Severina Martyr Lessa de Moura
Título da dissertação: “Alagoas atlântica, diversidade cultural e formação de professores: um currículo em processo”
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INTRODUÇÃO
Os professores avançam no novo milênio dentro de espaços tensionados. De um
lado, os níveis de crescimento alcançados pela humanidade, através da ciência e da
tecnologia, exigem a permanente atualização de seus profissionais, principalmente, os
profissionais de educação que são responsáveis pela formação de crianças, de jovens e de todo
o povo, em uma sociedade moderna. Por outro lado, a globalização do capital que, cada vez
mais centraliza a riqueza e gera miséria, vem provocando, nos últimos 50 anos, movimentos
migratórios de populações que são levadas a sobreviverem em territórios e culturas estranhas
às suas. As novas configurações do capital promovem novos confrontos culturais, pondo em
desafio a convivência harmoniosa e respeitosa entre os diferentes.
[...] configurando o desafio central não só das práticas pedagógicas,
escolares ou não, mas das possíveis formas de convivência que seremos
capazes de construir, para nos humanizar ou desumanizar, na economia, na
política e no saber, nos diferentes quadrantes históricos e geográficos. Essa
discussão questiona a existência do ser humano e de sua educação no próprio
cerne histórico da humanidade, ou seja, as possibilidades da convivência dos
diferentes com suas diferenças, num contexto que supere as violências, as
hierarquias, os preconceitos, as inclusões perversas, as subordinações, as
desigualdades econômico-sociais e as exclusões culturais (SOUZA, 2002, p.
57).
Neste contexto, o Brasil do século XXI se apresenta com características peculiares,
pois, tratando-se de uma sociedade altamente estratificada, tem no fenômeno do mito da
democracia racial um elemento agravante no cotidiano das novas gerações, principalmente,
das crianças e jovens descendentes das populações negras, índias, mestiças e brancas pobres
que, quando conseguem entrar nas escolas públicas brasileiras, têm seus símbolos e suas
expressões culturais negadas por um currículo monocultural.
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Homogeneizar significa destruir uma enorme riqueza cultural. Essa,
representada pela diversidade de formas de viver a humanidade que os seres
humanos têm inventado na busca não apenas de viver, mas de existir pela
convivência intra e intragrupal. Pensar nessa destruição ou, pior ainda,
realizá-la, atualmente, pode se constituir na violência das violências
(SOUZA, 2002, p. 58).
Por sua vez, Ana Canen (1997) afirma que,
o retardamento em reconhecer-se como uma sociedade multicultural
dificulta a implementação de formação de professores na perspectiva
assinalada. Tal resistência a assumir o caráter multicultural de uma
determinada sociedade é muitas vezes agravada por idéias em nível de senso
comum, tais como a percepção da existência de uma uniformidade
lingüística [...] ou a idéia de que todos os grupos étnico-culturais são aceitos
e integrados à sociedade, sem quaisquer problemas de discriminação ou
racismo (o que configura uma homogeneidade social que vela a diversidade
étnico-cultural e as desigualdades sofridas por grupos não detentores do
poder), e assim por diante (CANEN, 1997, p. 210).
Entende-se porque, só nos últimos anos, observam-se, no Brasil, eventos
científicos, tais como, encontros, seminários e congressos que debatem as temáticas
relacionadas à globalização, diversidade cultural, identidades culturais e movimentos sociais,
realizados por várias instituições estatais e organizações não governamentais ligadas à área
das Ciências Sociais, porém, no campo da Educação se tem produzido muito pouco
(CANDAU, 1997).
É evidente que os conflitos e os dilemas que os professores vivenciam frente sua
atividade de ensinar é objeto de preocupação e de estudos há muito tempo. Também é óbvio
que, em parte, como conseqüências dessas análises, levantaram-se propostas gerais sobre a
valorização e profissionalização do magistério1. Nas últimas duas décadas, no campo da
Educação, é a formação continuada desses profissionais que ganha um relativo espaço de
1
No Brasil, a Associação Nacional pela Formação do Profissional da Educação/ANFOPE, contribuindo com sua
histórica luta em prol de uma política global de formação do profissional da educação e apontando questões
específicas, rumo à profissionalização e valorização do magistério, vem reafirmando a importância de inserir a
temática da formação do educador em uma política global, capaz de contemplar o tripé formação básica,
condições de trabalho e formação continuada, como condição de melhoria da qualidade do ensino.
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possibilidades para as respostas sobre a melhoria das práticas pedagógicas nas escolas
públicas, constituindo-se a formação continuada em uma das grandes vertentes dos sistemas
de ensino nacional e internacional.
Contudo, constata-se que “as questões culturais e seu impacto sobre a
escolarização não tem sido incluídas de forma explícita e sistemática nos processos de
formação. No entanto, apresentam uma perspectiva especialmente significativa para promover
uma educação crítica e democrática hoje” (CANDAU, 1997, p. 238).
Em outros termos, Vera Candau denuncia:
Nos principais fóruns da área de educação, estas discussões não têm sido
privilegiadas. Nas reuniões anuais da ANPED (Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Educação), em nível da programação comum, em
1995, pela primeira vez, foi realizada uma sessão especial sobre o tema
“Multiculturalismo e universidade”. Os participantes foram testemunhas das
reticências e reservas que o tema suscitou no debate. No âmbito desta
associação, alguns Gts como os de Currículo, Movimentos Sociais,
Educação Popular, Alfabetização, têm tratado temas relativos a esta
problemática. No entanto, ela tem estado praticamente ausente do Gt de
Didática e pouco presente no de Formação de Professores (CANDAU, 1997,
p. 241).
A própria legislação para a Educação no Brasil vem refletindo, em suas
determinações, o processo de “retardamento” que a sociedade brasileira vivenciou, ao longo
dos séculos, para reconhecer-se pluricultural. É a partir da década de 90 que aparecem nos
princípios prescritos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/1996) e nas
normas instituídas nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (CNE/1997)
a preocupação com a riqueza da diversidade cultural do Brasil e suas implicações na formação
das novas gerações2.
2
A LDBEN, em seu Art. 26, estabelece que “Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da
clientela”, no inciso 2º, determina que o ensino da arte, como componente curricular obrigatório deverá
promover o desenvolvimento cultural dos alunos, e ainda no inciso 4º do mesmo artigo, determina que o
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Neste sentido, o educador Reinaldo Matias Fleuri reconhece:
A relevância e a necessidade do estudo desta temática no campo da educação evidencia-se, no Brasil, quando os Parâmetros Curriculares
Nacionais para a Educação Fundamental no Brasil elegem a Pluralidade Cultural como um dos temas transversais. Algumas iniciativas
já tratam ou trataram da temática em projetos específicos e pontuais. Encontram-se alguns estudos acerca de escolas indígenas e de
algumas experiências inovadoras vinculadas a movimentos de caráter étnico. Mas pouquíssimo se discutiu sobre uma proposta educativa
que considere efetivamente a complexidade cultural do Brasil (FLEURI, 2000, p. 4 ).
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação
Básica, em nível superior, curso de licenciatura e graduação plena (CNE/2001), propõem,
como uma das alternativas para modificar o “formato tradicional” da formação docente, a
“ampliação do universo cultural” reconhecida “como uma exigência colocada para a maioria
dos profissionais. No caso dos professores, ela é mais importante ainda. No entanto, a maioria
dos cursos existentes ainda não se compromete com essa exigência”.
As Diretrizes sugerem, também, que o professor tenha acesso à “uma cultura
geral” que “inclui um amplo espectro de temáticas: familiaridade com as diferentes produções
da cultura popular e erudita e da cultura de massas e a atualização em relação às tendências de
transformação do mundo contemporâneo”.
Há de se reconhecer que, mesmo de forma “retardatária” e sem centralidade, a
atual legislação para o ensino brasileiro aponta a perspectiva pluricultural para os currículos
nacionais e para os desdobramentos dessa perspectiva na formação inicial docente. Porém,
nossa preocupação neste estudo é com a formação continuada3 daqueles profissionais que
componente curricular História do Brasil levará em conta as diversas culturas e etnias que contribuíram para a
formação do povo brasileiro.
As DCN/CNE/04/98 determinavam que as propostas pedagógicas deveriam instituir além da Base Nacional
Comum uma Parte Diversificada, promovendo assim a articulação da Educação Fundamental com a Vida Cidadã
e as Áreas de Conhecimento. Segundo o documento, na Vida Cidadã, a Cultura constituirá um dos temas
articuladores.
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A concepção de formação continuada que escolhemos para orientar esta investigação, tem como
referência o conceito preconizado pela Associação Nacional pela Formação Profissional da Educação
(ANFOPE) que diz tratar-se “Da continuidade da formação profissional, proporcionando novas reflexões sobre
a ação profissional e novos meios para desenvolver e aprimorar o trabalho pedagógico; um processo de
construção permanente do conhecimento e desenvolvimento profissional, a partir da formação inicial, e vista
como uma proposta mais ampla, de hominização, na qual, o homem integral, omnilateral, produzindo-se a si
mesmo, também se produz em interação com o coletivo” (ANFOPE, 1998).O conceito da ANFOPE articula-se
com a “compreensão de homem e de mulher como seres históricos e inacabados”(FREIRE, 2002:26) e sendo,
assim, capazes de operacionalizar mudanças nos contextos sociais em que atuam.
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atuam nas escolas públicas alagoanas que tiveram (quando tiveram) sua formação inicial
dentro dos moldes tradicionais da universidade brasileira que ainda apresenta, entre outros
problemas, uma profunda desarticulação entre os processos acadêmicos e as reais
necessidades da sociedade. As conseqüências dessa desarticulação trazem prejuízos de toda
forma, principalmente na “seletividade de ensino que atinge um vasto segmento da população
no Brasil” (CANEN, 1997, p. 205).
Se pensarmos, também, que, ainda hoje no Brasil, negros, índios e mestiços lutam
contra o retardamento sociocultural de uma sociedade que não se reconhece pluricultural e
contra o gigantesco mito que, na afirmativa da pesquisadora Ana Canen (1997), manteve a
ilusão “da presença de uma sociedade justa, não racista e tolerante, coesa em torno de uma
suposta cultura comum” (CANEN, 1997, p. 211), vamos percebendo que o passado está
presente em cada índio assassinado por jovens formados em nossas escolas; em cada negro
rejeitado em busca de um trabalho; em cada negro proibido de entrar pela porta da frente nos
ambientes públicos; e, ainda, nos apelos da mídia nacional quando impõe como padrão de
beleza às crianças e jovens brasileiros o estereótipo das mulheres brancas e loiras.
À luz dessas reflexões, entende-se que o mito da democracia racial continua
dissimulando preconceitos e ancorando as instituições culturais e educacionais em suas
políticas excludentes. As conseqüências são mensuráveis e operadas de diferentes formas,
principalmente, dentro dos sistemas públicos de ensino onde as práticas pedagógicas
referenciadas por um currículo de saberes hegemônicos promovem ao longo dos anos o que
Paulo Freire denominou de “desumanização”. Haja visto o grande número de analfabetos
que engrossam as estatísticas educacionais no Brasil, particularmente, no Estado de
Alagoas4. É nesse contexto que o fenômeno da seletividade no ensino se relaciona com a
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1- Segundo dados apurados pelo IBGE no último Censo Democrático (2000), Alagoas registrou uma taxa de
analfabetismo de 32,8% na população de 15 anos e mais de idade; mais elevada que a taxa do Nordeste - 26,6% e mais do dobro da taxa nacional que é 13,3%, na mesma faixa etária. Na zona rural, onde ainda vivem 31,97%
da população alagoana, a taxa de analfabetismo atinge 49,7%. O mesmo Censo apurou também que 47,4% das
pessoas com 15 anos e mais de idade em Alagoas têm menos de 4 anos de escolaridade, sendo classificadas
como analfabetos funcionais, de acordo com conceito utilizado pela UNESCO há mais de 20 anos, que se
fundamenta no pressuposto de que em sociedades como a brasileira, que atingiram um certo grau de
modernização, considerando especialmente o nível de desenvolvimento tecnológico e a ampliação da
participação social e política da sua população, são necessários, no mínimo, 4 anos de estudo com bom
aproveitamento para uma pessoa se tornar “capaz de utilizar a leitura e a escrita para fazer frente às demandas do
seu contexto social e usar essas habilidades para continuar aprendendo e se desenvolvendo ao longo da vida”.
(INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional: um diagnóstico para
inclusão social pela educação. São Paulo: IPM/ Ação Educativa/ IBOP Opinião, 2001).
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concepção de cultura e de identidade nacional dominante no imaginário dos homens e das
mulheres no Brasil.
Portanto, não é possível abordar criticamente a questão da diversidade cultural em
qualquer região do Brasil, sem pensar: sobre as nações indígenas, as verdadeiras donas das
terras brasileiras; sobre as nações africanas que aqui foram escravizadas e produziram a
riqueza da colônia e do império; sobre os colonos brancos que aqui depositaram suas
ambições. É preciso que se considere, antes de tudo, que esse debate envolve a formação de
identidades plurais construídas em diferentes momentos históricos com a participação de
diferentes grupos sociais.
Os profissionais da educação, enquanto responsáveis pela construção de uma
escola de qualidade, não podem se omitir do debate sobre os problemas emergentes que
atingem diretamente as novas gerações, principalmente, as crianças e jovens identificadas
étnica, religiosa e socialmente diferentes: negras, índias, mestiças, brancas pobres,
homossexuais, lésbicas, protestantes, católicas, umbandistas, nordestinas, sertanejas, cheiracola e pertubadores-de-semáforos. Com certeza a institucionalização dessas “identidades”, do
ponto de vista perverso, pode engrossar bastante a relação.
Por esses motivos, indagamos neste trabalho qual a contribuição que a formação
continuada pode oferecer aos professores para que eles venham trabalhar com um currículo
que considere as diversas culturas dentro da escola?
Em outras palavras, quais as contribuições que essa formação pode trazer para que
os professores tenham autonomia para enfrentar o desafio de mediar, em seu espaço docente,
a convivência respeitosa entre diferentes culturas e diferentes traços culturais em uma mesma
cultura, contribuindo, efetivamente, para a humanização dos educandos (FREIRE, 1992).
Esta problemática, que é o nosso objeto de investigação, em sintonia com os
problemas sociais de uma sociedade complexa como a brasileira e com os problemas globais
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que os homens e mulheres enfrentam na atualidade, sintetiza algumas indagações que fomos
elaborando ao longo de vinte anos como profissional de educação nas escolas públicas
alagoanas.
Quais os fatores que contribuem para que a prática docente esteja estagnada diante
das discussões sobre as questões socioculturais? Por que as professoras dependem tanto do
livro-didático para desenvolverem suas atividades docentes?
Como ampliar o horizonte
cultural das professoras? Afinal como diria o educador alagoano Élcio Verçosa, as professoras
não são “retardadas”, é preciso que se investiguem os determinantes históricos.
Esses questionamentos estão intimamente relacionados com nossa história
profissional da qual elegemos um momento específico para constituir objeto empírico e,
conseqüentemente, fornecer parâmetros iniciais de análise sobre a problemática em foco.
Fazemos referência ao Projeto Alagoas Atlântica (anexo I), uma experiência da Secretaria
Municipal de Educação do Município de Maceió – SEMED, desenvolvida no ano letivo de
1999, na área da História e da Geografia, quando os conteúdos da formação continuada de
professoras das primeiras séries do Ensino Fundamental tinham como referência o currículo
escolar. Supondo que o Projeto Alagoas Atlântica representou uma intervenção pedagógica
que contribuiu para uma prática docente diferenciada através da elaboração, vivência e
acompanhamento curricular, é através dele que lançamos um olhar reflexivo para responder
os nossos questionamentos.
Para isso, realizamos no Capítulo I, em sua primeira parte, uma abordagem
histórico-crítica sobre a efetivação do projeto colonial no Brasil, a partir da ocupação do
Extremo Sul da capitania de Pernambuco – as terras das Alagoas. Para tanto, utilizamos os
estudos dos historiadores Dirceu Lindoso, Élcio Verçosa e Décio Freitas por entendermos que
cada um, em sua especificidade, desenvolveu uma historiografia crítica sobre os fatos sociais
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que marcaram a vida do povo alagoano. Assim, encontramos a nossa mesopotâmia, os nossos
quilombos e o nosso ethos.
A chegada dos colonizadores europeus ao continente americano foi marcada pela
devastação ambiental e humana e, principalmente, pela completa desconsideração com a
pluralidade de culturas aqui existentes. As múltiplas nações nativas e suas diferentes
linguagens não convenceram os exploradores de que o gênero humano era diverso. Foi,
também, marcada pelo início de uma história, sem precedentes de escravidão dos negros
africanos trazidos para o Novo Mundo.
Esse complexo fenômeno nos remete aos elementos fundamentais da organização
social de um continente que teve sua gênese na política colonizadora européia que,
impulsionada pelo advento da modernidade, foi desbravando mares e terras com objetivos
mercantilistas. Nas palavras do professor Francisco Teixeira:
A partir de então, a produção e o consumo rompem com as barreiras
nacionais e locais e assumem um caráter cada vez mais cosmopolita,
anunciando, assim, o nascimento do mercado mundial, que cresce
aceleradamente sob o impulso das grandes descobertas dos séculos XV e
XVI (TEIXEIRA, 2000, p. 1).
Pensar sobre a formação e evolução das sociedades latino-americanas,
conseqüentemente, é revelar um complexo fenômeno de natureza social em que homens e
suas culturas se enfrentaram em um processo de esmagamento dos princípios humanos,
principalmente, na sua dimensão ética. É denunciar um choque de civilizações de
conseqüências catastróficas, pois, como afirma Alfredo Bosi: “A colonização não pode ser
tratada como uma simples corrente migratória: ela é a resolução de carências e conflitos da
matriz e uma tentativa de retomar sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o
semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório” (BOSI,
1994, p. 13).
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Na segunda parte, do Capítulo I , continuamos abordando criticamente o processo
histórico de institucionalização do projeto colonizador a partir das teorias explicativas do
Brasil, no período de 1870 a 1930. Em busca de uma cultura brasileira, vivenciaram-se
explícitos processos preconceituosos com as diversas culturas que constituíam a sociedade
brasileira. O Brasil negava sua gênese com o apoio dos intelectuais e da ciência. Nesse
sentido, buscamos, fundamentalmente, nos estudos desenvolvidos por Renato Ortiz, Lilia
Moritz Schwarcz, Kabengele Munanga e Gislene Aparecida Santos a possibilidade de realçar
a cumplicidade histórica dos homens que tomam o conhecimento como instrumento de
desumanização.
Entendemos que, no Capítulo I, encontra-se delineado um contexto históricocultural que, quando abordado de forma crítica, denuncia a origem da construção do mito da
democracia racial no imaginário brasileiro. Portanto, abordar a questão da diversidade
cultural no Brasil é, antes de tudo, buscar na história e na cultura os gritos silenciados e os
espíritos angustiados.
Apesar do esforço de pesquisadores, historiadores e educadores, tais como Dirceu
Lindoso, Élcio Verçosa, Dércio Freitas (mesmo sendo gaúcho), Diegues Junior, Craveiro
Costa, Sávio de Almeida e outros, em desvelarem a história de Alagoas, esta continua ao
largo do imaginário alagoano, inclusive, dos educadores e das educadoras, configurando-se
em uma problemática que reflete diretamente nos processos formativos das novas gerações
que, como se tomadas de um “anestésico histórico”, não percebem as relações entre o passado
e a contemporaneidade alagoana. Existe um grande desperdício histórico. Não conhecemos
em sua totalidade a arte e a ciência produzida em terras de quilombos, cabanas e favelas, nas
terras de casas-grandes, igrejas e associações comerciais. Não conhecemos o que se produziu
e nos humanizou, o que se produziu e nos desumanizou. A quem interessa esta condição
epistemológica?
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No Capítulo II, abordamos a reconceitualização do termo diversidade cultural e as
implicações nos processos de formação docente. Fizemos uma incursão histórica sempre
buscando a origem dos estudos e dos interesses sobre as questões socioculturais e suas
implicações para a educação no interior da diversidade cultural. Enfim, localizamos três
grandes focos de estudos que nos apoiaram na fundamentação teórica do Capítulo II –
Multiculturalismo, os Estudos Culturais e Cultura Popular.
Do primeiro foco – o Multiculturalismo – tomamos como referência a perspectiva
dos teóricos da pedagogia crítica; do português Boaventura de Souza Santos e da
pesquisadora Ana Canen que contribuiu de forma singular com as análises sobre a formação
de professores na perspectiva da diversidade cultural. Tomam-se, também, as contribuições
dos movimentos contemporâneos na perspectiva da interculturalidade, organizados na região
Sul do Brasil, que são conduzidos sob a orientação de professores da universidade Federal de
Santa Catarina que, nas palavras de um de seus idealizadores, o professor Reinaldo Matias
Fleuri:
Articulam-se lutas sociais no plano eminentemente econômico-político,
como os movimentos operários e sindicais, os movimentos ligados aos
bairros, ao consumo, à questão agrária. Ao mesmo tempo, configuram-se
novos movimentos sociais. São os movimentos em torno do reconhecimento
de suas identidades de caráter étnico (tal como os movimentos dos
indígenas, dos negros), de gênero (os movimentos de mulheres, de
homossexuais), de geração (assim como os meninos e meninas de rua, os
movimentos de terceira idade). É nesta perspectiva da diversidade e das
relações culturais emergentes nos movimentos sociais que se encontra
possivelmente o enfoque mais fecundo da educação intercultural na América
Latina e, particularmente, no Brasil. E é a partir deste ponto de vista que
pensamos em estabelecer o diálogo com os estudos que vêm se fazendo hoje
no campo da educação intercultural. (FLEURI, 2000, p. 5-6).
Do segundo foco – os Estudos Culturais – a partir da produção da brasileira
Marisa C. Vorraber Costa que em seu texto informa a origem desses estudos na Inglaterra, a
partir da publicação de dois livros no final da década de 1950 – The Uses of Literacy, de
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Richard Hoggart, que apareceu em 1957, e Culture and Society, de Raymond Williams, de
1958. Segundo a autora, “de acordo com a análise de Stuart Hall (1997), foram estas duas
obras que ajudaram a incendiar os ânimos nos estudos sobre a cultura [...] (COSTA, 1999, p.
1). Por sua vez, Stuart Hall também contribuiu com seu texto A centralidade da cultura: notas
sobre as revoluções culturais do nosso tempo (1997), inclusive o acessamos pela Internet.
Do terceiro foco, toma-se a perspectiva da Cultura Popular que, no Brasil, trata-se
de lembrar, entre outros, do Movimento de Cultura Popular (MCP), Centros Populares de
Cultura (CPCs), o Movimento de Educação de Base (MEB) que, nos anos 60, segundo nos
lembra o educador Carlos Rodrigues Brandão (2002), envolveram pessoas como Paulo Freire
e seus primeiros companheiros nordestinos de trabalho e difundiram-se entre diferentes
categorias de sujeitos sociais, tendo como idéia-chave
de que é possível e necessário participar de um processo que transforme a
cultura do povo, através da prática da Cultura Popular, em uma cultura
popular. Uma cultura de classe: “consciente”, crítica, politicamente
mobilizadora, capaz de transformar tanto os símbolos com que se representa
e ao seu mundo, quanto a sua própria dura realidade material (BRANDÃO,
2002, p. 32).
Nesse fecundo período da intelectualidade brasileira que, como sabemos, partiu
clandestinamente
influenciando
o
mundo
com
seus
pressupostos
emancipatórios,
identificamos, também, um corpo teórico com possibilidades de mediar nossas preocupações
com o currículo e a formação continuada de professores para o trabalho com a diversidade
cultural.
Em Paulo Freire, nos teóricos críticos – Henry Giroux e Michael W. Apple – nos
brasileiros estudiosos do campo curricular Antonio Flavio Moreira e Tomaz Tadeu da Silva,
encontramos a reconceitualização do currículo escolar. Resguardadas as diferenças, esses
pensadores comungam de pressupostos que sustentam o avanço dos estudos sobre o currículo
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crítico. Trata-se, também, de reafirmar que Paulo Freire influenciou, significativamente, para
que o currículo fosse abordado na perspectiva sócio-político-cultural no Brasil e no mundo.
No Capítulo III, revisitamos o Projeto Alagoas Atlântica apresentando, em um
primeiro momento, sua gênese e seu desenvolvimento, realçando entraves e possibilidades
com o apoio dos documentos e dos depoimentos dos sujeitos envolvidos. No segundo
momento, analisamos o conceito de cultura implícito nas ações desenvolvidas em torno do
referido projeto e suas implicações no processo de formação continuada das professoras
envolvidas na proposta.
Por fim, apresentaremos uma última parte, com as considerações finais sobre a
temática investigada, percebendo a necessidade de continuação da pesquisa. O objeto de
estudo por nós apresentado necessita de outras abordagens e perspectivas que, certamente,
irão aumentar o leque de entendimento sobre ele. Desta maneira, tal objeto poderá ter a
possibilidade de ampliar definitivamente o debate sobre a formação continuada de professores
no interior da diversidade cultural.
Em todo o processo de investigação, procuramos respeitar a natureza radicalmente
inacabada e subjetiva do fenômeno educativo investigado. Assim, mantivemos um diálogo
constante com a sua intencionalidade. Ao invés de tomarmos o fenômeno social em uma
perspectiva reducionista, buscamos compreendê-lo a partir das leis sociais e históricas que
interferiram, concretamente, na sua produção, procurando compreendê-lo em sua totalidade,
como também em sua particularidade.
Para esse direcionamento, encontramos apoio na concepção dialética materialista
histórica que “situa-se, então, no plano de realidade, no plano histórico, sob forma da trama
de relações contraditórias, conflitantes, de leis de construção, desenvolvimento e
transformação dos fatos” (FRIGOTTO, 1989, p. 75). Tivemos, em todo o processo
investigativo, a nossa compreensão (concepção teórico-metodológica) inicial desafiada pela
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realidade problematizada que, ao passo que se desvelava, exigia nova compreensão. Nas
palavras de Frigotto “o desafio do pensamento _ cujo campo próprio de mover-se é o plano
abstrato, teórico _ é trazer para o plano do conhecimento essa dialética do real” (1989, p. 75).
Fez-se, então, necessário apreender a realidade em sua concretude a partir da
análise dos fatos empíricos que constituíram nesta pesquisa nosso ponto de partida. Para tanto,
utilizamos como procedimentos de coletas de dados, a análise dos documentos que
consideramos mais representativos do Projeto Alagoas Atlântica e entrevistas semiestruturadas com as educadoras envolvidas diretamente no projeto. Nesse sentido,
selecionamos os documentos em que as políticas de formação continuada da SEMED estavam
delineadas: relatos de experiências de professores e alunos e registro das observações sobre o
acompanhamento das experiências pela equipe técnico-pedagógica da SEMED.
Com entrevistas, procuramos saber o que as educadoras (professoras e
coordenadoras pedagógicas) das Escolas Pedro Suruagy e Donizette Calheiros pensavam
sobre o Projeto Alagoas Atlântica, enquanto intervenção na prática docente que se propôs
provocar na escola outra prática de elaboração, vivência e acompanhamento curricular. Sendo
assim, foi preciso saber o que elas destacavam como processo formador? O que produziram?
Como se deu a articulação SEMED x Escola? Se o Projeto Alagoas Atlântica tivesse
continuado, como seria na escola hoje?
Estabelecemos, no mínimo, três entrevistas por escola, procurando envolver
sempre uma professora e uma coordenadora pedagógica, perfazendo um total de seis
educadoras entrevistadas. Os depoimentos foram anotados sob formas descritiva e textual.
Cada educadora entrevistada foi nomeada por letras do alfabeto escolhidas aleatoriamente.
Contamos, ainda, como instrumento de apoio a investigação, a dimensão subjetiva
dos sujeitos envolvidos. A memória compreendida como um recurso privilegiado de tomada
de consciência de si mesmo e que, quando associada à reflexão de nossa própria formação,
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revela-se como extensão da pessoa que revela a si mesma e os outros (ALBERT, 1993). Não
poderíamos desconsiderar nossa própria trajetória pessoal e profissional em um processo em
que estivemos igualmente imersas. Assim, consideramos como fundamental a reconstituição
da história do Projeto Alagoas Atlântica, não só através dos documentos, mas também através
da memória dos sujeitos envolvidos, pois as entrevistas foram, antes de tudo, um resgate de
lembranças de um processo ocorrido. Enquanto investigadora, colocamo-nos também como
sujeito que se investiga a partir da prática que é investigada. Para tanto, procuramos sustentar
esse desafio na afirmação de Paulo Freire “avaliar essa prática não como quem fica de fora
dela para descobrir o que há de ruim nela, mas como quem está dentro dela à procura de
melhorar-se pela melhora dela” (FREIRE, 1998, p. 94).
Nossa ingerência pelas discussões teóricas nos permitiu delinear núcleos
problematizados sobre a formação continuada de professores para uma prática pedagógica que
considere as diversas culturas dentro da escola e, conseqüentemente, confrontá-los com os
núcleos problemáticos no Projeto Alagoas Atlântica. Currículo, cultura e formação
continuada,
consideradas
como
categorias
de
sustentação
teórico-metodológica,
possibilitaram-nos a compreensão de diferentes aspectos capazes de abranger a amplitude do
foco principal dessa investigação que vem buscando compreender como a formação
continuada pode preparar os professores para o trabalho pedagógico no interior da diversidade
cultural. O confronto dos núcleos problemáticos com os núcleos teoricamente
problematizados se constituiu no que denominamos de uma grande categoria emergente de
análise: Cultura, para conservar ou para transformar ?
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CAPÍTULO I
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROJETO COLONIZADOR EM
TERRAS DO EXTREMO SUL DA CAPITANIA DE PERNAMBUCO
1.1. Liberdade e Escravidão
Portanto, a história penetrou duplamente nas matas incultas do
norte de Alagoas e do sul Pernambucano: como história da
escravidão e como história da liberdade no continuum
histórico-social da dominação sesmeiro-escravista.
Dirceu Lindoso, 1983.
Dando prosseguimento aos interesses mercantilistas que os portugueses tinham
em vista para a América, por volta de 1530, o território brasileiro é efetivamente ocupado
através do povoamento e a colonização. O estudioso alagoano Élcio Verçosa comenta em seu
livro História Histórias, Cultura e Educação em Alagoas (1996):
[...] após, a expedição de Martim Afonso de Souza (1530-1532), última
tentativa de encontrar metais preciosos no novo continente, muda-se o
modelo pra que fiquem garantidos os propósitos: Dom João III institui as
capitanias hereditárias surgindo, pelo foral de 24 de outubro de 1534, a de
Pernambuco, também chamada de Nova Lusitânia, com a extensão de 60
léguas de terras situadas entre o Rio São Francisco e o de Santa Cruz de
Itamaracá, incluindo assim nos seus domínios o território correspondente ao
atual estado de Alagoas (VERÇOSA, 1996, p. 13).
