação,
e isso é possível através da concepção de realidade em que ela se assenta. Daí, destaca-se
como os defensores da ES compreendem o capitalismo e suas conseqüências para a vida
humana. Isso se dá porque, sendo uma alternativa ao capital, a ES apresenta um escopo
teórico e conceitual em suas bases.
2.3 A construção teórica e conceitual da ES sobre a realidade: a (in)consistência da
autogestão como alternativa ao capital
De início, é preciso delimitar o entendimento presente na literatura da ES sobre o
capitalismo. Isso é importante porque a defesa da educação para a autogestão tem relação com
a construção teórica sobre a realidade apresentada por seus idealizadores. Compreendermos
como surgiram as relações capitalistas no pensamento da ES é a chave para entendermos a sua
consistência como alternativa ao capital.
Segundo Singer (1998), o capitalismo surgiu nos poros da produção simples,
penetrando esta produção através da relação entre capitalistas – sob a forma de mercadores e
cambistas e artesão - e assalariados dentro do sistema de encomenda domiciliar. O
capitalismo se desenvolveu nos interstícios do sistema anterior, fato usado por Singer para
explicar que, ao se desenvolver dentro das relações capitalistas, a Economia Solidária levará a
sociedade ao modo de produção socialista. Todavia, o sistema capitalista neste momento
contou com a organização do trabalho em empresas para se consolidar. Coube, deste modo, à
empresa capitalista complementar o processo de concretização do capital.
A revolução industrial chamou o capital que estava por assim dizer
esperando nos bastidores, ao centro do palco industrial e lhe deu os meios e
os motivos de revolucionar o modo de produção. Superados os primeiros
obstáculos – que eram formidáveis-, a classe capitalista industrial começou
a montar instituições que poderiam lhe facilitar a tarefa. Esta montagem
elimina a resistência ainda remanescente do antigo sistema e torna a
acumulação de capital a forma quase universal de promover o crescimento
da economia e o desenvolvimento das forças produtivas (SINGER, 1998, p.
79).
61
O autor também afirma que o sistema capitalista constitui um organismo cuja
organização do trabalho traz em suas bases um tipo de trabalho alienante, visto que o
trabalhador, desconhecendo os processos de produção, vê-se impossibilitado de interferir nele,
e, portanto, impossibilitado de usufruir do produto de seu trabalho, algo que é realizado pelo
proprietário, o capitalista. Ao trabalhador resta receber um valor pela venda de sua força de
trabalho, transformada em mercadoria. O sistema de assalariamento despontado desta relação
deu lugar à espoliação da classe trabalhadora. A monopolização da produção de mercadorias
por parte dos artesãos provocou a entrada clandestina de trabalhadores no processo de
produção, os quais tinham como única opção receber um salário pelo seu trabalho. Para
Singer
A crescente transformação dos produtos em mercadorias provocava a
monetização das relações de produção. As obrigações dos servos de
fornecer tempo de trabalho nos campos do senhor eram freqüentemente
comutadas por pagamentos em dinheiro. O que transformava os servos em
assalariados e arrendatários (1998, p. 26).
Nesse sentido, o trabalhador é submetido ao capitalista e à sua vontade, porque recebe
apenas o que é estipulado contratualmente. A acumulação instigada pela marcha da indústria
expandiu-se à produção e ao emprego industrial. No sistema capitalista, contudo, convivem
várias formas de produção: doméstica, sem fins lucrativos, públicas, privadas, de produção
simples, autogestionárias. Mas é a empresa capitalista que tem caráter predominante. O autor
admite que se trata de um modo de produção no qual tudo, inclusive o trabalho, se torna
mercadoria.
A respeito da transformação da realidade, sem se ater às implicações do sistema de
assalariamento, Singer conduz sua interpretação sobre a realidade, afirmando que o caráter
militante da Economia Solidária, se assenta em uma concepção de revolução como um
processo gradual e, por isso, longo. Transformando a organização do trabalho empresarial em
uma forma de trabalho cooperado é possível, segundo ele, alcançar o socialismo.
O autor defende a idéia de que a revolução seria desencadeada paulatinamente, porque
o próprio capitalismo se desencadeou deste modo. Assim sendo, ele justifica a mudança
gradual da realidade afirmando que o próprio capitalismo, para ser de fato o que é, constituiuse gradualmente, a partir de um processo transitório. Propondo uma reconceituação de
revolução, o autor defende a idéia de que ela não poderá se instituir por um grupo político,
como se deu na União Soviética, mas pela população. Resumindo, o socialismo, por se
62
constituir em um modo de produção controlado pelos trabalhadores, “não pode ser decretado
de cima para baixo, mas tem de ser conquistado de baixo para cima, dentro do capitalismo”
(1998, p. 11). E, neste sentido, “a implantação de cooperativas e outras instituições de cunho
socialista é um processo que poderá ou não desembocar numa revolução social socialista”
(id., p. 12), contudo, uma revolução que diz respeito ao controle do trabalhador sobre o
mercado.
Partindo das idéias de Singer a respeito da autogestão, podem-se apresentar as
seguintes conclusões: a) o cooperativismo é uma forma de organização do trabalho que possui
em si o potencial de transformar as relações competitivas próprias do capitalismo em relações
autônomas e autogestionárias que, por sua vez, tornando-se hegemônicas, elevará a sociedade
ao socialismo; b) as cooperativas de produção têm a potencialidade de promover a liberdade,
pois os sujeitos nelas inseridos se auto-realizam no trabalho, visto que o trabalho não é
separado do produto, portanto, não mais explorado e controlado pela figura do patrão; c)
superando as relações de competitividade, as cooperativas dariam lugar ao reino da
necessidade, porque os produtores produziriam para o mercado, ajustando “a produção em
quantidade, qualidade de preço, às necessidades dos consumidores” (SINGER, 2000, p. 46);
d) ao serem fomentadas, as cooperativas de produção dariam lugar a uma revolução gradual,
desenrolada no bojo do capitalismo, como uma “transformação sistêmica das estruturas
econômicas, sociais e supra-estruturais – política, jurídica, cultural – de um país ou de vários”
(SINGER, 1998, p. 17).
Tais idéias não são novas, pois encontram raízes em experiências socialistas desde
antes do amadurecimento do capitalismo. No entanto, identificar tais raízes importa para a
investigação do fenômeno socialista propagado pela Economia Solidária, conforme capítulo a
seguir.
63
CAPÍTULO III
LIMITES E (IM)POSSIBILIDADES DA REEDUCAÇÃO DOS
TRABAHADORES PARA A AUTOGESTÃO NO CAPITAL
CONTEMPORÂNEO
Como apresentamos no capítulo anterior, as cooperativas de produção da Economia
Solidária são defendidas como alternativas ao capitalismo porque fomentam a autogestão, ou
seja, a gestão da empresa pelos trabalhadores, e tal gestão consiste, conforme se entende a
partir de seus idealizadores, na superação da separação entre o trabalhador e o produto de seu
trabalho.
Para analisar os limites e possibilidades desta alternativa devemos, de início,
compreender as implicações da separação do trabalhador do produto de seu trabalho para a
formação da sociedade capitalista e, portanto, para a sua superação. Para tanto, recorreremos a
Marx em sua obra O Capital, no Livro I, capítulo V em que ele trata do processo de trabalho e
do processo de valorização.
É importante entender que é clara a idéia de que a teoria marxiana da essência do
capital pode deixar lacunas se não for considerada em sua dinâmica total. Sobre isto, autores a
exemplo de Mészáros (2002) afirmam que é necessário entender a totalidade da obra de Marx.
Em outras palavras, é necessária a captura de todas as suas determinações e implicações.
Como aqui vamos tomar um aspecto do capital, qual seja: o processo de trabalho capitalista, a
fim de entender a separação do trabalho de seu produto dentro do sistema capitalista, é
importante ressaltar que tal separação está imbuída de determinações explicadas à luz de
outras categorias: mercadoria, processo de troca, de circulação de dinheiro, da cooperação, da
mais-valia relativa e absoluta, das quais não trataremos profundamente nesta pesquisa29.
3.1 O cooperativismo e o processo de produção capitalista
Ao tratar do processo de trabalho e do processo de valorização, Marx inicia suas
concepções afirmando a centralidade do trabalho enquanto categoria que diferencia o homem
29
O fato de não tratarmos das referidas categorias é porque abordaremos um aspecto sobre o capital que é
tratado pela Economia Solidária quanto à sua defesa de unir o trabalhador ao produto de seu trabalho. Portanto,
as demais categorias que fazem parte do capital serão tomadas pontualmente, quando necessária alguma
interpretação sobre o objeto da presente investigação.
64
dos demais seres. O trabalhador, para ele, é aquele que executa seu trabalho orientado para
um fim, transformando não apenas a matéria natural sobre o que se trabalha, mas também, e
ao mesmo tempo, realizando seu objetivo ao qual até mesmo sua vontade deve se submeter
(MARX, 1986, p. 143).
Como exposto na introdução deste trabalho, o processo que desencadeou a vida social
foi a ação do homem sobre a natureza, transformando-a conforme suas necessidades e ao
mesmo tempo transformando a si mesmo. Desta relação, o produto social gerado – social
porque não contém apenas o biológico do homem nem os elementos naturais, mas os dois em
uma síntese – pertencente ao homem o leva a adquirir níveis de consciência capazes de
intervir em novos processos de trabalho.
Os elementos do trabalho ou do processo de trabalho, portanto, são: a vontade
direcionada a um fim, o objeto sobre o qual se trabalha e os meios utilizados para a execução
deste trabalho. Definindo tal processo desta maneira, Marx explica-o em todas as suas partes.
Aquilo que ele chama de objeto de trabalho é tudo sobre o que o homem atua, modifica ou a
que transfere seu direcionamento para um fim. Os meios de trabalho são todas as coisas que o
homem coloca entre ele mesmo e o objeto do trabalho a fim de alcançar o que necessita para
efetivar sua vontade em relação ao objeto.
Objeto de trabalho e meios de trabalho sob a vontade humana direcionada a um fim
são elementos que o trabalho possui independentemente de qualquer forma social existente.
Em outras palavras, a humanidade jamais deixará de trabalhar, ela jamais deixará de se
relacionar com a natureza para suprir suas necessidades, porém, Marx revela que dentro do
sistema capitalista o processo de trabalho toma a forma de produtor de valor para o capital ou
para sua acumulação.
Este fato o autor revela ao explicar que no ato do trabalho em seu sentido ontológico o
homem produzia coisas que serviam para sua subsistência, ou seja, valor de uso,
desencadeando um processo de humanização caracterizado pela transformação de seu meio
objetivo e de sua própria subjetividade. Contudo, é no sistema capitalista que o processo de
trabalho adquire a forma de processo de valorização do capital. O trabalhador, dentro do
capitalismo, trabalha objetivando sua vontade a um fim que não pertence a ele mesmo; ele
produz com meios que não são de sua posse, mas do capitalista, daquele que se apropria da
capacidade de trabalho de outrem. Antes do capital o trabalhador produzia produtos para sua
65
própria subsistência30; nesta relação ele produz produtos para o capitalista, para aquele que
vai se apropriar deste produto e vendê-lo no mercado por um preço mais elevado que a força
de trabalho e os meios de trabalho utilizados para sua produção (MARX, 1986, p. 148). Esse
produto do trabalho no capital só se tornou possível porque contou com determinações sociais
bastante complexas: a capacidade de juntar uma grande quantidade de trabalhadores em uma
mesma oficina e a existência de um mercado para a circulação dos produtos.
No sistema capitalista a fabricação dos produtos não se direciona a um fim específico
de produzir o que se pretende, ou seja, produzir nada tem que ver com o direcionamento da
vontade do trabalhador sobre o objeto de trabalho, pois não interessa a este o resultado da
produção, visto que ganhará ao fim de seu trabalho pelo dispêndio de sua força de trabalho no
processo de produção e não pelos benefícios que este produto lhe dá enquanto valor de uso.
Em outras palavras, o trabalho não conta em seu aspecto qualitativo, mas apenas em
seu aspecto quantitativo. O quanto o trabalhador trabalha ou o quanto dura seu trabalho é o
que vale para o capital. Portanto, o processo de trabalho por não recair sobre a necessidade do
produto é prolongado, levando a produção a um aumento da quantidade de produto para a
troca.
Desse modo, os diversos tipos de trabalho que a humanidade executa não possuem
diferenças qualitativas, pois se submetem à igualdade de ser dispêndio de força com duração
específica (MARX, 1986, p. 150). Saindo da esfera da necessidade, ou seja, prolongando- se,
o trabalho leva o trabalhador a desconhecer suas determinações sobre o trabalho, impedindo-o
de decidir sobre ele, além de impedi-lo do usufruto de seu produto, permitindo-lhe usufruir
apenas uma ínfima parte dele, configurada no salário.
Este processo de prolongamento do trabalho ou o processo de valorização só foi
possível porque o trabalhador precisou engajar-se em um tipo de trabalho socialmente
necessário para a produção em grande escala – produção típica do sistema capitalista –, o qual
leva o próprio trabalhador a ser uma condição para a criação de valor ou mercadoria e a ser,
ao mesmo tempo, meio de trabalho que não se desgasta facilmente.