Como sabemos, com implantação do sistema de capitanias hereditárias, a costa
brasileira foi dividida em doze setores entregues aos donatários que tinham quase poder de
soberania sobre suas terras. Conforme o historiador Décio Freitas (1973, p. 15), “só não eram
soberanos porque faltava o de cunhar moeda e as instruções régias determinavam que na
colônia haveria fidalgos, artesões e servos, tudo mais ou menos à semelhança da sociedade
portuguesa do século XVI”. A ocupação do solo costeiro se dá a partir do cultivo da cana-de-
44
açúcar, inicialmente na região do Extremo Nordeste, na planície litorânea hoje ocupada por
Pernambuco e Alagoas e do contorno da baía de Todos os Santos.
Fecundadas pelo trabalho negro, as capitanias de Pernambuco e Bahia
ganharam vida. Ao longo do litoral floresceram os canaviais e se
multiplicaram os engenhos. Pelos fins do século XVI, Pernambuco e Bahia
já sobressaíam no mercado mundial como os maiores produtores de açúcar.
E para que isso fosse possível, os traficantes descarregavam nas costas
brasileiras uma média anual de cinco mil negros (FREITAS, 1973, p. 17).
O cultivo da cana-de-açúcar exige extensas terras para grandes plantações e
muitos trabalhadores. Assim, instalam-se a monocultura e o trabalho escravo. O modelo
mercantilista, aqui implantado, manteve um sistema de exploração sem limites dos homens
trabalhadores, inicialmente índios nativos e posteriormente negros escravos, invadindo todos
os níveis da existência humana e da produção para favorecer a coroa portuguesa. Restava à
colônia produzir o que a metrópole não tinha condições de realizar. Produzir e fornecer ao
mercado europeu gêneros tropicais economicamente valiosos, como ressalta o historiador
Caio Prado Júnior:
[...] virá o branco europeu para especular, realizar um negócio; inverterá seus
cabedais e recrutará a mão-de-obra de que precisa: indígenas ou negros
importados. Com tais elementos, articulados numa organização puramente
produtora, mercantil, constituir-se-á a colônia brasileira (PRADO, 1994, p.
23).
O Brasil consegue manter-se como o maior produtor mundial de cana-de-açúcar
até o século XVII, quando também inicia o cultivo do tabaco que, além de ter grande
aceitação no mercado europeu, favorecia o tráfico de escravos através do escambo na costa
africana. Com a restrição do tráfico dos negros africanos no século XIX, o tabaco entra em
crise. O cultivo do tabaco teve como principais regiões produtoras a Bahia, particularmente na
vila de Cachoeira, e em outras zonas como Sergipe e Alagoas. Ao longo dos séculos, a
economia transita no território brasileiro entre regiões, produtos e interesses externos, “nos
45
constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde, ouro e diamante;
depois algodão, e em seguida café, para o comércio europeu” (PRADO, 1994, p. 23).
Reconhecendo-se as peculiaridades de cada capitania, o modelo colonizador
português, aqui no Brasil, foi reproduzido em todo o território ocupado envolvendo
prolongadas lutas contra os guerreiros nativos e a manutenção da escravidão dos negros
africanos. Mesmo que inicialmente os índios tenham estabelecido relações pacíficas com os
europeus, inclusive apoiando na exploração da madeira e da lavoura de subsistência, os planos
de Portugal para transformá-los em escravos falharam. Ao contrário do que a historiografia
vem afirmando, não foi a natureza nômade ou a pouca resistência ao trabalho que fizeram dos
índios um elemento desfavorável ao trabalho escravo.
[...] o caso é que não se achavam historicamente preparados para a servidão
ou a escravidão, à diferença dos astecas, dos incas e dos mesmos africanos.
Nas suas sociedades primitivas ainda não se haviam formado minorias
dominadoras que os tornassem submissos à opressão e à exploração,
facilitando assim a tarefa dos colonizadores (FREITAS, 1973, p. 15-16).
Assim, sob o clima da crueldade e da violência, povos e suas culturas foram
dizimados, dominados e finalmente colocados em uma posição social onde “os homens se
dividiam em duas categorias: livres e escravos” (FREITAS, 1973, p. 21). A estratificação
social, no modelo homens livres e escravos, era mantida por uma intransponível barreira.
Entre os homens livres, também havia uma estratificação social extremamente rígida: os
senhores de engenho, uma minoria quase onipotente e tirânica, monopolizavam as terras,
possuíam o maior número de escravos negros, tinham os índios domesticados como servos,
ocupavam os altos cargos do governo e controlavam a justiça e as milícias; os lavradores de
partido, arrendadores de terras dos senhores de engenho, detinham um certo prestígio,
freqüentadores dos senados da câmara e possuíam 20 a 50 escravos; grandes mercadores de
Recife, importadores de escravos e manufaturas, exportadores de açúcar e fumo, cobradores
46
de tributos que, apesar de acumularem pequenas fortunas, não gozavam de poderes sociais e
políticos; os artesãos que, aqui chegando, perdem suas características medievais e passam a
comprar escravos ensinando-lhes os ofícios mecânicos; os pequenos sesmeiros proprietários
rurais que desapareceram com a invasão holandesa, formavam uma massa de agregados,
rendeiros, parceiros e meeiros.
Os livres pobres ocupavam na escala dos homens livres os últimos lugares “acima
apenas dos índios e dos escravos [...] eram designados sob o termo pejorativo de “plebe”,
“vulgo” ou “ralé”. Nessa categoria social havia brancos, mamelucos, mulatos e negros forros.
Como regra, essa gente passava fome” (FREITAS, 1973, p. 24). A natureza jurídica dos
regimes escravistas das Américas expulsava o trabalho livre. Convencionou-se na colônia e
no império que o trabalho manual, por ser realizado por escravos, tratava-se de ocupação
inferior, menor que deveria ser realizada pelos próprios escravos.
Abaixo da “plebe”, estavam os índios e os escravos. Por sua vez, os índios
sobreviventes dos massacres e cristianizados, eram tutorados pelos padres e tinham como
principal ocupação cuidar da submissão dos escravos negros e da manutenção do poder dos
donos das terras. O sistema escravista, com o apoio incondicional dos padres jesuítas, contava
com milhares de índios para expedições contra os escravos fugitivos. Assim, foram tomadas
várias medidas para diferenciar a condição social dos índios da dos negros escravos.
[...] tão falada carta régia de 1717, que, consagrando uma situação de fato
havia muito vigorante, legitimou e inequivocadamente encorajou as uniões
de brancos e índios e, mais que isso, declarou os seus filhos e descendentes
“hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade. Para que se
meça toda a importância de tais disposições, convém frisar que a legislação
colonial portuguesa sempre inabilitou para os cargos e funções públicas os
portadores de qualquer dose de sangue africano. Nem mesmo os jesuítas
deixaram de discriminar contra os negros e mulatos, excluindo de seus
colégios os estudantes pardos “só pela qualidade de pardos” (FREITAS,
1973, p. 26).
47
Os escravos eram propriedades de seu amo; igualados aos animais pelas leis do
mercado europeu; sem existência civil, sem direitos ou obrigações não eram indivíduos
naturais.
O escravo podia ser vendido, alugado, penhorado, testado e, finalmente
morto [...] Legalmente só havia duas maneiras de o escravo se tornar livre:
pela morte natural ou pela alforria. Teólogos e juristas se empenhavam em
intermináveis controvérsias para saber se em caso de ressurreição o escravo
conservava a liberdade adquirida através da morte natural [...] Na economia
escravista, era anti-econômico destinar terras e homens à cultura de gêneros
alimentícios. Por isso, o escravo morria de fome em meio à riqueza que o
rodeava e que fora fruto do trabalho dos seus braços (FREITAS, 1973, p.
27).
As condições do sistema escravagista impostas aos negros africanos, aqui no
Brasil, foi a mais perfeita e pura forma de escravidão. O sistema era mantido através de um
organismo repressor, altamente violento e truculento. As torturas psicológicas e físicas
chegaram a atingir os limites da barbárie humana. O respaldo jurídico e social era comungado
com a necessidade imposta pela própria manutenção da sociedade escravista,
pois, sem a compulsão do terror, o indivíduo simplesmente não trabalharia e
nem se submeteria ao cativeiro. Não que os amos e os feitores fossem
congênita e invariavelmente cruéis. Era o sistema que os desumanizava e
mesmo assim apenas nas relações com os escravos. O leitor contemporâneo,
que estremece de horror ao ler a descrição das torturas contra o escravo, não
hesitaria em empregá-las se fosse senhor de engenho do século XVII. As
sensitivas sinhás, que nas novelas de Machado de Assis choravam por uma
cachorrinha doente, eram capazes de assistir com a mais perfeita
impassibilidade ao açoite ou à mutilação de um escravo (FREITAS, 1973, p.
31).
Nos fins do século XVI, a capitania de Pernambuco, enquanto aglomerado
urbano, apresentava um quadro de pobreza e atraso, desapontando os visitantes que aqui
chegavam em busca de beleza e riqueza. Fora algumas casas, o futuro Recife contava com
alguns armazéns e choças em torno do porto.
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Esse quadro só foi modificado com a chegada dos holandeses que iniciaram um
projeto de urbanização construindo belas casas, abrindo ruas e interligando as ilhotas através
de pontes. Para além de alguns quilômetros do porto, encontrava-se Olinda, sede oficial da
capitania pernambucana, onde residiam os altos funcionários, os representantes do clero e os
ricos senhores de engenho, “honrava-se de possuir quatro conventos de frades e um de
religiosas, sete igrejas e algumas importantes edificações públicas. Contava 700 casas de
pedra e cal e mais de 20 engenhos com quatro a cinco mil escravos” (FREITAS, 1973, p. 19).
Ao longo da costa, encontravam-se pequenas e míseras aldeias que povoavam os latifúndios
onde estavam localizados as plantações de cana e o engenho, “que era o verdadeiro centro da
vida coletiva. Nas povoações erguiam-se uma igreja, freqüentemente um convento, duas ou
três edificações públicas e um reduzido número de residências ou estabelecimentos
comerciais” (FREITAS, 1973, p. 19).
O extremo sul de Pernambuco, território que corresponde ao Estado das Alagoas,
foi sendo ocupado pelos portugueses, em sucessivas expedições de combate às nações dos
Caetés e dos Potiguares. As autoridades religiosas compartilhavam das expedições
exterminadoras dos índios, dando consentimento e encorajando essas ações, tendo no ato
antropofágico dos Caetés, que haviam devorado o primeiro bispo brasileiro e sua comitiva,
justificativa para a excomungação dos nativos.
Havendo naufragado nos Baixios de D. Rodrigo, próximo à foz do rio
Coruripe, a nau Nossa Senhora da Ajuda (16/06/1556), que levava a bordo
com destino a Lisboa o bispo de Salvador, Dom Pedro Fernandes Sardinha,
este e muitos de seus companheiros de viagem foram devorados pelos índios
(VERÇOSA, 1996, p. 28).
Assim,
Eliminado o elemento que dificultava não só a fixação no território mas,
sobretudo, sua exploração nas bases econômicas preconizadas pela coroa
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portuguesa, e feito o levantamento das potencialidades da região, estavam
dadas as condições adequadas para a tarefa colonizadora [...] (VERÇOSA,
1996, p. 29).
Referindo-se ao período em que Alagoas separa-se de Pernambuco, Élcio Verçosa
nos lembra que “Alagoas, como espaço político-administrativo autônomo, no contexto da
formação social do Brasil, data de uma época relativamente recente, tendo ficado até o ano de
1817 ligado formalmente a Pernambuco” (VERÇOSA, 1996, p. 9). Os fatos históricos que
envolveram a formação e a evolução da sociedade alagoana, não aguardaram a autonomia
jurídica de Alagoas para acontecer.
[...] o território hoje correspondente ao Estado tem sua ocupação e seu
desenvolvimento econômico e social já iniciados nos primórdios da
colonização. Por isso mesmo, as raízes de sua vida social e política têm de
ser rastreadas mais além, desde o século XVI (VERÇOSA, 1999, p. 9).
A ocupação do território ao sul do antigo Pernambuco, segundo o historiador,
também alagoano, Dirceu Lindoso (2000), deu-se a partir de três pólos de colonização: o de
Penedo (1570), o de Porto Calvo (1590) e o de Santa Luzia do Norte (1608) que, em 1611
passa a ser denominado Alagoas. Cada um deles, situado em espaços geográficos diferentes,
teve evolução social e cultural também diferenciada.
O pólo de Penedo desenvolveu-se tendo como atividade econômica o pastoreio
de bois e cavalos, contando com a servidão indígena e a ausência da escravidão negra. Mesmo
podendo considerá-la, em relação a Porto Calvo, como uma sociedade mais democrática, em
função do modelo econômico ali implantado, é preciso que se ressalte as agruras naquele
período colonizador.
A maior violência desencadeada contra os índios foi o início da conquista e
ocupação das terras, e na catequização franciscana, quando grandes grupos
indígenas foram dizimados e reduzidos violentamente ao cristianismo pelos
padres franciscanos da Missão Francesa. A ação dos colonos-pastores fez
50
que os campos de caça dos índios se transformassem em campos de pastos
dos rebanhos. Com o andar dos séculos, os índios se misturaram com os
brancos surgindo uma extraordinária etnia de mamelucos [...] O índiovaqueiro virou parte do projeto colonial de ocupação das savanas sertanejas
do vale do rio São Francisco. [...] E a servidão indígena acabou por se
diluir na miscigenação. Foram os mamelucos da primeira leva, e não
os brancos reinóis, que conquistaram e povoaram o Grande Sertão
são-franciscano, carregando na alma em vez das crenças puramente
tribais o catolicismo missionário dos padres franceses (LINDOSO,
200, p. 39-40).
A contribuição do índio-vaqueiro através da ocupação das terras nordestinas
situadas ao longo das margens do Rio São Francisco promoveu o povoamento e
desenvolvimento econômico do interior nordestino que, em meados do século XVIII, atinge
seu apogeu de desenvolvimento. O gado produzido naquela região abasteceu todos os centros
de população do litoral, desde o Maranhão até a Bahia, sem concorrência (PRADO,1994).
Vamos ter, também, no modelo colonizador no vale do Rio São Francisco, um
fenômeno que diferenciou, economicamente, essa região alagoana do resto da capitania
pernambucana com a pecuária sobrepujando o açúcar e a produção de outros gêneros
alimentícios, como a farinha, o peixe, legumes e o azeite.
Essa produção convergia para as três principais povoações e daí mandada
para Olinda e Recife. Uma vez que na maior parte da faixa litorânea se
sacrificava obstinadamente a cultura de víveres em benefício da monocultura
do açúcar, a produção alagoana revestia caráter de rigorosa essencialidade
para as duas concentrações urbanas da capitania (FREITAS, 1973, p. 41).
É no pólo de Porto Calvo, com a implantação dos primeiros engenhos e,
conseqüentemente, a chegada dos negros trazidos em regime de cativeiro dos portos
africanos, onde se instala uma sociedade de modelo patriarcal, aristocrata, latifundiária e
escravocrata, altamente violenta,
sem nenhum elemento democrático em razão da presença de mão-de-obra
escrava africana e da presença de uma aristocracia agrária de brancos
51
possuidora de fortes instrumentos de violência social. A miscigenação nesta
sociedade foi feita de modo compulsivo, e de cima para baixo, tendo por
vítima a mulher negra, a mulher índia e a branca pobre (LINDOSO, 2000, p.
40).
A vida social foi se dando em torno dos engenhos-de-açúcar, desde o início,
polarizada entre os donos das terras e os escravos negros, entre as casas-grandes e as senzalas.
Foi o início da implantação de um sistema empresarial agrário destinada a produzir o açúcar
mascavo para a exportação. As atividades em torno dessa produção incluíam desde a
preparação da terra, plantio dos canaviais, o corte da cana-de-açúcar adulta, o carrego das
canas cortadas, a moagem e o embarque dos pães-de-açúcar nos portos marítimos.
Para tanto, ocorreu a tomada e domínio das terras indígenas, por senhores ricos,
que ao longo de sua evolução dominaram os colonos pobres e índios convertidos ao
cristianismo e a manutenção da escravidão. Os pobres viviam na periferia dos latifúndios; os
índios, em quartéis aguardando a ordem para caçar negro fujão.
O terceiro pólo de colonização das Alagoas, no então extremo sul pernambucano,
foi Santa Luzia do Norte, que em seu processo de formação apresentou características,
acentuadamente, diferentes dos outros dois pólos. Lindoso (2000) ressalta a situação
geográfica da então Santa Luzia-Alagoas, dizendo que não sendo fluvial, como Penedo, nem
sendo mesopotâmico, como Porto Calvo, é um pólo lagunar, pois está situado entre as lagoas
Mundaú e Manguaba, com uma única saída para o mar. Uma laguna do norte e outra laguna
do sul serviram de base para a colonização dos planaltos, respectivamente, do vale do rio
Mundaú e do vale do rio Paraíba.
A região lagunar foi e ainda é motivo de inspiração para os intelectuais alagoanos,
tanto na sistematização historiográfica, como na produção poética e romanceada. O jovem
Otávio Brandão, em seu livro Canais e Lagoas (1999), registrou suas observações da beleza
natural e cultural que circundava o complexo lagunar Mundaú-Manguaba, quando o
52
ecossistema ainda não tinha sofrido significativas intervenções negativas da especulação
comercial. Outros alagoanos descreveram a cultura lagunar, tais como: o poeta e romancista
Jorge de Lima e o mestre Theo Brandão que colheu suas tradições populares.
A velha capital Santa Maria Madalena da Alagoas do Sul, com seus antigos
conventos barrocos, é a mãe-cult que codificou em costumes e hábitos toda
essa cultura lagunar, cuja base alimentar é um molusco: o sururu. Foi dessa
cultura, de seus ritos culturais e costumes, que Maceió criou-se. Beiradeira
como a velha cidade de Alagoas, metendo os pés na cultura lagunar, Maceió
tem uma coisa que a velha Alagoas não tem: a fímbria marinha. O mar de
colosso. E um planalto que lhe entra às entranhas. Pois esse terceiro pólo que
criou, tardiamente, Maceió (LINDOSO, 2000, p. 41-42).
De acordo com o exposto acima, tivemos em Alagoas dois modelos de
colonização. O pastoreio, no pólo de Penedo, caracterizado pela ausência de escravos negros,
fraca estruturação social com a presença de traços democráticos; e outro baseado no cultivo
da cana-de-açúcar, no pólo de Porto Calvo, com a presença da escravidão, forte e perversa
estruturação social com ausência de traços democráticos.
O sistema colonizador implantado em terras brasileiras implicou o deslocamento
de homens e mulheres, de culturas e de referenciais simbólicos, interferindo radicalmente no
comportamento sociocultural da sociedade brasileira atual. Para Lindoso (2000) os dois
modelos de colonização apresentados em Alagoas, esclarecem
[...] muitas das peculiaridades de comportamento do homem da área
penedense e das savanas sertanejas e do homem da área porto-calvence das
matas úmidas e dos interflúvios litorâneos. Peculiaridade de comportamento
e de cultura, que fazem de Alagoas um fato atípico na formação histórica do
antigo Pernambuco (LINDOSO, 2000, p. 43).
O penedense compensa sua fraca estruturação social subindo o rio São Francisco,
reproduzindo em suas margens cidades ribeirinhas que eram os centros mercantilistas urbanos
em meio a sociedade pastoril; o porto-calvense reproduz centros urbanos agro-mercantilista.
53
[...] a partir da construção de Porto Calvo se espalham pelos vales litorâneos
do Manguaba, do Camaragibe e do Santo Antonio Grande: Porto de Pedras,
Passo de Camaragibe, Matriz de Camaragibe e São Luiz de Quintude.
Cidades que surgiram em meio a uma sociedade agrária de forte estruturação
social, e de um agro escravocrata, dependentes de uma economia de
exportação: o açúcar (LINDOSO, 2000, p. 44).
É intrigante constatarmos que, após cinco séculos, ainda vivemos as
conseqüências do modelo agrário, exportador e escravista, implantado no Brasil. Alagoas, por
exemplo, é um dos estados brasileiros que tem como fonte principal de sua economia a canade-açúcar. A monocultura, grandes proprietários de terras, trabalhadores semilivres e o
modelo econômico exportador. A centralização da riqueza produzida gerou sérias
conseqüências socioculturais nas Alagoas, como por exemplo o analfabetismo de grande
parcela da população, alto índice de mortalidade infantil, condições precárias de moradia e a
luta pela terra.
É fundamental que se diga que essa segregação sociocultural permanece não por
ausência de luta, mas, porque os mecanismos repressores foram altamente violentos e
sustentados por políticas de financiamentos. Afinal, o sistema escravocrata era condição
fundamental para a sobrevivência da empresa agrária açucareira, que
só era rentável se empregava a mão-de-obra escrava. Só era rentável se
produzisse exclusivamente açúcar. Só era rentável se exportasse sua
produção para o mercado externo. Nessa área do absolutismo econômico ,
em que todo um sistema econômico instalado trabalhava para um único
produto, que não era consumido in situ, mas exportado para mercados
distantes, falar em democracia econômica ou social constituía um absurdo
(LINDOSO, 2000, p. 48).
Mesmo colocados na posição de mercadoria, com suas histórias pessoais e
coletivas radicalmente interrompidas, os negros reagem e lutam por liberdade. É sabido que,
nos fins do século XVI, os negros já se rebelaram ao trabalho escravo nos engenhos de canade-açúcar de Pernambuco, ignorando o processo repressor e violento das tropas organizadas
54
pelos donos dos engenhos. Após várias tentativas de liberdade frustradas, logo acabavam
sendo recapturados ou mortos, buscaram refúgio nas matas agrupando-se em Quilombos,
denominados por Dirceu Lindoso (1983) de Estado mucambeiro.
Em seu clássico trabalho de pesquisa – Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo
Real -1830-1850, que resultou no livro A Utopia Armada (1983), Lindoso relata uma história
de lutas.
Entre os anos de 1832 e 1836, e ainda tempos depois, uma área geográfica
aproximadamente de 300 km de extensão e 60 km de largura, onde se
inscrevem os territórios atuais do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas,
enraizados à época de ricos engenhos de açúcar e plantações de fumo,
dispostas ainda virgens as densas matas úmidas – as velhas e antigas matas
reais, carregadas de madeiras de lei que eram os ciúmes dos reis portugueses
do tempo da colônia – fora cenário da mais contraditória, talvez, das
insurreições populares da nossa história social (LINDOSO, 1983, p. 17).
Refere-se à Guerra dos Cabanos, a Cabanagem alagoano-pernambucana, que a
história tradicional e conservadora a reconhecia como um movimento de selvagens.
Cabanada selvagem, o aresto que cai do discurso histórico canonizado por
Thomaz Espíndola, inicia um longo discurso de difamação histórica sobre as
realidades dos fatos cabanos. A noção “selvagem” conotou, nessa hábil
operação semântica, um conteúdo criminal. Estabeleceu-se uma correlação
sinonímica entre a noção de “selvagem”, de “bandido”, de “assassino”, e
outras de natureza apodítica (LINDOSO, 1983, p. 18).
Isso porque a historiografia alagoana tradicional sobre a Cabanagem, segundo
Lindoso (1983), está comprometida com “o jogo de interesses sociais, com as classes que
dominavam economicamente as sociedades alagoana e pernambucana, em particular, e com a
sociedade monárquica sesmeiro-escravista do Império em geral” (LINDOSO, 1983, p. 39).
Desde o século XVII, as matas do norte das Alagoas e do sul de Pernambuco
foram um espaço de luta, onde homens pobres e escravos se rebelaram contra o poder
sesmeiro-escravista da Colônia e do Império. Reconhecendo que, na historiografia tradicional
55
brasileira, são raras as lutas de pobres conduzidas pelos pobres, pois a história da
nacionalidade pertence aos poderosos, o pensador alagoano nos proporciona importantes
informações sobre insurreições acontecidas em solo alagoano-pernambuco, precisamente,
nas matas incultas e comarcas da fronteira provincial de Pernambuco e das
Alagoas os pobres – fossem homens livres ou escravos – se armaram com o
poder insurrecional anti-sistêmico e estabeleceram nas matas incultas dos
Palmares das Alagoas e dos Palmares Pequenos de Pernambuco, durante o
século XVII, um Estado mucambeiro formado por escravos fugidos da
escravidão colonial; destruído pelo Terço de Infantaria Paulista, comandado
por Domingos Jorge Velho, perdurou a rebelião dos pobres escravos na
forma de sobrevivente de mucambos papa-méis perdidos nas brenhas das
matas do tombo real; e vindos a Independência e o Império perduraram a
escravidão e a tendência imódica das terras, e no final da primeira metade
do século XIX os pobres da terra – livres e escravos – entram numa
insurreição de senhores de terra absolutista e restauradora, e a tomada por
dentro, usando o discurso insurrecional de seus opressores, e atacam, na
prática, o sistema iníquo do poder sesmeiro-escravista do Império
(LINDOSO, 1983, p. 427).
Mesmo que os fatos revelem uma história de derrotas dos pobres da terra – índios,
mestiço, negros escravos e colonos brancos – a história revela, também, que as revoltas dos
escravos brasileiros têm em Palmares um exemplo ímpar, como nos revela o estudioso dos
Palmares, Décio Freitas:
No decurso de quase um século os escravos da então capitania de
Pernambuco resistiram às investidas das expedições continuamente enviadas
por uma das maiores potências coloniais do mundo. Projeta-se como o
acontecimento [...] e como um dos mais sérios problemas que a
administração colonial lusitana teve de enfrentar no Brasil. Pois inúmeras
vezes a coroa admitiu francamente que a extinção de Palmares teve uma
importância comparável à da expulsão dos holandeses (FREITAS, 1973, p.
10).
Feito um bicho encurralado, o negro só tinha em mente o desejo de fugir, mesmo
que fosse, muitas das vezes, através do suicídio. Porém a tendência maior foi a fuga em busca
de sua dignidade humana roubada. A descoberta de Palmares surge como possibilidade
56
primeira de um refúgio seguro e de uma vida em uma sociedade alternativa. Em Palmares, por
um longo período, os negros organizam-se social e culturalmente.
Para tanto, utilizam estratégias de guerrilhas, vingando-se dos aparelhos
repressores e apoiando a fuga dos companheiros escravos nos engenhos e lutando contra as
inúmeras tentativas de invasão e destruição daqueles espaços conquistados em meio de uma
selva inóspita onde só se chegava com muitas dificuldades. A preocupação com a segurança
era extremada, sendo os povoamentos sempre organizados estrategicamente para o embate
com os invasores. O que contribuía, também, para o caráter nômade dos povoados.
A vida alternativa foi organizada a partir dos referenciais culturais trazidos da
África. Assim, desenvolvem a técnica metalúrgica do trabalho com o ferro e a agricultura com
o plantio do milho, do feijão, mandioca, cana-de-açúcar, batata. Décio Freitas (1973),
referindo-se à atividade de extração dos produtos naturais da região palmarina, cita o
aproveitamento das palmeiras da variedade nucífera, que era aproveitada tanto para a
produção de produtos alimentares, tais como um excelente azeite e uma espécie de vinho,
como para a produção de um tipo de óleo empregado na iluminação. Com a casca dos troncos
das palmeiras esculpiam cachimbos e com as folhas cobriam as casas e teciam esteiras, cestos
e abanos.
A natureza original e vitoriosa da iniciativa política e social dos negros
palmarinos vem, ao longo da história, despertando curiosidade e, ao mesmo tempo, criando
mitos. Entendemos que nos interessa saber sobre o ressurgimento da dignidade humana e da
identidade cultural dos povos das diversas nações africanas em terras brasileiras, em uma
situação onde a diversidade étnica e racial não foi motivo de discórdia entre eles.
Todas as tentativas que o aparelho repressor do sistema escravocrata fez para
separar os negros de suas próprias famílias e de suas próprias origens étnicas, e ainda criando
mecanismo para que índios, negros, mestiços e brancos pobres se estranhassem a ponto de
57
assumirem-se perseguidores de si mesmos, Palmares mostrou que as possibilidades de
convivência entre as diversas culturas e as diferenças dentro da mesma cultura é possível. A
esse respeito, contamos mais uma vez com a historiografia de Décio Freitas, que nos revela a
racionalidade palmarina em prol da superação da desunião e da intolerância entre humanos
quando o momento pedia o contrário.
Cabe, pois, admitir que os palmarinos tenham apelado para o sincretismo
religioso e a língua portuguesa como meio de conciliar irredutíveis
antagonismo religiosos e lingüísticos [...] A heterogeneidade ética e cultural
dos escravos oferece por outro lado um dado de suma importância para a
análise e a compreensão do movimento palmarino. Mostra, por exemplo, que
não tinha por base quaisquer tradições culturais comuns aos escravos. Nem
havia entre eles os laços de consangüinidade que pudessem justificar a tese
de Nina Rodrigues que se tratava de um movimento de “regressão tribal”. O
vínculo que havia entre os escravos era a desgraça comum, ou, em outras
palavras, um vínculo de classe (FREITAS, 1973, p. 49).
Como vimos, anteriormente, em Palmares os negros africanos desenvolveram
técnicas avançadas de mineração e manufatura do ferro e na produção de alimentos, tanto que
foram utilizadas, posteriormente, no ciclo da mineração no Brasil. Isso confirma, mais uma
vez, que o não aproveitamento dos ex-escravos como trabalhadores assalariados também fez
parte de uma política que só considerava o lucro e avareza dos proprietários de terras e da
monarquia lusitana, afinal as plantações de café, no século XVIII no sudeste brasileiro, não
configuravam nenhuma tecnologia que os negros não pudessem processá-la. E ainda mais,
sempre se pode aprender quando se trata do gênero humano.
Palmares ressurge, também, a criatividade artística do negro.
A despeito de que na África os negros possuíam uma rica e brilhante
tradição artística, não há notícia de qualquer manifestação desse tipo entre
eles quando submetidos à escravidão. Nos Palmares a liberdade fazia medrar
novamente a sensibilidade artística atrofiada pelo cativeiro. Sabemos que
esculpiam em madeira e cerâmica (FREITAS, 1973, p. 49).
58
Em 1630 os holandeses invadem Pernambuco e, entre situações inesperadas
vividas pelos diversos segmentos sociais, os negros encontram uma brecha para refugiarem-se
em Palmares. Até a ocupação definitiva dos holandeses, em 1637, quase que não havia cativos
na capitania pernambucana.
Ao longo do período invasor, os portugueses sofreram as conseqüências de
alianças periódicas, mesmo por interesses imediatos, entre os holandeses e os índios, os
negros e outros grupos oriundos das minorias marginalizadas viam nas propostas holandesas
uma fonte de renda ou de favores. E também de alianças com representantes de homens de
poder que, aderindo aos holandeses, possibilitaram a derrubada da última resistência lusitana
em terras alagoanas. Quanto aos negros,
[...] logo viram que aquela não era a sua guerra. É certo que tardaram a
aproveitar-se da oportunidade, mas quando o fizeram algum tempo depois
trataram de buscar o seu próprio caminho para a emancipação, em vez de
optar, como os índios, por um dos dois bandos em luta (FREITAS, 1973, p.
54).
Entre as primeiras dificuldades enfrentadas pelos holandeses, ressalta-se a
completa ausência de mão-de-obra escrava para recuperar as plantações de cana-de-açúcar.
As providências são tomadas no sentido do restabelecimento da produção açucareira. Ocorre
o pacto entre os senhores de engenho e a Companhia das Índias Ocidentais para a importação
de escravos, inicialmente da Guiné e, depois os dirigentes da Companhia chegaram à
conclusão de que só com o domínio de Angola resolveriam seus problemas. Assim, com a
conquista angolana, em 1641, “as embarcações holandesas passaram a descarregar no porto
de Recife uma média anual de cinco mil escravos” (FREITAS, 1973, p. 59).
Com o fortalecimento de Palmares após a invasão holandesa, os negros não deram
mais sossego aos senhores de engenho e aos dirigentes sob o comando de Nassau, pois
organizavam sucessivas invasões aos engenhos, roubavam armas e libertavam os escravos e,
59
ou, interceptavam e trancavam caminhos entre Recife e outras regiões da capitania
pernambucana.
Com a intenção de destruir as grandes concentrações organizadas pelos escravos
palmarinos, entre 1644 e 1645, foram organizadas duas expedições, sob o comando dos
holandeses, não se obtendo o sucesso esperado em nenhuma das duas (FREITAS, 1973).
Ao tempo em que os holandeses reestruturavam a economia da capitania
pernambucana, vão produzindo insatisfação entre aqueles que estavam nos estratos mais
pobres das categorias populares, que eram explorados e oprimidos, sendo forçados à
marginalização. Qualificados como “bandidos” e “salteadores” nos documentos holandeses,
entre passar fome, roubar e saquear, muitos deles optavam por fugir para Palmares.
A insatisfação para com a presença holandesa em Pernambuco, inicialmente, foi
das categorias marginalizadas. Com o retorno do conde de Nassau aos Países Baixos, com o
um novo comando na Companhia e com a nova política financeira implantada para tratar as
dívidas dos senhores de engenho é que a oligarquia resolve organizar a insurreição contra os
holandeses. Mais uma vez negros e índios são requisitados para a luta em prol dos interesses
do Brasil português e do Brasil holandês (FREITAS, 1973).
Após nove anos de luta sangrenta e destrutiva, principalmente de negros e índios,
ocorre a expulsão dos holandeses em 1654. Saem os holandeses e ficam os portugueses com
muitos problemas internos: a organização das povoações palmarinas e a ausência de escravos
para o cultivo da cana-de-açúcar.
Expulsos os holandeses, o trabalho de reorganização da economia em
moldes lusitanos continuaria, no entanto, sofrendo os efeitos de um outro e
grande fator de perturbação anterior até mesmo ao período da invasão.
Refiro-me às atividades dos inúmeros núcleos de negros quilombolas (...)
irão continuar intranqüilizando os senhores de engenho com suas incursões
sobretudo na frente das Alagoas, para conseguir víveres ou libertar negros da
escravidão (VERÇOSA, 1996, p. 53).
60
A república negra nordestina havia se fortalecido em povoações espalhadas pela
selva virgem, “quase todas essas comunidades ficavam em lugares montanhosos e iminentes
às principais vilas e povoações da capitania – Porto Calvo, Alagoas, São Miguel, Uma,
Ipojuca e Serinhaém” (FREITAS, 1973, p. 69).
Sendo um reduto de fartura, Palmares representava a possibilidade de liberdade,
trabalho, comida e lazer, principalmente, quando a capitania pernambucana passou por
períodos difíceis de guerra entre holandeses e portugueses. A própria organização social do
trabalho colonial e a impossibilidade dos pequenos agricultores manterem suas plantações de
subsistências foram, durante a colonização, motivo de muita fome entre as categorias pobres,
conseqüentemente, razão para buscar refúgio em Palmares. E, como ressalta Décio Freitas,
“No decurso da invasão holandesa muitos se refugiaram nos Palmares para escapar às agruras
de um conflito em cujo desfecho não tinha o menor interesse” (1973, p. 71).
Após vários e grandes investimentos financeiros da coroa portuguesa em
expedições que tinham como meta a destruição dos redutos dos negros organizados e,
também, após várias tentativas frustradas, as povoações quilombolas são exterminadas.
[...] em 1697 por forças comandadas pelo bandeirante Domingos Jorge
Velho, sob as ordens da Coroa portuguesa [...] Assim, embora durante os 67
anos de sua existência, Palmares tenha representado uma grave ameaça à
economia colonial, não chegaria, contudo, como se pode verificar, a torná-la
inviável (VERÇOSA, 1996, p. 53-54).
As tentativas de recomposição da liberdade perdida, após a queda dos Quilombos,
foram todas interpretadas pelos homens do poder como focos de desordens e crimes o que, no
dizer de Élcio Verçosa criticando a historiografia conservadora alagoana: “Assim, sobraram
os “vagabundos”, os “desocupados”, os “desordeiros” referidos por todos os historiadores da
vida alagoana que, sem lugar nos grupos familiares e faccionais estruturados, iam se tornando
disfuncionais ao sistema [...]” (VERÇOSA, 1996, p. 55).
61
Mesmo com o desaparecimento do gigantesco e resistente Quilombo dos
Palmares, na Serra da Barriga, hoje, juridicamente, localizada em Alagoas, os negros
continuaram seus agrupamentos isolados mantendo sua recusa à escravidão, participando de
revoltas e insurreições ao longo dos períodos colonial e imperial, porém sem intervirem,
significativamente, no sistema agro-escravocrata da região do extremo sul da capitania de
Pernambuco – as terras das Alagoas – que chega ao século XVIII,
[...] com um progresso capaz de justificar que em 1711 a região fosse
Comarca de Pernambuco, com direito a ouvidor, tendo sua sede na cidade de
Alagoas. A condição de Comarca traz para a região, além de prestígio de
uma autoridade judicial, uma certa ordem legal antes inexistente e uma gama
de novos cargos públicos [...] (VERÇOSA, 1996, p. 54-55).
Por outro lado, o progresso dos engenhos de cana-de-açúcar, na Comarca de
Alagoas, chega inabalável ao século XVIII. Elcio Verçosa, citando Craveiro Costa, diz que
[...] a Comarca de Alagoas, ainda integrada à Capitania de Pernambuco,
chega ao final da segunda década do século com 6 vilas e 13 freguesias, e
com uma população de 111.973 almas, superior às populações de Espírito
Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraíba, Paraná, Rio Grande do Norte, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul (VERÇOSA, 1996, p. 58).
Avançamos, enquanto Comarca produtiva, para o século XIX quando, em 16 de
setembro de 1817, Alagoas é desmembrada da Capitania de Pernambuco. “Criada a Capitania
das Alagoas, só dois anos depois – em 1819, portanto – é que assume o primeiro Governador
[...]” (VERÇOSA, 1996, p. 63).
Em meados do século XIX, com a estabilização da lavoura cafeeira no Sudeste do
Brasil, o Nordeste perde a hegemonia econômica e política.
A economia nordestina não resistiu ao surto do algodão, a modernização do
setor canavieiro, bem como outros processos que ocorreram até o presente,
não conseguiram reverter o referido deslocamento da hegemonia no interior
da sociedade nacional. Alagoas acompanha essa mudança: junto das outras
62
formações sociais nordestinas, saiu da vanguarda do desenvolvimento
brasileiro para constituir-se em uma das partes mais atrasadas do país.
(Documento da Frente Popular, Democracia e Socialismo para
Alagoas/2002).
A gênese sócio-cultural do atual Estado das Alagoas está intimamente relacionada
ao projeto mercantilista de ocupação e conquista do território brasileiro. Nosso começo
determina nossa descendência, “somos descendentes de senhores de escravo, ou dos que
foram escravos; somos descendentes de senhores de servos, ou dos que foram servos [...]”
(LINDOSO, 2000, p. 74). É desse fato social que vamos nos formando culturalmente em
homens de poder e em dominados.
1.2. Mestiço! Não esconda tua cara
Dando passos largos para outros espaços brasileiros em outros tempos
cronológicos, mas sem perder o fio condutor da história sobre o destino dos homens e
mulheres que participaram, efetivamente, do início da formação sociocultural da sociedade
brasileira, interessa-nos saber sobre os descendentes dos indígenas exterminados e
cristianizados, sobre os negros escravizados, sobre os mestiços e os brancos pobres, pois,
marginalizados desde a colonização, não “traíram” a “tradição” de mudar de lado, em outras
palavras, de sair do lugar onde os homens de poder na sociedade colonial-senhorial-agrária os
colocaram4.
Em um processo de continuidade, as populações descendentes dos homens que
produziram a riqueza da colônia e do império, permanecem sem voz, com seus legados
culturais negados pelas instituições educacionais e culturais que dominam o imaginário
4
“Os termos “traição “e “tradição” têm a mesma origem latina: o verbo “traduco”, que nos textos militares de
Júlio César significa “passar de um lado para o outro”, e nos textos jurídicos de Quintiliano significa “transmitir
um conhecimento”. Em nossa língua portuguesa, o ato de entregar por aleivosia, ou de um militar desertar de um
lado para o outro, chama-se “traição”; e o ato de passar um conhecimento de uma época a outra diz-se “tradição”
(LINDOSO, 2000, p. 64).
63
sociocultural no Brasil, no Nordeste e em Alagoas. Continuam em pleno século XXI, à
margem dos bens culturais produzidos na sociedade5.
O cenário sócio-histórico, com forte herança escravista, desenhado a partir da
institucionalização do projeto colonizador na sociedade brasileira, como se pode observar,
produziu um fenômeno de segregação cultural de toda uma população onde a criação popular
só teve duas condições de produzir-se:
[...] ou em espaços ilhados vistos hoje, retrospectivamente, como arcaizantes
ou rústicos; ou na fronteira com certos códigos eruditos ou semi-eruditos da
arte européia: na música, nas festas e na imaginária sacra, por exemplo. O
romance de cordel, caso de criação de fronteira, é tardio, o que se explica
pelos entraves à alfabetização e à impressão em todo o período colonial
(BOSI, 1992, p. 25).
5
Nos primeiros momentos a questão da exclusão/discriminação na colônia estava para além das culturas étnicas
(índios e negros) negando também aos brancos/pobres o acesso à cultura letrada, das artes e das próprias
atividades técnicas, já que “a cultura letrada é rigorosamente estamental, não dando azo à mobilidade vertical, a
não ser em raros casos de apadrinhamento que confirmam a regra geral. O domínio do alfabeto, reservado a
poucos, serve de divisor de águas entre a cultura oficial e a vida popular” (BOSI, 1992, p. 25). A educação para a
elite foi, aos poucos, substituindo o objetivo principal da obra educacional dos jesuítas. Mesmo com a expulsão
da Companhia de Jesus, no século XVIII, o projeto de uma educação excludente, impregnada de uma cultura
intelectual transplantada permanece inalterado em sua essência. É interessante frisar que os conteúdos de uma
educação excludente, dominada pelo clero, objetivando formar letrados eruditos e que desconsiderava
completamente a realidade da colônia, correspondiam aos anseios da sociedade emergente, pois, naquele
nascedouro as atividades produtivas não exigiam preparo, nem para os administradores nem para os envolvidos
diretamente no trabalho que era braçal e realizado pelos cativos. Nada mais harmonioso do que cultivar o
espírito e a inteligência através de uma educação literária e humanista para a população ociosa e, acima de tudo,
que difundia a cultura européia “de tendência inspirada por uma ideologia católica e a cuja base residiam às
humanidades latinas e os comentários das obras de Aristóteles, solicitadas no sentido cristão. Tratando-se de uma
cultura neutra do ponto de vista nacional (mesmo português), estreitamente ligada à cultura européia (...) é certo
que essa mesma neutralidade (se nos colocarmos do ponto de vista qualitativo) nos impede de ver, nessa cultura,
nas suas origens e nos seus produtos, uma cultura especificamente brasileira, uma cultura nacional ainda em
formação” (AZEVEDO apud ROMANELLI, 1998, p. 35). Sem se diferenciar, significativamente, de outras
regiões da colônia, a comarca de Alagoas, como nos conta o alagoano Craveiro Costa “era um reflexo da
situação mesma da capitania e da própria colônia. Por toda a parte a ignorância apresentava os aspectos mais
lastimáveis do estado coletivo. Era notório a falta de indivíduos que pudessem exercer as profissões liberais e até
ocupar os cargos públicos mais modestos” (COSTA, 2001, p. 16). Diante do exposto, Elcio Verçosa nos revela
que, na metade do século XVI, já tínhamos estruturado “o projeto-político-pedagógico de caráter oficial – se
assim se pode chamar – que iria combinar a pouca necessidade de instrução letrada para atendimento às
demandas da Coroa e do senhoriato local nos escassos centros urbanos existentes, com a educação catequética
dos colonos, dos escravos que passam a ter o seu número sempre mais acrescido em terras alagoanas, assim
como os índios que sobreviveram ao extermínio inicial, estes em franco processo de aldeamento sob a guarda de
ordens religiosas como os capuchinhos, os franciscanos, os beneditinos, os carmelitas e os jesuítas” (VERÇOSA,
2001, p. 158).
64
Com efeito, ao longo dos séculos, vamos presenciar à sociedade brasileira
dividida, como nos diz o educador popular Carlos Rodrigues Brandão:
sem deixar de espelhar, portanto, as próprias conjunturas sociais de domínio
de classes sobre classes, ao longo das quais foi sendo forjada e cujas
contradições, conflitos, resistências e formas de opressão incorporou como
os seus símbolos [...] e não permite que os dominados criem e expressem
livremente a sua própria cultura (BRANDÃO, 2002, p. 45).
Esta concepção, onde uma cultura hegemônica ignora as expressões culturais de
outras populações, permite Alfredo Bosi (1992) criticar a tendência do imaginário brasileiro
que, ao longo dos tempos, vem perseguindo uma cultura única hegemônica como
representante do povo do Brasil, quando diz que
estamos acostumados a falar em cultura brasileira, assim, no singular, como
se existisse uma unidade prévia que aglutinasse todas as manifestações
materiais e espirituais do povo brasileiro. Mas é claro que uma tal unidade
ou uniformidade parece não existir em sociedade moderna alguma [...] a
tradição da nossa Antropologia Cultural já fazia uma repartição do Brasil em
culturas aplicando-lhes um critério racial: cultura indígena, cultura negra,
cultura branca, culturas mestiças [...] Os critérios podem e devem mudar.
Pode-se passar da raça para a nação, e de nação para classe social (cultura do
rico, cultura do pobre, cultura burguesa, cultura operária), mas, de qualquer
modo, o reconhecimento do plural é essencial (BOSI, 1992, p. 308).
Nessa direção plural, Kabengele Munanga (1996) faz um mapeamento dos
diferentes povos, que em determinados momentos da história do Brasil vieram juntar-se às
nações indígenas que aqui viviam, compondo um complexo caldeirão cultural que
desencadeou problemas de ordem política e ideológica. A pluralidade de cores, formas,
sentimentos e espíritos resultante do processo da mistura entre índios, negros, brancos e
outros povos vai muito além da dimensão genética, "não se juntaram, nesse território, apenas
os grupos humanos de composição biológica diferente, pois todos eram portadores de padrões
civilizatórios diferentes" (MUNANGA, 1996, p. 180).
65
Com a colonização portuguesa e a imigração forçada dos africanos no século XVI,
com a ocupação do Nordeste pelos espanhóis no século XVII, com a fixação em torno de 5
milhões de imigrantes a partir de 1808 e com a vinda dos, também imigrantes, asiáticos no
início do século XX, foi estabelecido no território brasileiro um verdadeiro laboratório de
mestiçagem e experiências interculturais.
Contudo, a diversidade cultural resultante do confronto dos diversos grupos
étnicos e culturais e, conseqüentemente, o processo de miscigenação que se estabeleceu em
terras brasileiras foi tratada, em determinados momentos históricos, como um problema que
desencadeou grandes debates sobre a natureza dos índios, dos diversos grupos de negros
africanos e dos mestiços. Na realidade a questão da identidade nacional versus cultura
brasileira acirrou os debates dos intelectuais ao longo de nossa história, principalmente, em
três grandes momentos: a reinvidicação da independência em relação à metrópole portuguesa,
em 1822; a integração jurídica dos negros (ex-escravos) na sociedade, em 1888; e a revolução
de 1930.
Em cada momento histórico, respeitando-se suas particularidades, aflora um
conflituoso processo de indagação sobre a formação de uma nação e de um povo. É como se o
Brasil estivesse buscando tornar-se uma Nação em companhia de um povo em busca de sua
própria cultura. Um território e uma população com um grande desafio: conviver com a
diversidade étnica e cultural e com a segregação social.
Porém, é ainda com a vinda do governo português para o Brasil, em 1808, que se
inicia uma história institucional local de caráter cultural6. Segundo o alagoano Craveiro Costa:
Em todo o país foram criados cursos de retórica, filosofia, latim, francês,
matemática. Criaram-se academias e museus. Criou-se a imprensa. Mas a
6
Na colônia brasileira a inexistência de centros de pesquisa ou de formação superior até início do século XIX,
solidificava a relação de dependência da vida intelectual brasileira com a cultura das elites européias que a partir
de um processo de universalização foi assimilada sem nenhuma resistência. A especificidade do caso brasileiro,
isto é, na ausência de uma cultura nacional ou autentica para se contrapor respectivamente, ao universal e ao
alienígena, as classes dominantes na colônia encontravam suas expressões ideológicas e culturais na Europa.
66
base de todo esse edifício, que seria a escola primária que desde de 1774 era
uma instituição nacional nos Estados Unidos, não se procurou fundar no
Brasil (COSTA, 2001, p. 16).
Com D. João, instala-se o ensino superior e inicia-se um processo de autonomia
cultural. Contudo, a prioridade dada ao ensino superior e o total abandono dos demais níveis
do ensino, continuaram caracterizando a organização educacional do Brasil como tradicional
e aristocrática. No entanto, SUCUPIRA (1999) a partir da análise crítica de Anísio Teixeira
sobre o fato, nos ajuda a entender a falência das escolas de primeiras letras a partir de um
processo de omissão e de desinteresse das classes dirigentes com a educação popular,
entregue às províncias, e a atenção privilegiada que deu ao sistema de formação de quadros
intelectuais
Ressalvadas as considerações sobre a forma como se deu o processo de
independência do Brasil, os fatos acima relatados refletiam o interesse do Imperador em
formar intelectuais para atender, servir e criar uma história para o novo Estado independente
em 1822. Aos intelectuais caberia indicar soluções para os problemas específicos da nação
relacionados com o preenchimento dos quadros administrativos e políticos; e com o desejo de
separar o seu destino da antiga metrópole européia. Daí a importância da formação de
letrados. Porém,
mesmo nas escolas superiores isoladas, que foram o que nós conhecemos de
mais avançado, graças à vinda da Corte para o Brasil e o desenvolvimento
posterior do Segundo Império, mesmo aí, o interesse que havia pela
atividade intelectual propriamente dita estava vinculado à atividade
administrativa e política indispensável desses profissionais liberais. O
próprio professor interessava à medida que era um agente puro e simples de
transmissão cultural (FERNANDES, 1992, p. 159).
Os professores eram colocados na posição de transmissores da cultura européia.
Não lhes era permitido a relação criadora com seus alunos, mas, a imitação,
67
nesse contexto, o intelectual era, por assim dizer, domesticado, quer fosse de
origem nobre ou de origem plebéia, automaticamente se qualificava como
um componente da elite e, quando isso não ocorria, como sucedeu com os
professores de primeiras letras, ele era um elemento de mediação, na cadeia
interminável de dominação política e cultural (Ibid.: 159).
É interessante observar, também, que o ensino secundário foi influenciado pela
forma de currículo universalista e humanística assumida pelo ensino superior, principalmente,
os cursos de Direito. O ensino secundário tinha como meta o preparo dos candidatos ao
ensino superior, razão por que seu conteúdo se estruturou em função deste7.
Sendo a implantação dos cursos de Direito uma prioridade do Imperador, após
grandes intrigas, em nível parlamentar, sobre a localização das escolas, ocorre a aprovação do
projeto de 31 de agosto de 1826, convertido em lei em 11 de agosto de 1827, definindo-se que
as duas instituições acadêmicas para o ensino de Direito teriam sede em Olinda (para atender
a população do Norte) e na cidade de São Paulo (para atender a Região Sul).
Segundo a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (1993), é a partir de 1828, com o
início desses cursos, que a profissão e a figura do bacharel ascendente no Brasil adquirem
estima e status. Afinal, dessas duas instituições sairiam os ministros, senadores, governadores,
deputados e os intelectuais que pensariam os destinos do país. Sendo “sinônimo de prestígio
social, marca de poder político, o bacharel se transformava em uma figura especial em meio a
um país interessado em criar elites próprias de pensamento e direção política [...]
Convertendo-se o bacharel no grande intelectual da sociedade local [...]” (SCHWARCZ,
1993: 142). É tanto, que apesar dos cursos de Medicina, Engenharia e Artes, terem sido
criados antes dos cursos de Direito, os intelectuais ali diplomados não tiveram supremacia nos
quadros superiores.
7
Esse caráter propedêutico assumido pelo ensino secundário, somado ao seu conteúdo humanístico, fruto da
aversão a todo tipo de ensino profissionalizante, próprio de qualquer sistema escolar fundado numa ordem social
escravocrata, sobreviveu até há pouco e constituiu o fator mesmo do atraso cultural de nossas
escolas.(ROMANELLI, 1998: 39).
68
Com o investimento do Poder Central nas instituições universitárias “a idéia era
substituir a hegemonia estrangeira – fosse ela francesa ou portuguesa – pela criação de
estabelecimento de ensino de porte, como as escolas de Direito, que se responsabilizariam
pelo desenvolvimento de um pensamento próprio e dariam à nação uma nova Constituição”
(SCHWARCZ, 1993, p. 142).
As Faculdades de Direito receberam clientela oriunda das elites rurais,
enfrentaram as dificuldades iniciais provenientes (1) da ausência de um quadro forte de
professores e (2) de uma equipe com legitimidade intelectual para dirigi-las. Um início
controvertido, quando a vida acadêmica girava em torno da indisciplina dos alunos e da pouca
mobilização dos professores. Tendo no jornalismo um espaço para os embates intelectuais, as
duas faculdades contavam com seus periódicos, jornais e revistas, que se constituíram em
registro vivo dos novos grupos intelectuais. Schwarcz (1993) reconhece que esses periódicos
foram, para suas pesquisas sobre os homens de sciencia brasileiros, fonte “da análise
sistemática” do “volume e complexidade” da produção intelectual das duas escolas.
Sendo, pois, de um lado, celeiro de personagens que forjaram a história brasileira
e que tiveram participação nos destinos da nação, enquanto representantes da elite nacional e,
por outro lado, foco de cultura de ideais libertários que tiveram participação ativa em
momentos decisivos que mudaram as regras das classes dominantes, esses espaços
acadêmicos tiveram representantes na discussão sobre a cultura nacional brasileira e,
conseqüentemente, sobre a questão étnica e cultural dos diversos povos em processo de
miscigenação.
A organização cultural do Brasil durante o Império, subordinada ao Estado, deuse, principalmente, através dos Museus Nacionais e dos Institutos Históricos e Geográficos,
fundados com o objetivo de sistematizar a história e o saber oficial. Ressalvando-se as
especificidades regionais desses institutos, cada um a sua maneira, “nesse local a produção
69
científica sofreu com todas as limitações de um tipo de estabelecimento que congregou lado a
lado elite intelectual e elite econômica e financeira” (SCHWARCZ, 1993, p. 100).
Contudo, o debate sobre os fundamentos de uma cultura nacional em oposição aos
legados metropolitanos e à origem colonial surgiu no Brasil, na década de 70, do século XIX,
considerada por representativa intelectualidade brasileira como uma década de inovações,
mas, na realidade, o que estava acontecendo era “a emergência de uma nova elite profissional
que já incorporara os princípios liberais à sua retórica e passava a adotar um discurso
científico evolucionista como modelo de análise social” (SCHWARCZ, 1993, p. 28), modelo,
este, utilizado pela política imperialista da Europa, que penetra no Brasil e tenta explicar as
diferenças sociais a partir das variações raciais.
Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação ao
mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade.
Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos – “classes
perigosas” a partir de então – nas palavras de Silvio Romero transformavamse em “objetos de sciencia [...] Era a partir da ciência que se reconheciam
diferenças e se determinavam inferioridades” (Ibid.).
Assim, por mais simplista que hoje nos pareça, procura-se explicar, através da ciência,
o atraso e a inviabilidade do Brasil a partir de sua composição mestiça.
Envoltos pela atmosfera da racionalidade e da ciência alicerçada na biologia,
engendrou-se uma ciência das raças, a raciologia que tinha como objetivo
explicar a diversidade humana. Entretanto, impregnada por argumentos que
se pretendiam neutros e empíricos, mas eram falaciosos (para não dizer
ideológicos), desembocou em uma absurda hierarquização da humanidade
em raças desiguais. O determinismo biológico que pavimentou a caminho do
racialismo ou do racismo científico que até hoje pesa negativamente no
futuro coletivo dos povos não-europeus, principalmente negros e índios e
seus descendentes mestiços, teve aí seus primeiros passos (MUNANGA,
2002, p. 11).
Em seu livro – O Espetáculo das Raças – a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz
(1993), analisa como os intelectuais brasileiros, no período de 1870 a 1930, tratavam a
70
questão do mestiço no interior da sociedade brasileira. A imagem de um Brasil mestiço,
exótico, que atraía inúmeros viajantes e que teve boa acolhida entre os intelectuais brasileiros,
passa a ser “observado com cuidado pelos viajantes estrangeiros, analisado com ceticismo por
cientistas americanos e europeus interessados na questão racial, temido por boa parte das
elites pensantes locais, o cruzamento de raças era entendido, com efeito, como uma questão
central para a compreensão dos destinos dessa nação” (SCHWARCZ, 1993, p. 13-14).
Por sua vez, Renato Ortiz, no estudo – Memória coletiva e sincretismo científico:
as teorias raciais do século XIX (1982) –, em que realiza também uma leitura crítica sobre as
teorias explicativas do Brasil, pensadas na transição do século XIX para o século XX, diz-se
surpreso e indaga:
Como foi possível a existência de tais interpretações, e, mais ainda, que elas
tenham alçado ao status de Ciências. A releitura de Sílvio Romero, Euclides
da Cunha, Nina Rodrigues é esclarecedora na medida em que revela esta
dimensão da implausibilidade e aprofunda nossa surpresa, por que não um
certo mal-estar, uma vez que desvenda nossas origens. A questão racial tal
como foi colocada pelos precussores das Ciências Sociais no Brasil adquire
na verdade um contorno claramente racista, mas aponta, para além desta
constatação, um elemento que me parece significativo e constante na história
da cultura brasileira: a problemática da identidade nacional (ORTIZ, 1994, p.
13).
Assim, o autor, fazendo um recorte na vida cultural brasileira, possibilita-nos um
olhar histórico e crítico sobre os intelectuais que influenciaram definitivamente as origens das
Ciências Sociais no Brasil e possibilitaram “o desenvolvimento de escolas posteriores, como
exemplo a escola de antropologia brasileira, que, vinculada aos ensinamentos de Nina
Rodrigues, adquire com Arthur Ramos a configuração definitiva de ciência da
cultura”(ORTIZ, 1994, p.14).
Podemos ilustrar esse período com exemplos sobre movimentos culturais
brasileiros que mistificaram ou ocultaram as estruturas desumanas e hoje inaceitáveis: a
exterminação dos índios e o período escravocrata. “[...] um dos veios centrais do nosso
71
romantismo, o alencariano, também se mostrou receoso de qualquer tipo de mudança social,
parecendo esgotar os seus sentimentos de rebeldia [...] o índio de Alencar entra em íntima
comunhão com o colonizador. Peri é, literal e voluntariamente, escravo de Ceci, a quem
venera como sua Iara [...]” (BOSI, 1992, p. 176-177).
Com o declínio da hegemonia romântica de Gonçalves Dias e José de Alencar, os
intelectuais brasileiros, passam a adotar as teorias elaboradas na Europa em meados do século
XIX: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. No dizer
de Ortiz,
essas teorias distintas entre si podem ser consideradas sob um aspecto único:
o da evolução histórica dos povos [...] o evolucionismo se propunha a
encontrar um nexo entre as diferentes sociedades humanas ao longo da
história; aceitando como postulado que o “simples” (povos primitivos)
evolui naturalmente para o mais “complexo” (sociedades ocidentais),
procurava-se estabelecer as leis que presidiriam o progresso das civilizações
(ORTIZ, 1994, p. 14).
Nossos pensadores esbarram em uma contradição de conseqüências sem limites,
pois, ao passo que o evolucionismo assegurava ideologicamente a superioridade da cultura
ocidental européia, explicando a inferioridade de outras sociedades, inclusive o atraso do
Brasil, a partir das leis naturais, não explicava a realidade interna da sociedade brasileira.
Esses precursores das Ciências Sociais estavam preocupados em elaborar uma
teoria capaz de explicar a "pluralidade de raças e mesclas de culturas e valores civilizatórios
tão diferentes, de identidades tão diversas, numa única coletividade de cidadãos, numa só
nação e num só povo" (MUNANGA apud SEIFERTER, 1996, p. 181).
Sílvio Romero (1851-1914), Euclides da Cunha (1866-1904), Nina Rodrigues
(1862-1906), Oliveira Viana (1883-1951) e o próprio Gilberto Freyre (1900-1987),
intelectuais que, apesar das diferenças de orientação, “todos estavam interessados na
72
formulação de uma teoria do tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição do
brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação” (Ibid.).
No livro A invenção do ser negro. Um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade do negro (2002), a antropóloga Gislene Santos nos proporciona um retorno às
origens das idéias legitimadoras da desigualdade dos homens a partir do corte racial. Seu
trabalho demonstra que as concepções explicativas do século XVIII, ainda com base
iluministas e que tentaram explicar a origem da humanidade serviram de referencial para os
intelectuais brasileiros justificarem as diferenças raciais e sociais no Brasil, em pleno século
XX. Portanto, é preciso que se retorne alguns séculos para entendermos como se deu esse
processo.