Assim, podemos sintetizar que a separação do trabalhador de seu produto consiste em
um tipo de produção em que o trabalhador produz com meios de trabalho que não lhe
30
Sobre este fato é preciso entender que as formas de trabalho como a escravidão e a vassalagem implicaram um
processo de trabalho em que o trabalhador não se separa definitivamente de seu produto, visto que produz ainda
para sua subsistência sem as determinações específicas do capitalismo: em um regime de trabalho cooperado,
sob um tipo de trabalho social, criador de mais-valia, ver Mészáros, 2002, p. 99.
66
pertencem, sob um regime de trabalho em que é controlado e comandado por aquele ao qual
pertencem não apenas os meios de trabalho, mas também o produto realizado e a própria força
de trabalho do trabalhador. Tudo isso com vistas à maior produtividade sem custos, sem
desperdícios.
Com base nessas análises, questionamos se a proposta defendida pela ES da ausência
da figura do capitalista no processo de produção é válida, já que traz uma suposta resolução
ao que ela toma como problema da produção capitalista: o controle do capitalista sobre os
trabalhadores, explorando a sua força de trabalho.
A aparência desta situação nos leva à lógica de que formando cooperativas, permitindo
que os trabalhadores exerçam seu trabalho por meio de tomadas de decisão próprias,
desencadear-se-ia em uma nova forma social em que o trabalho seria processado para os
objetivos definidos pelos trabalhadores. Daí, o problema do sistema capitalista recair sobre a
esfera da organização do trabalho e não na determinação que o trabalho possui neste sistema.
Em outros termos, a Economia Solidária se restringe à forma como a relação capitalista se
apresenta, sem se ater à sua essência de formadora de valor, de meio de acumulação.
Ao defender a idéia de que é preciso reeducar trabalhadores para o trabalho
cooperativista, a Economia Solidária pretende unir o trabalhador ao seu produto sob a visão
de que tal união é possível dentro do capital, ignorando que este fato é impossível, pois a
separação existente entre trabalhador e produto não é o erro do capital nem o seu problema,
mas a sua razão de ser. E para comprovar este fato, é importante entender a própria
cooperação desencadeada no capitalismo.
Para Marx (1986), o que caracteriza o sistema capitalista sendo, ao mesmo tempo, o
seu ponto de partida é o fato de este conseguir empregar muitos trabalhadores que ao mesmo
tempo põem em movimento um tipo de trabalho que em seu processo amplia a produção em
uma escala muito grande (p. 244). Portanto, a cooperação é conceituada pelo autor como a
forma de trabalho em que muitos trabalham com planejamento e ao mesmo tempo em
processos de trabalho iguais ou diferentes, mas conectados (p. 246); sua essência não é ser a
soma de forças, mas a fusão de forças criadora de competições ou emulações entre
trabalhadores para o alcance do mesmo fim.
Esta fusão significa um tipo de processo de produção em que muitos trabalhadores
juntos em uma mesma oficina conseguem produzir uma escala de produtos muito maior que a
mesma quantidade de trabalhadores produziria separadaradamente. Para Marx, este tipo de
67
trabalho se torna condição do capital porque requer um nível de controle nunca antes
executado, porém este controle não diz respeito à vontade do capitalista enquanto indivíduo,
mas enquanto personificação do capital, interpretação que ele apresenta já na introdução d’O
Capital (p. 19).
Portanto, o controle que nasce da cooperação entre os trabalhadores no processo de
produção capitalista caracteriza-se por ser uma necessidade da autovalorização do capital e
não do capitalista em seus objetivos pessoais, porque:
A direção do capitalista não é só uma função específica surgida do processo
social de trabalho e pertencente a ele, ela é ao mesmo tempo uma função de
exploração de um processo social de trabalho e, portanto, condicionada pelo
inevitável antagonismo entre o explorador e a matéria-prima de sua
exploração (MARX, 1986, p. 250).
A função do controle do capitalista se dá em um processo social de trabalho que diz
respeito a um tipo de trabalho que não depende da vontade individual dos seus participantes,
mas da própria necessidade de o capital se impor, pois, ainda segundo Marx, o que impulsiona
e determina o processo de produção capitalista “é a maior autovalorização do capital” (idem).
Por isso, o problema do capital não está em ter de um lado um capitalista para controlar o
processo de produção e uma gama de trabalhadores submetidos a este controle, e sim no fato
de ele se autovalorizar constantemente, usando este tipo de processo de trabalho. Modificar a
forma com que este trabalho se apresenta – e nisto incluímos até mesmo a mudança de
posições entre capitalistas e trabalhadores – não mudará a capacidade de o capital se
reproduzir. Portanto, esta relação requer sua total erradicação e não a transformação de um de
seus aspectos.
Essa idéia foi defendida por Marx quando analisou as estratégias do Programa de
Ghota. Em uma delas, o Programa criado pelo partido lassalliano, defende a criação de
cooperativas de produção. Conforme a defesa do partido, estas deveriam ser criadas por parte
da classe trabalhadora a fim de preparar o caminho para o socialismo. Na proposição criticada
por Marx aparece o seguinte
A fim de preparar o caminho para a solução do problema social, o Partido
Operário Alemão exige que sejam criadas cooperativas de produção com a
ajuda do Estado e sob o controle democrático do povo trabalhador. Na
indústria e na agricultura, as cooperativas deverão ser criadas em
proporções tais, que delas surja a organização socialista de todo o trabalho
(MARX, 2005, p. 219, grifos nossos).
68
Confrontando a inconsistência do Programa quanto ao modo de combater o
capitalismo, Marx coloca a classe operária no centro da luta, visto que a vida social se
manifestava na contradição existente entre o trabalho e o capital ou entre aqueles que
produzem e os que controlam a produção. Assim, ele demonstra que é a classe trabalhadora o
fundamento do socialismo. Sob o ponto de vista do trabalho, a saída apontada por Marx foi a
superação radical do sistema do capital e não a substituição de uma forma de trabalho por
outra, apenas.
O autor deixa subentendido que a luta contra o capital é uma solução social e não da
organização do trabalho. A inconsistência do Programa quanto à criação de cooperativas de
produção parece não ter limites, visto que dá margem ao entendimento de uma transformação
social gradual, sem as determinações da luta de classe e, portanto, da contradição existente no
processo de trabalho entre aqueles que se apoderam dos meios de produção e os que
produzem fora da esfera de suas reais necessidades.
Diante disto, evidenciamos que o problema do capitalismo longe de estar apenas na
forma com que este sistema organiza o trabalho dentro das empresas, não pode ser resolvido
modificando o formato do trabalho, tornando-o cooperativo, autogestionário, sem a presença
de um capitalista controlador. Tomar tal sistema assim é desconsiderar a sua essência ou a sua
razão de ser.
O capital não é uma relação restrita à forma com que o trabalho se organiza dentro das
empresas capitalistas, porque requer uma produção separada do controle que atinge todas as
instâncias da vida humana, implicando uma divisão social do trabalho, uma separação social
entre aqueles que produzem (os trabalhadores) e os que detêm os meios de produção (os
capitalistas). Na visão de Marx, ser capitalista não é ser dono de uma empresa, mas deter os
meios de produção, separando-os do produtor, com o objetivo não de satisfazer as suas
necessidades humanas, mas de efetuar a troca no mercado.
Para Mészaros o capital é uma relação que possui antecedentes históricos que devem
ser analisados a partir de sua especificidade. Ao contrário da visão burguesa que sempre o
eternizou, apresentando-o como algo que sempre existiu e sempre existirá, Marx parte da
idéia de que tratando a especificidade do capital em cada época histórica rompe com a
concepção a-histórica desta relação e demonstra a possibilidade do socialismo. Assim, ao
defender o pensamento de Marx, Mészaros faz a crítica à burguesia afirmando que ela põe fim
à história ao suprimir as especificidades dos antecedentes históricos parciais do capital. Em
outros termos, para o autor é preciso admitir que o capital sendo uma relação que implica
69
acumulação em sua forma desenvolvida se dá por meio da exploração da força do trabalho
sob a égide do fetiche da mercadoria. A acumulação de capital em épocas passadas aconteceu
através do comércio, da propriedade da terra e da usura, e na modernidade se caracteriza pelo
controle produtivo do capital que domina o trabalho, promovendo a separação definitiva do
trabalhador do produto de seu trabalho (MÉSZAROS, 2002, p. 701-712).
A comprovação de tais afirmações encontra-se no entendimento de que o sistema do
capital é um sistema sociometabólico, conforme Mészáros (2002). Significa dizer que o
capital compreende uma relação social que se renova estruturalmente, eliminando todos os
entraves impostos ao seu controle e se renovando de modo estrutural, submetendo a
humanidade – e não apenas a empresa - a um tipo de produção que ela não pode controlar,
porque subjuga o trabalho e toda vida social à produção de valor para a troca.
Nesse sentido, há uma diferença fundamental entre capitalismo e capital. O primeiro
diz respeito a um sistema social em que prevalece o capital ou no qual o capital toma a forma
mais plenamente desenvolvida; o segundo, a um tipo de relação universalizadora
compreendida na separação definitiva entre o trabalhador e o produto de seu trabalho que
existe antes mesmo da sociedade burguesa. Portanto, a questão levantada por Mészáros não é
apenas superar o capitalismo e sim o capital. Não é superar a forma que este sistema toma
desde a Revolução Industrial, mas a sua capacidade de metabolizar o trabalho, transformandoo em meio de acumulação, visto que esta é o motor que o orienta e o movimenta em seu
interior (2002, p. 100).
A problemática em torno da defesa da autogestão dos trabalhadores em cooperativas
de produção está na desconsideração de que se trata de lutar contra uma forma social cujo
problema não se encontra na organização do trabalho e sim no conteúdo social desta
organização; de fato, a maneira como a produção é deliberada nas empresas tem peso na
capacidade incontrolável do capital, contudo, esta relação social é capaz de adotar formas de
controle até mesmo híbridas, aparentemente em descompasso com a sua funcionalidade, se as
condições assim o exigirem (MÉSZÁROS, 2002, p. 101). Isto significa dizer que as formas de
trabalho cooperado não configuradas numa quantidade de trabalhadores cooperando sob o
controle de um patrão se tornam tão produtoras de valor quanto a forma tradicional de
trabalho, pois o que está em jogo é o tipo de produção que ela desencadeia, que, por sua vez,
leva os trabalhadores a serem controladores uns dos outros em seu interior e acirrados
competidores em seu exterior, no processo de circulação.
70
A impossibilidade de levar as cooperativas de produção a combater o capital, portanto,
está na incapacidade inerente a esta forma social de superar o processo de acumulação
tomando apenas o aspecto da organização do trabalho. Isto já foi analisado por Rosa
Luxemburgo em sua obra Reforma ou Revolução. A questão central das afirmações da autora
era lançar uma interpretação do capital imperialista quando nem sequer ele apresentava o
nível de incontrolabilidade dos dias atuais. Daí, sua análise direcionando-se às estratégias de
acumulação de sua época advertia que a insuficiência da criação de cooperativas como
alternativa ao capital estava em sua incapacidade de atuar contra a estrutura desta relação, a
saber: o processo contínuo de acumulação.
Ao analisar a proposta do partido social-democrata, ela afirma que o fato de Marx ter
vivido no capitalismo concorrencial levou alguns pensadores à idéia de que este sistema não
mais se pautava na competitividade e sim no imperialismo, ou seja, definindo-se na separação
do mundo em grandes blocos de superpotências. A concentração de renda pelo Estado dava a
impressão de que o capital deveria ser democratizado; o fato de conquistas políticas serem
alcançadas – centradas, sobretudo, no sufrágio universal – permitiu o avanço dos partidos
políticos posicionados nas várias frentes diante do Estado; somado a isto, grandes monopólios
desenvolveram um processo de socialização dos meios de produção no conjunto da economia,
gerando a idéia de que o sistema do capital precisava apenas ser reformado, retocado em suas
mazelas por meio da criação de cooperativas de produção. Como saída ao capital, era preciso
ampliar a propriedade e concentrar capital nas mãos do maior número possível de empresas
cooperativas.
Nesse momento, a posição dos teóricos do socialismo diante do marxismo era a de que
este sistema de pensamento precisava ser revisto. Dados os desdobramentos da luta de classe,
agora pautada no crescimento dos monopólios, importava entender em que aspectos Marx
falhou em suas interpretações e quais posturas tomar de fato.
A resposta de Luxemburgo a esta acepção da teoria marxista impôs a análise da
acumulação enquanto processo global. Transferindo seu pensamento às cooperativas, ela
afirmou que estas são apenas formas diferenciadas de exploração da força de trabalho, ou
melhor, são uma forma de auto-exploração do trabalhador, que agora tinha de trabalhar sob
duras jornadas de trabalho por seu próprio controle e planejamento. Superando a tomada de
fenômenos isolados, Luxemburgo adverte que o erro do partido social-democrata estava em
perceber apenas os efeitos do capitalismo imperialista, ignorando os meios com que o sistema
71
do capital se adaptava no momento: “na instituição de crédito, na melhoria dos meios de
comunicação e nas organizações patronais” (1986, p. 33).