Os séculos XV e XVI, sendo o cenário das grandes viagens que modificaram para
sempre a história ocidental, tiveram seus teóricos que tentavam explicar, diante da descoberta
dos ameríndios e dos negros africanos, a origem comum da humanidade.
Nos lembra Kabengele Munanga que
Buscava-se saber se realmente eram seres humanos iguais aos europeus.
Esses debates se desenrolavam principalmente na Península Ibérica, sob a
ótica teológica. Os que defendiam a tese de que ameríndios e negros eram
bestas, e não seres humanos, construíram argumentos para justificar e
legitimar a prática da violência decorrente do processo de colonização e
escravização. Os que sustentavam a tese de que eles eram seres humanos
tiveram também de encontrar fundamentos que lhes permitissem vincular
índios e negros aos demais descendentes de Adão. Contudo, em quaisquer
dessas hipóteses, a celebração do reconhecimento da dignidade humana dos
povos descobertos ficava condicionada à sua conversão ao cristianismo.
(MUNANGA, 2002, p. 9).
Essas teorias que tentavam explicar uma das mais antigas preocupações humanas
– sua própria origem – foram questionadas, no final do século XVII, pelos filósofos
iluministas que “inauguraram uma nova era da racionalidade e rejeitaram a explicação cíclica
do mundo que a perspectiva teológica-política até então estabelecia. Basta dominar a razão,
73
que é universal e da qual todos os homens compartilhavam, pensavam eles, para compreender
sem obstáculo todas as coisas e todos os povos (novos, velhos e por conhecer)” (MUNANGA,
2002, p.10).
Diversos teóricos que tentaram explorar cientificamente os povos não-europeus
tiveram como referência a justificativa da “racionalidade universal” elaborada pelos
iluministas, assim, sendo monogenistas ou poligenistas, todos tinham em comum a elaboração
de um discurso cientifico que justificasse a superioridade dos brancos sobre os negros e os
ameríndios.
Assim,
de um lado, a visão monogenista, dominante até meados do século XIX [...]
acreditava que a humanidade era uma [...] Pensava-se na humanidade como
um gradiente – que iria do mais perfeito (mais próximo do Éden) ao menos
perfeito (mediante a degeneração) [...] Esse mesmo contexto propicia o
surgimento de uma interpretação divergente. A partir do século XIX a
hipótese poligenista transformava-se em alternativa plausível, em vista da
crescente sofisticação das ciências biológicas e sobretudo diante da
contestação ao dogma monogenista da Igreja. Partiam esses autores da
crença na existência de vários centros de criação, que corresponderiam, por
sua vez, às diferenças raciais observadas (SCHWARCZ, 1993, p. 48).
Com o lançamento, em 1859, do trabalho de Charles Darwin – A origem das
espécies, apesar do enfoque estritamente biológico, vamos constatar que:
não são poucas as interpretações [...] que desviam do perfil originalmente
esboçado por Charles Darwin, utilizando as propostas e conceitos básicos da
obra para a análise do comportamento das sociedades humanas. Conceitos
como “competição”, “seleção do mais forte” “evolução” e “hereditariedade”
passaram a ser aplicados aos mais variados ramos do conhecimento [...]
(Ibid., p. 56).
Inclusive na esfera política, mantendo posturas de cunho conservador. O
imperialismo europeu toma emprestado a noção de seleção natural de Darwin, para explicar o
domínio ocidental. Ao lado do evolucionismo social, duas grandes correntes (1) o
74
determinismo geográfico e (2) o determinismo racial assumem lugar de considerável
influência, quando, respectivamente, desenvolvem as teses “de que o desenvolvimento
cultural de uma nação seria totalmente condicionado pelo meio” e “as raças constituiriam
fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento, por princípio, entendido
como erro” (SCHWARCZ, 1993, p. 58). O determinismo racial apóia o postulado de manter
a pureza das raças e, conseqüentemente, inibir a miscigenação, causadora, pois,
da
degeneração racial e social.
Considerando que os intelectuais brasileiros, atuantes no período que marcou a
transição do século XIX para século XX, são representantes legítimos das instituições
culturais e acadêmicas brasileiras que tiveram seus currículos estruturados a partir dessas
doutrinas evolucionistas européias, compreendemos melhor que “o pensamento racial europeu
adotado no Brasil não parece fruto da sorte. Introduzido de forma crítica e seletiva,
transforma-se em instrumento conservador e mesmo autoritário na definição de uma
identidade nacional e no respaldo das hierarquias sociais já bastante cristalizadas” (Ibid., p.
42).
Assim, vamos encontrar, por exemplo, o determinismo geográfico (o meio)
explicando a realidade brasileira. Quando o determinismo racial e o meio se completam,
vamos ter “a neurastenia do mulato do litoral (Euclides da Cunha); a apatia do mameluco
amazonense revela os traços de um clima tropical que o tornaria incapaz de atos previdentes e
racionais (Nina Rodrigues). A história brasileira é, desta forma, apreendida em termos
deterministas, clima e raça explicando a natureza indolente do brasileiro [...] o nervosismo e a
sexualidade desenfreada do mulato” (ORTIZ, 1994, p. 16).
Segundo Kabengele Munanga, Nina Rodrigues tinha como foco de toda sua
reflexão a raça como elemento que se sobreponha à cultura e aos valores morais, esse
intelectual colocava uma venda na perspectiva de uma identidade étnica nacional.
75
Nina Rodrigues, quando procura explicar os limites entre o normal e o patológico
dentro de sua análise sobre os direitos dos homens diferentes, demonstra claramente suas
intenções de imprimir um pensamento em que homens diferentes não merecem os mesmos
direitos à liberdade. Nas palavras da pesquisadora Gislene dos Santos (2002):
Conclui-se, então, que embora falando de direito penal, o autor relativiza o
direito social, civil de cada indivíduo de acordo com sua raça. Se negros,
índios e mestiços não são capazes de desenvolver uma civilização, não são
capazes de produzir uma cultura elevada, mas são potencialmente perigosos,
o que se deve fazer é tratar todas as suas manifestações “sociais”, “culturais”
como signos de anormalidade, sinais de doença e demência. Não são ou
criminosos ou loucos, são criminosos e loucos pois o crime é o mal gerado
pelas raças inferiores. Incapazes de correção, os criminosos deveriam ser
excluídos da sociedade, recolhidos aos asilos (SANTOS, 2002, p. 148).
Esses postulados respaldavam cientificamente os interesses das classes
dominantes no Brasil em plena transição do século XIX para o século XX. Ora, se a
imigração européia favorecia o branqueamento através do cruzamento entre os brancos e os
mestiços já existentes no país, por outro lado, a política imigratória atendia também ao
modelo econômico, que com a abolição dos escravos carecia de nova mão-de-obra.
Para a sociedade brasileira do século XIX, a mão-de-obra imigrante era
fundamental, mas, como justificar a substituição dos escravos pelos imigrantes, sem nenhuma
indenização, sem nenhum direito para aqueles que tinham produzido toda a riqueza no Brasil?
Na indagação da antropóloga Gislene Aparecida dos Santos “como encarar os ex-escravos
como verdadeiramente iguais se há uma nova ciência que hierarquiza homens segundo
critérios biológicos que determinam que eles (os negros utilizados como mão-de-obra
escrava) são menos capazes e inferiores aos europeus?” (SANTOS, 2002, p. 16).
Sabemos que, enquanto se debatia sobre o futuro dos escravos, paralelamente, já
acontecia o fenômeno da imigração européia, e a própria ciência, através dos intelectuais,
encarregava-se, sutilmente, de argumentar em defesa dos homens de poder, quando, por
76
exemplo, Oliveira Viana (1933), em um processo de continuidade científica e ideológica,
respaldado nas idéias da eugenia, modelo teórico de alcance científico e social, apontava o
"ideal do branqueamento" como saída para o problema da degeneração do mestiço.
Assim, propõe o controle político e ideológico das relações entre os indivíduos na
então sociedade brasileira, “o branqueamento se daria mediante a seleção eugênica das raças
pela miscigenação a ser controlada política e ideologicamente. Os negros e os mulatos
eugênicos cruzariam entre si e também com os brancos possuidores de eugenismo, formando
assim a nova raça ariana" (VIANA, 1933, p. 154-155).
O país vivenciara, nos últimos anos do século XIX, momento de grande
transformação econômica. Com a Abolição, parte do capital direcionado para a compra de
escravos passou a ser investida nas indústrias. A concentração considerada de capitais já era
identificada nos diferentes empreendimentos da indústria, do comércio e, principalmente, da
agricultura cafeeira. O processo de crescimento que a sociedade brasileira vivenciava,
reproduzia o modelo de exclusão para a maioria da população constituída de trabalhadores,
desempregados e ex-escravos8.
8
Os planos dos abolicionistas de libertar os negros o quanto antes para aliviar as dores negras, foram
redesenhados pelos brancos dirigentes que, em atendimento às intenções dos fazendeiros de café do Centro-Sul,
retardaram quanto puderam a ação estatal abolicionista. O que para os provincianos “do Norte Nordeste e para os
profissionais urbanos poderia vir sem maiores traumas, não interessava ainda aos fazendeiros de São Paulo que
apenas esboçava aos seus projetos de migração” (BOSI, 1992, p. 244). As discussões em torno da mão-de-obra
escrava correm paralelas com as primeiras experiências no Brasil com os trabalhadores estrangeiros. O próprio
Partido Republicano Paulista procurou se eximir da responsabilidade com a reforma necessária à abolição da
escravatura, quando advertia a Comissão do partido em 1872, que, mesmo admitindo a seriedade da questão que
era altamente social e de interesse de todos, entendia que sua resolução estava sob a responsabilidade dos
partidos monárquicos.
Para a pesquisadora Gislene Aparecida dos Santos (2002), o movimento abolicionista nasce e evolui
comprometido com o desejo de negar ao negro a sua própria história, invertendo sua imagem e dando como
possibilidade de parâmetro a estética e a conduta do homem branco. Podemos ainda dizer que, “dessa forma, o
movimento abolicionista funcionou como um grande estandarte dos interesses dos cidadãos brancos que
pretendiam, de maneira racional e planejada, adequar o negro a um lugar que não gerasse incômodos à ordem
emergente” (SANTOS, 2002, p. 120). Realidade que não deixa de assinalar o futuro extremamente ameaçador
para os escravos libertos em 1888, com a Abolição. Assim, em um cenário preocupante, tínhamos os negros e
mestiços abandonados à própria sorte, sem indenização, garantia ou assistência social, pois as classes dirigentes
ignoraram, por completo a necessidade de pôr em prática medidas que assegurassem um mínimo de proteção ao
escravo ou ao liberto e concentraram todo esforço construtivo numa política que garantisse a rápida substituição
da mão de obra escrava. Por essa razão no fim do império e início da República, o principal traço da política
governamental provinha do fomento da imigração por todos os meios viáveis (FERNANDES, 1977, p. 115).
77
Livre mas pobre, não encontrando lugar algum naquele sistema que se
reduzia ao binômio “senhor e escravo”. Quem não fosse escravo e não
pudesse ser senhor, era um elemento desajustado [...] Isto que já vinha dos
tempos remotos da colônia, resultava em contingentes relativamente grandes
de indivíduos mais ou menos desocupados, de vida incerta e aleatória, e que
davam nos casos extremos nestes estados patológicos da vida social: a
vadiagem criminosa e a prostituição (PRADO, 1994, p. 198).
Por sua vez, os cafeicultores exigiam autonomia regional que estava nas mãos das
companhias comerciais da Inglaterra e da Holanda. As classes médias urbanas tinham seus
representantes com participação efetiva na vida pública através das atribuições intelectuais,
militares e religiosas. Um cenário complexo expressava as contradições entre as aspirações da
sociedade civil e o aparelho de Estado. Assim, “as forças se compõem de tal maneira que, sob
a liderança de elementos da camada média (especialmente os militares), com o apoio
significativo da camada dominante do café e com a aparente omissão da maioria da
população, é proclamada a República” (RIBEIRO, 1995, p. 70).
A Primeira República não trouxe participação representativa das grandes massas,
a sociedade civil continuava desorganizada. A vida cultural continuava restrita a poucos
setores das camadas médias, aristocratizante e ornamental.
No campo da educação, a Constituição de 1891 continuou tratando a questão do
ensino a partir de uma concepção elitista e excludente. As instituições escolares favoreciam os
privilégios de classes utilizando mecanismos de seleção escolar e de conteúdo cultural que
não proporcionava às populações marginalizadas (negros, índios, mestiços e brancos pobres) a
preparação para o trabalho. Assim, com a instituição do sistema federativo de governo em
1891, consagra-se o sistema dual de ensino que, no dizer de ROMANELLI (1984, p. 42),
A vitória dos princípios federalistas que consagrou a autonomia dos poderes
estaduais fez com que o Governo Federal, reservando-se uma parte da tarefa
de proporcionar educação à nação, não interferisse de modo algum nos
direitos de autonomia reservados aos Estados, na construção de seu sistema
de ensino. Como um não interferia na jurisdição do outro, as ações eram
completamente independentes e, o que era natural, díspares, em muitos
78
casos. Isso acabou gerando uma desorganização completa na construção do
sistema educacional, ou melhor, dos sistemas educacionais brasileiros.
Na realidade, o modelo federalista acabou gerando um sistema que aprofundava a
distância entre a educação para a classe dominante (escolas secundárias acadêmicas e escolas
superiores) e a educação para o povo (escola primária e escola profissional). As várias
tentativas de reformas, que ocorreram ao longo da Primeira República, quando aplicadas,
além de não lograrem a resolução dos problemas educacionais mais agravantes, não
representavam uma política nacional para a educação.
Por esses motivos, a organização do ensino, em sua essência, não apresentou
mudanças significativas, fato referendado por Fernandes (1989, p. 158): “é sabido que a
orientação mais ou menos fechada, que prevaleceu no período colonial em relação à cultura e
à educação, não foi desagregada com a Independência nem com a proclamação da
República”.
A Revisão Constitucional de 1925/1926 oportuniza a discussão sobre temas
centrais que preocupavam a sociedade brasileira, tais como: o dever do Estado de oferecer
instrução para todos, inclusive a promoção da educação primária; a educação como
possibilidade de resolver os problemas sócio-econômicos e culturais das diversas regiões do
país; o alto índice de analfabetismo das populações rurais; a origem dos orçamentos para a
educação; e a defesa da centralização na União versus a defesa do federalismo, tendo como
preocupação a unidade nacional ameaçada.
A dinâmica republicana vai se expressando na reorganização das forças
dominantes para combater o poder dos militares, conseqüentemente, da participação da classe
média. A convergência de interesses “internos” e “externos”, respectivamente, entre os
cafeicultores e os financiadores internacionais levou à instalação de uma política de
“valorização” da produção agrícola e à “desvalorização” da moeda nacional.
79
A crise da Europa, após a Primeira Guerra Mundial, possibilita o desenvolvimento
interno da indústria nacional. Com a transformação da estrutura social do Brasil, novas forças
econômicas e sociais vão se configurando. Porém, apesar da oposição dessas forças
emergentes à política de “valorização” e ao problema da taxa de câmbio “que, reduzindo o
poder aquisitivo da moeda nacional e aumentando o preço de bens de capital, colocava as
indústrias em desvantagem” (SCHELLING, 1990, p. 66), não conseguem compor uma
burguesia industrial unida e independente.
Nos centros urbanos, os trabalhadores (ex-escravos, imigrantes rurais e
estrangeiros) que representavam o proletariado, viviam sob condições desumanas. A classe
média composta por funcionários públicos, intelectuais e militares, a cada dia ficava à
margem do processo político. Cada uma dessas categorias, demonstrava insatisfações com a
vida política e econômica na Primeira República e, dentro de suas especificidades, apoiaram
mais adiante o levante armado de 1930. Enfrentando desafios de caráter político, social e
econômico, o Brasil republicano permanece indagando sobre sua identidade.
Com a chamada Revolução de 30, período em que as classes dominantes no Brasil
almejavam mudanças de ordem política tendo como meta o desenvolvimento econômicosocial, as teorias raciológicas não respondiam aos novos anseios da sociedade brasileira. O
sociólogo pernambucano Gilberto Freyre que, influenciado por teorias antropológicas
culturalistas, opera a transição do conceito de raça para cultura9, permitindo um maior
distanciamento entre o biológico e o social (ORTIZ, 1994).
9
Segundo Gislene Aparecida dos Santos “Não se pode negar a importância que a obra de Freyre teve em meados
da década de 1930 e daí por diante. Numa época de silêncio sobre a questão racial no Brasil, ele trouxe a questão
novamente à baila e sob uma ótica diferente das anteriores, já não o escravo inferior, o cidadão de segunda
classe, mas um dos elementos que através de sua cultura, influenciaram e contribuíram para a formação da nação
brasileira. Neste sentido, Casa-grande e senzala foi uma obra inovadora e que gerou polêmica e reflexões a
respeito da questão racial no Brasil. Denise Silva (1989) nos chama a atenção para o fato de que, embora as
idéias utilizadas por Freyre já estivessem presentes no pensamento nacional, foi somente após a Primeira Guerra
Mundial, com o questionamento da superioridade européia e a valorização do que é brasileiro (Semana de 22,
por exemplo), que o pensamento racista brasileiro pôde ser questionado” (SANTOS, 2002, p. 149).
80
Mas, está em Freyre, também, a consolidação do mito da convivência pacífica
entre as três raças, simbolizando uma democracia racial, contestada por Munanga (1999: 80)
quando diz que Freyre “encobre os conflitos raciais, possibilitando a todos se reconhecerem
como brasileiros e afastando das comunidades subalternas a tomada de consciência de suas
características culturais que teriam contribuído para a construção e expressão de uma
identidade própria”.
Em seu trabalho As Faculdades de Direito ou os Eleitos da Nação, SCHWARCZ
(1993) resgata através da produção literária das academias de direito, em Pernambuco 10 e São
Paulo, o perfil dos intelectuais que ali foram formados. Neste espaço, seguindo as indicações
da pesquisadora, introduziremos Sílvio Romero como exemplo de atuação radical, “de erros e
acertos [...] ao tentar aplicar todo um ideário científico à complexa realidade nacional. [...]
Empregando toda uma terminologia até então desconhecida – retirada de autores como
Haeckel, Darwin e Spencer –, esse intelectual acreditava ver na mestiçagem – tão temida – a
saída para uma possível homogeneidade nacional” (Ibid., p. 153).
Com o retorno a Sílvio Romero, pretende-se, também, identificar em seu
pensamento, que influenciou a produção intelectual pernambucana naquele momento, a
gênese das idéias de Gilberto Freyre que “transforma a negatividade do mestiço em
positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há
muito vinha sendo desenhada” (ORTIZ, 1994, p. 41).
Não havendo, assim, ruptura entre Sílvio Romero e Gilberto Freyre, mas
“reinterpretação da mesma problemática proposta pelos intelectuais do final do século XIX”
(p.41). Em condições sociais diferentes “a ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada
10
A oportunidade que esses autores Schwarcz (1993) e Ortiz (1994) nos proporcionam com suas análises, indica
a possibilidade de retornarmos ao momento de fertilidade intelectual vivenciada na Faculdade de Direito de
Pernambuco, em ocorrência de sua transferência de Olinda para Recife em 1854, reconhecendo a participação de
uma instituição acadêmica nordestina nos destinos do Brasil, pois “se pode pensar em uma produção original e
na existência de um verdadeiro centro criador de idéias e aglutinador de intelectuais engajados com os problemas
de seu tempo e de seu país” (SCHWARCZ, 1993, p. 146).
81
nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se
tornar senso comum, ritualmente celebrada nas relações do cotidiano, ou nos grandes eventos
como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional” (Ibid., p. 41), permitindo
críticas dos estudiosos sobre a questão racial no Brasil, por exemplo, como nos diz ORTIZ
(1994, p. 36) “Florestan Fernandes, ao tratar da questão racial no Brasil, afirmava que o
brasileiro tem o preconceito de não ter preconceito”.
A pesquisadora Gislene Aparecida Santos reconhece que Gilberto Freyre “logrou
romper com a tradição anterior que se baseava nos princípios dawinistas, spencerianos e que
estabeleciam uma diferenciação intelectual entre brancos e negros” (SANTOS, 2002, p. 149)
buscando outros caminhos que afastassem as explicações sobre o caráter mestiço do Brasil
dos dogmas cientificistas do período.
Antes de Freyre,
[...] o mestiço seria o fruto natural de todas as degenerescências, inclinado
para os vícios e para toda forma de corrupção moral; os elementos africanos
encontrados na cultura nacional eram a justificativa para o atraso do Brasil
em relação às nações européias; o mestiço era o resultado de toda a
influência negativa da cultura africana sobre a brasileira e a purificação da
raça, afastando cada vez mais esses traços africanos, seria a única maneira
para a população marcada pela corrupção negra alcançar algum alívio e
evolução (SANTOS, 2002, p. 149).
Depois de Freyre,
O ponto de equilíbrio da sociedade brasileira passaria a ser o mestiço e o
caráter miscigenado de nossa população é posto em foco como meio de um
engrandecimento inigualável. O Brasil seria o solo propício para uma
sociedade mais democrática em termos raciais, visto ser fundada sobre a
mestiçagem (Ibid., p. 150).
Porém, pontos contraditórios e particulares em Casa-grande e senzala são
destacados por Santos (2002) como mecanismos conciliadores dentro de um processo onde,
ao tempo em que as contribuições dos negros africanos eram reconhecidas distantes da
82
perspectiva racista, o negro permanecia em um patamar inferior ao branco, ressaltando-se,
assim, uma cultura estranha, diferente, exótica e aceita por “essas mesmas características”
(Ibid., p. 150).
Em Freyre, o negro continua sendo objeto, complemento para o branco que
se sobrepõe a ele do alto dos casarões, das casas-grandes e que olha, a
distância, para as senzalas. Passa-se, então, a uma apologia da
mestiçagem, não na prática, mas na teoria, na qual ela é reconhecida
como elemento básico da composição do povo brasileiro (Ibid., p.
150).
Neste sentido, o mito da mestiçagem, além de reconhecer as contribuições da
cultura africana na formação do Brasil, alimentou no imaginário sócio-cultural brasileiro uma
farsa que levou, até os dias de hoje, à celebração de relações democráticas, onde negros e
brancos receberiam um tratamento igualitário. Mas, ao contrário “Sob a égide da democracia
racial, inúmeros preconceitos se escondem e se multiplicam” (Ibid., p. 151).
Outra questão contraditória na obra de Freyre, apontada por Gislene Santos
(2002), é a forma simpática como ele se refere ao colonizador português que, ao contrário de
outros colonizadores europeus, teria demonstrado traços bondosos no relacionamento com os
escravos africanos, possuidores, pois, de uma tendência natural à miscigenação, enquanto
povo de composição étnica mestiça. Nas palavras da autora:
O fato de serem formados culturalmente e etnicamente pela mistura de várias
raças do norte da África e da Península Ibérica lhes proporcionou a
envergadura necessária para avançar ao além-mar. A definição étnica do
português deixa claro que não houve, de forma radical, uma ruptura de
Freyre com as teorias racionalistas e racistas esboçadas por seus antecessores
(Ibid., p. 152).
Gislene Santos (2002) indo mais além em sua análise, ressalta que Freyre
promove uma parceria forçada entre o passado ético (europeu e africano, que os auxiliaria na
adaptação aos trópicos) dos colonizadores portugueses, com a contribuição dos negros
83
africanos (já aclimatados aos trópicos), para uma adaptação satisfatória ao clima brasileiro.
Assim, Freyre explica a colonização brasileira, transitando pelo cientificismo.
Ora é o termo raça que aparece, ora a adaptação climática é destacada, ora as
transformações (evoluções) de um povo pela mistura com um outro superior.
Todos os componentes de uma teoria racista vão se delineando nesse autor
que, visando à crítica, acaba por reproduzir de forma invertida o pensamento
daqueles os quais pretendia criticar (Ibid., p. 153).
Como se num afeto protecionista para com os negros (influenciados pela cultura e
sangue árabe) que foram trazidos para o Brasil, o sociólogo pernambucano, diferenciando-os
dos negros que imigraram para os Estados Unidos da América oriundos, geograficamente, de
regiões mais distantes da cultura islâmica, comete outro engano.
Ora, por que os negros fula-fulos seriam melhores que os negros que eram
levados para os EUA? Por sua pele clara, por sua cultura mulçulmana? Se o
Brasil foi abastecido com melhores contingentes de escravos que os EUA,
superiores àqueles, a miscigenação que se deu aqui (e pouco lá) não poderia
se justificar pela suposta igualdade entre as raças, mas pela qualidade
superior dos escravos que, aqui chegando, seduziram os portugueses como
as negras mina11 (Ibid., p. 157).
Assim, pensado, Freyre buscou nos negros menos pretos a explicação para a
superioridade do processo colonizador no Brasil, ao tempo em que aponta o
embranquecimento como um fim para o estado transitório do mestiço.
Em Casa-grande e senzala, os conflitos são dissimulados por uma harmoniosa
convivência entre o senhor branco e seus escravos, “o negro é o escravo doce, a mulata
zombeteira, a ama-de-leite maternal, a negra masoquista, o moleque brincalhão, o preto velho
que conta histórias, a curandeira que socorre, a mucama que serve sexualmente o seu senhor”
(SANTOS, 2002: 159). Lá, não existia revolta, nem crime, nem fuga e nem luta. Quilombo
11
“Foram essas Mina e as Fulas-africanas não só de pele mais clara, como mais próximas em cultura e
“domesticação”dos brancos – as mulheres preferidas, em zonas como minas Gerias, de colonização escoteira,
para “amigas”, “mancebas” e “caseiras”dos brancos (FREYRE, 1963, p. 351).
84
dos Palmares e tantos outros quilombos não têm suas histórias explicadas, pois “tudo é
harmonia, confraternização eterna entre os valores da senzala e os da casa-grande” (Ibid., p.
160).
Na realidade, quando Freyre desconsidera o contexto histórico das relações
assimétricas entre os escravos e seus senhores, onde surgiram os primeiros mestiços, ele
inventa uma identidade nacional brasileira que tem como base o mito da democracia racial,
trazendo sérias conseqüências para as comunidades subalternas que, reconhecendo-se como
brasileiras, afastaram-se de suas características culturais (MUNANGA, 1996).
Neste sentido, o historiador Clovis Moura,
analisando as respostas que os
brasileiros não-brancos deram, no censo de 1980, ao responderem sobre sua cor, encontrou
136 cores levantadas nessa análise, configurando a forma como o brasileiro encontra para
fugir de sua realidade étnica, aproximando-se mais possível do referencial superior, o branco
(Ibid., 1996). A importância das abordagens sobre a questão central desse texto – os mestiços
– nos leva a refletir sobre os homens e mulheres brasileiras reais que vivem experiências
concretas de discriminação racial, em pleno século XXI, nos ambientes coletivos, nos espaços
da mídia, nas instituições religiosas, culturais e educacionais, em fim, em um país de
formação étnica plural.
Por fim, o educador Moisés de Melo Santana, nos ajuda a concluir essas
reflexões:
[...] uma pluralidade de saberes, a fim de trabalharmos na perspectiva de
desconstruir o mito da democracia racial brasileira, para efetivamente
construir uma autêntica democracia das relações culturais. Partindo do
pressuposto de que os brasis não conhecem os brasis, essa metáfora nos
conduz a uma primeira interrogação – é necessário nos conhecermos? Se
preciso for, o que significa nos conhecermos? Quais os pressupostos para
que esse processo seja formativo, que possibilite aos sujeitos pedagógicos
olhares e vivências mais enriquecedoras? (SANTANA, 2003, p. 99).
85
CAPÍTULO II
DIVERSIDADE CULTURAL: UM CONCEITO EM REELABORAÇÃO E
SUAS IMPLICAÇÕES NOS PROCESSOS FORMATIVOS DE
PROFESSORES
Apesar do confronto de diferentes culturas configurar uma realidade ameaçadora
dos princípios morais e éticos, desde os séculos XVI e XVI, é no atual contexto mundial,
regional e local, resultante dos diversos processos migratórios que os homens e mulheres
experimentaram nos últimos 50 anos (IANNI, 2000), que emergem, ressurgem e se
reorganizam concepções, movimentos e ações em torno da convivência harmoniosa entre os
diferentes.
Surgem, portanto, vários grupos culturais baseados em diferentes recortes
étnicos, de classe, gênero, idades, orientações sexuais, profissionais, entre
outras possibilidades, no interior desse amplo e profundo processo de
transculturação. Isso gera a diversidade cultural não apenas entre as nações,
mas no interior de cada nação e mesmo no interior de um mesmo grupo
cultural (SOUZA, 2002, p. 63).
Em 1978, foi elaborado pela UNESCO um documento em que a Declaração sobre
raça e sobre preconceitos raciais apresentava as primeiras preocupações com a
interculturalidade nos processos educacionais numa tentativa de resolver um problema,
historicamente colocado e que é central na existência humana: a intolerância entre as
diferentes culturas. A preocupação é explicitada na Declaração, nos seguintes termos:
Todos os povos e todos os grupos humanos, qualquer que seja a sua
composição ou a sua origem étnica, contribuem conforme sua própria índole
para o progresso das civilizações e das culturas, que, na sua pluralidade e em
virtude de sua interpretação, constituem o patrimônio comum da
humanidade [...] o processo de descolonização e outras transformações
históricas conduziram a maioria dos povos precedentemente dominados a
recuperar sua soberania de modo a fazer com que a comunidade
internacional seja um conjunto universal e ao mesmo tempo diversificado
(UNESCO, 1978 apud FLEURI, 2000).
86
Em seu trabalho _ Diversidad Cultural e Identidades Coletivas em los Currículos
Nacionales de Brasil y Argentina em la Década del 90 _ a pesquisadora argentina Maria
Elena Martinez faz referência as reformas políticas e econômicas que os governos da América
Latina implementaram em seus países, na década de 80, tendo como marco conceitual a
modernização do Estado. As políticas que direcionaram as reformas dos sistemas
educacionais na década de 90, nesses países, tiveram no discurso da modernização estatal o
seu referencial básico O discurso anunciava a inclusão dos países periféricos na nova ordem
mundial _ a globalização econômica _ pondo em risco as múltiplas identidades dos povos
latinos americanos, fazendo eclodir movimentos organizados por setores da sociedade civil
que tinham como bandeira assegurar as identidades étnicas locais, regionais e os próprios
direitos humanos e ambientais (MARTINEZ, 2003).