Os efeitos do sistema de crédito para acumulação do capital imperialista consistiam
basicamente em provocar a superprodução, visto que assim destruía as forças produtivas
geradas por ele. Ao usar o sistema de créditos, capitalistas recorriam a capitais estrangeiros
para o aumento da produção, contrariando a demanda de compra de mercadorias produzidas.
O crédito estendeu a produtividade, mas paralisou a troca; agravou a contradição entre a
propriedade e as forças produtivas, concentrando, deste modo, grandes capitais nas mãos de
alguns. Isto porque o capital começava a ensaiar seus primeiros passos rumo a uma expansão
sem rédeas, expressa na relação entre o mundo europeu e as demais partes do globo ditas
incivilizadas.
A concentração de uma quantidade exorbitante de lucros nos monopólios teve como
conseqüência a quase eliminação da concorrência, mas não afetou o seu objetivo de superar a
anarquia do mercado. Pode-se dizer, conforme Luxemburgo, que esta tentativa foi agravada
no momento de crise quando cada capitalista procurou proteger seu capital privativamente,
acirrando a concorrência até às últimas conseqüências. Para ela,
Quanto à ação exercida na economia capitalista, as concentrações
industriais, os monopólios, não aparecem como ‘fator de adaptação’
apropriado para lhe atenuar as contradições, mas antes como um dos meios
que inventa para agravar a sua própria anarquia, desenvolver as suas
contradições internas, acelerar a sua própria ruína (id., p. 39).
Sendo, portanto, uma relação cuja constituição é a totalidade de determinações e
interconexões, conceber a transição socialista através de cooperativas de produção era para a
autora algo ineficiente porque estas não conseguiam romper a contradição essencial do
capital, entre o modo de produção e o modo de troca. Por isto, tal alternativa não atacava os
fundamentos do sistema capitalista. Relacionando-as ao modo como o capital se reproduz,
Luxemburgo chega à conclusão de que tais cooperativas não alcançariam esta relação em
escala mundial, e se o tentassem, acabariam esmagadas pela concorrência ou, quando muito,
restritas à produção local; ou ainda, apenas extinguiriam, caso os cooperados insistissem em
prevalecer em seus princípios, recusando-se a fazer parte do jogo do mercado. Assim, a autora
entendeu que os limites do cooperativismo eram impostos pela própria estrutura do capital,
que naquele momento reclamava a derrubada dos monopólios/oligopólios que se impunham
regidos por uma expansão cujo teor era um domínio político do dito mundo civilizado.
72
À luz das interpretações socialistas com base no pensamento marxista, as estratégias
de luta contra o capital pela via das cooperativas de produção, como as que são propostas pela
Economia Solidária, precisam ser analisadas no capitalismo contemporâneo, considerando
que a superação da separação do trabalhador do produto de seu trabalho, que esta forma social
nos impõe, implica posições diferenciadas dentro de sua atual configuração. Por isso, nossa
investigação sobre a educação dos trabalhadores para a autogestão da Economia Solidária
reclama uma interpretação dessa alternativa, observando as leis gerais do capitalismo no
contexto da reestruturação produtiva do capital.
3.2 O cooperativismo da Economia Solidária e a reestruturação produtiva do capital
A reestruturação produtiva do capital caraceriza-se como o processo de reforço ou
resistência das estruturas capitalistas inauguradas a partir da década de 1980. Ela se expressa
na criação de meios de acumulação capitalista configurados na rentabilidade e na fluidez do
capital financeiro, o qual passa por um processo de expansão mundial sem precedente.
Para compreender o sentido desta configuração do capitalismo tomamos como base
teórica as idéias de Chesnais (1996), o qual denomina a atual fase em que vivemos de
mundialização
do
capital
que
corresponde
à
fase
específica
do
processo
de
internacionalização e valorização capitalista. O uso do termo mundialização, conforme o
autor, em substituição ao de globalização tem o objetivo de atribuir internacionalidade ao
capital,
no
sentido
de
este
requerer
instituições
mundiais
para
liberalização,
desregulamentação e desmantelamento das políticas trabalhistas.
Como já deixamos transparecer acima, o capital imperialista manifestado na
centralização da acumulação nos monopólios/oligopólios reclamava a sua superação através
da derrocada do sistema de crédito e dos meios de expansão criados pelo capital. Sem se ater
a estes meios de acumular, pensadores marxistas denunciados por Rosa Luxemburgo viam
apenas os efeitos do capital, a saber: a produção separada em grandes blocos de poder e o
acúmulo de capital impulsionada também pelo Estado, o que dava a impressão de que a luta
de classe entre aqueles que produzem e aqueles que comandam a produção pela posse de seus
meios havia chegado ao fim, restando apenas a repartição e distribuição da riqueza.
Na atual configuração do capital, autores como Mészáros advertem que a luta contra o
capital deve expressar-se na busca pela superação da exploração do capital sobre o trabalho
73
que, segundo ele, se manifesta também31 na separação dos que produzem e dos que controlam
a produção. Na concepção do autor, sendo o capital uma forma social universalizadora,
atingindo toda a humanidade, como já expusemos mais acima, precisa ser superada
radicalmente, ou seja, destruída em suas bases estruturais ou causais.
Daí a necessidade de se combater a forma que a acumulação do capital assume na
contemporaneidade: a de ser universal e atemporal. Para Mészáros (2002, p. 100-2), o
capitalismo se encontra em um estágio de acumulação superior, levando a tudo e a todos à
submissão à sua reprodução, demonstrando um teor de incontrolabilidade32. Ele parece ser
intransponível justamente por ser expansivo, contornando a análise da transitoriedade de seu
conteúdo. Esta sua capacidade diz respeito à causalidade de sua essência sociometabólica de
dificultar o trato das causas como causas, resultando na interpretação ou no raciocínio circular
“que evita as causas subjacentes e apenas acentua suas conseqüências” (MÉSZAROS, 2002,
p. 176).
O caráter atemporal do capital, de acordo com Mészáros, está em sua capacidade de
negar o futuro objetivamente, impondo o desdobramento social a um status quo contínuo, sem
criar a oportunidade para aquilo que o autor denomina de temporalidade aberta. Ou seja, a
possibilidade de ligar o presente ao futuro (2002, p. 178).
Diante disto, o capital impõe com força sem-par uma estrutura aparentemente eterna,
cujo ponto de partida não é vislumbrado à primeira vista, bem como uma temporalidade
fechada no círculo vicioso de que o que pode ser feito já foi feito. Como conseqüência, a força
do capital leva a uma alternativa que se levanta contra o seu domínio: a necessidade de criar
formas de luta nas quais haja a quebra de sua aparência universal e eterna e de sua capacidade
de reproduzir sempre o mesmo. Esta é a tarefa do socialismo.
Isto é comprovado por meio da consideração dos ditames do capital sob o domínio
financeiro, o qual, segundo Chesnais, apresenta-se com “novas formas de centralização de
31
Mészáros demonstra em sua grande obra Para Além do Capital (2002) que os defeitos estruturais do capital
são a separação entre produção e controle, produção e consumo e produção e circulação de produtos (p. 105110). Aqui, trataremos apenas da separação entre a produção e o controle, visto ser este aspecto do capital
percebido pela Economia Solidária como o problema central do capitalismo.
32
Em Mészáros, a incontrolabilidade do capital diz respeito ao fato de esta relação não poder ser legalmente
controlada como querem acreditar seus apologistas. O capital é incontrolável porque se sobrepõe a tudo,
possuindo uma estrutura totalizadora e auto-reprodutora que ajusta e adapta todas as instâncias da vida humana.
De maneira alguma isto significa dizer que ele é instransponível, insuperável, pois sendo a exceção e não a regra
da produção da existência humana ele pode ser historicamente transformado, ultrapassado. Ver Mészáros, 2002,
p. 96-121.
74
gigantescos capitais financeiros33 (os fundos mútuos e fundos de pensão)”, cuja função é
frutificar principalmente fora da esfera da produção (1996, p. 02). As finanças se relacionam
às transações ou operações com empréstimos e investimentos, bem como agentes que
circulam tais operações como os bancos. Ao defender que atualmente estamos sob a
centralidade do capital financeiro, Chesnais entende que vivemos sob a regulação dos juros
das grandes instituições bancárias e especulativas nascentes dos acordos financeiros pósguerra. Para Marx o capital financeiro é a forma mais fetichizada do capital, pois, o juro
aparece como não sendo fruto da mais-valia, mas como fruto do capital, na forma D-D’,
dinheiro que gera dinheiro. Em outros termos, os juros aparecem como algo não determinado
pela exploração da força de trabalho.
A mundialização do capital traz em seu interior um processo de reestruturação da
produção para aquisição de meios de acumulação, que teve seu início com as modificações na
organização do trabalho, com vistas à recuperação de lucros, cujos efeitos de depressão foram
resultados da dinâmica produtiva do fordismo.
A produção no sistema fordista se expressa, sobretudo, como uma “regulação de
forças produtivas capazes de associar intimamente mais-valia absoluta e mais-valia relativa34”
(TEIXEIRA, 1998, p. 53). Em outras palavras, é uma forma de produção em que os
trabalhadores devem possuir um nível de destreza em relação ao processo de trabalho cujo
ritmo acelera o movimento do trabalho e ao mesmo tempo diminui o tempo morto do
processo quanto à jornada de trabalho a que é submetido o trabalhador.
Como conseqüência, a repetição de atividades, comandadas por um maquinário
dinâmico de uma produção em série, se dá por meio de um controle sobre sua duração, sendo
esta a única coisa que o faz rentável ao capital, incorporando como necessidade um tipo de
trabalho parcelizado, seguindo uma rotina e um padrão sem precedentes. E, como não poderia
deixar de ser, o tipo de consumo que se articula condicionalmente a esta produção é o
consumo em massa, o qual impulsiona a demanda de produção de bens de capital
imprescindíveis à acumulação (máquinas, instrumentos, instalações etc).
Segue, a este tipo de consumo e sua articulação direta à produção, um trabalho
universalizador, transformando todos os trabalhadores em assalariados. As implicações disso
33
Para aprofundamento, ver capítulo A Alienação da Relação-Capital na Forma do Capital Portador de Juros,
do III Livro d’O Capital.
34
A duração da jornada de trabalho mantendo o salário constante é o que Marx chama de mais-valia absoluta; e
ampliar a produtividade física do trabalho pela via da mecanização é o que ele denomina de mais-valia relativa.
Ver A produção da Mais-Valia Absoluta e a Produção da Mais-Valia Realtiva, do livro I d’O Capital.
75
são os produtos semi-automáticos35 estendidos a todas as esferas da produtividade, causando a
diminuição do valor das mercadorias consumidas massivamente36. O resultado para o
processo de trabalho foi o desequilíbrio entre o aumento do tempo de trabalho gerado e a
imprevisibilidade da condição humana dos trabalhadores – problemas psicológicos,
fisiológicos, necessidade de descanso, acidentes. As condições de trabalho se tornaram
incompatíveis com a demanda por ele; o capital não estimulava a individualidade do
trabalhador, nem sequer com “a política artificial de diferenciação de salários” (TEIXEIRA,
1998, p. 59).
Conseqüentemente, o lucro foi interrompido porque a produção de bens de capital foi
freada, ocasionando o impedimento da evolução técnico-mecânica para a produção em massa,
incidindo sobre o tempo de trabalho que, agora em processo de desaceleração, comprometia a
organicidade cumulativa do capital. Por isto, coube ao capital regular a organização do
trabalho tanto no interior da empresa quanto na sociedade, de modo que esta pudesse
movimentar um novo ciclo de acumulação, desta feita com base em uma nova relação
contratual entre capital e trabalho. E isto se deu a partir de dois meios: a) da diminuição de
desperdícios de tempo de trabalho social; b) e da multifuncionalidade do trabalhador.
Como resultado, foram criadas diversas formas de contratação oriundas da regulação
capitalista, a saber: “subcontratação, trabalho domiciliar, trabalho por tarefas, trabalho em
tempo parcial” (p. 65), as quais deveriam se dar por tipos de controle diversos – o just-in-time,
os círculos de controle de qualidade – os CCQ - que precisam a norma de qualidade antes
mesmo da produção das mercadorias, ocasionando a fiscalização sobre o processo produtivo
do próprio trabalhador sobre sua equipe de trabalho e vice-versa.
A maneira como o trabalho se apresenta no capitalismo contemporâneo é conseqüente
das relações econômicas que compõem a mundialização do capital com base em
investimentos, especulações, fusões e finanças. A sua dinâmica não é mais a exportação, as
operações de produção e venda no exterior, mas a exportação aliada a suprimentos e os
35
Para Teixeira os produtos semi-automáticos são produzidos por máquinas que precisam de trabalhadores
capazes de manejá-las conforme sua atribuição. Diante deste tipo de produção, o processo de trabalho é
intensificado porque se estende aos vários segmentos da produção. Conforme a lei de intercâmbio no processo de
troca, a necessidade de adquirir produtos (mercadorias) com menor tempo de trabalho social é a regra. Ver
Teixeira in: Neoliberalismo e reestruturação produtiva – as novas determinações do mundo do trabalho, 1998, p.
58-60.
36
Sendo produzidos em massa, os semi-automáticos eram acessíveis a quase todos, gerando um tipo de consumo
insaciável dentro de uma obsolescência programada, já que obrigava ao crescimento produtivo que, por sua vez,
se harmonizava com a acumulação do capital. Ver Teixeira in: Neoliberalismo e reestruturação produtiva – as
novas determinações do mundo do trabalho, 1998, p. 58-60.
76
investimentos estrangeiros com acordos e alianças internacionais. É a combinação destes
fatores que determina o processo produtivo e os IEDs (Investimentos Externos Diretos) são a
expressão mais concentradora de capital porque constituem a produção da mais-valia no
exterior. Têm forte atuação nos serviços e na manufatura, integrando indústrias pela via dos
acordos e dos ajustes e se valendo da liberalização econômica, das novas tecnologias e das
novas formas de gerenciamento desencadeadas na regulação do trabalho.
Dão-se através da regionalização dos países centrais (EUA, Inglaterra e Japão) e
organizam-se através de empresas-rede. Sua abertura é facilitada pelas fusões e aquisições –
interpenetração de capitais nas regiões do mundo - e por meio de formas de terceirização
muito complexas, o que leva a entender que os seus benefícios se voltam para os países
centrais, fora dos países que não pertencem aos acordos econômicos e financeiros das
multinacionais, agindo através de estratégias para sugar a concorrência e as novas tecnologias
locais.
Não apenas isso; além das determinações da regulação produtiva, o trabalho se vê
atado ao capital sob a hegemonia das finanças. Ao mesmo tempo que deve obedecer a uma
forma de degradação e exploração, deve estar a favor de uma produtividade escamoteada pela
fluidez das finanças, como se o capital produzisse capital a partir de si mesmo e não da
produção concreta de riqueza pela extração da mais-valia no processo de produção.
Como conseqüência, a produtividade do trabalho é comandada pelas relações
financeiras – o direcionamento da riqueza aos serviços de dívida pública e às políticas
monetárias, as quais ditam o comportamento das empresas sob a égide das taxas de juros e
inflação zero (CHESNAIS, 1996, p. 15-16). Ainda para Chesnais, embora seja uma parte do
lucro, os juros aparecem como fruto do capital e o seu fetiche esconde a sua origem social,
levando a classe trabalhadora a reproduzir estranheza e independência num grau sem registro
histórico (1997, p. 18).
As grandes instituições que deram forma a esta fase do capital são as mesmas que
outrora tinham o objetivo econômico de superar a crise pós-guerra, o FMI e o GAT. Estas
impõem aos países periféricos regulamentações sobre suas políticas internas a fim de garantir
o pagamento de dívidas exorbitantes, as quais no Brasil nasceram dos períodos
desenvolvimentistas dos anos 50 e 60.
Os efeitos destas determinações para a classe trabalhadora brasileira resultam na
inserção em formas de exploração de trabalho isentas de direitos consagrados pela luta
77
trabalhista, e uma destas formas se consubstancia nas cooperativas de produção, como as que
são defendidas e fomentadas pela Economia Solidária. Neste tipo de organização de trabalho
os trabalhadores produzem sem assinatura de carteira de trabalho – já que são donos da
cooperativa – e sob o regime das encomendas próprio da terceirização. Trabalhando na
maioria das vezes sob um regime de encomenda próprio de um controle de just-in-time, estes
trabalhadores têm que dar conta da produção sem se ater à jornada de trabalho estipulada nos
direitos trabalhistas. Somado a estas determinações encontra-se o nível de subcontratação a
que os trabalhadores são submetidos.
O trabalho efetivado dentro dessas cooperativas se direciona à obediência ao
fetichismo financeiro no que tange à sua capacidade de produzir para um mercado que dita as
regras da produção do tempo produtivo, dos preços e da submissão destes a taxas de juros
econômicos convencionais; o tipo e o formato do produto e seu objetivo, estando fora da
esfera das necessidades destes trabalhadores enquanto seres humanos, explicam a sua
submissão ao processo sociometabólico do capital de pôr tudo em seu processo de
acumulação.
Consideramos, portanto, que a reeducação de trabalhadores em cooperativas de
produção, como é proposta pela Economia Solidária, não consegue romper com o capital não
apenas porque se limita às suas barreiras, no sentido de não poder tocar na separação social
existente entre trabalhadores e possuidores de meios de produção, mas também porque não
pode ter a possibilidade de reproduzir uma nova objetividade. Dentro delas, os trabalhadores
produzem para o mercado e não para sua subsistência em processos de humanização
inovadores. Isto é visível na preocupação com a determinação de preços e marketing e a na
obediência aos parâmetros convencionais que vêm tomando conta das empresas capitalistas
para o avanço comercial, como vemos na assessoria que o SEBRAE oferece às cooperativas37.
Tomando o tipo de análise de Rosa Luxemburgo, é possível afirmar que o nível de
exploração dentro destas cooperativas é semelhante ao de uma empresa tradicional, visto que
os cooperados, sem a presença de um patrão, têm de controlar todo o processo de produção,
desde o planejamento à execução, a fim de evitar desperdícios e prejuízos sobre o produto.
Além desta condição, têm de lidar com o jogo de um mercado cada vez mais fluido,
abocanhado por instituições de peso com as quais não poderão competir nem superar, salvo se
37
É importante dizer que tal constatação é oriunda da assessoria do SEBRAE na COOPERARTEBAN,
cooperativa em que foi realizada a pesquisa de campo. Nessa assessoria ficou muito claro que a produção se
direciona à obediência ao mercado e ao estabelecimento de preços a partir dos lucros e investimentos da
cooperativa com base no tempo de trabalho das cooperadas, como analisamos no quarto capítulo deste trabalho.
78
tomarem uma configuração. Apesar da crença de que estão sob um regime de trabalho
igualitário, na prática estes trabalhadores se vêem diante de problemas que não conseguem
solucionar: as baixas vendas, a desintegração interna de seu trabalho, que ainda por cima é
limitado pela cultura da competitividade herdada do capital, e a sua fraca capacidade de
produção diante das empresas de maior porte38. Portanto, na maioria das vezes, nem mesmo
como empresas essencialmente capitalistas as cooperativas conseguem crescer no mercado,
pois são engolidas pelas multinacionais que muitas vezes as usam para uma produção
parcelada ou terceirizada, como é caso de algumas cooperativas brasileiras, pertinentes à
ABRACOOP39.
3.3 A educação da classe trabalhadora para o socialismo
A partir do que foi exposto a respeito dos limites e possibilidades das cooperativas de
produção da Economia Solidária, é possível entender que se trata de uma ação que tenciona a
transformação da organização do trabalho, que busca emancipar a classe trabalhadora do
capital, cujo problema é a separação do trabalhador do produto de seu trabalho.
Como meio de alcançar tais fins as incubadoras da ES procuram reeducar os
trabalhadores, fazendo-os aptos para tomadas de decisão no processo produtivo, o que nos
leva à consideração de que se trata de uma educação voltada para a administração da
cooperativa e sua relação econômica no mercado. Diante disto, as cooperativas de produção,
postulando uma ação revolucionária, acabam reproduzindo as relações capitalistas, como
vemos,
por
exemplo,
na
preocupação
constante
das
trabalhadoras
artesãs
da
COOPERARTEBAN com as estratégias de vendas em detrimento do significado social de seu
trabalho.
Nesse sentido, a educação proposta pelas incubadoras recai sobre a aprendizagem de
métodos e técnicas de produção, e não na conscientização dos trabalhadores. Seguindo o
pensamento de Marx, é de inteira relevância que a educação, a partir de seu sentido
ontológico, se relacione com a militância da classe que tem a potencialidade de reproduzir
uma nova objetividade. Por isto, para ter efeito sobre a transformação da objetividade, a
38
Esses problemas serão retomados no capítulo seguinte quanto analisamos a atuação da Cooperativa de Artesão
da Barra Nova – a COOPERARTEBAN.
39
Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Cooperativas que vem incentivando a prática da
terceirização em áreas secundárias ou terciárias em relação à atividade central, por exemplo: limpeza, segurança
de patrimônio, jardinagem e conservação, alimentação e outras correlatas. Ver www.abracoop.org.br.
79
educação precisa ser encarada como uma mediação para a transformação da consciência
humana, sendo um instrumento em favor da luta contra o capitalismo.
Em sua essência, a educação é tratada a partir da concepção de homem, conforme se
vê em pensadores marxistas como Suchodolsky (1976) e Bertoldo (2002). Sendo a educação
uma categoria indissociável do trabalho, no sentido de que este último enquanto fundador do
mundo dos homens desencadeou processos de objetividades e subjetividades, precisa ser
compreendida em sua essência.
Como apresentado já na introdução deste trabalho, a educação faz parte da teleologia
secundária. Para Lukács (2004), a função desta teleologia é a atuação sobre a consciência. O
trabalho é a categoria fundante do ser social porque através dele o homem rompeu as barreiras
naturais, constituindo-se em um ser capaz de objetivar suas idéias, tornado-as concretas. Isto
porque o trabalho é composto de dois momentos: a causalidade – a natureza objetiva - e a
teleologia - a vontade orientada para um fim. Ao trabalhar, ou melhor, ao agir sobre a
natureza transformando-a conforme suas necessidades, o homem precisou ter uma prévia
ideação de sua ação, a qual passou a ser posta no momento em que ele se apropriou
concretamente dos elementos e das propriedades naturais (LUKÁCS, 2004, p. 09).
Além disto, no momento em que os homens entraram em intercâmbio com a natureza,
eles o fizeram por meio da cooperação com outros homens, o que significa dizer que os
homens precisaram influenciar uns aos outros para que seus objetivos pudessem ser
concretizados; neste sentido, a teleologia secundária tem como objetivo “induzir uma outra
pessoa (ou grupos de pessoas) a realizar algumas posições teleológicas concretas” (p. 39). O
sentido ontológico da teleologia secundária é a atuação sobre a consciência e não sobre um
objeto natural. Não é interferir nos objetos naturais imediatamente, mas “provocar estas
intervenções por parte de outras pessoas” (id., p. 40). E esta é, sem dúvida, a função da
educação.
Oriunda do trabalho, mas diferentemente dele, a educação não está voltada para a
transformação de objetos naturais em valores de uso e sim para a transformação da
consciência humana .
Em um estudo desenvolvido por Bertoldo (2002), a respeito da função da educação e
sua relação com o trabalho em autores marxistas brasileiros, a autora alerta para um dos erros
de se considerar a educação tomando o trabalho apenas em sua forma abstrata, própria do
sistema do capital. Partindo da perspectiva marxiano-lukacsiana ela afirma que em tal postura
80
ocorre um deslocamento da centralidade do trabalho para a centralidade da política,
acarretando a “preparação de cidadãos críticos, inseridos no mercado de trabalho” (2002, p.
170).
A relação da educação com o trabalho diz respeito ao fato de que este último,
enquanto fundamento da existência humana, desencadeou categorias que atuam no plano da
consciência dos indivíduos, a fim de levá-los ao desenvolvimento de posições teleológicas.
Neste sentido, estas constituem complexos parciais que se acentuam, mas jamais se separam
da totalidade concreta. Na medida em que atuam não sobre a objetividade sob causalidades
postas, mas sobre a subjetividade dos sujeitos, os complexos parciais mesmo impondo-se em
uma aparência autônoma em relação às determinações da realidade, não podem ser tomados
sem a totalidade que a engendrou. Do contrário, isto levaria a uma interpretação destas
categorias como surgidas fora da esfera da produção da existência humana.
Dessa forma, é possível entender que a educação tem uma função dentro da luta contra
o capital, que consiste em atuar sobre a consciência dos indivíduos, de modo a levá-los a um
patamar mais elevado de conhecimento de sua condição de classe que extrapole ações
políticas e se insira na desconstrução objetiva da realidade. Contudo, um problema precisa ser
resolvido: como a educação pode contribuir com a luta de classes se dentro das relações
capitalistas ela é definida como instrumento de reprodução destas relações?
Como resposta, Bertoldo afirma que “no contexto de uma sociedade capitalista, a
educação, na sua forma específica, encontra-se imbricada com este modo de produção, mas,
ao mesmo tempo, reflete os aspectos da educação no seu plano mais geral” (2002, p. 184).
Com isto, fica evidente que a educação, mesmo servindo funcionalmente para a reprodução
capitalista, possui a essência de contribuir com o desenvolvimento consciente de atos de
trabalho.