Os movimentos sociais dos anos recentes contribuíram para dar visibilidade
às múltiplas formas pelas quais a história e as dinâmicas sociais são
construídas pelos diferentes grupos sociais e culturais. Com resultado,
descartou-se a noção de um sujeito único e privilegiado da história,
ganharam importância outros eixos de movimentos da dinâmica social (raça,
gênero, idade) e centralizou-se a discussão nas relações de poder entre as
diferentes culturas nacionais (SILVA, 1995 apud MARTINEZ, 2003, p. 1).
Um cenário onde a América Latina se encontrava em posição desfavorável
econômica, social e culturalmente em relação aos países ricos indicava o necessário debate
sobre as identidades dos povos latinos. No Fórum Mundial de Educação, em Dakar, Senegal,
no ano 2000, foi encaminhado um pronunciamento latino-americano, com numerosas
assinaturas de intelectuais e pesquisadores da área de educação, onde estava explicitada a
preocupação com o futuro dos nossos povos e suas culturas.
A América Latina é uma região importante no mundo em desenvolvimento,
com uma grande especificidade histórica, educacional e cultural. No campo
da educação, orgulhamo-nos de ter desenvolvido uma experiência e um
pensamento educacional próprios, inovadores e férteis [...] Dada a enorme
diversidade cultural que caracteriza os povos latino-americanos, qualidade
87
educacional implica reconhecer a necessidade de diversificar a oferta
educacional a fim de assegurar não só o respeito como o fortalecimento das
diferentes culturas. Cada grupo tem uma contribuição cultural a dar à
educação de todos. Governos e sociedades, todos devemos impedir que a
diversidade dos serviços de educação básica para os grupos minoritários
continue a ocultar uma oferta empobrecida, que se aproveite da capacidade
menor de reivindicação desses grupos para exigir níveis adequados do
serviço e de seus resultados (DAKAR, apud Rezende, 2000, p. 216).
No período entre o Documento da UNESCO datado de 1978 e o Pronunciamento
de Dakar/2000, foram emergindo, nas regiões ricas do Planeta, problemas relacionados à
presença maciça de imigrantes de vários países do Terceiro Mundo que disputam com os
nativos dessas nações o mercado de trabalho e a inserção na vida social. Assim, respeitandose as peculiaridades, tanto a Europa como os Estados Unidos passaram a vivenciar, nos
últimos cinqüenta anos, um processo de convivência entre diferentes minorias étnicas e
culturais que se configurou em uma problemática política e cultural penetrando,
conseqüentemente, nos sistemas de ensino do Primeiro Mundo.
Neste contexto histórico, a diversidade cultural vem sendo reconhecida, enquanto
conceito operacional, a partir de vários enfoques e, mesmo que não se possa chegar a um
conceito consensual é importante que se vislumbre como os pesquisadores contemporâneos
indicam caminhos para a convivência democrática e solidária entre os diferentes, nos espaços
formativos
ou
não,
através
dos
termos
multiculturalismo/interculturalismo/estudos
culturais/cultura popular e como esses conceitos estão implicados na elaboração dos
programas de formação de professores para o trabalho com a diversidade cultural de seus
alunos.
2.1. Multiculturalismo
As novas configurações mundiais devolveram para o centro dos debates,
principalmente no campo das Ciências Sociais, temas resultantes de tensões entre as
realidades sociais conflituosas,
88
identificadas pelas situações múltiplas de identidades em presença, com seus
riscos de fragmentação, nacionalismos e fundamentalismos tornando-se
objeto do debate sobre as probabilidades de uma multiculturalidade pela
constituição de relações interculturais colocam vários problemas para os
processos educativos (escolares ou não), mas também revelam suas
potencialidades [...] (SOUZA, 2002, p. 88-89).
A emergência recente dos debates sobre a diversidade cultural, no interior das
sociedades denominadas pós-modernas, vem apostando que a situação em que os homens e as
mulheres se encontram na diversidade cultural, venha a ser transformada “numa situação de
multiculturalidade pela vivência da interculturalidade” (SOUZA, 2002, p. 33). Ainda nas
palavras de Souza (2002), referindo-se às possibilidades de experiências interculturais no
interior da escola:
Especificamente, penso que a educação pode contribuir por meio de
processos e de experiências de ressocialização de trabalhadores e
trabalhadoras, adolescentes, jovens, adultos e crianças – das cidades e dos
campos, do Brasil, da América Latina e do mundo – com a construção da
humanidade do ser humano (Ibid., p. 33).
Nas discussões sobre diversidade cultural e sobre as novas responsabilidades da
escola com o tratamento das questões de convivência com os diferentes, percebe-se que o
multiculturalismo está longe de compor um corpo teórico consensual. Para o pesquisador
português Boaventura de Souza Santos,
Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas de sentido
emancipatório. O termo apresenta as mesmas dificuldades e os mesmos
potenciais do conceito de “cultura”, um conceito central das humanidades e
das ciências sociais e que, nas últimas décadas, tornou-se um terreno
explícito de lutas políticas (SANTOS, 2003, p. 25).
Caracterizado como um conceito polêmico, mas, que pretende ser central, similar
ao conceito de cultura nas ciências sociais, “o conceito de multiculturalismo é, também,
89
controverso e atravessado por tensões. Ele aponta simultaneamente ou alternativamente para
uma descrição e para um projeto” (SANTOS, 2003, p. 28).
Como descrição, o multiculturalismo situa-se em três momentos básicos: “a
existência de uma multiplicidade de culturas no mundo; a co-existência de culturas diversas
no espaço de um mesmo Estado-nação e a existência de culturas que se interinfluenciam tanto
dentro como além do Estado-nação” (Ibid., p. 28).
O consenso sobre a intensidade e os modos como o multiculturalismo descreve as
diferenças culturais e suas inter-relações dentro dos projetos políticos que procuram celebrar e
reconhecer essas diferenças, é quase impossível. O que se tem observado é uma acirrada
polêmica oriunda, tanto das críticas conservadoras como das críticas progressistas e de
esquerda (Ibid.).
Por sua vez, as críticas conservadoras, que têm como nicho os Estados Unidos da
América, procuram justificar as transformações de caráter étnico que a sociedade norteamericana vivencia com a presença de imigrantes latinos; o descaso das políticas sociais para
com os grupos marginalizados; as transformações das práticas pedagógicas imprimidas pelos
estudos culturais; as tentativas emancipatórias feministas e de outras minorias e os próprios
movimentos que buscam o resgate de identidades que sucumbem ao processo homogenizador
(SANTOS, 2003).
Neste sentido, Boaventura de Souza Santos cita as críticas conservadoras,
sintetizadas por Stam::
O multiculturalismo seria antieuropeu, procurando substituir os valores e
realizações da civilização ocidental por uma promoção sem critério de
realizações “inferiores”.
O multiculturalismo promoveria a desunião e a divisão, fragmentando a
sociedade e ameaçando a coesão e unidade de objetivos da nação.
O multiculturalismo seria uma “terapia para minorias”, destinada a promover
a auto-estima destas em face de sua manifesta incapacidade de desempenho
adequado no sistema educativo e na sociedade.
90
O multiculturalismo seria um “novo puritanismo”, apoiado em um
policiamento da linguagem e na imposição totalitária de uma linguagem
“politicamente correta” (STAM ,1997 apud SANTOS, 2003, p. 29).
Nas críticas progressistas, algumas considerações são feitas na intenção de
responder a esta caracterização.
[...] acentuam o caráter antieurocêntrico (e não antieuropeu) dos projetos
multiculturais, assegurando o reconhecimento e visibilidade das culturas
marginalizadas ou excluídas da modernidade Ocidental; o reconhecimento
das diferenças culturais e de experiências históricas, do diálogo intercultural
com o objetivo de forjar alianças e coligações políticas para a promoção das
culturas e grupos subalternos; a promoção de um “contraponto de
perspectivas” históricas e culturais, de modo a produzir uma história
relacional que inclua os subalternos; a denúncia de que as manifestações de
“correção política” ocorrem em todos os setores e quadrantes da sociedade e
do espectro político mas são atacadas apenas quando associadas à defesa da
igualdade ou do reconhecimento das diferenças” (Ibid., p. 29).
Na realidade, a diversidade de projetos culturais e políticos que se propõem e se
colocam na perspectiva do multiculturalismo mesmo nas concepções progressistas, produzem
uma diversidade de propostas em territórios conflituosos. Entre os críticos do
multiculturalismo o consenso é quase impossível, porém, nem os conservadores nem os
progressistas impediram que o termo sofresse um processo de ampliação e expansão pelo
Norte e pelo Sul do Planeta Terra, mesmo mantendo-se internamente repleto de tensões e
contradições indicadas pelas críticas.
De fato, a expressão pode continuar a ser associada a conteúdos e projetos
emancipatórios e contra-hegemônicos ou a modos de regulação das
diferenças no quadro do exercício da hegemonia nos Estados-nação ou em
escala global. Ë importante, por isso, especificar as condições em que o
multiculturalismo como projeto pode assumir um conteúdo e uma direção
emancipatórios (Ibid., p. 33).
Nesse sentido, Souza (2002, p.135) diz que “Paulo Freire dimensiona a seriedade
e as preocupações necessárias ao tratamento dessa problemática ao se assumir como pós-
91
moderno crítico” chamando a atenção sobre uma possível ingenuidade desse termo,
demasiadamente explorado, quando se afasta de sua essência emancipatória.
A multiculturalidade não se constitui na justa posição de culturas, muito
menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade
conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito
uma da outra, correndo o risco livremente de ser diferente, sem medo de ser
diferente, de ser cada uma “para si”, somente como se faz possível
crescerem juntas e não na experiência da tensão permanente, provocada pelo
todo-poderosismo de uma sobre as demais, proibidas de ser (FREIRE, 1992,
p. 156).
E, diz ainda:
A tensão necessária permanente entre culturas na multiculturidade é de
natureza diferente. É a tensão a que se expõem por ser diferentes, nas
relações democráticas em que se promovem. É a tensão de que não podem
fugir por se acharem construindo, criando, produzindo a cada passo a própria
multiculturalidade que jamais estará pronta e acabada. A tensão, neste caso,
portanto, é a do inacabamento que se assume como razão de ser da própria
procura e de conflitos antagônicos e não a criada pelo medo, pela
prepotência, pelo “cansaço existencial”, pela “anestesia histórica” ou pela
vingança que explode, pela desesperação ante a injustiça que parece
perpetuar-se (Ibid., p. 156).
As afirmativas acima foram elaboradas por Paulo Freire, a partir de suas reflexões
sobre o posicionamento de grupos marginalizados nas sociedades, por onde ele transitou
durante o exílio e, para os quais, era convocado para falar sobre sua educação libertadora. Em
seu livro a Pedagogia da esperança (1992) relata, entre outras, sua experiência em um
seminário nos Estados Unidos das Américas, no ano de 1973, quando observou que os grupos
marginalizados (negros, índios, chicanos e outros) colocavam-se em territórios ilhados, ao
passo em que buscavam caminhos para sua emancipação. Na realidade, esses grupos estavam
a dizer: “Somos índios e queremos estar sós”. “Somos chicanos e queremos um lugar só para
nós” Com ironia, um jovem negro, voltando-se para um grupo de brancos, disse: “Esse é o
grupo dos outros” (Ibid., p. 152).
92
Rompendo com uma possível interpretação dos grupos sobre sua concordância
com as fricções entre os grupos marginalizados, Freire lhes falou:
As chamadas minorias, por exemplo, precisam reconhecer que, no fundo,
elas são maioria. O caminho para assumir-se como maioria está em trabalhar
as semelhanças entre si e não só as diferenças e, assim, criar a unidade na
diversidade, fora da qual não vejo como aperfeiçoar-se e até como construirse uma democracia substantiva, radical. [...] na caminhada em busca da
unidade na diversidade, uma longa e difícil mas indispensável caminhada, as
“minorias”, no fundo, repita-se, maioria, em contradição com a única
minoria, a dominante, teriam muito que aprender (FREIRE, 1992, p. 154155).
Coloca, assim, esperançoso na categoria – unidade na diversidade – a
possibilidade para o “começo da criação da multiculturalidade” (Ibid., p. 157), pois esta
É uma criação histórica que implica decisão, vontade política, mobilização,
organização de cada grupo cultural com vistas a fins comuns. Que demanda,
portanto, uma certa prática educativa coerente com esses objetivos. Que
demanda uma nova ética fundada no respeito às diferenças. [...] É preciso
assumirmos a radicalidade democrática para a qual não basta reconhecer-se,
alegremente, que nesta ou naquela sociedade, o homem e a mulher são de tal
modo livres que têm o direito até de morrer de forme ou não ter escola para
seus filhos e filhas ou de não ter casa para morar (Ibid., p. 157).
Entende-se que as contribuições de Freire para o movimento multiculturalista
emancipatório estariam na ampliação dos elementos considerados constitutivos das discussões
sobre as diferenças culturais: raça, sexo, religião e outras diferenças, incluindo-se as questões
de classe social. Em suas palavras: “[...] a compreensão crítica das chamadas minorias de sua
cultura não se esgota nas questões de raça e de sexo, mas demanda também a compreensão
nela do corte de classe” (FREIRE, 2003, p. 156). Neste sentido, o educador pernambucano
ressalta, com sua particular lucidez, as experiências migratórias dos diversos povos que, ao
longo dos séculos, chegaram, ou foram trazidos de seus ninhos culturais para ingressarem em
outra sociedade em uma posição de dominados.
93
É preciso também deixar claro que a sociedade a cujo espaço, por motivos
econômicos, sociais, históricos, chegaram outros grupos étnicos e aí se
inseriram em relação subordinada, tem sua classe dominante, sua cultura de
classe, sua linguagem, sua sintaxe, sua semântica de classe, seus gostos, seus
sonhos, seus fins, seus projetos, valores, programas históricos. [...] que a
classe dominante não apenas defende como seus e, sendo seus, diz serem
nacionais, como exemplares, mas também por isso mesmo, “oferece” aos
demais através de n caminhos, entre eles, a escola e não aceita recusa. É por
isso que não há verdadeiro bilingüismo, muito menos multilingüismo, fora
da multiculturalidade e não há esta como fenômeno espontâneo, mas criado,
produzido politicamente, trabalhado, a duras penas, na história (FREIRE,
1992, p. 156-157).
Paulo Freire retoma, na Pedagogia da esperança, o caráter radical e crítico da
prática pedagógica no interior da diversidade cultural e insiste em distinguir a denominada
pós-modernidade em progressista e neoliberal. Reafirmando seu compromisso com os
excluídos, rejeita claramente a concepção neoliberal que, como se sabe, nas sociedades
dominadas por esta ideologia coloca as responsabilidades dos fracassos e insucessos dos
homens e mulheres na dimensão individual, protegendo o Estado de suas responsabilidades
sociais.
Se os garotos negros não aprendem bem o inglês a culpa é deles, de sua
incompetência “genética” e não da discriminação a que são submetidos, de
raça e de classe, e não do elitismo autoritário com que se pretende impor o
“padrão culto”, elitismo, no fundo, irmão gêmeo do desrespeito total ao
saber e ao falar populares. É o mesmo que ocorre no Brasil. Os meninos e as
meninas dos morros e dos córregos não aprendem porque são, de nascença,
incompetentes (Ibid., p. 158).
As implicações da questão do multiculturalismo para os processos educativos
indicam a necessidade de um processo consciente dos educadores que, respeitando-se o fato
social (ainda vivemos no interior da pluriculturalidade), busquem “a utopia da
interculturalidade e a sempre inconclusa construção de situações de multiculturalidade”
(SOUZA, 2002, p. 143).
É bem verdade que os debates sobre a diversidade cultural, multiculturalismo,
pluriculturalismo e interculturalismo avançaram teoricamente. Não existe consenso teórico
94
sobre esses termos. O que ocorre socialmente (relações conflituosas, tensões geradas nos
contextos socialmente injustos) é o que motiva as investigações sobre as possibilidades de
convivência entre os diferentes, principalmente nos espaços formativos (formais e informais).
É nesta direção que iremos abordar as diferenças, salientadas por estudiosos da área, entre o
multiculturalismo e o interculturalismo no campo da Educação.
A distinção entre multiculturalismo e interculturalismo também é operada por
alguns estudiosos, de maneira peculiar, no interior dos processos educacionais. Até, porque o
multiculturalismo
é apenas uma das possibilidades, e não a única, que as políticas culturais do
mundo contemporâneo podem vir a ter, pois é obrigada a coexistir (e a
confrontar-se) com outros projetos que, como ela, colocam a diversidade
cultural no centro de suas preocupações (GONÇALVES, 2002, p. 14).
O multiculturalismo e o interculturalismo se diferenciam quando as diferenças
culturais são tratadas, particularmente, nos processos educativos. Multi e pluriculturalismo
são utilizados para denominar situações nas quais os grupos culturais diferentes coexistem um
ao lado do outro sem necessariamente interagir entre si. Porém, quando utilizamos o termo
intercultural estamos indicando uma situação em que os homens e as mulheres de culturas
diferentes interagem.
Nas palavras do educador catarinense, Reinaldo Matias Fleuri, “a ênfase na
relação intencional entre os sujeitos de diferentes culturas constitui o traço característico da
relação intercultural. O que pressupõe opções e ações deliberadas particularmente no campo
da educação” (FLEURI, 2000, p. 10). Assim, estabelecem-se três pontos distintos entre a
educação multicultural e a educação intercultural.
O primeiro deles diz respeito à “intencionalidade” que impulsiona as relações
entre os diferentes grupos culturais. Para o educador que tem a perspectiva multiculturalista
como referência, a diversidade cultural é um fato do qual se toma consciência e procura
95
adaptar-lhe uma proposta educativa. Mas, para o educador que parte da perspectiva
intercultural constrói, intencionalmente, um projeto educativo em que as relações entre
pessoas e grupos diferentes sejam promovidas.
O segundo ponto de distinção refere-se aos diferentes modos de entender a relação
entre culturas na prática educativa, “na perspectiva multicultural, entende-se, de modo geral,
as culturas diferentes como objetos de estudo, como matéria a ser aprendida. Ao contrário, na
perspectiva intercultural os educadores e educandos não reduzem a outra cultura a um objeto
de estudo a mais, mas a consideram como um modo próprio de um grupo social ver e interagir
com a realidade” (FLEURI, 2000, p. 11).
O terceiro ponto de distinção entre uma educação multicultural e uma educação
intercultural relaciona-se com a ênfase nos sujeitos da relação.
Neste sentido, a educação intercultural desenvolve-se como relação entre
pessoas de culturas diferentes. Não simplesmente entre “culturas”
entendidas de modo abstrato [...] As pessoas são formadas em contextos
culturais determinados. Mas são as pessoas que fazem cultura. Neste
sentido, a estratégia intercultural consiste antes de tudo em promover a
relação entre as pessoas, enquanto membros de sociedades históricas,
caracterizadas culturalmente de modo muito variado (Ibid.).
Citando Antonio Nanni, Fleuri (2000) reconhece que, para atingirmos os objetivos
pleiteados pela educação intercultural, é fundamental que ocorram mudanças no sistema
escolar, principalmente em relação (1) ao estabelecimento do princípio da igualdade de
oportunidades, superando-se o caráter monocultural dos currículos; (2) à reelaboração dos
livros didáticos, à adoção de técnicas e de instrumentos multimediais; (3) à formação e a
requalificação do corpo docente.
Em relação aos processos formativos dos educadores, está implícito, antes de
tudo, a superação “da perspectiva monocultural e etnocêntrica que configura os modos
96
tradicionais e consolidados de educar, a mentalidade pessoal, os modos de se relacionar com
os outros, de atuar nas situações concretas” (FLEURI, 2000, p. 12).
Considerando-se as diferenças, tanto a educação multicultural quanto a educação
intercultural apontam para a ressignificação do perfil do educador que, no contexto educativo,
transcendendo a natureza transmissiva de informações, terá a responsabilidade
de propor estímulos que ativem as diferenças entre os sujeitos e entre seus
contextos (histórias, culturas, organizações sociais...). A confrontação de
diferenças desencadeia a elaboração e a circulação de informações.
Informações que se articulam em diferentes níveis de organização (seja no
âmbito subjetivo, intersubjetivo, coletivo, seja em níveis lógicos diferentes).
O educador, neste sentido, é propriamente um sujeito que se insere no
processo educativo de um grupo e interage com os outros sujeitos (Ibid.).
Os desafios colocados para os educadores a partir de uma intervenção/interação
didática são de proporções inesperadas em que está em jogo a sua própria subjetividade, pois
sujeito e investigador devido a própria dinâmica dos símbolos emergentes.
A especificidade de sua intervenção educativa consiste em dedicar particular
atenção às relações e aos contextos que vão se criando, de modo a contribuir
para a explicitação e elaboração dos sentidos (percepção, significado e
direção) que os sujeitos em relação constroem e reconstroem. A função do
currículo e da programação didática será a de prever e preparar recursos
capazes de ativar a elaboração e circulação de informações entre os sujeitos,
a partir de seus respectivos contextos sócio-culturais, de modo que se auto
organizem em relação de reciprocidade entre si e com o próprio ambiente
(Ibid.)
Nesse polêmico e controverso campo, é inevitável não reconhecer que a formação
de educadores para o trabalho com a diversidade cultural / multiculturalismo /
pluriculturalismo / interculturalismo, também, vem configurando-se como um assunto
polêmico e controverso. Ressalta-se a sobreposição dos debates sobre as vertentes
conservadoras e progressistas no interior dos processos de formação dos docentes de forma
97
simultânea e contemporaneizadas com as discursões sobre os termos que procuram
reconceitualizar a diversidade cultural nas sociedades modernas.
[...] ao mesmo tempo em que este princípio comum subjaz à chamada
vertente multicultural em formação de professores, a gama de sentidos e
interpretações
atribuídos
a
termos
como
cultura,
educação
multicultural,perspectiva intercultural e outros, tem se refletido em posturas
ambíguas e não raro contraditórias pelas quais tal formação docente é
concebida (CANEN, 1997, p. 206).
Sobre esta questão, Ana Canen (1997) nos diz que:
Termos como multiculturalismo, perspectiva intercultural e cultura são
utilizadas com diferentes significados, por vezes embasando propostas
conflitantes e contraditórias na área. A necessidade de analisar as diferentes
abordagens pelas quais a formação de professores na linha multicultural tem
sido discutida parece adquirir especial relevância, não só para se distinguir
os caminhos teóricos e implicações metodológicas envolvidos, como
também para tentar refletir sobre os potenciais e limitações destas diferentes
abordagens na tentativa de superação da exclusão cultural realizada pela
escola (CANEN, 1997, p. 214).
Fazendo referência ao processo de análise realizado por Grant, C. sobre os programas
de formação de instituições que afirmavam estarem preparando professores para a educação
multicultural, Ana Canen (1997), inicialmente, apresenta três blocos distintos dessas
abordagens.
O primeiro considerava, como atividades formativas dos docentes, o manuseio e a
análise de livros didáticos com a tarefa de identificar particularidades, ou mesmo, conhecer
determinado grupo étnico; o segundo deles entendia que as ofertas de estágios da disciplina
Prática Escolar em escolas multiéticas estariam promovendo atividades formativas no enfoque
multicultural; e o terceiro bloco promovia atividades em que os professores tinham acesso a
listas de comportamentos considerados
peculiares de certos grupos étnicos e, também,
chegava a considerar, como fator formativo para a multiculturalidade,
professores representantes de grupos éticos no corpo docente das instituições.
a presença de
98
As abordagens desses programas, em relação à sensibilidade para a diversidade
cultural, foram sistematizadas a partir de classificações e tipologias. Canen (1997) cita a
sistematização de Lynch , que identificou, basicamente, as abordagens: cativeiro etnocêntrico,
onde as práticas pedagógicas curriculares tinham como referência a noção de uma sociedade
monocultural; multiculturalismo “ad hoc”, onde as atividades relacionadas à diversidade
cultural estavam relacionadas a algumas palestras e encontros na área; multiculturalismo
curricular, amplamente preocupado com um currículo multicultural, porém sem impactos
significativos na instituição como um todo; multiculturalismo político, prezava pelas
formulações de políticas multiculturais em
nível institucional; multiculturalismo
institucional, apresentando uma proposta que envolvia
multiculturalismo curricular e o
político e, também, a presença no corpo docente e discente de representantes das minorias
étnicas; e, por fim, o multiculturalismo total que, a partir de um compromisso institucional
com a formação dos docentes para o trabalho com a diversidade cultural, comprometia-se
com os planos, as políticas, as práticas pedagógicas e com a presença de representantes das
minorias étnicas em seu quadro docente e discente.
A pesquisadora Canen (1997) apresenta, sinteticamente, outras análises realizadas
por Grant de 44 programas de educação multicultural em formação de professores, em
licenciaturas, procurando identificar o sentido de multiculturalismo presente nas propostas
pedagógico-curriculares. Assim, foram identificadas por Canen (1993) cinco perspectivas
básicas de ensino.
(1) Ensino em uma perspectiva de apresentação da diversidade cultural como
“excepcional e diferente” – objetivando a adaptação dos “culturalmente diferentes” aos
padrões da cultura dominante. Em tais programas, os professores eram motivados a conduzir
uma prática pedagógica que promovesse a integração das minorias éticas às normas da cultura
eurocêntrica de forma a-crítica.
99
(2) Ensino baseado em uma perspectiva de “ênfase” nas “relações humanas” entre
as culturas dominantes e os padrões culturais diferentes desta – tendo como objetivo o
fortalecimento da auto-estima dos alunos, tais programas estimulavam a criação de laços
positivos entre membros de grupos étnicos e culturalmente diferentes, porém não favoreciam
aos professores o exercício da crítica aos conflitos reais entre esses grupos, omitindo
questionamentos sobre a dominação de classe, raça, gênero e diversidade cultural.
(3) Ensino com ênfase em um grupo étnico específico – objetivando a promoção
da igualdade social para determinado grupo étnico que teve, historicamente, sua cultura
silenciada, geralmente as práticas pedagógicas eram realizadas nas próprias comunidades
onde esses grupos estavam inseridos. Assim, a compreensão de que, “ao conhecer em
profundidade determinados grupos étnicos-culturais, normalmente discriminados pelo sistema
vigente, os licenciandos poderiam transferir o conhecimento e as habilidades adquiridas a
todas as outras situações de ensino para a diversidade cultural” (CANEN, 1997, p. 219).
(4) Ensino à base de educação multicultural – com um currículo organizado a
partir das diversas contribuições e perspectivas dos diferentes grupos culturais, esses
programas conseguiam abordar criticamente questões relacionadas a discriminação e a
opressão à base de raça, classe, gênero e diversidade cultural. “Os licenciandos eram
incentivados a questionar formas pelas quais a discriminação e a opressão à base dos
determinantes mencionados acima estariam sendo transmitidas em suas práticas pedagógicas,
alertando para as diferentes formas de socialização que a escola realiza segundo o gênero,
raça, classe social e cultura do aluno” (CANEN, 1997, p. 219).
(5) Ensino à base de uma perspectiva multicultural e “reconstrutivista social” – os
professores eram motivados a integrarem os questionamentos sobre as formas de
discriminação e preconceitos de classe, gênero, raça e cultura, às práticas pedagógicas,
consideradas como situações conscientizadoras. “O objetivo era preparar professores que
100
trabalhassem no sentido de promover a auto-estima de alunos e o reconhecimento da injustiça
que discrimina alguns à base de raça, gênero, classe ou diversificação cultural, de forma a
promover uma futura sociedade culturalmente pluralista e justa” (Ibid., p. 220).
Assim, entende-se que
A fragmentação de sentidos atribuídos à educação multicultural deve-se, em grande parte, à apropriação e incorporação do discurso
crítico do multiculturalismo por outros paradigmas de análise, em que uma visão mais conservadora e menos questionadora dos
conceitos de cultura e diversidade cultural existem (Ibid.: 220).
Assim, ainda em Canen (1997), vamos encontrar uma análise com base nas
abordagens: estrutural-funcionalismo, teorias do conflito, fenomenologia e teoria crítica,
sobre as principais correntes que informam os diversos sentidos atribuídos à formação dos
professores para uma educação no enfoque multicultural, interpretando, principalmente, os
conceitos tais como educação multicultural, educação anti-racista e perspectiva intercultural.
Na perspectiva estrutural-funcionalista, acreditando-se que a sociedade é
monocultural, os conflitos são omitidos das relações entre os diferentes. Assim, essa
perspectiva investe na neutralidade da prática docente, visto que a função do professor é de
transmitir conhecimentos aos alunos que, detentores de habilidades naturais, são
encaminhados para assumirem funções sociais determinadas a priori pela posição de classe
ou de raça a qual pertencem. Alunos considerados culturalmente diferentes são uma exceção,
portanto não merecem atenção especial nas práticas pedagógicas e, caso sejam identificados,
deverão integrar-se à cultura oficial. “O conteúdo curricular e pedagógico será tratado como
único, inquestionável, e a perspectiva com relação à diversidade cultural é a Assimilação
Cultural” (CANEN, 1997, p. 221).
Em relação à perspectiva acima apresentada, a autora ainda faz importantes
considerações, pois, a partir de sua análise sobre os programas de formação de professores em
uma instituição de nível superior no Reino Unido, foi possível identificar, nas formulações
desses programas,
101
sentenças que atestam o reconhecimento do caráter multicultural de uma
sociedade e o compromisso do programa em preparar professores para
atuarem nela. No entanto, tais afirmações não são traduzidas em estratégias
para a sua efetivação no dia-a-dia do curso, configurando uma visão
“tecnicista” da diversidade cultural (Ibid.).
Por sua vez, as teorias do conflito (ou teorias marxistas ou teorias reprodutivistas)
denunciam a escola como um artefato de reprodução das relações de poder da sociedade e,
assim sendo, reprodutora das discriminações dos alunos das classes economicamente
desfavorecidas. O foco da formação dos professores para o trabalho com a diversidade
cultural estaria na análise crítica da Reprodução Cultural, pois a escola vinculada aos
símbolos culturais da classe social dominante, inevitavelmente, excluiria os alunos com
padrões culturais diferentes do oficial. As teorias apresentavam limitações relacionadas à
potencialidade mediadora da instituição escolar, porém denunciava a não neutralidade das
práticas pedagógicas e o caráter elitista e reprodutor da escola (CANEN, 1997).