Portanto, a educação, enquanto atuação sobre a consciência dos homens, tem íntima
relação com o conhecimento da concretude. Suchodolski (1976) deixa à mostra que há uma
articulação da transformação social com o conhecimento correto da realidade. Este
conhecimento implica uma educação formadora e desmistificadora da realidade e da posição
do homem diante desta realidade. A perspectiva que o processo educativo toma ao se
relacionar com a classe trabalhadora é a da objetividade.
Uma análise das concepções utópicas e reformistas apresentadas mais acima comprova
que o erro dos meios de se atingir o socialismo nos vários pensadores confrontados por Marx
81
tem a ver com o fato de estes não ultrapassarem a visão falseada da realidade. Portanto, para
se evitar tal erro, a função educativa vai além da visão de que educar é conformar, repassar
informações ou despertar a essência humana como se esta fosse algo fixo. Educar dentro do
pensamento marxiano tem a ver com a formação da consciência daqueles que têm a
potencialidade de transformar a realidade: a classe operária.
A apropriação da educação por parte desta classe implica a desconstrução de produtos
ideológicos propagados pela sociabilidade capitalista, configuradas na aparência fenomênica
da realidade que oculta suas determinações concretas. Portanto, para Suchodolsky a educação
tem a função de “proporcionar armas intelectuais para a ação do proletariado” (1976, p. 58),
pois:
Uma revolução [...] não se produz espontaneamente. Exige uma acção
consciente dos homens debaixo das relações burguesas. Mas não há dúvida
que a participação na acção revolucionária constitui o único método que
pode destruir realmente os fundamentos educativos na sociedade de classes,
ao superar a ordem burguesa de classes e com ela eliminar os fundamentos
das ilusões pedagógicas, os fundamentos da ideologia pedagógica (p.59).
Desmistificar, desvendar o real, preparar o intelecto, mediar a formação de estratégias,
são os meios educativos que devem estar na pauta da luta dos trabalhadores contra o capital.
Sem estas mediações, a luta não deixará de se limitar ao próprio real, com possibilidades de
atingir apenas a sua aparência. A partir desta premissa, a educação dos trabalhadores
cooperados só poderá se consolidar em seu papel de formadora de consciência para atos
teleologicamente objetivos se atrelar à luta mais radical contra o capital.
Ao relacionarmos a essência da educação e a proposta marxiana de sua atuação com o
tipo de educação recebido pelos trabalhadores para o processo de produção cooperativista,
entendemos que esta última se encontra em uma posição contrária à luta pela superação do
capital porque não se embasa na conscientização dos trabalhadores sobre sua situação no
capitalismo, mas apenas na formação de administradores nos parâmetros da flexibilidade do
trabalho contemporâneo. No capítulo seguinte demonstraremos essa análise com base em uma
pesquisa de campo realizada em uma cooperativa de produção da Economia Solidária no
Estado de Alagoas.
82
CAPÍTULO IV
A REEDUCAÇÃO DE TRABALHADORES PARA A
AUTOGESTÃO EM ALAGOAS NA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
DO CAPITAL
A pesquisa de campo realizada na Cooperativa de Artesãos da Barra Nova –
COOPERARTEBAN teve como pressuposto comprovar que o tipo de educação oferecida
pela cooperativa encontra limites frente o processo de conscientização para a luta contra o
capital. Portanto, para efeito de investigação foram analisados, durante três meses, os textos
utilizados pela IESOL e o processo educacional oferecido a ela, bem como a apreensão de sua
dinâmica interna por meio de uma entrevista com os cooperados.
Antes, porém, de apresentarmos o desenvolvimento e os resultados da pesquisa, é
importante situarmos o objeto. Para tanto, precisamos entender as determinações sóciohistóricas que deram origem à economia alagoana, a fim de comprovarmos os reais limites
que ela apresenta para uma alternativa que se levanta contra a sua estrutura. E como adotamos
uma perspectiva marxiana, entendemos ser imprescindível partir das determinações da
reprodução social.
4.1 A economia agroaçucareira e a reestruturação produtiva do capital
Para compreender a COOPERARTEBAN poderíamos estudar a sua dinâmica interna e
o sentido que ela toma economicamente na lógica do mercado. Contudo, tal análise seria
insuficiente porque esconderia as determinações sociais específicas do Estado de Alagoas
sobre esta cooperativa. A presente pesquisa, portanto, se detém no conhecimento da
concretude alagoana e sua situação na atual reestruturação produtiva do capital. Como
referência para o estudo em questão, tomamos os próprios dados econômicos representativos
de sua condição contemporânea no cenário da economia mundializada.
Em seu livro Economia Popular – uma via de modernização para Alagoas, Péricles
(2005) nos traz as condições econômicas que situam o quadro alagoano no ranking brasileiro,
e as constatações do autor não são nada promissoras. Apresentando os indicadores sociais da
economia alagoana, ele expõe uma realidade bastante perversa: Alagoas é hoje o Estado que
83
detém as piores condições de vida em vários âmbitos sociais, apesar de alguns níveis de
crescimento na área da educação e da saúde (2005, p. 06).
O autor utiliza dados do IBGE e comprova que o desempenho econômico alagoano
apresenta-se em um patamar inferior no âmbito nordestino e brasileiro em termos de
desenvolvimento e renda, ganhando apenas para estados como Maranhão e Piauí (2005, p. 0712). De acordo com sua análise, a economia alagoana é marcada profundamente por três
ausências:
a) falta-lhe um amplo mercado interno, decorrente de uma economia
popular articulada que atenda à demanda regional, que aumente e distribua
a renda, incorporando, dessa maneira, a maioria da população no processo
produtivo/consumo; b) faltam-lhe pólos dinâmicos capazes de substituir
importações e realizar exportações (para o exterior e para outros estados),
promovendo o crescimento regional; c) falta-lhe um setor público (Estado e
municípios) com capacidade de investimento (p. 08).
Interpretando a visão do autor, o que falta a Alagoas para que seja um Estado
“promissor” são as condições objetivas necessárias a um processo de aceleração da produção
capitalista moderna. Entendendo os problemas estruturais do Estado sem a dinâmica da luta
de classe ou da relação entre aqueles que produzem e os que detêm os meios de produção,
Péricles prossegue afirmando que resta à economia alagoana, para a eliminação de seus
problemas, a instituição de pequenas empresas e uma relação mais estreita entre o Estado e a
União promovendo investimentos. Estas teriam a função de corrigir os defeitos econômicos
próprios de Alagoas porque possibilitariam seu crescimento econômico e sua modernização
social (p. 106).
À luz do que já foi apresentado acerca da essência do capital, a análise de Péricles
parte de uma concepção dos efeitos do capital e não de suas causas. Impondo uma mudança
na forma como a riqueza é distribuída, não há um vislumbre de que a produção da existência
humana em Alagoas se dá por meio de um processo de desumanização muito mais
aprofundado que em regiões capitalistas modernas. Isto porque, segundo Lessa (2004), a
realidade alagoana é marcada por um tipo de capitalismo colonial cujas contradições são
muito mais extremas que as do capitalismo clássico, pois, caracterizada por uma massa de
trabalhadores oriunda da produção agroaçucareira, Alagoas conta com um nível de pobreza
que atinge cerca de 62% de sua população. Significa dizer que os efeitos do capital se
manifestam no Estado com muito mais gravidade.
84
A problemática para sua superação estrutural está no fato de a econômica alagoana
não atingir o mesmo nível de capitalismo que outras regiões, como o sul do país. Uma
economia pautada no capitalismo colonial apresenta características peculiares como a falta de
uma burguesia democraticamente revolucionária e de um proletariado. Esta peculiaridade
ocasionou uma lacuna em sua formação capitalista porque permitiu que os efeitos mais
negativos e degradantes do capital se concretizassem de modo que as relações sociais se
configurassem em profundos problemas políticos e culturais que, ainda por cima, têm de
conviver com a predominância da produção de cana-de-açúcar fragilizada por uma forte
competição em nível de Brasil. Para Lessa, o que permite a sustentação da produção desta
cultura são os acordos das grandes usinas com o Estado que, temeroso do surgimento de
movimentos revolucionários40, mantém tais empresas no mercado pela via de uma
sobrevivência artificial, não extrativa da mais-valia pelo processo produtivo especificamente
(p. 10).
Conseqüentemente, as usinas de açúcar ditam as regras econômicas, impedindo o
crescimento de outras culturas cuja existência se restringe à sobrevivência local, à
comercialização quase doméstica ou exportações de pouca expressão41 – como é o caso das
plantações de macaxeira, batata-doce, de frutas, de plantas exóticas etc. - que nem sequer
chegam a produzir efeitos nos parâmetros capitalistas locais. Uma outra situação econômica
contraditória é a concentração de produtividade agroaçucareira nas regiões historicamente
mais promissoras pela localidade e situação climática e de cultivo – a Zona da Mata42 – e uma
pauperização nas regiões consideradas improdutivas ou de produtividade incipiente como se
dá no Sertão43.
O que caracteriza as relações internas de Alagoas é o fato de este Estado ter-se tornado
predominantemente uma terra de usinas de açúcar, o que leva os indivíduos a viverem na
órbita desta produção, desenvolvendo-a, reproduzindo-a em seu cotidiano. A explicação disto
está em suas origens, no processo de ocupação das terras ao sul de Pernambuco, nas quais
proliferaram por toda a região os engenhos de açúcar, originando relações sociais com base no
patrimonialismo, no filhotismo, no familismo e na famulagem (VERÇOSA, 2006, p. 22),
40
Principalmente para a reforma agrária na região.
Não negamos a existência de indústrias em Alagoas, apenas nos referimos ao fato de que as poucas que
existem como é o caso da Braskem e da Socôco, perdem para a maior fatia das usinas que apenas no ano passado
abocanharam 98% das exportações. Ver Péricles, 2005, p. 56.
42
Os principais municípios da Zona da Mata alagoana são: São Miguel dos Campos, Atalaia, São José da Lage,
União dos Palmares, Murici, Viçosa, Messias, Satuba, Pilar e Rio Largo.
43
Água Branca, Mata Grande, Olho d'Água do Casado, Batalha, Ouro Branco, Pão de Açúcar, Piranhas, Poço
das Trincheiras e São José da Tapera são os municípios mais conhecidos do sertão alagoano.
41
85
demonstrando os efeitos de relações de dependência dos indivíduos à pessoa do senhor de
engenho, como revela Diegues Júnior:
No senhor de engenho se aglutinam os elementos constitutivos da sociedade
alagoana. São os senhores de engenho heróis na guerra holandesa, são os
propulsores da economia regional nos dias de paz. Formam a aristocracia da
terra: não só nas Alagoas e sim em todo o Brasil colonial. É o aristocrata
colonial em derredor de cuja figura se criam, se desenvolvem, se expandem
as famílias do açúcar; as famílias nascidas em engenho. São estas famílias
que fazem do engenho não apenas um centro social ou demográfico, além
do econômico que era essencialmente; também um centro político, cuja
sombra ou em torno de cujos interesses se realiza o desenvolvimento da
vida regional (2006, p. 90).
Apesar da derrocada desta economia açucareira por ocasião da invasão batava, as
relações originadas dela se reproduziram com poucas modificações. Alagoas vive desde seus
começos aquilo que o autor denomina de ruralismo urbano, ou seja, a transferência das
relações rurais para a cidade ou ainda as determinações do ruralismo no progresso e na
reprodução da vida na área urbana (id., p. 91). Este tipo de relação característica
predominantemente de Alagoas revela sua constituição social, padrão único da organização da
sociedade alagoana (VERÇOSA, 2001, p. 44), e conseqüentemente apresenta uma
contradição inerente ao Brasil entre o arcaico o moderno (LESSA, 2004, p. 06).
Dentro da sociedade alagoana convivem relações que oscilam entre o atraso e a
modernidade muito mais visíveis que em outras localidade do país, pois o “arcaico e o
moderno convivem intimamente no Brasil e cada um dos pólos alimenta-se do outro para
subsistir e desenvolver-se” (idem). Mas, como identificar esta relação em Alagoas?
Um primeiro aspecto a ser considerado para entender como se dá tal contradição em
Alagoas é o fato de que neste Estado ela é muito mais acentuada no que toca ao arcaico, visto
que a ausência de relações capitalistas mais avançadas no nível de outras regiões é muito mais
forte. Isto porque “Alagoas não cumpriu sequer a primeira etapa do desenvolvimento
capitalista, ou seja, ainda não consegue produzir a maior parte dos bens de consumo corrente
que o seu mercado interno adquire” (id., p. 11). O reflexo desta situação pode ser
compreendido também a partir das próprias raízes alagoanas que, de início preeminentemente
baseada em uma produção da existência sob o domínio do engenho, constituiu um padrão de
vida configurado em “sentimentos próprios da comunidade doméstica” gerando “preferências
sempre fundadas nos laços afetivos e da personalidade” (VERÇOSA, 2001, p. 44-45),
86
fazendo com que a objetividade e a impessoalidade sejam coisas para um futuro distante
(FAORO, apud VERÇOSA, 2001, p. 45).
Como resultado, a superação da separação existente entre o produtor e o produto de
seu trabalho em Alagoas, esbarra nos limites de sua configuração capitalista. Conforme
nossas análises, tal superação implica uma revolução no âmbito total do capital, vencendo o
fomento da financeirização e seu controle quase absoluto sobre o trabalho. Transferir tal
superação para Alagoas significa maior complexidade, no sentido de uma ruptura com o
arcaico, cujos efeitos torna improvável uma revolução a partir da reeducação de trabalhadores
em cooperativas de produção. Isto porque aqui tais cooperativas não enfrentam um mercado
financeiro diretamente, nem multinacionais, mas uma produção mantida artificialmente, além
dos entraves da própria cultura agroaçucareira entranhada nas relações sociais de dependência
que os indivíduos apresentam. Estes fatos são comprovados a partir da análise realizada na
COOPERARTEBAN, a qual enfrenta dificuldades estruturais percebidas como relacionais e
políticas. Para compreender tais constatações passemos a conhecer seu contexto particular e
sua formação.
O povoado de Barra Nova pertence ao município de Marechal Deodoro, situado a leste
de Alagoas a cerca de 30 km de Maceió. Economicamente, conta com um comércio e uma
industrialização pouco desenvolvidos. Possui casas comerciais como mercearias, mercados de
pequeno e médio porte, lojas de confecções, padarias, enfim, de uma comercialização típica
de relações industriais incipientes – ao município de Marechal Deodoro pertence o Pólo
Cloroalcoolquímico de Alagoas, o mais importante referencial econômico da região.
Barra Nova é caracterizado por ter rendeiras que produzem o original artesanato em
labirinto e filé e, portanto, guarda uma tradição deste tipo de técnica passada de geração a
geração. As rendeiras e filandeiras da região preservam a técnica por meio de trabalhos
informais ligados a uma produção doméstica, ou seja, uma produção sem as técnicas e
regulamentações próprias da produção fabril.
A escassez da produção e das vendas vem do subdesenvolvimento industrial e
comercial da região, bem como dos problemas ambientais que o povoado vem enfrentando, a
saber: um processo de invasão do mar, fenômeno originado, segundo Lima44, por um ciclone
no Atlântico Sul, o qual ocasiona a ampliação da altura da maré e ventos, levando ao
rompimento da restinga, que é um pontal arenoso sujeito às ações das ondas correntes, marés
44
Pesquisadora do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente, da Universidade Federal de
Alagoas, que faz um detalhado estudo sobre o litoral de Alagoas.
87
e tempestades, deixando a praia desprotegida45. Este fenômeno tem causado o abandono de
casas e a evasão de moradores, contribuindo para que as poucas alternativas de vida se tornem
cada vez mais restritas.
Assim, em 2003, um grupo de artesãs da região, atentando para os graves problemas
enfrentados pelos moradores, tais como o aumento da baixa qualidade de vida, devido à
proliferação profunda da pobreza e miséria, decidiu formar a COOPERARTEBAN, a
Cooperativa de Artesãos da Barra Nova. Convocando moradores, principalmente das
localidades mais humildes do povoado, este grupo conseguiu reunir cerca de setenta pessoas,
as quais viam na cooperativa uma via para a subsistência com dignidade.
Entretanto, sua constituição atual conta com doze artesãs. Esta redução de membros é
explicada seja pelas imposições feitas como condição da organização interna da cooperativa –
as responsabilidades quanto ao horário e ritmo de trabalho -, seja pelo fato de esta não
apresentar uma saída imediata aos problemas financeiros que o grupo principiante apresentava
naquele momento.
Assim, a COOPERARTEBAN, composta por um presidente e doze artesãs, é
assessorada pela IESOL – Incubadora de Empreendimentos Solidários desde meados de 2005,
recebendo desta incubadora formação técnica e educacional a respeito das necessárias
legalidades e dos princípios e responsabilidades que devem ser vivenciados pelos cooperados.
4.2 Análise do processo educacional da COOPERARTEBAN
A formação educacional oferecida uma vez por semana, pela equipe da IESOL, é
definida como algo bastante decisivo para a consolidação da cooperativa, pois ela representa a
aprendizagem das relações e técnicas que devem estar presentes em seu no dia-a-dia.
Neste momento, exporemos os conteúdos dos textos estudados pelos cooperados em
seu assessoramento à cooperativa. De início, é relevante informar que estes textos são
produzidos pela própria equipe, por meio do estudo de pesquisadores da área como Singer,
Lechat, entre outros, bem como através de debates e discussões internas.
As cooperativas da ES se caracterizam por não ter como fim o lucro, mas a atuação
sobre a elevação da qualidade de vida de seus integrantes. Neste sentido, a IESOL busca
45
Ver www.ufal.br/folhauniversitaria, do dia 2/5/2007.
88
ressignificar idéias utilizadas pela economia tradicional, procurando articular produção e
controle, insistindo na idéia da autonomia e participação dos cooperados, continuamente.
Seguindo os parâmetros das ITCPs (Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas
Populares), a IESOL inicia o seu assessoramento à cooperativa uma vez por semana (sempre
às quartas-feiras), partindo de um diagnóstico dela que em seus começos apresentava apenas
um nível de aspiração limitado e um tipo de organização informal e desconexa. O diagnóstico
da cooperativa tem a finalidade de entender sua origem, suas características e possibilidades, a
fim de traçar o tipo de conhecimento necessário ao seu funcionamento. Esta etapa é
denominada de pré-incubação.
Em seguida, após discussões e debates no interior da equipe, são ministrados os cursos
sobre autogestão e cooperativismo através de oficinas e palestras. São elaborados textos sobre
o assunto e distribuídos por etapa de conteúdos. Para compreendermos melhor essa fase é
importante abordar cada aspecto trabalhado do curso. Os primeiros textos trazidos pela
IESOL à cooperativa tratam do conceito de cooperativismo e o diferencial da Economia
Solidária diante das demais formas de cooperativa quanto à geração de renda democrática e
sustentabilidade.
Em seguida, os cooperados aprendem sobre os tipos de cooperativa (de crédito, de
consumo, de trabalho e de produção), sua funcionalidade e o que a ES toma como princípios
importantes para o trabalho cooperativo, quais sejam: livre acesso e adesão voluntária,
controle, organização e gestão democrática, participação econômica, autonomia e
independência, bem como educação, capacitação, informação e comunicação. Outros
conhecimentos mais técnicos como o sistema de votação, a função da assembléia, as
incumbências internas: preparação de ofícios, contratos, atas, matrículas, prestações de conta,
relatórios, balanços, demonstrativos, pareceres, planos de atividades, o uso de recursos e do
capital, repartição de sobras líquidas são tratados minuciosamente e sempre no decorrer das
atividades da cooperativa.
Este momento é a incubação46 propriamente dita, e acontece continuamente até que a
cooperativa tenha autonomia para atuar sozinha. Nos textos utilizados pela IESOL para
assessorar a cooperativa constatamos que a preocupação maior é com o sucesso da
cooperativa no contexto econômico em que esta se insere. Daí, um direcionamento a ensinar
46
Para efeito de um entendimento mais detalhado sobre o período de pré-incubação e incubação de cooperativas
ver páginas 54 a 57 deste trabalho.
89
tudo sobre negócios, sobre empreendedorismo47 e competitividade no mercado. Tais
conhecimentos são seguidos daqueles voltados para a divisão do trabalho interno, a delegação
de responsabilidades e atividades, o processo de fiscalização e regularização e as atribuições
dos cargos: diretoria, tesouraria e secretaria.
Na análise do processo de incubação da COOPERARTEBAN é possível constatar que
ela se direciona aos ensinamentos sobre o conteúdo humano dos cooperados. Estes refletem
sobre a importância da ajuda mútua, da cooperação na vida social, e passam a ser formados
transferindo tais princípios para o processo de produção desencadeado em seu
empreendimento. Contudo, tal educação é limitada pela preocupação com o sucesso produtivo
e comercial da cooperativa, pois, prolonga-se em aspectos técnicos e práticos, sem trazer
conhecimentos que conscientizem as cooperadas de sua posição de classe e das condições
objetivas em que vivem.
Um fato bastante nítido na COOPERARTEBAN é que, apesar da apreensão dos
conhecimentos oferecidos, a cooperativa se vê em dificuldade para colocá-los em prática. Isto
é explicado pelos cooperados como decorrência da falta de articulação de alguns ao processo
produtivo – das doze cooperadas, apenas nove eram ativamente produtivas -, e isto inclui a
responsabilidade com os horários, com as encomendas, com a produção contínua para a
venda, que acontecia na própria cooperativa e nas feiras organizadas pela IESOL, dentro e
fora de Alagoas.
Assim, a cooperativa esbarra em problemas internos ao colocar em prática os
princípios educacionais adquiridos em sua incubação. Este fato fica bem mais claro com a
análise da entrevista realizada entre as cooperadas, apresentada a seguir. As perguntas tiveram
o objetivo de investigar os principais problemas enfrentados pela cooperativa e a visão dela
sobre suas causas (Ver ANEXO A). É importante dizer que tais perguntas foram feitas
conforme a compreensão das cooperadas, seguindo de acordo com o seguinte norteamento:
1) O motivo para se integrar na formação da cooperativa;
2) As principais diferenças entre o trabalho antes e após a cooperativa;
3) As principais dificuldades enfrentadas enquanto trabalhadora cooperada;
4) A(s) maior(es) dificuldade(s) para o avanço da cooperativa e suas causas;
47
Empreendedorismo diz respeito à percepção de oportunidades de criação de meios, funções e ações
produtivas. Na literatura administrativa e econômica é a capacidade de criar novas formas de organização e
exploração dos recursos materiais, com habilidades gerenciais Know-row em businnes. Ver
www.planodenegocio.com.br.
90
5) A maneira como tais dificuldades podem ser superadas;
6) E a avaliação da formação educacional oferecida pela IESOL quanto às suas
expectativas enquanto trabalhadora cooperada.
Antes da exposição dos resultados é importante dizer que as nove entrevistadas
forneceram em algumas perguntas mais de uma resposta. Transformamos os dados em
gráficos e não descartamos nenhuma, apesar de muitas não estarem inseridas nos propósitos
da investigação. Os dados coletados foram os seguintes:
QUANTO AO MOTIVO QUE AS LEVOU À INTEGRAÇÃO NA
COOPERATIVA
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Ter um emprego
Ter esperança de mudança
Valorização no trabalho
91
AS PRINCIPAIS DIFERENÇAS ENTRE O TRABALHO ANTES E APÓS A
COOPERATIVA
50
40
30
20
10
0
Melhora na Vendas
Aquisição de Técnicas
Companheirismo
AS PRINCIPAIS DIFICULDADES ENFRENTADAS ENQUANTO
TRABALHADORA COOPERADA
60
50
40
30
20
10
0
Na comercialização
No trabalho em grupo
Na falta de verba
Não vê problema
Falta de divulgação
A(S) MAIOR(ES) DIFICULDADE(S) PARA O AVANÇO DA
COOPERATIVA E SUAS CAUSAS
50
40
30
20
10
0
Falta de recursos
Pouca produtividade
No transporte à cooperativa
Pouca divulgação dos produtos
92
A MANEIRA COMO TAIS DIFICULDADES PODEM SER SUPERADAS
60
50
40
30
20
10
0
Na comercialização
No trabalho em grupo
Mais capacitação
Ter mais recursos
Participar de feiras com mais freqüência
Ter mais união
Receber mais encomendas
Ter mais apoio de empresas
A AVALIAÇÃO DA FORMAÇÃO EDUCACIONAL EXERCIDA PELA IESOL
80
60
40
20
0
Satisfatória
Necessita melhorar quanto a informações sobre produção
Não opinou
Diante dos dados apresentados e relacionando-os ao tipo de educação oferecida pela
incubadora, é possível perceber que as cooperadas, ao integrarem-se à cooperativa, tinham o
objetivo, em sua maioria, de apenas terem um emprego, já que a maneira como produziam em
suas casas não lhes rendiam o esperado; acreditam que dentro da cooperativa a chance de uma
melhor qualidade vida é muito mais viável que trabalhando separadamente em seus lares.
93
Sobre o motivo de sua entrada na cooperativa, algumas falas das cooperadas merecem
destaque:
“Entrei por causa da falta de emprego e por acreditar que em grupo a gente pode dar certo”.
“Eu tava desempregada e vim pra aqui pra ganhar alguma coisa”
“Eu acho que é uma beleza, pra ser mais valorizada”.
“Pra ter um emprego que o bairro não pode dar”
Nestas falas é possível perceber que os motivos de sua entrada na cooperativa não
indicam um entendimento sobre a sociedade e da necessidade de mudança social; as
cooperadas confirmam apenas a vontade de ter emprego, ocupação, companhia, algo que
demonstra que a formação da cooperativa não diz respeito a uma conscientização social de
sua condição como classe.
Isto também é nítido em suas comparações sobre a melhora de sua produção. Elas
refletem, em sua maioria, o aumento de suas vendas na cooperativa como o ponto mais
importante para estarem nela. Vejamos algumas afirmações:
“A venda melhorou, mas não avançamos muito porque ainda não produzimos por causa de
problemas financeiros. E as diferenças (entre estar ou não na cooperativa) não são muitas, apenas que
com a cooperativa espero vender mais”.