A abordagem fenomenológica, incluindo-se o construtivismo e as teorias
interpretativas, trata as relações intra-escolares na perspectiva da subjetividade dos sujeitos
envolvidos. Assim, é tributária de categorias de base psicológica como “self”, a “construção
de significados”, a “interação”, a “motivação” e a “vontade” (CANEN, 1997); as experiências
são compreendidas a partir do ponto de vista dos sujeitos envolvidos. O enfoque
fenomenológico indica que os programas de formação docente devem possibilitar que os
professores reflitam sobre sua prática e os efeitos por ela produzidos, no contexto das relações
humanas geradas no espaço escolar. Entende-se que, assim, opera-se o desenvolvimento da
capacidade de auto-reflexão e auto-aceitação de cada aluno. A Aceitação Cultural é a postura
que essa perspectiva aponta para lidar com a diversidade cultural dos sujeitos envolvidos nos
grupos interativos, como nos diz Canen (1997, p. 224), “o incentivo a práticas pedagógicas
que estimulem a incorporação da diversidade cultural em conteúdos veiculados, buscando
também promover a compreensão e aceitação do ‘outro’ nas relações interpessoais”.
102
Porém, Canen comenta que
o paradigma fenomenológico é criticado por autores, tais como Silva (1992) e Quantz (1992), pela falta de articulação do nível microsocial da prática pedagógica a uma análise da estrutura sócio-cultural mais ampla onde a prática efetua-se. Os referidos autores salientam
a necessidade de incorporar-se a sensibilidade fenomenológica à análise de fundo político mais explícitos, o que já ocorre na abordagem
da TEORIA CRÍTICA incluindo-se os paradigmas FEMINISTA, INTERCULTURAL, PÓS-(ESTRUTURALISTA) (1997, p. 224).
A teoria crítica é tributária dos pressupostos da fenomenologia, porém, partindo
de uma postura crítica, busca as raízes da problemática das relações entre os desiguais dentro
dos diversos grupos culturais e questiona as formas utilizadas pelos sistemas educacionais
quando excluem os elementos simbólicos de determinada cultura das suas práticas
pedagógicas. Prezam pela Conscientização Cultural na formação dos professores para o
trabalho com a diversidade cultural. O educador multiculturalista crítico, Peter Mclaren,
referindo-se à teoria crítica defendida por Henry Giroux, diz que ela
oferece aos educadores uma linguagem crítica para ajudá-los a compreender o ensino como uma forma de política cultural, isto é, como
um empreendimento pedagógico que considera com seriedade as relações de raça, classe, gênero e poder na produção e legitimação do
significado e experiência (McLAREN, 1997, p. 13).
As perspectivas fenomenológica e crítica desenham os currículos da maior parte
dos programas de professores para o trabalho com a diversidade cultural (CANEN, 1997).
Porém, essas perspectivas apresentam distinções significativas em suas bases teóricas. Assim,
a perspectiva fenomenológica, tendo na Aceitação Cultural sua categoria de trabalho com a
diversidade cultural
irá promover cursos de formação de professores que incentivem as
experiências de conhecimento e aceitação da pluralidade cultural, buscando
estimular futuros professores a apresentarem as contribuições das diversas
culturas na formação do conhecimento e a promoverem um clima de
aceitação e respeito às diversas raças e culturas, particularmente no contexto
específico onde trabalham (Ibid., p. 225).
Por sua vez, a teoria crítica, que utiliza a abordagem da Conscientização Cultural,
acompanha-se do enfoque da educação voltada para determinado grupo étnico, educação
103
multicultural e educação multicultural e reconstrutivista, comungando de uma postura crítica
sobre os elementos determinantes estruturais da exclusão social (Ibid.).
Na realidade, o que distingue a abordagem fenomenológica da teoria crítica é o
próprio conceito de cultura imbuído em suas categorias. Na primeira, a cultura representa a
subjetividade resultante das experiências vividas por cada grupo; na segunda, cultura emerge
dos determinantes: raça, classe, gênero e diversidades de padrões culturais que formam e
informam a base daquelas experiências vividas pelo grupo.
Ao articular cultura e poder, a teoria crítica favorece para o desmonte dos
padrões culturais considerados superiores, pois a superioridade estaria atrelada aos símbolos
da classe dominante. Sendo assim, a formação de professores dar-se-á através do respeito e
aceitação dos processos culturais dos diversos grupos, mas, principalmente pelo desvelamento
das forças dominantes que estão na base do binômio “superioridade”e “inferioridade”cultural.
Em outras palavras:
a CONSCIENTIZAÇÃO CULTURAL que imbui a perspectiva da teoria
crítica em formação docente buscará não só promover uma aceitação da
diversidade cultural, como principalmente desvelar a articulação culturapoder que está à base dos estereótipos que inferiorizam as culturas não
dominantes (CANEN, 1997, p. 227).
À luz das análises realizadas por Ana Canen (1997), percebe-se que as abordagens
fenomenológica e teórico-crítica, quando tratadas no interior dos programas de formação de
professores para a diversidade cultural, são as que mais compartilham com a aceitação e
celebração das diversas culturas presentes nas sociedades modernas.
Contudo, a postura fenomenológica, quando concebe a educação multicultural
desarticulada dos comportamentos anti-racistas e antidiscriminatórios, omie-se de debater as
questões centrais sobre a puralidade cultural. Por outro lado, ressaltam-se as vantagens que a
postura teórico-crítica apresenta para o desenvolvimento de competências dos professores,
104
pois debate “os estereótipos envolvidos na valorização diferencial de padrões culturais” (Ibid.,
p. 228) e, conseqüentemente, a valorização do potencial que os alunos têm enquanto sujeitos
culturais.
Como proposta mediadora, coloca-se o termo intercultural que, tributário da teoria
crítica, engloba em seus pressupostos a contraposição às posturas anti-racistas e
preconceituosas relacionadas com a diversidade cultural. Estaria aqui a possibilidade dos
programas de formação de professores desenvolverem competências “para lidarem com a
pluralidade cultural dos alunos, de modo a representarem agentes de transformação da
desigualdade educacional que atinge aqueles cujos padrões culturais diferem dos
preconizados pelo sistema de ensino” (Ibid., p. 228).
Imbuídas do objetivo de conscientizar culturalmente os professores, as propostas
de formação, pensadas na perspectiva intercultural crítica, apontam algumas estratégias que
partem de dois referenciais básicos “o desafio a preconceitos e estereótipos com relação à
diversidade cultural e a problematização de conteúdos específicos e pedagógicos ministrados”
(CANEN, 1997, p. 229). O primeiro ponto ressalta-se nessa proposta como núcleo básico,
pelo seu caráter generalizador e extremamente marginalizador que os preconceitos de raça,
sexo e religião, quando acionados nos espaços formativos, promovem nas relações entre
educadores e educandos.
Autores trabalhando na área partem de resultados de pesquisa que
demonstram, de forma contundente, o peso das expectativas e estereótipos
de professores sobre o rendimento e a eventual exclusão (leia-se expulsão)
do sistema de ensino de alunos de backgrounds culturais diferentes da
cultura oficial dominante (Ibid.).
Como sugestão, para o primeiro núcleo de preocupação (os preconceitos) Canen
(1997) cita uma estratégia defendida por Adler (1991) e que pode ser desenvolvida em quatro
momentos consecutivos.
105
Em um primeiro estágio, uma situação “perplexa e confusa” envolvendo
discriminação à base étnico-cultural dentro de escolas é apresentada aos
licenciando.
Os três momentos seguintes irão, respectivamente:
estimular o questionamento das posições dos licenciandos com relação
à situação apresentada;
desafiar suas “teorias operacionais” quando imbuídas de preconceitos
ou estereótipos;
inserir a análise situacional empreendida até então em um contexto
social mais amplo (nesta fase, pesquisas na área podem ser apresentadas) e o
estímulo à visualização de ações alternativas que minimizem os preconceitos
apontados na situação estudada (Ibid.).
Em relação ao segundo núcleo problematizado (conteúdos específicos e
pedagógicos), a perspectiva intercultural crítica procura disponibilizar para os educandos os
conteúdos do saber oficial. Por outro lado, busca “formas alternativas pelas quais este saber
possa ser incorporado aos padrões culturais dos alunos” (CANEN, 1997, p. 230).
Nesse sentido, Canen (Ibid., p. 230-231) retorna à Lynch para apresentar algumas
sugestões que passam pelos dispositivos fundamentais das práticas pedagógicas:
planejamento, implementação e avaliação:
reconhecimento das formas culturais que estão presentes naquela
sociedade;
o constante alerta a vieses em conteúdos veiculados;
o conhecimento das implicações de preconceitos em práticas docentes,
obtido sobretudo na análise de pesquisa na área;
a conscientização dos aspectos culturais envolvidos nos processos de
avaliação;
finalmente, o reconhecimento de que termos como desempenho,
habilidade intelectual e acadêmica, entre outros, são construtos sociais,
derivados de pressupostos culturais específicos;
e a necessidade de avaliarem-se continuamente as implicações da
diversidade cultural para o currículo e as estratégias metodológicas em
salas de aula.
2.2. Os Estudos Culturais
No texto Estudos Culturais – um campo pós-disciplinar? (1999), a professora
Marisa Vorraber Costa faz um percurso através da origem e da repercussão, na atualidade, do
106
campo dos Estudos Culturais que vêm se configurando, na literatura da área, como “saberes
nômades, que migram de uma disciplina para outra, de uma cultura para outra, que percorrem
países, grupos, práticas, tradições e que não são capturados pelas cartografias consagradas que
têm ordenado o pensamento humano” (COSTA, 1999, p. 1).
Para a autora, a emergência dos Estudos Culturais, na segunda metade do século
XX, é inspirada em um movimento que fazendo oposição ao binarismo cultural que
impregnou, fundamentalmente, às epistemologias tradicionais, rompeu com a dicotomia “alta
cultura” e “baixa cultura”. Nas palavras de Marisa Costa:
os Estudos Culturais inscrevem-se na trilha de deslocamentos que obliteram
qualquer direção investigativa apoiada na admissão de um lugar privilegiado
que ilumine, inspire ou sirva de parâmetro para o conhecimento. Sua
realização mais importante provavelmente seja celebrar o fim de um elitismo
edificado sobre distinções arbitrárias de cultura. Neste sentido, os Estudos
Culturais, ao operarem uma reversão nesta tendência naturalizada de admitir
um único ponto central de referência para os estudos da cultura, configuram
um movimento das margens para o centro (COSTA, 1999, p. 1).
Assim, em processo de reelaboração epistemológica os Estudos Culturais partem
da crítica às fronteiras disciplinares e aos muros acadêmicos, em busca de diálogo e
cumplicidade com áreas de conhecimento sobre os fenômenos culturais. Nessa perspectiva,
“poderíamos dizer que o que aproxima as diversas manifestações dentro dos Estudos
Culturais é uma guerra contra o cânone” (Ibid., p. 2).
Enquanto disciplina ou pós-disciplina (COSTA, 1999) e, por se tratar de um
campo de conhecimento tributário dos demais, os Estudos Culturais têm provocado diversas
interpretações, conceitos ou mesmo a necessidade de uma definição dentro do universo
acadêmico. Sobre esta questão, Marisa Costa (1999), cita Colin Sparks, a partir de um ensaio
divulgado em 1999. Assim, ele nos diz:
107
É extremamente difícil definir os “Estudos Culturais” com qualquer grau de
exatidão. Não é possível fazer demarcações e dizer que esta ou aquela seja
sua esfera de atuação. Tampouco é possível indicar uma teoria ou
metodologia unificada que seja característica deles ou para eles. Um
verdadeiro amontoado de idéias, métodos e temáticas da crítica literária, da
sociologia, da história, dos estudos da mídia, etc. são reunidos sob o rótulo
conveniente de estudos culturais (SPARKS, apud COSTA, 1999, p. 2).
Os Estudos Culturais contemporâneos tiveram origem, ainda nos anos 50 do
século XX, a partir da produção britânica inaugurada com dois livros publicados no final da
década de 1950 – The Uses of Literacy, de Richard Hoggart, que apareceu em 1957 e Culture
and Society, de Raymond Williams, de 1958. Os autores representavam, entre outros de sua
turma, os primeiros estudantes filhos de operários ingleses que ingressaram nas instituições
universitárias em processo de democratização do ensino. Suas obras “falavam de um lugar
diferente daquele ocupado pelos autores da tradição levisista, ou sejam, analisavam a cultura
popular como integrantes dela e não como quem olha à distância, cautelosamente, sem
qualquer ponto de contato” (COSTA, 1999, p. 6).
O trabalho de Richard Hoggart apresenta duas partes fundamentais, as quais
estruturam sua obra. A primeira tem como base a descrição da cultura dos trabalhadores
operários ingleses dos anos trinta, período correspondente à sua juventude; a segunda
descreve sua análise sobre como as
novas formas de entretenimento de massa que
ameaçavam a cultura da classe trabalhadora tradicional, na década de 50. Marisa Costa
(1999), partindo da análise de Story (1997) sobre a obra de Hoggar, nos diz:
Hoggart é traído por uma certa nostalgia, o que ele atribui à força das
lembranças de sua infância e não a uma simpatia pelo leavisismo. A cultura
popular dos anos cinqüenta teria perdido a sua riqueza, atacada pelo poder
manipulativo da cultura de massa que estaria deixando tudo pobre e insípido.
Parece que o que ele pretendia fazer era a distinção entre “uma cultura do
povo” e “aquilo que é designado para o povo”. As duas compreensões
seriam decorrentes de tratamentos diferenciados dados à cultura popular.
Apesar da crítica que faz, Hoggart não se desespera totalmente com o avanço
da cultura de massa. Ele diversas vezes enfatiza sua confiança na capacidade
da classe trabalhadora de resistir às manipulações da cultura de massa”
(Ibid., p. 7).
108
Por sua vez, as obras de Raymond Willliams _ Culture and Society (1958) e The
Long Revolution (1961) – são contraposições à noção de cultura única e dominante. Porém,
sua obra Culture and Society, entre tantas outras do mesmo período,
está longe de ter significação social e política unívoca [...] Culture and
Society e The Long Revolution, constituem o despontar de uma vasta e
diversificada produção intelectual do autor, assinalada por uma tensão
permanente entre os resquícios do mundo operário do País de Gales –
suposta origem dos matizes “populistas” da filiação socialista de Williams –
o contexto da “grande tradição”, materializado no mundo universitário de
Cambridge e na “grande literatura inglesa”. Estas ambivalências, também
presentes na obra de Hoggart, registram oscilações que nos sugerem às
vezes, como aponta Hall (1997), que tais trabalhos sejam simples
atualizações das preocupações anteriores, referidas agora, no universo do
pós-guerra (COSTA, 1999, p. 9).
Marisa Costa (1999) ressalta nas análises de Stuart Hall (1997), sobre obras de
Hoggart e Williams, as oscilações e a possibilidade de que esses trabalhos sejam possíveis
atualizações dos trabalhos anteriores, porém a partir do próprio Hall (1997) que a autora nos
diz “que as conseqüências das interrupções que elas provocaram foram mais importantes do
que qualquer continuidade que possam ter sugerido” (Ibid., p. 8).
Em 1963, surge o trabalho de Edward P. Thompson – A formação da classe
operária inglesa (The Making of the English Working Class), considerado por alguns autores
como componente do movimento iniciado por Hoggart e Willams, “contudo, para grande
parte de estudiosos desta mudança nas análises sobre cultura, a obra de Thompson apresenta
uma certa coerência teórica com as anteriores, operando uma ruptura decisiva em relação a
um evolucionismo tecnológico, a um economicismo reducionista e a um determinismo
organizacional”(COSTA, 1999).
Em 1964, Hoggart e Williams fundam o Centro de Estudos Culturais
Contemporâneos da Universidade de Birmingham, ocorrendo a institucionalização dos
109
Estudos Culturais que, até então, era um conjunto de pesquisas ligadas aos movimentos
sociais da época. Quando os estudos passaram a ocupar um espaço acadêmico, surgem
polêmicas em torno da sua localização, pois, até então, boa parte das pesquisas sobre as
questões culturais eram produzidas fora da academia, “as novas abordagens das questões da
cultura foram gestadas em uma movimentação teórica na qual as relações entre a academia e a
cultura do povo eram, no mínimo, tensas e problemáticas” (Ibid., p. 9).
Ao lado das polêmicas sobre a institucionalização, surge o desejo de reconhecer a
participação de pesquisadores que, no anonimato, teriam contribuído para que os Estudos
Culturais tivessem sido extremamente atuantes ainda nos anos quarenta, no trabalho com
educação de adultos.
É o próprio Raymond Williams (1997) quem admite [...] No entanto, eles só
adquirem visibilidade e reconhecimento intelectual, mais tarde com a
publicação destes livros [...] Muitas pessoas, diz ele, que desenvolveram
cursos e projetos, já nos anos quarenta, abordando as artes visuais, música,
filmes, propaganda, rádio, etc., mas que não tiveram espaço nas publicações
nacionais ou nas universidades, permanecem anônimas. Essas pessoas, cujos
nomes são desconhecidos hoje por muitos daqueles e daquelas que ensinam
Cultural Studies, escolheram, deliberadamente, espaços de atuação
alternativos onde pudessem fazer oposição ao grupo levisista (COSTA,
1999, p. 10)
Stuart Hall, um dos fundadores e diretor do Centro de Estudos Culturais de
Birmingham, no período de 1969-1979 (COSTA, 1999) e que, na atualidade, representa o
pensamento mais marcante sobre a centralidade da cultura na teorização social, admite que,
com a institucionalização dos Estudos Culturais,
a “virada cultural” começou a ter um impacto maior na vida intelectual e
acadêmica, e um novo campo interdisciplinar de estudo organizado em torno
da cultura como conceito central – os “estudos culturais”– começou a tomar
forma, estimulado em parte pela fundação de um centro de pesquisas de pósgraduação (...) Houve aproximações seletivas com diversas linhas de
teorização e análise, nas ciências humanas e sociais, para estabelecer-se a
110
matriz intelectual a partir da qual os “estudos culturais”se desenvolveriam
(HALL, 1997, p. 12).
No texto A centralidade da Cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso
tempo (1997), Hall descreve os diferentes discursos teóricos dos quais os Estudos Culturais
são tributários e se apoiaram
[...] às tradições de análise textual, à crítica literária, à história da arte a aos
estudos de gênero, à história social, bem como à lingüística e as teorias da
linguagem, na área das humanidades. Nas ciências sociais, aos aspectos mais
interacionaistas e culturalistas da sociologia tradicional, aos estudos dos
desvios e à antropologia; à teoria crítica (por exemplo, à semiótica francesa e
aos teóricos pós-estruturalistas; Foucault; a “Escola de Frankfurt”; os autores
e autoras feministas e à psicanálise); aos estudos do cinema, da mídia e das
comunicações, aos estudos da cultura popular. Também foram importantes
as formas não-reducionistas do marxismo (especialmente as ligadas à obra
de Antonio Grasmsci e a escola estruturalista francesa liderada por
Althusser), e a preocupação destas com questões de poder, ideologia e
hegemonia cultural (HALL, 1997, p. 12).
O lugar da demarcação acadêmica, a grande ampliação e diversificação das
temáticas (Ibid., p. 12) têm provocado tensões e diversas críticas sobre o futuro dos Estudos
Sociais. Para Stuart Hall:
O que tudo isto sugere é que a “virada cultural” é produto de uma genealogia
mais complexa do que aquela que se tem admitido e poderia ser interpretada
como uma retomada – em um novo registro, por assim dizer – de algumas
tendências subordinadas e há muito negligenciadas do pensamento crítico,
no interior das ciências humanas e sociais. Sua conseqüência esmagadora
tem sido, não – como sugerem seus críticos – a de substituir um tipo de
reducionismo (idealismo) por outro (materialismo), mas de forçar-nos a
repensar radicalmente a centralidade do “cultural” e a articulação entre os
fatores materiais e culturais ou simbólicos na análise social. Este é o ponto
de referência intelectual a partir do qual os “estudos culturais” se lançaram
(Ibid., p. 12).
No entanto, Costa (1999, p. 10), nos diz que:
para muitos, a institucionalização dos Estudos Sociais, seja na forma de
constituição de um espaço acadêmico de discussão ou na de configuração de
111
uma disciplina, significa o risco de subordinar sua contundente e
plurifacetada crítica política. Graeme Turner (1997), por exemplo, diz que
esta consolidação da posição dos estudos culturais nas universidades e sua
aproximação com as configurações disciplinares ameaçam transformar seu
caráter de crítica política em iniciativa pedagógica.
Percebe-se que as posições contrárias à institucionalização dos Estudos Culturais
passam, fundamentalmente, pelo receio de que ocorra o esvaziamento político de suas
reivindicações em prol das categorias sociais classificadas arbitrariamente pela hegemonia
cultural, e, evidentemente, pela relação de comprometimento político e intelectual que as
universidades têm com o Estado, afastando-se dos movimentos sociais.
Ao se tornarem agradáveis e “digeríveis” para atrair agências financiadoras,
administradores e políticos, o custo poderia ser a superficialidade e a
ausência de posicionamento político crítico em relação à vida social [...]
Ellen Rooney (1997) e Elizabeth Long (1997) argumentam em defesa da
manutenção das ligações dos Estudos Culturais com os movimentos sociais,
vislumbrando aí uma forma de preservar seu caráter de crítica política
(COSTA, 1999, p. 11).
As preocupações demonstradas pelas feministas (Long e Rooney), citadas por
Costa (1999), podem ser estendidas aos estudos sobre raça, etnia, religião e de outras
categorias sociais que buscaram nos movimentos sociais seu espaço político e pedagógico,
afinal, “historicamente, a academia tem sido o lugar da legitimação dos saberes, da definição
do cânone” (Ibid., p. 11).
Por sua vez, no texto A Necessidade de Estudos Culturais (1997) os teóricos
críticos (GIROUX, SHUMWAY, SMITH E SOSNOSKI) questionam a forma fragmentada
com que as universidades da América do Norte abordam o estudo da cultura e denunciam a
impossibilidade de uma análise crítica cultural, sobre os fenômenos sociais contemporâneos,
pois, na realidade, o que se produz é o conhecimento especializado.
112
Os profissionais das disciplinas que investigam fenômenos culturais, como,
por exemplo, antropologia, sociologia, história, estudos literários, são
limitados em sua capacidade de se comunicarem uns com os outros acerca
de suas preocupações comuns [...] Como conseqüência destes
desenvolvimentos, o estudo da cultura é conduzido em fragmentos, e, à
maneira que os especialistas devem definir a si mesmos em contrastes com
um público constituído de amadores, a especialização afasta os intelectuais
de outras esferas (GIROUX, et. al, 1997, p. 180-181).
A perspectiva tradicional que fundamenta o estudo da cultura, nas academias
americanas, vem provocando efeitos desastrosos em relação ao esvaziamento político das
questões que envolvem os estudos culturais e sociais (GIROUX, et al, 1997). Esses teóricos
justificam seus argumentos a partir da citação de Paul Picocce.
A menos que se reduza a definição de intelectuais em termos de critérios
educacionais puramente formais e estatísticos, está bastante claro que o que
a sociedade moderna produz é um exercício de especialistas alienados,
privatizados e incultos que somente são instruídos dentro de áreas muito
estreitamente definidas. Em vez de intelectuais no sentido tradicional de
pensadores preocupados com a totalidade, esta intelillligentsia técnica está
crescendo vertiginosamente para operar o aparelho burocrático e
instrumental, e, portanto, é adequada principalmente para realizar tarefas
parciais, mais do que para lidar com questões substanciais de organização
social e direção política (PICOCCE apud GIROUX, et al, 1997, p. 180).
As preocupações desses teóricos comungam com as dos estudiosos que reagem à
institucionalização dos Estudos Culturais, pois o núcleo de tensão dessas preocupações é o
esvaziamento político que as universidades podem proporcionar à formação crítica
transformadora dos seus acadêmicos.
Nesse sentido, os teóricos críticos já não questionam a institucionalização, mas,
sim, o currículo tradicional das instituições (norte-americanas) que impossibilitando a
articulação entre os membros dos demais departamentos e, conseqüentemente, o diálogo entre
as diversas especializações em torno dos problemas que se apresentam cotidianamente na
sociedade norte americana, desabilita os docentes ali preparados, para uma intervenção crítica
em suas práticas pedagógicas. Assim, em suas palavras, a denúncia:
113
Nosso argumento é que existe uma necessidade de que os estudos culturais
envolvam de maneira crítica justamente aquelas questões políticas e sociais
aludidas por Picocce, e promovam uma compreensão das dimensões tanto de
possibilidade quanto de limitação da cultura [...] Uma tarefa importante de
tal análise crítica e transformadora é identificar as fissuras nas ideologias da
cultura dominante Na ausência de intelectuais que possam analisar
criticamente as contradições de uma sociedade, a cultura dominante continua
a reproduzir seus piores efeitos com toda a eficácia. E, sem uma esfera de
crítica cultural, o intelectual de resistência não tem voz nos negócios
públicos (GIROUX, et al, 1997, p. 180).
Na perspectiva dessas reflexões, é preciso que se reformule o papel do intelectual
dentro das instituições formadoras (professor) e na própria sociedade civil (produtores de
opiniões), pois, mesmo que os teóricos críticos abordem as universidades norte americanas
como um espaço de possibilidades para a transformação dos símbolos culturais hegemônicos,
creditando nesse empenho as contribuições dos “saberes nômades”, estes, também, prezam
(como os britânicos) pela legitimação dos Estudos Culturais nos espaços públicos. Em suas
palavras:
A importância de que os estudos culturais participem nas esferas públicas de
oposição é uma premissa subjacente deste ensaio. Uma práxis
contradisciplinar adotada por intelectuias transformadores não seria efetiva
se tivesse como público somente as pessoas nas universidades. Em vez disso,
ela deveria ocorrer de maneira mais abrangente em público. Embora muitas
universidades sejam instituições públicas, raramente as consideramos parte
da esfera pública (Ibid., p. 188).
Coerentes com seus argumentos, esses pensadores acusam a fundamentação
tradicional humanística que “oferece aos estudantes acesso garantido a um reservatório de
materiais culturais que é constituído como cânone” (Ibid., p. 183) baseando-se na
classificação dos objetos culturais e selecionando-os hierarquicamente. Dessa forma, “alguns
destes objetos (os escritos de Shakespeare, por exemplo) são tidos como o “melhor” da
cultura ocidental; eles, portanto, representam a essência da cultura. É exatamente contra esta
visão simbólica de cultura que os estudos culturais deveriam lutar” (Ibid., p. 184).
114
Por outro lado, se construído um novo cânone na perspectiva da escolha sobre o
que seria mais valioso e mais importante, para os educandos conhecerem, corremos o risco de
copiar a tradição hierárquica e simbólica da cultura, quer dizer, estaríamos oferecendo novos e
diferentes objetos culturais em uma relação, também, hegemônica. Se, ao contrário, os objetos
culturais forem disponibilizados de maneira relacional,
os estudos culturais têm a possibilidade de investigar a cultura como um
conjunto de atividades que é vivido e desenvolvido dentro de relações
assimétricas de poder, ou como irredutivelmente um processo que não pode
ser imobilizado na imagem de um reservatório [...] Evidentemente, o que
está em jogo aqui é a possibilidade de que os estudos culturais possam
promover nos estudantes, não o empenho por um acesso complacente
predeterminado ou definitivo a um certo conjunto de valores culturais, mas
sim uma análise continuada de suas próprias condições de existência. Tal
práxis, fundamentada na derrocada das pressuposições das abordagens
disciplinares tradicionais, é um pré-requisito para uma resistência
autoconsciente e efetiva às estruturas dominantes (GIROUX et al, 1997, p.
185).
Percebe-se que a contraposição às abordagens tradicionais sobre o estudo da
cultura está presente na gênese das preocupações dos Estudos Culturais, bem como nas
análises contemporâneas. É nesse sentido que Marisa Costa comenta:
[...] toda movimentação que tem caracterizado os Estudos Culturais,
delineando esta identidade cambiante que procuro descrever, pode ser
atribuída aos deslocamentos naquilo que se tem entendido e tomado como
cultura [...] o surgimento de um corolário de uma movimentação teórica e
política que se articulou contra concepções elitista de cultura (COSTA,
1999, p. 11-12).
Como se pode perceber, continua sendo um núcleo de preocupação dos
pesquisadores contemporâneos dos Estudos Culturais que a perspectiva política de oposição
aos critérios elitistas dominantes de cultura vigentes não sejam bombardeados pela expansão e
pela dispersão que os Estudos Culturais vêm se configurando nas últimas décadas.
115
Marisa Costa (1999) discute a questão da expansão a partir do posicionamento de
outra pesquisadora dos Estudos Culturais no Brasil, Heloísa Buarque de Holanda que, ao
enfocar a vocação “viajante” desses estudos, permite reflexões sobre as diferentes proposições
que os Estudos Culturais acabam por tributar, dos diversos universos simbólicos ou culturais,
por onde navegam, ancorando-se onde se permite ficar.
Essa me pareceu uma forma produtiva para discutir a expansão dos Estudos
Culturais pelo mundo, e, especialmente, para abordar o que Hollanda chama
de “cartografia espacial de uma idéia em movimento”. No caso dos Estudos
Culturais, trata-se das “viagens” de estudos que, ao mesmo tempo em que
abordam questões do âmbito da cultura global, adquirem os contornos e
matizes das configurações locais, reinventando-se constantemente nos seus
questionamentos e perspectivas de análise. Os melhores exemplos que posso
mencionar situam-se nas problematizações sobre gênero, raça e etnia, que,
com uma fecundidade sem precedentes, tem recomposto todo o panorama
destas discussões em nosso país e em outros pelos quais tem circulado
(COSTA, 1999, p. 15).
Considerando a dispersão teórica e metodológica como uma das mais
controvertidas questões nos debates sobre o futuro dos Estudos Culturais, Marisa Costa
(1999) busca, nas idéias de Stuart Hall, parâmetros para analisar as diversas abordagens sobre
a trilha “viajante” dos Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais têm múltiplos discursos; têm uma grande quantidade
de diferentes histórias. Eles têm uma série de formações; eles têm suas
próprias e diversas conjunturas em seu passado. Neles estiveram incluídos
vários tipos de trabalho. Devo insistir nisto! Eles sempre foram um conjunto
de formações instáveis. O Centro de Estudos Culturais era “centrado” apenas
entre aspas [...]. Já teve diversos itinerários de pesquisa; muitas pessoas já
tiveram e têm diferentes posições teóricas, todas com suas opiniões. O
trabalho teórico do Centro seria mais apropriadamente denominado tumulto
teórico. Sempre esteve acompanhado de transtorno, discussão, ansiedades
instáveis e um silêncio inquietante (HALL apud COSTA, 1999, p. 19).
Tendo como marca inicial um projeto político sistematizado pelo pensamento dos
acadêmicos da esquerda britânica, como vimos em páginas anteriores, os Estudos Culturais
foram desenhando um percurso polêmico que, iniciado nos movimentos sociais e,
116
posteriormente, dentro dos muros institucional, vai absorvendo, além das questões de classes
sociais, outros vieses da luta política de outros movimentos sociais, tais como, os estudos
feministas, os estudos sobre racismo e os estudos sobre a sexualidade. E, vai, também,
expandindo-se por outros territórios e outras nações, partindo da Inglaterra para o Mundo em
constante e conturbadas “viagens” para outros territórios e nações.