“O fato de vender peças, para elas serem mais valorizadas”
Sobre as dificuldades no processo de seu trabalho em relação à cooperativa, as
cooperadas afirmaram que a falta de união entre elas é a mais marcante:
“As dificuldades de trabalhar em grupo, de dividir tarefas”
“As dificuldades é a falta de interesse e o fato da gente trabalhar só, falta de união, falta de
informação”.
“A falta de união, o fato de uns quererem ser maiores que os outros”.
“Dificuldade é o transporte, falta de união, de valor às coisas da cooperativa, as pessoas têm o
pensamento muito negativo”.
Tais respostas indicam o mesmo nível de entendimento quando indagadas sobre suas
dificuldades diante da sociedade, vejamos:
“Falta união, ela (a cooperativa) passa muitas coisas boas, mesmo não conhecendo todo o
trabalho eu vejo que é muito importante”.
94
“A falta de união, a cooperativa deste jeito não avança”
“Se todo mundo se unisse e começasse a trabalhar seria bom”
Ao perguntarmos como tais problemas podem ser resolvidos, algumas respostas se
relacionaram muito mais à necessidade de união do grupo e aumento das vendas; algumas até
acreditando que o registro da cooperativa pode mudar a irrisória comercialização dela:
“Se todo mundo se unisse, e começasse a trabalhar”.
“Deveria ter mais divulgação, mais encomendas, mais pedidos, isto seria mais fácil”.
“Agora com este documento de registro as coisas vão avançar, vamos conseguir mais verbas,
mais investimentos”.
Diante de tais respostas constatamos que o tipo de formação educacional oferecido
pela IESOL não permite às trabalhadoras uma compreensão acerca da realidade concreta em
que estão situadas. Elas não apresentam o entendimento de problemas como, por exemplo, as
dificuldades de produção e venda que enfrentam como algo inerente ao capitalismo local,
visto que desviam a atenção à falta de verba e não propriamente à lógica da realidade em que
vivem, marcada pelo atraso econômico e pela concentração de riqueza das grandes empresas
locais.
Portanto, a educação oferecida pela IESOL caminha para a ausência de conhecimento
sobre a objetividade, algo comprovado no nível de conscientização das trabalhadoras sobre
sua situação e dos rumos da realidade sobre suas vidas e produção. A atuação da educação
recai muito mais para o aspecto técnico e subjetivo da cooperativa, firmando o tipo de
comportamento adequado para sua atuação no mercado, no que diz respeito à sua
aprendizagem sobre administração. Por que isto acontece? Ou por que a educação oferecida
para o trabalho em cooperativas de produção da ES não apresenta indícios da superação da
lógica do capital?
A partir de Marx, a educação para ser a favor da classe trabalhadora, precisa se atrelar
à desconstrução da objetividade capitalista. Apesar de não ter a função de mudar a realidade
ela tem peso na transformação social no momento em que medeia conhecimentos necessários
à construção de necessidades historicamente criadas, resolutivas das contradições
fundamentais do modo de produção capitalista (MÉSZÁROS, 2002, p. 520). Isto implica
superar formas de transição socialistas híbridas, ou seja, carregadas do conteúdo valorativo do
capital. E educando trabalhadores para a execução de um processo produtivo apenas com base
em seus conhecimentos sobre as tomadas de decisão, a ES não faz mais que reproduzir o tipo
95
de trabalho próprio do capital e, portanto, não se direciona à derrocada da contradição
existente entre o processo de trabalho e o produto.
Quanto às aspirações das trabalhadoras pelo trabalho cooperado, a possibilidade de ter
um emprego, esperança e valorização em seu trabalho é a nota tônica. Este aspecto, apesar de
carregar um nível de positividade diante das mazelas do capital se insere nos problemas
estruturais deste sistema e nas poucas possibilidades que ele oferece à sobrevivência humana.
Ao se depararem com problemas cotidianos, as trabalhadoras cooperadas, sem um
conhecimento das determinações sociais em que vivem, não vislumbram o entendimento de
que as causas de suas dificuldades e problemas estão estruturadas na sociedade. Isto é muito
claro quando os apontamentos recaem sobre fatores subjetivos como a falta de união ou de
participação do grupo, citada como o maior problema da cooperativa e como a solução para o
seu avanço. Esta interpretação das cooperadas tem origem na própria dinâmica social
alagoana. Típica de uma economia capitalista colonial, Alagoas apresenta um caso extremo de
graves contradições e efeitos do capital que não permite um conhecimento de suas
contradições sem a consideração de suas determinações a fundo.
Outra constatação feita é a transferência de problemas estruturais do capital para
outros de ordem conjunturais ou particulares. Ou seja, quando indagadas sobre o possível
avanço da cooperativa, as cooperadas afirmaram entraves no âmbito mercantil, comercial;
problemas de falta de recursos são apontados e revelam a necessidade de a cooperativa entrar
nas relações de mercado, competindo e ganhando espaço na produção e venda. Ora, se as
trabalhadoras afirmam a necessidade de ter um emprego ou um meio de subsistência,
provavelmente irão se preocupar com a fonte de sua renda. Mas o que tudo isso significa com
relação à proposta de transição socialista via cooperativas da Economia Solidária?
Uma das constatações é a de que tal transição esbarra em sua própria lógica a começar
pelo processo educacional que oferece, o qual se baseia na aquisição de técnicas e
instrumentos para a produção e venda tornarem-se competitivas nos parâmetros do
empreendoderismo, desviando-se assim de uma proposta educacional para a conscientização
das trabalhadoras, de sua potencialidade de transformar a realidade enquanto classe e
reproduzindo o capital mediante formas pelas quais o sistema pode se mover, neste momento
histórico, rumo ao seu fim último: a acumulação.
Como vimos, no pensamento de Marx a luta entre aqueles que produzem e aqueles que
se apropriam dos meios de produção é válida e continua sendo para qualquer interpretação das
96
alternativas que se coloca contra o capital, mas precisa estar inserida nas contradições que
cada contexto possui em sua particularidade dentro da totalidade do real. Ao se desviar desta
condição, a Economia Solidária em sua proposta cooperativista, contribui para o fomento das
relações capitalistas, reproduzindo-as.
Por que isso acontece? Ou por que, ao invés de entender as mazelas do capital em seus
efeitos mais funestos para a vida humana, a Economia Solidária não consegue romper com
estes problemas? Em Mészaros encontramos uma resposta coerente com a vertente teórica
aqui defendida. Para este pensador o capital é uma relação orgânica constituída de três partes
vitais que sustentam a sua existência formando um tripé, são elas: o capital, o trabalho e o
Estado (2002, p. 917), portanto, não basta superar uma destas partes, mas o sistema como um
todo. Não basta colocar nas mãos dos trabalhadores a capacidade de decidir sobre a produção,
sem ultrapassar a substância desta produção que subjuga o trabalho, fazendo-o movimento de
acumulação, situação percebida como aumento da exploração na flexibilidade do trabalho e
sua desregulamentação (isenção das legalidades conquistadas pela classe trabalhadora).
Tal afirmação também é valida quando analisamos que o fomento da Economia
Solidária no Brasil vem crescendo pela ação direta do Estado e, sabemos que a instância
estatal serve como “estrutura corretiva compatível com os parâmetros estruturais do capital
como modo de controle sóciometabólico” (MÉSZÁROS, 2002, 107) e isso o Estado o faz por
meio da criação de políticas sistêmicas, atualmente, profundamente enraizada na
desregulamentação, liberalização e desmantelamento do trabalho.
No caso de Alagoas, o Estado tem contribuído com a continuação das relações
econômicas vividas desde a ascensão das usinas agro-açucareiras, as quais dependendo das
verbas estatais, não apenas cresceram, como se mantiveram no mercado, mesmo diante do
avanço econômico das usinas do sul do Brasil (LESSA, 2004, p. 09). Frente a este fato, é
possível perceber que a ajuda do Estado à formação de empresas cooperativas é uma medida
paliativa, pois, tais empresas não possuem a potencialidade sequer de se sobrepor às relações
mercantis e produtivas das usinas alagoanas que determinam os rumos da economia no
Estado. Isto acontece porque em Alagoas a produção ou o desenvolvimento de outros ramos
econômicos só consegue se configurar em uma modernização conservadora, ou seja, não
entram sequer em um nível de modernização nos parâmetros do capitalismo avançado
(LESSA, 2004, p.11).
Para que a transformação social aconteça, Mészáros (2002) defende a remoção do
capital pela apropriação positiva e melhoria contínua “das funções vitais de intercâmbio
97
metabólico com a natureza e entre os membros da sociedade pelos próprios indivíduos que se
auto-determinam” (p. 920).
As cooperativas de produção da Economia Solidária podem oferecer ganhos
individuais ou relativos aos grupos quanto ao sentimento de pertinência a um grupo, a um
direcionamento de ações para solucionar problemas emergentes e imediatos, mas não podem
contribuir como resolução da separação entre os trabalhadores e os produtos de seu trabalho
por meio de uma reestruturação profunda da reprodução da vida voltada para as necessidades
essencialmente humanas. Pois isso implicará a tomada de poder pelos produtores associados,
os quais têm a capacidade de estabelecer o comando sobre as esferas materiais e culturais da
vida em sua totalidade.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao estender as interpretações do socialismo às contradições do Estado de Alagoas,
Brasil, o fizemos porque entendemos que a reestruturação produtiva do capital se reflete neste
Estado de maneira a acentuar os seus graves problemas sociais. Isto acontece porque o capital
contemporâneo se relaciona indiretamente com algumas regiões do mundo, até mesmo
fomentando suas contradições internas (CHESNAIS, 1996, p.32).
A particularidade alagoana exibe as características essenciais da totalidade capitalista e
isso é perceptível no momento em que estratégias de transformações sociais chegam ao
Estado de Alagoas, tentando contornar suas determinações sociais. Atualmente, a nova
configuração do capital baseada na financeirização impõe a idéia de que não há possibilidade
de transpor esta realidade, mas apenas de conviver com os seus males de modo a buscar
atenuá-los contextualmente.
Alagoas demonstra atraso no ranking nacional, como bem nos mostra o trabalho de
Péricles (2005), o qual defende a distribuição da riqueza e a criação de pequenas empresas
populares como saída, sem se ater ao fato de que o mercado atual é abrangente porque é
mundial, engolindo ou marginalizando as pequenas produções até mesmo quando tentam
entrar no jogo da competitividade socialmente aceita. O peso desta realidade é o entendimento
de que as contradições em Alagoas só podem ser superadas no nível de totalidade, sendo
insuficientes estratégias locais como as inscritas na Economia Solidária. Porque a natureza do
capital, sua universalidade, atinge todas as esferas da vida humana, subjugando tudo à
acumulação sem precedentes, o que é visto no aumento das taxas de lucro em grande escala e
em intercâmbios capitalistas cada vez mais mundializados.
No quadro econômico de Alagoas as cooperativas de produção da Economia Solidária
enfrentam problemas estruturais de um tipo colonial de desenvolvimento capitalista no qual
A grande propriedade agrária, pecuária e agroindustrial, que tem sido, desde
a época da colonização, o centro da nossa sociedade, apesar de sempre
incorporar substanciais desenvolvimentos tecnológicos e fazer outras
mudanças para adequar-se às conjunturais, reproduz continuamente um
padrão técnico e gerencial abaixo de seus concorrentes brasileiros e
internacionais, uma produtividade agrícola e industrial inferior, uma
situação financeira instável, uma relação predatória com o meio-ambiente, o
aparelho do Estado, a infra-estrutura pública e a mão-de-obra (LESSA,
2004, p. 09)
99
O fato das trabalhadoras cooperadas não conseguirem apontar um conhecimento
acerca dos problemas que sofrem dentro da Cooperativa quanto à sua produtividade diz
respeito, além da sua formação educativa que não lhes dar respaldo para tanto, também às
próprias relações sociais circunscritas em um universo cultural, econômico e político atrasado
determinante de idéias e costumes antidemocráticos e paternalistas, o que dificulta até mesmo
a aprendizagem de posturas autônomas e cooperativas.
E isto é muito claro quando analisamos as dificuldades de produção que as cooperadas
enfrentam quanto à responsabilidade para com o horário de trabalho e produtividade
(capacidade de objetivar suas ações no processo de trabalho dentro da Cooperativa
confundida com falta de união entre elas, falta de apreço à empresa).
Portanto, ao investigar os limites e (im)possibilidades das cooperativas de produção da
Economia Solidária em Alagoas não se pode ignorar a singularidade desta realidade e suas
implicações para a luta contra o capital. A despeito da idéia de que cabe às frentes socialistas
alagoanas lutarem para levar o Estado ao caminho da modernização do capitalismo clássico e
democrático como defende Lessa (2004, p. 43), a visão ontológica do trabalho vislumbra a
derrocada radical do capital para que o processo de produção seja de fato humanizador, no
qual os homens produzirão para suas necessidades mais complexas, unindo-se definitivamente
ao produto de seu trabalho, reconhecendo-se nele.
Para Mészaros, pensar a transição socialista implica considerar os problemas que o
marxismo enfrenta configurados na necessidade de atualizar as interpretações do real, a fim
de projetar a sua derrocada a partir de uma proposta real, concreta. Assim, para o autor é
necessário que o movimento socialista compreenda o momento histórico em que vivemos, o
qual se pauta em determinações diversas há cerca de vinte e cinco anos, o que representa uma
nova fase a reclamar a construção prático/institucional de estratégias socialistas (2002, p.
787). Portanto, os levantes socialistas devem superar uma postura defensiva própria do
desconhecimento da realidade atual e buscar firmar uma postura ofensiva como fato histórico
contrastante com a condição objetiva em que vivemos (p. 788).
Trazendo tal interpretação para a realidade alagoana é possível afirmar que os levantes
socialistas precisam elevar o nível de consciência de seus trabalhadores, pois, segundo Lukács
(1978, p. 11), o fato de a estrutura predominar não impossibilita a imposição de resistências
subjetivas. Portanto, levá-los a um desenvolvimento econômico do capitalismo clássico se
torna uma posição contraproducente, já que não sai das barreiras impostas pelo capital de uma
reprodução subumana.
100
A realidade capitalista apresenta momentos em que a objetividade se manifesta
propícia para uma vantagem duradoura no sentido de uma reconstrução econômica da
sociedade. Isto significa dizer que a transição socialista só poderá acontecer se houver uma
harmonia entre as estratégias de luta e as condições objetivas, do contrário ela esbarrará nos
mesmos problemas outrora vivenciados na experiência soviética.
Tal harmonia não alcançada resultou nos levantes de menor resistência que buscaram
solucionar os problemas aparentes do capital sem atacar a sua base estrutural sustentadora.
Por outro lado, geraram o chamado socialismo de mercado, propondo reformas dentro do
sistema de planejamento, mas no fundo glorificando o mercado no tipo de produção e de troca
capitalistas.
A configuração contemporânea do capital apresenta uma crise estrutural e, portanto,
abrangente, de alcance global e extensivo, diferente das crises cíclicas que atacavam apenas
uma parte ou um aspecto da realidade. Esta crise pertencente a um complexo social apresenta
contradições que bloqueiam as partes vitais do capital, manifestadas no desequilíbrio do
controle das multinacionais sobre as flutuações do mercado, ou seja, a produção cada vez
mais subjugada aos ditames das incertezas e inseguranças do mercado.
Situação que leva as grandes empresas a uma busca neurótica por mão-de-obra em
regiões do mundo inexploradas, encontrando dificuldades de se manter pela geração de níveis
cada vez mais altos de subdesenvolvimento, cujos efeitos de miserabilidade já acenam com
críticas e revoltas contra o sistema.
Para Mészáros, porém, as atuais condições objetivas em suas contradições têm relação
com a potencialidade da ofensiva socialista e, dentro dela, o papel da política é fundamental,
pois esta enquanto mediação precisa firmar objetivos econômicos concretos, porque:
A reconstituição e a substantiva democratização da esfera política são a
consolidação necessária para uma intervenção sobre o controle
sociometabólico do capital, pois o poder do capital não está e nunca estará
limitado a estritas funções produtivas. Para controlá-las o capital deve ser
complementado pelo seu próprio modo de controle político. Isso significa
que a estrutura material de comando do capital não pode afirmar-se sem a
estrutura de comando político global do sistema. Assim, uma alternativa ao
controle sociometabólico do capital deve abranger todos os aspectos
complementares do processo de reprodução social, desde as funções
estritamente produtivas e distributivas até as dimensões mais amplas da
direção política (2002, p. 848).
101
E este comando político, ainda segundo o autor, deve ser realizado pelos produtores
associados, aqueles que decidirão coletivamente sobre seu destino, produzindo sua existência
longe dos interesses do capital (MÉSZÁROS, 2002, p. 849). A intervenção desses vai desde a
tomada de decisões locais até as internacionais, caracterizadas pela atuação também na esfera
material e cultural. Neste sentido, trata-se da reconstituição da unidade das esferas de
reprodução material e política, superadora da divisão social do trabalho porque ataca as partes
vitais do capital, a saber: o capital, relação objetivamente comandada para a troca, o trabalho
dentro dele, que toma a forma de categoria submetida à acumulação de capital, e a política
enquanto instância a favor desta acumulação.
Portanto, cabe ao trabalho ser um poder sociometabólico capaz de superar o controle
do produto (mercadoria) sobre o produtor, impondo a dominação definitiva dos trabalhadores
sobre a produção, de modo a efetivar uma auto-emancipação do trabalhador, cuja substância
transcenda as determinações desumanizadoras do capital. Assim, o socialismo representa um
controle produtivo orgânico, potencialmente social/global, alcançável pela conscientização
dos trabalhadores em uma objetividade adequada passível de mudanças.
Em tal situação, a transformação social poderá sair da condição de reformas figuradas
em paliativos ou mudanças graduais que acabam nem sequer conseguindo seus objetivos
defensivos, dadas as condições mundializadas do capital que arrastam as relações do trabalho
à degradação e subordinação insustentáveis para a humanidade, para assim poder ser de fato
uma revolução radical, caracterizada pela autocrítica permanente e contínua, provedora de
melhoramentos substanciais do modo de controle da ordem socialista autodeterminada.
Cabe, portanto, à educação dos trabalhadores em Alagoas, seguindo o sentido
ontológico da relação do trabalho com a educação, formar sua consciência de modo a fazê-los
entender o elo existente entre o que vivemos no passado do qual tiramos as lições para melhor
compreendermos o presente e o que viveremos no futuro. Porque, para Mészáros (2008)
O papel da educação é supremo tanto para a elaboração de estratégias
apropriadas, adequadas a mudar as condições objectivas de reprodução,
como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a
concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente
diferente. É isto que se quer dizer com a visão de uma ‘sociedade de
produtores livremente associados’ (p. 27).
A lógica do capital permite apenas que as formulações acerca da educação
permaneçam nos limites dos interesses do capital, mesmo quando denunciam desumanidades.
102
Portanto, a postura dos denunciadores do capital se limita à subjetividade de suas intenções,
chegando a tocar as piores manifestações da relação capitalista estruturalmente postas na
realidade. É preciso ir além, colocando a educação a favor dos trabalhadores para mudanças
em suas consciências, o que implica conhecimentos sobre a luta de classes dentro de um
aprofundamento acerca das relações em que vivemos, de modo a criar resistências conscientes
para, no momento oportuno, promover uma transição socialista objetiva. Pois, assim, haverá a
possibilidade de geração do novo por meio de posições teleológicas assentes no desencadear
de uma nova humanidade, na qual os homens se reconhecerão na produção de sua existência.
103
REFERÊNCIAS
BABEUF, Gracus. O socialismo pré-marxista. São Paulo: Editora Global, 1980.
BERTOLDO, Edna. A relação entre trabalho e educação na perspectiva marxiano-lukacsiana.
In: ______. A relação trabalho e educação na perspectiva da ontologia marxiana. 2002.
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo, 2002.
BLANQUI, Auguste. O socialismo pré-marxista. São Paulo: Editora Global, 1980.
CHESNAIS. F. O capitalismo em fim de século. In: Globalização e socialismo. São Paulo:
Xamã, 1997.
______ . A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
FARID, Eid. Sobre concepção de incubadora universitária de empreendimentos de
economia solidária da unitrabalho e sobre metodologia de incubação. Disponível em:
www.unitrabalho.org.br/artigos. Acesso em: 10 de janeiro de 2006.
ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: AlfaOmega, 2005, Coleção obras escolhidas.
FOURIER, Charles. O socialismo pré-marxista. São Paulo: Editora Global, 1980.
GAIGER, Luiz Inácio. A solidariedade como uma alternativa econômica para os pobres.
In: II Seminário de incubadoras tecnológicas de cooperativas populares. Disponível em:
http.www.anped.br/GT9. Acesso em: 19 de março de 2003.
GALVÃO, Marisa Nunes; CIFUENTES, Ricardo. Cooperação, autogestão e educação nas
novas configurações do trabalho. In: VIEITEZ, Cândido Giraldez; DAL RI, Neuza Maria.
Marília: Org & Demo, 2001, p. 29-40.
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções – 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977a.
HOBSBAWM, Eric. A era do capital – 1817-1875. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977b.
DIEGUES JUNIOR, Manuel. O bangüê nas Alagoas – traços da influência do sistema
econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. Maceió: EDUFAL, 2005.
LECHAT, Nöelle Marie Paule. As raízes históricas da economia solidária e seu
aparecimento no Brasil. In: II Seminário de incubadoras tecnológicas de cooperativas
populares. Disponível em: http.www.anped.br/GT9. Acesso em: 19 de março de 2003.
LESSA, Golbery. Uma nova Alagoas é possível. Programa da Frente Popular e Democrática
para o governo do Estado de Alagoas (texto para discussão interna). Mimeografado, 2004.
104
LUKÁCS, G. O trabalho. In: A ontologia do ser social. Trad. Ivo Tonet. Mimeo, 2003.
_____. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. São Paulo: Ciências
Humanas, 1978.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma social ou revolução? Global: São Paulo, 1986.
MARX, K; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Moraes, 1984.
MARX, K. Crítica ao programa de Ghota. São Paulo: Alfa-Omega, 2005, Coleção obras
escolhidas.
______. O processo de trabalho e processo de valorização. In: O Capital. Livro 1, tomo 2.
3ed. Tradução de Regis Barbosa e Flavio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
______ . O manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2004.
______. Miséria da Filosofia. São Paulo: Global, 1986.
MESZAROS, I. Para além do capital – rumo a uma teoria de transição. trad. Paulo Cezar
Castanheira e Sergio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.
_______. A educação para além do capital. Disponível em : www.resistir.com.br. Acesso
em 15 de janeiro de 2008.
MORUS, Thomas. A utopia. São Paulo: Martin Claret, 2003.
OLIVEIRA, Luiz José Rodrigues de. Incubadoras universitárias de empresas e de
cooperativas: Contrastes e desafios. Dissertação de Mestrado (Universidade de Campinas),
Campinas, 2003.
PÉRICLES, Cícero. Economia Popular – uma via de modernização para Alagoas, Maceió:
EDUFAL, 2005.
PETITFILS, Jean-Chistian. Os socialismos utópicos. São Paulo: Círculo do Livro, 1977.
______. Chales Fourier. Os socialismos utópicos. São Paulo: Círculo do Livro, 1977.
______. Robert Owen. In: ______. Os socialismos utópicos. São Paulo: Círculo do Livro,
1977.
105
PINHO, Diva Benevides. A doutrina cooperativa nos regimes capitalistas e socialistas –
suas modificações e utilidades. 2 ed. São Paulo: Biblioteca Pioneira, 1965.
PLATÃO. A república. São Paulo: Martin Claret, 2005.
REGO, José de Jesus Moraes. Cooperativismo nacional – dimensões políticas e políticas
econômicas. 2 ed. Brasília: OCB, 1984.
RESENDE, Paulo-Edgar; PASETTI, Edson. Proudhon. São Paulo: Ática, 1986, Coleção
Grandes Cientistas. Política.
SAINT-SIMON. O socialismo pré-marxista. São Paulo: Editora Global, 1980.
SINGER, Paul. Introdução à economia solidária. São Paulo: Perseu Abramo, 2002.
______. A economia solidária no Brasil – a autogestão como resposta ao desemprego. São
Paulo: Contexto, 2003.
______. Economia socialista. São Paulo: Perseu Abramo, 2000.
______. Uma utopia militante. Petrópolis: Vozes, 1999.
SUCHODOLSKY, Bogdan. Teoria marxista de educação. São Paulo: Martins Fontes, 1976.
TEIXEIRA, F. J. S. O neoliberalismo em debate. In: Neoliberalismo e reestruturação
produtiva – as novas determinações do mundo do trabalho. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1998.
VERÇOSA, Elcio de Gusmão. Cultura e educação nas Alagoas – histórias, histórias. 3 ed.
Maceió: Educação, 2001.
VIEITEZ, Cândido Giraldez; DAL RI, Neusa Maria (orgs.). Organizações e democracia.
Marília: UNESP, 2000.
ANEXO
105
ANEXO A – ROTEIRO DA ENTREVISTA ÀS COOPERADAS.
1) O que a motivou a se integrar na formação da cooperativa?
2) Quais as principais diferenças entre seu trabalho antes e após a cooperativa?
3) Quais as principais dificuldades que você enfrenta enquanto trabalhadora
cooperada?
4) Na sua visão, o que representa a(s) maior(es) dificuldade(s) no avanço da
cooperativa?
5) Na sua opinião, quais as causas destas dificuldades?
6) E como tais dificuldades podem ser superadas?
7) Na sua opinião, a formação educacional exercida pela IESOL corresponde às
suas expectativas enquanto trabalhadora cooperada? Por que?