Por sua vez, os Estudos Culturais também incidem sobre os processo educativos,
sejam em espaços formais (as instituições formativas), sejam em espaços não formais (os
movimentos sociais) e, conseqüentemente, sobre o currículo escolar e a formação de
professores. Porém, “não se tem claramente formulada uma proposta que garanta, em níveis
acadêmicos, uma formação permanente de professores e uma política cultural de envergadura
nacional [brasileira]”(GONÇALVES, 2002, p. 101).
Contudo, localiza-se em Candau (1997) uma pequena referência sobre a formação
de professores na perspectiva dos Estudos Culturais baseada nas reflexões de Giroux (1995)
sobre os “diferentes fatores que justificam a dificuldade de penetração da perspectiva [desses
estudos] nas Faculdades de Educação” (CANDAU, 1997, p. 246).
É nesse sentido, que retornaremos às análises dos teóricos críticos americanos
(GIROUX et al, 1997), já citadas neste texto, sobre os impactos negativos da ausência na
formação docente de disciplinas que, em uma abordagem interdisciplinar, respaldem esses
profissionais para o debate das questões que estão no cerne dos problemas emergentes que
atingem as sociedades modernas, principalmente aquelas onde as desigualdades sócioculturais atingem negativamente crianças e jovens em processo de escolarização.
Suas reflexões sobre as universidades norte americanas alcançam a especificidade
das universidades brasileiras que, também, produz um conhecimento
[...] tão fragmentado pela especialização que uma análise cultural crítica
combinada é quase impossível. O desenvolvimento histórico de disciplinas
isoladas alojadas em departamentos segregados produziu uma ideologia
117
legitimadora que com efeito suprime o pensamento crítico. Racionalizada
como proteção da integridade de disciplinas específicas, a
departamentalização da pesquisa tem contribuído para a reprodução da
cultura dominante ao isolar seus críticos uns dos outros (GIROUX et al,
1997, p. 179).
Se os Estudos Culturais, desde sua origem, apontam um núcleo político, sem o
qual perderia seu caráter crítico e radicalmente transformador de contextos opressores, há de
se exigir do professor /intelectual crítico um desempenho “crucial na mobilização de tal
resistência em uma práxis que tenha impacto político” (Ibid, p. 186).
2.3. Cultura Popular: contexto histórico-cultural, currículo e formação
No livro – Atualidade de Paulo Freire, contribuição ao debate sobre a educação
na diversidade cultural (2002), o educador João Francisco Souza afirma que o pensamento
freireano, formulado em 1950, que se consolidou no Movimento de Cultura Popular do
Recife, em 1960, é portador de concepções “que podem nos ajudar a construir uma resposta
aos problemas educativos gerados pela atual diversidade cultural, fruto das transculturações
especialmente experimentadas nos últimos 50 anos” (SOUZA, 2002, p. 139).
Em seu trabalho, João Francisco debate as novas responsabilidades da educação
para a práxis social, no interior da diversidade cultural e do desenvolvimento da cultura,
tomando como objeto empírico a proposta científica do Centro de Investigação e Intervenção
Educativa da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto,
Portugal, confrontada com a obra de Paulo Freire. O trabalho debate as contribuições do
pensamento freireano para a diversidade cultural no contexto da União Européia.
Preocupado com a segregação cultural dos grupos e setores explorados, oprimidos
e subordinados na sociedade brasileira e nas sociedades internacionais, tentando garantir o
desenvolvimento humano desses “esfarrapados do mundo”, Paulo Freire desenvolveu uma
proposta pedagógica que consegue fazer-se clássica em sua contemporaneidade (SOUZA,
2002).
118
Assumindo-se como pós-moderno crítico, Freire (1992) posiciona-se frente à
questão do multiculturalismo (referendada no Cap. I nesta dissertação), ao chamar a atenção
para que as questões relacionadas a essa problemática sejam tratadas com a seriedade
necessária e “não se confunda justaposição de culturas ou dominação de uma cultura sobre
várias com a situação multicultural, de multiculturalismo ou multiculturalidade construída
pela interculturalidade” (Ibid, p. 135). O cenário social/multicultural seria para Freire uma
invenção da concepção pós-moderna conservadora/neoliberal. O que a contemporaneidade
apresenta, no Brasil e no mundo, é uma situação de diversidade cultural ou pluricultural
(FREIRE, 1992).
Entende-se que Paulo Freire, contrariando o pensamento dos multiculturalistas,
afirma que os processos gerados pela globalização mundial (as transculturações) não definem
um mundo multicultural nem intercultural e, sim, promovem apenas uma situação de
diversidade cultural ou pluricultural. O desafio ainda é a convivência dessas diferentes
culturas ou dos diferentes traços culturais em uma mesma cultura. É preciso “transformar essa
pluralidade, ou diversidade cultural, por meio do diálogo crítico entre as culturas e das
culturas (interculturalidade), numa multiculturalidade” (SOUZA, 2002, p. 137).
Pensando com Paulo Freire, os processos de ação cultural (ação pedagógica)
devem partir da realidade histórico-cultural dos sujeitos. Dar-se-á atenção especial ao
contexto, à realidade social e à questão cultural que envolve a vida dos indivíduos no lugar e
no espaço que eles ocupam na sociedade. Pergunta-se: qual a realidade do contexto históricocultural da sociedade brasileira? E responde-se com Paulo Freire: é uma realidade que
humaniza e desumaniza, e a síntese dessa contradição tem sido a desumanização.
Os problemas que emanam da diversidade cultural que foram constituindo-se
através da miscigenação de diferentes grupos étnicos, marcou profundamente a formação do
povo brasileiro e, principalmente, da população que se encontra no lugar de excluídos.
119
Vivemos em uma sociedade onde os homens e as mulheres são divididos em grupos
desiguais, tendo no corte da raça e no corte da classe (FREIRE, 1992) a medida para sua
organização nos espaços sociais. Não vivemos em clima de igualdade social, os homens e
mulheres se estranham cultural e socialmente. O racismo impregnado no currículo de nossas
escolas não permite uma prática pedagógica pautada no multiculturalismo. Reafirma-se com
Paulo Freire: nosso fato social é a diversidade cultural e as diferenças sociais.
Assim, entende-se que o contexto histórico-cultural da sociedade brasileira pode
ser pensado a partir da proposta freireana que, sendo clássica em sua epistemologia, continua
possibilitando uma perspectiva de transformação da vida social e simbólica dos homens e
mulheres brasileiras em situação de dominação sociocultural. Nesse sentido, o pensamento de
Paulo Freire é clássico não por denunciar a desumanização clássica brasileira, mas, por ser
dialético e, como tal, trabalha os fenômenos humanos a partir das contradições da realidade
concreta onde estão inseridos os homens e as mulheres.
Na Pedagogia do oprimido (1983), Paulo Freire utiliza duas categorias que se
contrapõem: “a invasão cultural” e “a síntese cultural”. Antes de refletirmos como Freire
(1983) definiu essas categorias, é preciso que se diga que elas estão situadas dentro das
críticas elaboradas por ele quando denunciou “A antidialogicidade e a dialogicidade como
matrizes de teorias de ação cultural antagônicas: a primeira que serve à opressão; a segunda, à
libertação” (FREIRE, 1983, p. 143). Nas palavras de Paulo Freire, a “invasão cultural”:
Desrespeitando as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão
cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos
invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a
criatividade, ao inibirem sua expansão. Neste sentido, a invasão cultural,
indiscutivelmente alienante, realizada maciamente ou não, é sempre uma
violência ao ser da cultura invadida, que perde sua originalidade ou se vê
ameaçado de perdê-la. [...] No fundo, a invasão é uma forma de dominar
economicamente e culturalmente ao invadido. Invasão realizada por uma
sociedade matriz, metropolitana, numa sociedade dependente, ou invasão
implícita na dominação de uma classe sobre a outra, numa mesma sociedade
(Ibid., p. 178).
120
Por outro lado,
Na síntese cultural, os atores se integram com os homens do povo, atores,
também, da ação que ambos exercem sobre o mundo. [...] onde não há
espectadores, a realidade a ser transformada para a libertação dos homens é a
incidência da ação dos atores. Isso implica que a síntese cultural é a
modalidade de ação com que, culturalmente, se fará frente à força da própria
cultura, enquanto mantenedora das estruturas em que se forma (Ibid., p.
214).
Quando um agente cultural (pessoas que, por profissão, confissão ou
compromisso, trabalham com sujeitos e grupos, comunidades de classes populares ou de
minorias étnicas)12 se dirige a um coletivo de homens / mulheres / crianças / jovens / adultos,
em processos culturais, formais ou informais (que sempre resultam em aprendizagem), tendo
na relação antidialógica seu referencial metodológico, insere-se no grupo dos invasores
culturais, pois acredita-se sujeito desses processos e considera os invadidos seus objetos. Sem
voz e sem vez, os invadidos são modelados e levados a produzirem uma cultura inautêntica e
alienada.
Em situação, claramente, desfavorável a sua humanização, os invadidos são
convencidos de sua inferioridade (de classe, de raça, de sexo e de religião).
Como não há nada que não tenha seu contrário, na medida em que os
invadidos vão reconhecendo-se “inferiores”, necessariamente irão
reconhecendo a “superioridades” dos invasores. Quanto mais se acentua a
invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão
parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu
modo (FREIRE, 1983, p. 179).
Sendo duplamente funcional, a invasão cultural, “de um lado, é já dominação; de
outro, é tática de dominação” (Ibid, p. 178). Para tanto, utilizam-se cada vez mais formas
sofisticadas de dominação, pois nem sempre se chega invadindo através de tanques de guerra
ou bombardeando crianças, jovens e adultos despreparados para reagirem. Outras formas sutis
12
- BRANDÃO, Carlos Rodrigues (2002, p. 32).
121
são acionadas através da mídia, por exemplo, sabedores os invasores do que os dominados
pensam (as pesquisas são instrumentos de sondagem) direcionam seus produtos culturais em
massa.
[...] a cultura dominante gera e põe a funcionar aparelhos de Estados e canais
“civis” de domínio empregados em sua difusão sobre “todas as camadas
sociais”: a rede escolar, a “grande imprensa”, a propaganda política, a rede
de televisão e tantos outros meios de comunicação de massa ou de grupos
(BRANDÃO, 2002, p. 49).
Na singularidade dos sistemas de ensino, a “invasão cultural” “coerente com sua
matriz antidialógica e ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da
realidade e dos próprios conteúdos programáticos dos invadidos” (FREIRE, 1983, p. 179),
contrária, portanto, ao processo de humanização dos educandos.
Quando os agentes culturais têm como referência metodológica o diálogo e o
respeito aos saberes dos homens e mulheres em situação de aprendizagem, tomando a
realidade histórica-cultural como análise crítica, eles se inserem na perspectiva da postura da
síntese cultural.
A investigação dos “temas geradores” ou da temática significativa do povo,
tendo como objetivo fundamental a captação dos seus temas básicos, só a
partir de cujo conhecimento é possível a organização do conteúdo
programático para qualquer ação com ele, se instaura como ponto de partida
do processo da ação, como síntese cultural (FREIRE, 1983, p. 214).
Se por um lado a invasão cultural produz uma cultura inautêntica e alienante, a
síntese cultural através da investigação temática e da ação cultural como síntese da cultura e
“como ação histórica, apresenta-se como instrumento de superação da própria cultura alienada
e alienante” (Ibid., p. 214).
Essa transformação só acontecerá se as duas dimensões (investigação temática e o
da ação como síntese cultural) de um mesmo processo (síntese cultural) forem tratadas
122
dialeticamente. Nas palavras de Paulo Freire “na teoria dialógica, esta divisão não se pode
dar, a investigação temática tem como sujeitos de seu processo, não apenas os investigadores
profissionais, mas também os homens do povo, cujo universo temático se busca” (Ibid., p.
214).
Como um dos obstáculos enfrentados na perspectiva da ação cultural dialógica, e,
particularmente, nos processos socioculturais ocorridos dentro das escolas públicas é a própria
formação dos professores que, dependendo de sua opção de ação cultural (invasores ou
sintetizadores), conseqüentemente, excluindo ou incluindo crianças, jovens e adultos em
situação de aprendizagem, Paulo Freire trata dessa questão dizendo:
É que, indiscutivelmente, os profissionais, de formação universitária ou não,
de quaisquer especialidades, são homens que estiveram sob a
“sobredeterminação” de uma cultura de dominação, que os constituiu como
seres duais. Poderiam, inclusive, ter vindo das classes populares e a
deformação, no fundo, seria a mesma, se não pior. Estes profissionais,
contudo, são necessários à reorganização da nova sociedade (FREIRE, 1983,
p. 185).
A sistematização dos saberes docentes foi uma das últimas contribuições de Paulo
Freire para a formação de professores. Reconhece-se que as concepções de homem, de
educação e de cultura por ele assumidas já indicavam os processos formativos dentro da
concepção progressista de educação, mas, em seu livro – Pedagogia da Autonomia, saberes
necessários à prática educativa (1996), Paulo Freire trata das questões que envolvem o
cotidiano dos espaços formativos (formais ou não formais) desde a educação fundamental à
pós-graduação.
É a reafirmação dos princípios básicos de sua luta por uma educação que liberte
os homens e mulheres em situação de dominação, uma educação que não pode prescindir da
crença na “inconclusão do ser humano” e da “ética no exercício de nossa tarefa docente”
(FREIRE, 1996, p. 15-16). Nas palavras de Paulo Freire, “A ética de que falo é a que se sabe
123
afrontada na manifestação discriminatória de raça, de gênero, de classe” (Ibid., p. 17). Uma
educação que exige
[...] formação permanente dos educadores e das educadoras. Sua formação
científica, mas, sobretudo, exige um empenho sério e coerente no sentido da
superação das velhas marcas autoritárias, elitistas, que perduram nas pessoas
em que elas “habitam”, sempre dispostas a ser reativadas (FREIRE, 1992, p.
168).
A natureza inacabada do gênero humano anuncia a própria incompletude de toda e
de qualquer cultura já produzida (e em processo) pelos coletivos de homens e de mulheres do
Planeta Terra. Sendo, portanto, cultura toda criação inacabada do ser humano, tanto pode
humanizar-nos como desumanizar-nos, daí que Paulo Freire não conseguia conceber nenhum
processo educativo-progressista distanciado da postura ética e política dos educadores.
Homens e mulheres, ao longo da história, vimo-nos tornando animais
deveras especiais: inventamos a possibilidade de nos libertar na medida em
que nos tornamos capazes de nos perceber como seres inconclusos,
limitados, condicionados, históricos. Percebendo, sobretudo, também, que a
pura percepção da inconclusão, da limitação, da possibilidade, não basta. É
preciso juntar a ela a luta política pela transformação do mundo. A libertação
dos indivíduos só ganha profunda significação quando se alcança a
transformação da sociedade (FREIRE, 1992, p. 100).
Portanto, essas afirmativas sinalizam, entre outras, que a formação de professores
deve preparar os docentes para a própria reinvenção da nossa existência pautados na crença da
historicidade humana.
Em favor dessa intencionalidade se tem um método, enquanto
caminho para o conhecimento. Nas palavras de Freire (1982, p. 92) “a melhor maneira que
nós temos de pensar mais ou menos certo é o pensar a prática e saber que esta prática não é
individual, mas é social”. O sentido da formação docente, em Freire, é fundamentalmente,
transformar a prática. Sendo a educação uma ação do conhecer, a prática educativa é o lugar
em que se comungam o conhecimento e a atitude de realizá-lo. O cotidiano escolar merece
respeito é o lugar em que se cruza a teoria e a prática.
124
A reflexão crítica sobre a prática para transformá-la, enquanto um método de
desobstrução do caminho para o conhecimento, requer rigorosidade científica, procedimentos
e técnicas que atendam as exigências do objeto a ser conhecido. Reflexão, no sentido
filosófico, pode ser utilizada como possibilidade de mudança e transformação da prática repensada.
É um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o
grau de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o
real” e que quando aplicada na dimensão cientifica e técnica pode ser
considerada como “um ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis,
revisar, vasculhar numa busca constante de significado (SAVIANI, 1996, p.
16).
Por sua vez, Gómez (1998) fazendo referência ao pensamento de J. Elliott sobre a
formação docente diz que este, se apóia no trabalho de Paulo Freire, propondo tarefas que
procuram responder às diversas questões: (1) Descrever ...O que faço? (2) Informar...O que
significa o que faço? (3) Confrontar ...Como cheguei a ser como sou? (4) Reconstruir...Como
posso fazer as coisas de modo diferente?
Na proposição de conhecer, investigar o que se faz, debruça-se antes de tudo com
uma concepção de mundo, de homem de sociedade de educação, enfim, com uma visão de
mundo (ideologia), com uma opção política. Assim, antes de tudo, quando se intenciona
transformar esta prática, levam-se junto as questões “em favor de que e contra que, em favor
de quem e contra quem eu conheço” (FREIRE, 1998, p. 97)
Definir sobre o que ensinar significa para o professor enfrentar uma reflexão
crítica sobre o que são os saberes e, que a seleção e a classificação desses saberes em
disciplinas curriculares atende a uma determinada concepção de homem e de sociedade em
um determinado momento histórico. Em uma palavra, em sua prática pedagógica o professor
não é neutro.
125
Contudo, ensinar pode ser, também, considerada uma ação meramente técnica,
onde o que importa é o cumprimento de uma seqüência de etapas a serem distribuídas em
determinado tempo letivo para determinados níveis de ensino; o trabalho didático dividido em
objetivos, conteúdos, métodos e avaliação. Esse movimento metodológico, ainda, componente
quotidiano das práticas pedagógicas, é a expressão de uma concepção de currículo inspirada
na tendência tecnicista e na racionalidade burocrática. Na realidade, como nos diz Paulo
Freire (1998, p. 91)
um pensar estático, não dinâmico, não dialético, em que a gente separa quase
milagrosamente (porque, na verdade, não se pode separar), mas que a gente
dicotomiza, por exemplo, a prática pedagógica, a prática educativa, a ação
educativa da preparação da ação mesma, em que a gente separa a preparação
da ação, da avaliação, em que a gente separa os métodos dos conteúdos e os
métodos e os conteúdos dos objetivos .
A tendência tecnicista e duramente criticada por Paulo Freire, dominante nos
Estados Unidos até meados da década de 70 e que teve grande influência no pensamento
educacional brasileiro, é considerada por vários estudiosos do campo curricular como a
tendência tradicionalista.
No sentido de contextualizar as discussões sobre o caminho percorrido, em busca
de um currículo crítico e reconhecendo as contribuições de Paulo Freire para o processo de
reconceitualização do currículo escolar, dentro da denominada nova sociologia do currículo,
faremos, neste espaço, um breve percurso histórico sobre como o pensamento tradicional
tecnicista foi construído e, posteriormente reconceitualizado pelo pensamento freireano e
demais teóricos críticos do campo curricular.
2.3.1. Em busca de um currículo crítico
As sociedades que sofreram o processo de industrialização e urbanização
(tratando-se aqui da sociedade norte americana), passaram por um acelerado processo
socioeconômico e cultural que desestabilizou a pacata e homogênea vida rural, “a presença
126
dos imigrantes nas grandes metrópoles, com seus diferentes costumes e condutas, acabou por
ameaçar a cultura e os valores da classe média americana, protestante, branca, habitante da
cidade pequena” (SILVA, e MOREIRA 2002, p. 10).
Nada mais preciso, para o controle dessa situação, do que uma instituição que,
responsável pela formação das novas gerações, fosse utilizada como instrumento de
restauração da cultura ameaçada, “a escola foi, então vista como capaz de desempenhar papel
de relevo no cumprimento de tais funções e facilitar a adaptação das novas gerações às
transformações econômicas, sociais e culturais que ocorriam” (SILVA e MOREIRA, 2002, p.
10).
As contribuições do teórico crítico, Henry Giroux, sobre este momento, vêm
reafirmar que a industrialização e os seus processos de desqualificação e atomização também
ocorreram no interior das instituições educacionais.
A escola como metáfora da fábrica tem uma história longa e abrangente no
campo curricular. Conseqüentemente, os modos de raciocínio, investigação e
pesquisa característica do campo têm sido modelados segundo suposições
extraídas de um modelo de ciência e relações sociais intimamente ligado aos
princípios da previsão e controle” (GIROUX, 1997, p. 44).
A educação, enquanto responsabilidade institucional, foi entendida como um
sistema modelador onde os educandos eram privados do processo reflexivo sobre suas
próprias vidas e sobre a sociedade, tendo como tarefa principal aprender como ser, cada vez
mais, obediente e submisso.
Por sua vez, Antonio Flávio Moreira (1997), em seu estudo sobre o surgimento e
o desenvolvimento do campo do currículo no Brasil, faz referência aos traços progressistas
dos americanos John Dewey e seu discípulo William Kilpatrick, que, ainda no final do século
XIX e início do século XX, tentaram responder aos problemas que a sociedade norte
americana vivenciava em decorrência da industrialização e da urbanização, ao proporem que,
127
“paralelamente às mudanças da vida social, a escola deveria transformar-se e organizar-se
cientificamente de modo a compensar os problemas da sociedade mais ampla e contribuir para
o alcance de justiça social” (MOREIRA, 1997, p. 54).
Os trabalhos de Dewey e Kilpatrick tiveram fundamental influência no campo do
currículo no Brasil, principalmente, para o movimento denominado escolanovismo.
Também nesse período, Franklin Bobbitt atento à racionalidade instrumental que
vinha apresentando sucesso no mundo empresarial americano, propõe como fator fundamental
do processo educativo, um currículo cientificamente planejado que fosse capaz
de
desenvolver nas crianças os aspectos “desejados” da personalidade adulta. Por sua vez , o
pensamento de Bobbitt influenciou o movimento curricular no Brasil, aqui denominado de
tecnicismo (SILVA e MOREIRA, 2002).
O currículo foi conceituado, então, como uma série de experiências que as
crianças e os jovens deveriam viver para alcançar tais objetivos, e seu
desenvolvimento fundamentava-se nas idéias de padronização e eficiência
(SANTOS e MOREIRA, 1995, p. 48).
Em 1949, Ralph Tyler publica o livro Princípios Básicos de Currículo e Ensino,
onde tratava de ensinar como os educadores deveriam selecionar os objetivos e conteúdos
disciplinares, como selecionar e organizar as experiências de aprendizagem e como avaliar
sua eficácia.
Nos anos 50, os americanos voltam a incidir sobre o campo do currículo, quando
ameaçados pelo avanço da ciência e da tecnologia dos soviéticos, buscam nos educadores
progressistas os principais culpados para a derrota sofrida na corrida espacial. O governo
federal americano investe maciçamente recursos financeiros na reforma dos currículos das
diversas disciplinas.
128
Conclamou as escolas a voltarem sua atenção para os conteúdos curriculares,
a fim de que pudessem formar lideres e os cientistas necessários. Assumem
papel de destaque, neste contexto, as idéias de Jerome Bruner, que
enfatizavam a necessidade de um currículo baseado na estrutura das
disciplinas (Ibid., p. 49).
Assim, Bruner e Tyler, em um processo de continuidade teórica se
complementam.
Os anos 60, do século XX, são marcados por fenômenos políticos, econômicos e
sociais em grande parte do planeta. Tempos de guerra, racismo, desemprego, violência
urbana, acentuação das desigualdades sociais e, também, de pensamentos libertários, logo
amordaçados pelo fascismo das ditaduras militares, por exemplo, aqui no Brasil, e do retorno
dos governos conservadores, como nos Estados Unidos.
No campo da pedagogia, os americanos, apoiados em ideais liberais, pouco
tinham o que oferecer enquanto tendência pedagógica que questionasse a sociedade
capitalista, “o discurso pedagógico resumiu-se às seguintes tendências: idéias tradicionais que
defendiam uma escola eficaz, idéias humanistas que pregavam a liberdade na escola e idéias
utópicas que sugeriram o fim das escolas” (SILVA e MOREIRA, 2002, p. 14).
Por outro lado, novos referenciais teóricos vão sendo delineados a partir da crítica
a essas abordagens. O ano de 1973 sinalizou a emergência de uma nova tendência curricular,
quando diversos especialistas em currículo participaram na Universidade de Rochester de
uma conferência onde, “a despeito das diferenças entre eles, todos rejeitavam a tendência
curricular dominante, criticando seu caráter instrumental, apolítico e ateórico [...]” (Ibid., p.
14-15).
A partir desse momento, a tendência tradicionalista do currículo passa a ser
duramente criticada pelos reconceitualistas, que encontram como núcleo aglutinador de sua
produção teórica o pressuposto de “que toda atividade intelectual (dentre elas, a curricular)
implica uma dimensão política” (MOREIRA e SANTOS, 1995, p. 70).
129
A reconceitualização do campo curricular passou a ser uma necessidade
epistemológica, política e cultural, contrapondo-se à tendência tradicional e dominante, que
ignorava “questões fundamentais referentes à relação mais ampla entre ideologia e
conhecimento escolar [...] incapaz de fornecer uma base racional para criticar “fatos”de
determinada sociedade” (GIROUX, 1997, p. 45).
Após a conferência de Rochester, duas grandes tendências no campo do currículo
escolar foram delineadas. Uma, associada às Universidades de Wisconsin e Columbia,
aglutinando neomarxistas e teóricos críticos (Michael Apple e Henry Giroux) e outra,
associada à tradição humanista e hermenêutica, na Universidade de Ohio, tendo como
representante William Pinar.
Os reconceitualistas, associados à orientação neomarxista, são precursores da
Sociologia do Currículo, nos Estados Unidos. Porém, ainda na virada do século XIX, um
grupo de acadêmicos fundou a Sociological Society e o Instituto de Sociologia na GrãBretanha, inspirados em sua maioria na obra de Fréderic Le Play, conseguindo publicar por
muitos anos a revista Sociological Review.
O desenvolvimento da Sociologia na Grã-Bretanha se deu de forma lenta e
gradual, enfrentando a rejeição de centros de excelência como Oxford e Cambridge, que só
ofertaram os cursos de Sociologia nos anos 1955 e 1961, respectivamente. Na década de 70, a
Sociologia britânica sofre modificações tanto do ponto de vista da pesquisa social aplicada
como do ensino, popularizando-se e libertando-se da concepção funcionalista americana.
Por sua vez, a Sociologia da Educação, a partir dos anos sessenta, vai adquirindo
credibilidade e reconhecimento, passando a fazer parte dos cursos de formação de professores
desde a graduação, pós-graduação, até cursos da disciplina na Open University para
professores formados e, também, recursos financeiros do Conselho de Pesquisa em Ciência
Social são destinados para pesquisas e bolsas de estudos na área.
130
O trabalho dos ingleses Michael Young e Basil Bernstein, divulgado no livro
Knowledge and Control: new direction for the Sociology of Education, marca o início da
Nova Sociologia de Educação (NSE) e desenha a primeira corrente sociológica do currículo.
Os textos da NSE foram poucos divulgados aqui no Brasil, porém se reconhece que:
[...] foi considerável a influência da NSE no desenvolvimento inicial e nos
rumos posteriores da Sociologia do Currículo, tanto na Inglaterra como nos
Estados Unidos. Suas formulações têm constituído referência indispensável
para todos os que se vêm esforçando por compreender as relações entre os
processos de seleção, distribuição, organização e ensino dos conteúdos
curriculares e a estrutura de poder do contexto social inclusivo (MOREIRA e
SILVA 2002, p. 20).
Os americanos Henry Giroux e Michael Apple, ainda nos anos 70, insatisfeitos
com o currículo de tendência tecnocrática, tradicional e dominante, participam do movimento
reconceitualista do currículo fundamentados na teoria social européia, na psicanálise, no
pensamento de Paulo Freire e na Nova Sociologia da Educação inglesa. Esses pensadores
partem de uma análise de base sociológica e procuram “mostrar como as formas de seleção,
organização e distribuição do conhecimento escolar favorecem a opressão da classe e grupos
subordinados” (MOREIRA e SANTOS, 1995, p. 50).
Atualmente a Sociologia do Currículo abrange muitas linhas críticas que
procuram reconceitualizar o currículo, o próprio Giroux, um dos representantes desse
movimento, afirma:
aqueles que formam o que chamarei de nova sociologia do movimento
curricular representam muitas linhas e tradições críticas [...] O único tema
que liga todas estas tradições críticas é sua oposição ao que poderia ser
chamado de racionalidade tecnocrática que orienta a teoria e projeto
curricular tradicional (GIROUX, 1997, p. 44).
131
Depois que a teoria crítica e a Sociologia do Currículo inscreveu o currículo
escolar como a incorporação de conhecimentos construídos social e historicamente pelas
forças dominantes de determinada sociedade, pode-se afirmar que,
[...] não é mais possível alegar qualquer inocência a respeito do papel
constitutivo do conhecimento organizado em forma curricular e transmitido
nas instituições educacionais [...] O currículo é uma área contestada, é uma
arena política (MOREIRA e SILVA, 2002, p. 20).
Assim, quando currículo e poder são percebidos como um par indissociável pela
teoria crítica, cultura e currículo “constituem um par inseparável já na teoria educacional
tradicional” (MOREIRA e SILVA (2002, p. 26). Porém, a teoria crítica, amplia
a
cumplicidade, envolvendo educação e currículo em processos culturais. Enquanto a teoria
tradicional em educação conceitua o currículo escolar como um instrumento de transmissão
cultural de determinado grupo dominante, a teoria crítica coloca
as implicações
entre
currículo e cultura, fundamentalmente, na esfera política, portanto, currículo pode ser um
instrumento de luta.
Percebe-se que as duas abordagens teóricas (a tradicional e a crítica) se
diferenciam, fundamentalmente, a partir dos conceitos que cada uma tem de cultura. O que
nos afirma Tomaz Tadeu da Silva:
Obviamente, a visão tradicional da relação entre cultura e educação/currículo
não vê o campo cultural como um terreno contestado. Na concepção crítica,
não existe uma cultura da sociedade, unitária, homogênea e universalmente
aceita e praticada e, por isso, digna de ser transmitida às futuras gerações
através do currículo. Em vez disso, a cultura é vista menos como uma coisa e
mais como um campo e terreno de luta. Nessa visão, a cultura é o terreno em
que se enfrentam diferentes e conflitantes concepções de vida social, é
aquilo pelo qual se luta e não aquilo que recebemos (Ibid., p. 27).
Por sua vez, Paulo Freire ao tratar da importância de uma educação dialógica e
libertadora, dizia aos educadores que no processo de investigação dos “temas geradores” nos
132
“círculos de cultura”, momento onde o conteúdo programático deveria nascer do diálogo entre
educandos e educadores, um tema central e indispensável era o conceito de cultura, pois, para
ele, “sendo homens camponeses ou urbanos, em programas de alfabetização ou de pósalfabetização, o começo de suas discussões em busca de mais conhecer, no sentido
instrumental do termo, é o debate deste conceito” (FREIRE, 1983, p. 140).
As experiências pernambucanas, já referenciadas neste trabalho, reconhecidas
mundialmente como pioneiras no campo da Educação Popular e que tinham, como se sabe, o
propósito de transformar a vida simbólica e material dos grupos marginalizados, naquela
sociedade brasileira dos anos 60 do século passado, operam uma transformação radical no
conceito de cultura e, nesse contexto, transforma também o
conceito de currículo. Na
realidade ocorre um processo de reconceitualização. Segundo o educador Carlos Brandão,
da palavra neutra: cultura, tal como foi sempre pensada pela Antropologia,
pela Ciência do Folclore e pelos livros escolares, em uma categoria
ideológica e política. Algo que existe e se reproduz sob determinadas
condições, que espalha desigualdades e antagonismos e que pode ser
intencionalmente transformada (BRANDÃO, 2002, p. 33).
Naquele contexto, transformada a idéia de cultura, obtém-se um instrumento
crítico de intervenção sobre a realidade histórico-cultural da sociedade nordestina que,
enquanto conteúdo básico de aprendizagem, era investigada a partir do diálogo entre o
educador e os educandos. Assim, estava delineada uma proposta pedagógica apresentando
como condição de sua realização o diálogo e a problematização crítica do contexto/da
realidade social/das questões culturais dos homens e das mulheres em situação de
aprendizagem (educandos-educadores). Nas palavras de Paulo Freire:
Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade
comece, não quando o educador-educando se encontra com os educandoseducadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se
pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno
133
do conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático
da educação (...) Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o
conteúdo programático da educação não é uma doação ou uma imposição _
um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a devolução
organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que
este lhe entregou de forma inestruturada (FREIRE, 1983, p. 98).
Acreditava Paulo Freire que, a reflexão crítica dos homens e das mulheres em
situação de opressão, sobre seu contexto histórico-cultural (sistematizado no conteúdo
programático) era o ponto de partida de um processo, que por ser dialético, não permanece
estático, ao contrário, “partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a
outro e não ficar, permanecer [...] Partir do “saber de experiência feito” para superá-lo não é
ficar nele”(FREIRE, 1992, p. 70-71), e esta superação dar-se-ia em um processo contínuo de
tomada de consciência , em uma palavra, “num constante ato de desvelamento da
realidade”(FREIRE, 1983, p. 80).
As contribuições do educador pernambucano para o debate sobre o currículo
crítico passam, necessariamente, por sua oposição à educação “bancária”, em que “o educador
aparece como seu indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é
“encher”os educandos dos conteúdos de sua narração”(Ibid., p. 65) e, pela sua proposição de
uma educação “problematizadora”.
A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa
que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É
práxis, que implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para
transformá-lo (Ibid., p. 77).
Paulo Freire reconhecia na relação dialógica, portanto democrática entre
educandos-educadores e educadores-educandos, a possibilidade da intencionalidade política
do ato educativo realizar-se, pois, na educação “problematizadora”, dois princípios
estruturantes lhes são inerentes: “primeiro, respeitando a compreensão do mundo dos
educandos os desafie a pensar criticamente; segundo, que não separe o ensino do conteúdo do
134
ensino do pensar certo, que exige a formação permanente dos educadores e das educadoras”
(FREIRE, 1992, p. 168), pois, “o educador ou educadora crítica, exigente, coerente, no
exercício de sua reflexão sobre a prática educativa ou no exercício da própria prática, sempre
a entende em sua totalidade” (Ibid., p. 110).
Ao falar para educadores e políticos em uma ilha do Caribe, sobre os princípios
acima delineados, Paulo Freire lhes dizia:
Os dois princípios referidos podem inclusive fundar toda uma transformação
da escola e da prática educativa nela. A partir daqueles dois pontos, dizia eu
às educadoras e educadores no encontro, seria possível irmos desdobrando n
dimensões, inovando a organização curricular, as relações educadoreseducandos, as relações humanas na escola, direção-professores-serventeszeladoras, as relações da escola com as famílias, com o bairro em que a
escola se acha (FREIRE, 1992, p. 169).
Nas proposições freireanas, encontra-se delineada a concepção de educação que
exige o papel ético e político dos educadores em defesa da formação e libertação dos
educandos em situação de opressão, em um contexto histórico-cultural determinado. O
conteúdo programático, longe de ser um rol de conteúdos construído, pois, a partir do
diálogo/educador/educandos, torna-se um instrumento de reinvenção dos dispositivos
pedagógicos, em uma situação processual.
Sobre a proposta freireana, professor João Francisco de Souza nos diz:
Desde então, a insistência na atenção ao contorno, ao entorno, à realidade
social, à questão cultural, às condições de existência passa a ser a condição
de um trabalho pedagógico que queira contribuir para a construção da
humanidade do ser humano e de uma sociedade que mereça o nome de
humana. Isso no interior de uma hipótese de que o processo educativo pode
ser autêntico [...] Para atingir essa autenticidade, tem de atentar para todas as
dimensões do contexto em que pode acontecer e dos sujeitos (educadores e
educandos) nele envolvidos. Todas as dimensões do ser humano e de sua
sociedade (SOUZA, 2002, p. 145)
135
Há de reconhecer-se que o pensamento freireano contribuiu para que o currículo
tenha sido colocado no centro dos debates dentro dos sistemas de ensino, conseqüentemente,
no centro dos debates sobre os programas de formação de professores.
As proposições da nova tendência sobre os estudos curriculares (nova sociologia
do currículo, os teóricos críticos, por sua vez, influenciados pela pedagogia freireana)
anunciam as possibilidades de emancipação que a escola, potencialmente, aponta para as
novas gerações nas sociedades modernas e contraditórias. Contudo, as condições não estão
dadas, elas estão contemporaneizadas, como afirma Giroux:
A situação de nossa era não é diferente da situação enfrentada atualmente
pelo campo curricular. E esta situação é tão envolvente quanto radical:
construir as condições que permitam que a humanidade busque sua autocompreensão e significado. A nova sociologia do movimento curricular nos
fornece diversas possibilidades para o desenvolvimento de formas mais
flexíveis e humanas de currículo (1997, p. 50).
A tendência atual das pesquisas sobre o campo curricular na perspectiva crítica e
sociológica, aponta o currículo escolar como uma problemática de ordem política e cultural,
tratando-se, pois, de um instrumento de mediação implicado em relações de poder e
dominação. Um exercício entre poderes e interesses que determina o que se deve ensinar,
quais os objetivos e finalidades. Na expressão de Michael Apple (2002, p. 39).
[...] uma das perguntas mais fundamentais que nos deveríamos fazer sobre o
processo de escolarização é: “Que tipo de conhecimento vale mais?”.Embora
pareça, a pergunta não é nada simples, pois os conflitos acerca do que deve
ser ensinado são agudos e profundos. Não se trata “apenas” de uma questão
educacional, mas de uma questão intrinsecamente ideológica e política. Quer
reconhecemos ou não, o currículo e as questões educacionais mais genéricas
sempre estiveram atrelados à história dos conflitos de classe, raça, sexo e
religião, tanto nos Estados Unidos quanto em outros países (APPLE, 2002,
p. 39).
Continuando suas reflexões sobre a opção política (nunca neutra) dos professores
sobre “o que vale mais ensinar”, Apple (2002, p. 420) afirma:
136
Evidentemente, nunca agimos no vácuo. A própria percepção de que a
educação está profundamente implicada na política da cultura deixa isso
claro. Afinal, a decisão de se definir o conhecimento de alguns grupos como
dignos de ser transmitido às gerações futuras, enquanto a história e a cultura
de outros grupos mal vêem a luz do dia, revela algo extremamente
importante acerca de quem detém o poder na sociedade.
As contribuições de Paulo Freire sobre currículo (cultura como campo de poder
/contexto histórico-cultural referenciando o conteúdo programático/ diálogo como
instrumento democrático na relação educador e educandos / intencionalidade política do
educador), identificadas nas argumentações dos críticos da nova sociologia do currículo,
permitem “ver as suposições básicas embutidas no currículo tradicional como base para uma
análise crítica e como uma situação limite a ser superada no desenvolvimento de novas
orientações e maneiras de se falar sobre o currículo” (GIROUX, 1997, p. 44), principalmente,
porque esse paradigma que ainda é dominante no quotidiano escolar “[...] parece incapaz de
fornecer uma base racional para criticar os “fatos”de determinada sociedade. A teoria
[tradicional], neste caso, não apenas ignora sua função ética, mas também está destituída de
sua função política” (Ibid., p. 45).
137
CAPÍTULO III
REVISITANDO O ALAGOAS ATLÂNTICA
3.1. A gênese
No ano de 1998, a Secretaria Municipal de Educação de Maceió (SEMED),
através da Diretoria Geral de Ensino (DIGEN), implantou o Projeto de Atendimento às
Necessidades Básicas de Aprendizagem dos Alunos13, com o objetivo de “agilizar o
acompanhamento sistemático às escolas que apresentaram baixo rendimento de aprendizagem
dos alunos, não só em Português e Matemática, mas também em Ciências Sociais e Naturais”
(SEMED/1998).
Com essa iniciativa, a SEMED pretendia “investir em uma política de formação
continuada para os professores, através de cursos, seminários, simpósios e, principalmente, no
atendimento às demandas que ocorrem durante o processo ensino-aprendizagem, no dia-a-dia
da sala de aula” (SEMED/1998).
O Projeto de Atendimento às Necessidades Básicas de Aprendizagem dos Alunos
foi desenvolvido pelo Departamento de 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental, através das
equipes técnico-pedagógicas responsáveis pelas áreas disciplinares, componentes do núcleo
comum obrigatório, Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia e Ciências Naturais.
A implementação do projeto pelas equipes, cada uma em sua área, dar-se-ia, principalmente,
13
-Em 1994, o município de Maceió se integrou ao projeto “Qualidade da Educação Básica e Avaliação de
Rede”, em parceria com os demais Estados do Nordeste e UNDIME com a intenção de encontrar soluções
para o combate ao fracasso escolar. O “Projeto de Atendimento às Necessidades Básicas dos Alunos” foi
elaborado com base nos resultados das pesquisas realizadas na rede municipal de ensino pela equipe do
Núcleo de Avaliação e Pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco e proposto, estrategicamente,
para subsidiar o processo de formação continuada dos docentes e especialistas da rede.
138
(1) no acompanhamento sistemático às escolas e (2) nos encontros quinzenais, com os
professores na sede da própria instituição.
Naquele momento, a equipe técnico-pedagógica responsável pela área das
Ciências Sociais (História e Geografia) entendia que os conteúdos a serem trabalhados nos
encontros de formação das docentes em serviço deveriam ter como referencial o currículo
escolar. Em outras palavras, a intenção era que a proposta de trabalho para a formação
continuada das docentes tivesse como parâmetro inicial o currículo destinado aos alunos das
séries nas quais elas atuavam.
Apesar da SEMED, reconhecidamente, ter avançado nas questões pertinentes a
sua natureza de instituição formadora, reorganizando a estrutura física da rede municipal,
dando os primeiros passos para a implantação de uma gestão democrática e qualificando o
profissional do magistério através de parcerias firmadas com instituições, em nível da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e de outras instituições formadoras, ainda não
tinha
avançado,
concretamente,
em
relação
ao
projeto
político
pedagógico
e,
conseqüentemente, em relação a uma proposta curricular que servisse de referencial para as
escolas. Na realidade, as professoras desenvolviam suas atividades pedagógicas utilizando,
em primeiro lugar, os livros didáticos e, em segundo, as propostas curriculares disponíveis na
rede, propostas estas que ainda tinham o formato rol de conteúdos por disciplinas14.
14
- A reflexão sobre o Currículo e sua importância na educação escolar tem tido lugar de
destaque praticamente desde que se instituiu uma doutrina pedagógica no mundo educacional
brasileiro. Tendo como matriz o “Ratio Studiorum” da Companhia de Jesus, e, como tal,
tradicionalmente tomado como um conjunto de regras a serem pensadas de forma
centralizada e integralmente seguidas pelas escolas no desenvolvimento da sua ação, sob o
rígido controle, a fixidez e a natureza dos velhos ditames curriculares levou-o, mesmo na sua
forma mais branda, a ser identificado como o rol das disciplinas prescritas para cada série – a
grade curricular – ou com as listagens de conhecimentos a serem fielmente ministrados aos
alunos – o famigerado rol de conteúdos (VERÇOSA, 2000).
139
Portanto, o primeiro desafio era elaborar um referencial curricular nas disciplinas
História e Geografia. Porém, tínhamos consciência das responsabilidades e das nossas
limitações, enquanto condutores de um processo amplo e complexo. As ações, inicialmente,
planejadas partiram da atualização da própria equipe, através de grupos de estudo onde
realizávamos leituras e discutíamos as questões pertinentes à elaboração de uma proposta
curricular para as primeiras séries do ensino fundamental.
Nossa preocupação era que esse referencial curricular, além de atender as
demandas identificadas nas dificuldades de aprendizagem dos alunos, fosse fundamentado na
legislação para o ensino brasileiro e nas experiências pedagógicas que estavam sendo
desenvolvidas, em alguns Estados, apresentando resultados satisfatórios.
Assim, realizamos leituras dos atuais documentos destinados ao ensino brasileiro,
tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), as Diretrizes
Curriculares para o Ensino Fundamental (DCN/CEB, 04/98) e os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Fundamental (PCN/MEC). Analisamos, também, a experiência da
Secretaria Municipal de Belo Horizonte – Escola Plural, bem como os livros didáticos,
disponíveis na SEMED e nas editoras a que tínhamos acesso.
Em nossa vez, estávamos identificando, na legislação brasileira, nos documentos
das experiências que utilizávamos como referência e nos próprios textos em que se buscava
compreender as concepções contemporâneas sobre currículo e formação docente, uma
preocupação central com as questões socioculturais emergentes e de como legitimá-las no
currículo escolar. Porém, questionávamos se o professor era capaz de transitar através de um
campo do conhecimento tão abrangente e tributário de saberes oriundos da Antropologia, da
Sociologia, da Filosofia, da História Geral, da Sociolingüística, entre outros.
Começamos a perceber que ensinar estava se tornando, cada vez mais, um grande
desafio para as profissionais do magistério, principalmente, da escola pública que,
140
historicamente, enfrenta situações adversas e nem sempre favoráveis ao seu avanço
intelectual. Estávamos enfrentando um desafio, que tanto era das escolas como da própria
equipe SEMED.
A possibilidade de trabalhar as disciplinas História e Geografia, a partir de um
eixo temático/local contextualizado na história da formação da sociedade brasileira, como
indicava os textos analisados, levou-nos à elaboração de um referencial curricular para as
primeiras séries do Ensino Fundamental. Surge o Projeto Alagoas Atlântica15: um estudo
histórico, geográfico e cultural sobre o Estado de Alagoas, já citado na Introdução desta
dissertação.
O projeto concebia a sociedade alagoana nas perspectivas histórica, geográfica e
cultural a partir de 04 (quatro) eixos temáticos16 contextualizados ao longo da História do
Brasil. O título – Alagoas Atlântica – teve a intenção de referenciar a situação geográfica do
Estado de Alagoas que é uma janela para o Oceano Atlântico e que tinha toda sua faixa
litorânea coberta pela Mata Atlântica, quando os exploradores aqui chegaram.
Com um referencial curricular foi delineada uma área de atuação da proposta,
inicialmente, em 10 (dez) escolas e, também, com as turmas de 4ª série, onde
acompanharíamos a implementação do Projeto Alagoas Atlântica a partir de dois núcleos
fundamentais (1) nas reuniões quinzenais, na própria SEMED, os denominados Encontros
Pedagógicos, e (2) nas reuniões mensais, nas unidades escolares da Rede, realizados sob a
orientação da Equipe Circulante17.
15
- Faremos referência ao Projeto Alagoas Atlântica utilizando as denominações : Projeto Alagoas
Atlântica, o projeto e o Alagoas Atlântica.
4- 01. Com quantos paus se faz uma fortuna: a devastação da Mata Atlântica; 02. A Cultura artística do
povo alagoano; 03. Problemas sociais que desencadearam revoltas populares em Alagoas; 04. Nossa
formação étnica: o negro, o índio e o branco.
17
-Equipe que visitava as escolas envolvidas no Projeto Alagoas Atlântica, bem como, as escolas atendidas
pelas demais equipes inseridas na proposta do Projeto Atendimento às Necessidades Básicas dos Alunos.
141
Considerando-se que a Rede Municipal conta com um número bem maior de
escolas, estávamos na realidade tratando o projeto como uma experiência piloto, afinal,
conhecíamos as limitações organizacionais da SEMED, enquanto Rede Pública de Ensino.
Na primeira reunião, quando apresentamos o projeto, só duas das dez escolas
convidadas compareceram. A Escola Pedro Suruagy, situada no bairro do Tabuleiro, que
optou pelo eixo “A Cultura artística do povo alagoano” e a Escola Donizete Calheiros,
situada no bairro do Tabuleiro Novo, que fez a opção pelo eixo “Nossa formação étnica: o
negro, o índio e o branco”. A Escola Lenilton Alves, situada no bairro do Jacintinho,
compareceu à segunda reunião, fazendo opção pelo eixo “Com quantos paus se faz uma
fortuna: a devastação da Mata Atlântica”. Quanto o eixo “Problemas sociais que
desencadearam revoltas populares em Alagoas” não houve motivação para escolha por parte
das escolas.
Assim, das dez escolas convidadas, três acataram a proposta da SEMED. Porém,
foram consideradas como componentes do objeto empírico, nesta investigação, duas das
escolas envolvidas, a saber: Escola Pedro Suruagy e a Escola Donizette Calheiros. A equipe
da Escola Lenilton Alves, que participou do Projeto Alagoas Atlântica, foi desarticulada,
impossibilitando a realização das entrevistas.
Essas escolas estão localizadas na periferia da capital Maceió e, na ocasião do
desenvolvimento do projeto, tinham em comum os problemas que caracterizam as
comunidades periféricas brasileiras. Assim, contavam precariamente com os serviços públicos
de transporte coletivo, água potável, iluminação pública, serviço de saúde e outras
necessidades básicas, como, por exemplo, a falta de segurança dos próprios alunos dentro das
unidades escolares. Os bairros em expansão e com grandes populações não contavam com
espaços de lazer para os jovens, muito menos com uma biblioteca na escola para
142
aprofundarem seus estudos e pesquisas escolares. Contudo, as atividades pedagógicas no
cotidiano escolar eram os espaços possíveis para vivenciar suas humanidades.
A principal atividade econômica das regiões onde as instituições estão localizadas
é o comércio, principalmente o informal. A Escola Pedro Suruagy, no bairro Tabuleiro dos
Martins, por exemplo, é circundada por uma feira livre que influencia o dia-a-dia da
instituição e serve como principal mercado de trabalho para a maioria dos alunos, seja de
forma direta ou indireta. Os alunos eram oriundos da classe média-baixa. A maioria
trabalhava ou tinha ocupações (nem sempre remuneradas) que requeriam esforço físico.
3.2. O desenvolvimento
3.2.1. Revelando os entraves
O Projeto Alagoas Atlântica procurou ocupar, na Secretaria Municipal de
Educação de Maceió - SEMED, um espaço de formação continuada de professores onde o
currículo escolar em processo referenciava essa formação. Nesse sentido se buscou,
principalmente, saber das educadoras envolvidas no projeto o que elas vivenciaram como
processo formador capaz de intervir positivamente em suas práticas pedagógicas e como se
deu a articulação entre a SEMED e as escolas.
Assim, nos depoimentos, encontra-se um contexto institucional comprometido
com situações consideradas pelas educadoras como entraves que dificultaram a
implementação do projeto nas escolas e, conseqüentemente, sua dimensão formadora. São
situações que, historicamente, as profissionais da educação enfrentam para realizar o seu
ofício didático.
Essas falas denunciam que as ações de formação continuada da SEMED não
correspondem às necessidades de aprendizagem dos professores, bem como as precárias
143
condições de trabalho são precárias, refletidas na distribuição das horas aula atividades e na
falta de recursos financeiros e material pedagógico.
No relatório da 3ª reunião (anexo II) com os profissionais das escolas envolvidas
no projeto, consta que:
Outro ponto importante na reunião foi quando os participantes colocaram as
dificuldades crônicas que as escolas enfrentam para desenvolverem suas
atividades didáticas pedagógicas com qualidade. Fizeram referência
principalmente sobre: o material escasso, fontes de informações precárias,
falta de transporte para o translado do alunado para ambientes de pesquisa,
dificuldade para cópias xerográficas, ausência de material de registro
fotográfico, etc (Relatório/SEMED, 1999).
Nas entrevistas, volta a aparecer como uma das causas negativas que incidiram
negativamente sobre as ações do projeto “a falta de recursos financeiros e materiais
pedagógicos e tecnológicos” (Entrevistada “A”).
De um modo geral, os depoimentos apontam o Projeto Alagoas Atlântica como
uma experiência relevante no que se refere à formação continuada das professores e alunos,
contudo esses possibilitam a reflexão sobre a formação continuada na SEMED como um todo.
São críticas contundentes em relação à política da instituição
[...] a formação continuada dos professores está gradativamente ganhando
rumos para uma mudança, mas ainda são desenvolvidos programas de
formação longe dessa perspectiva, onde são valorizados a promoção de
grandes eventos como congressos encontros nacionais, seminários, em
parceria com outras instituições em que os professores na maior parte das
vezes não passam de meros expectadores (Entrevistada “A”).
A situação é preocupante, pois o investimento da SEMED em programas de
formação continuada dos professores vem se dando ao longo dos anos, como já nos referimos
em páginas anteriores, entretanto continuamos a vivenciar essas iniciativas desarticuladas de
uma política institucional mais abrangente, como ressalta a fala: “poderia ser diferente a
144
abordagem da SEMED para as escolas, mais unificada em termos de departamentos e
propostas (Entrevistada, “G”).
Na realidade, o Projeto Alagoas Atlântica estava inserido em uma desarticulação
mais ampla. A SEMED não contava com uma política global de formação. Cada setor
(Educação Infantil, 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental, 5ª a 8ª séries do Ensino
Fundamental, Educação de Jovens e Adultos, Educação Especial e Educação Física)
continuava promovendo ações formativas desarticuladas dos demais setores.
Segundo os depoimentos, essa desarticulação foi acentuada quando a carga
horária das professoras foi fragmentada, como observamos nesta fala: “tive muitas
dificuldades pedagógicas que passavam pelo grande número de alunos (44), a defasagem de
conhecimentos para a série (4ª) por parte de um bom número de alunos, a diferença de faixa
etária na turma dos 09 aos 14 anos e o agravante de ter que trabalhar com meia turma”
(Entrevistada “M”).
Na Rede, tínhamos professoras trabalhando em diferentes níveis e modalidades
de ensino e, conseqüentemente, sendo acompanhadas e convidadas para participarem de
diferentes encontros de formação continuada.
A problemática da “meia turma” (situação em que as professoras distribuem suas
horas aulas em várias turmas e, muitas vezes, em nível e modalidade de ensino diferenciada,
como por exemplo: uma professora trabalha com as disciplinas História e Educação Religiosa
em uma turma de 2ª série no período matutino e com alfabetização de adultos à noite)
aparece em vários depoimentos, como constatamos no depoimento de uma professora sobre
suas atividades nesse período:
[...] tive dificuldade em conciliar o trabalho com as 02 turmas (alfabetização
de EJA e 4ª série trabalhando as disciplinas Matemática, Ciências Sociais e
Ensino religioso). Esta concepção de 01 turma e meia não favorece o
trabalho do professor, fragmenta sua prática pedagógica e até mesmo
145
dificulta uma visão mais interdisciplinar do conhecimento trabalhado que o
projeto pedia (Entrevistada “M”).
O problema da meia-turma veio se estabelecendo como um fenômeno de
desarticulação da própria prática pedagógica, todavia, quando a professora diz “até mesmo
dificulta uma visão mais interdisciplinar do conhecimento trabalhado”, no nosso entender,
ela refere-se à necessidade de aprofundar seus conhecimentos sobre as novas situações
apresentadas pelo próprio projeto. Além das dificuldades epistemológicas, surgiam outras de
caráter organizacional no seu próprio tempo, que deveria ser dedicado às atividades de
planejamento e estudo: “a carga horária dos professores (30 horas sala de aula) é um grande
entrave pois não sobra tempo para o professor estudar” (Entrevistada “A”). Essa realidade
vai se projetando feito uma bola de neve sobre a vida da escola envolvendo os tempos e os
espaços de formação continuada. Ora, dentro de um sistema em que a hora aula das
professoras foi fragmentada, como ter profissionais organizadas em torno de um objetivo
comum?
Os encontros de estudos e reflexão sobre o processo pedagógico ficam
prejudicados,“falta tempo para reunir o coletivo da escola”, reafirma a mesma educadora.
Outros entraves identificados nos depoimentos estão diretamente relacionados ao
próprio desenho inicial do Projeto Alagoas Atlântica. Trata-se, pois, de questões sobre a
participação, ou não, que as escolas (diretor, coordenador e professor) tiveram em relação à
elaboração da proposta e na decisão de implantação nas escolas.
A “diretividade” por parte da SEMED” (entrevistada “M”) é denunciada entre os
entraves que dificultaram o desenvolvimento do Projeto Alagoas Atlântica nas escolas.
Selecionamos dois depoimentos de profissionais de uma mesma escola sobre o período de
implantação da proposta nas unidades escolares: “o período em que este projeto surgiu, já no
segundo semestre, dificultou o trabalho com continuidade” (Entrevistada “G”) e a outra
educadora reconhece que “o início dos trabalhos no terceiro bimestre (setembro de 1999) foi
146
um entrave, além de que era o último ano na escola dos alunos envolvidos no projeto (a
escola só oferta as primeiras séries do ensino fundamental, os alunos das 4ª séries vão para
outra escola no final do ano” (Entrevistada, “A”).
O período de desenvolvimento do projeto foi previsto ainda na proposta inicial:
“Considerando-se a amplitude do tema e a proximidade com o término do ano letivo de 1999,
a proposta foi pensada na perspectiva de 03 (três) etapas consecutivas: 1ª etapa: outubro e
novembro de 1999, 2ª etapa: fevereiro, março e abril de 2000 e a 3ª etapa: maio a novembro
de 2000” (SEMED, 1999).
Não consideramos problemático o período indicado para o início do projeto, visto
que já estava previsto em suas próprias etapas. O que estamos trazendo como preocupação é a
expressão “o período que este projeto surgiu” por configurar algo que caiu do céu, “surgiu”,
sem que as escolas estivessem participando de sua gênese.
Outra fala também denuncia uma prática que parece ser corrente na SEMED:
“com relação ao desenvolvimento do projeto SEMED, acredito que deveria ser mais
contextualizado com a realidade da escola, surgir da necessidade da escola e da
comunidade” (Entrevistada “L”). E, complementa, reconhecendo que “os projetos de um
modo geral são pensados de fora, embora este tenha deixado a escola muito livre para
desenvolver seus objetivos e planejamento”.
Os documentos sobre o projeto demonstram a escolha do tema central (um estudo
histórico, geográfico e cultural sobre Alagoas), e os conteúdos para cada eixo foram
selecionados pela Equipe SEMED. No relatório da 2ª reunião (anexo III) com coordenadores,
professores e diretores das escolas envolvidas na proposta, consta como observação:
Constatamos que, apesar de termos apresentado aos participantes uma
proposta eixo curricular sobre temas a serem desenvolvidos no projeto de
estudo sobre o Estado de Alagoas, todos demonstraram dificuldades em
pensar de forma ampla e complexa sobre a proposta apresentada [...] Nossos
147
professores demonstraram que contam ainda com o livro didático como
referência curricular (Relatório/SEMED, 1999).
Neste momento, coloco-me como sujeito que esteve desde o início envolvida com
a proposta do Projeto Alagoas Atlântica e participante do momento quando se definiu tanto os
04 (quatro) eixos, já explícitos, como os conteúdos para cada eixo. Na ocasião, a equipe
técnico-pedagógica da SEMED identificou a dificuldade das professoras em propor conteúdos
que denominávamos “conteúdos culturais” (posteriormente, com os estudos nessa
investigação, ficamos cientes de que todo currículo é cultural) para que fossem trabalhados
com os/as alunos/as e, conseqüentemente, nos encontros pedagógicos de formação
continuada. Não se pretendia continuar trabalhando com os livros escolares.
Segundo os depoimentos, a “diretividade” da SEMED vai mais além, chegando a
intervir no desenvolvimento do Projeto Alagoas Atlântica dentro da própria escola. Momento
denunciado por uma educadora quando diz “a inclusão do Teatro, se por um lado enriqueceu
as possibilidades de aprendizagem, por outro foi descontextualizada do estudo que vinha
sendo feito (danças e folguedos), mas todos convergiam para a história alagoana”
(Entrevistada “M”).
Em alguns momentos, essas falas reconhecem que a articulação SEMED x Escola
avançou durante o desenvolvimento do projeto: “acredito, que para os moldes institucionais
que se tinha na época, a articulação foi muito boa, pois atendeu de maneira satisfatória as
necessidades do projeto e do trabalho desenvolvido, mas senti falta de maiores informações”
(Entrevistada “M”) . Outra fala complementa essa lógica: “precisávamos avançar na proposta
que integrasse prática e teoria [...] com esse entendimento os trabalhos iniciaram-se na
escola, o trabalho era traçado em conjunto com a equipe SEMED, mas faltaram momentos
para estudos de temas pertinentes à ação docente (currículo, pedagogia de projeto, produção
148
textual, a avaliação, concepção sócio-histórica de Vygotsky, Piaget, Emília Ferreiro)”
(Entrevistada “A”).
Quando indagadas sobre como seria hoje a escola se o projeto tivesse continuado,
as educadoras dizem: “acredito que a escola seria mais integrada à realidade local,
contribuindo para a difusão e conservação dos conhecimentos e expressões culturais do
bairro e para o desenvolvimento da identidade de classe e grupo social dos alunos”
(Entrevistada “L”) e que “a escola seria mais rica, diversificada, participativa e
contextualizada no mundo a sua volta” (Entrevista “A”).
3.2.2. Revelando as possibilidades
Para realizar o estudo histórico, geográfico e cultural do Estado de Alagoas, o
Projeto Alagoas Atlântica apresentou como objetivos específicos:
(1) Envolver os alunos em atividades de estudos sobre o Estado de Alagoas
a partir de 04 (quatro) eixos temáticos:
Principais problemas sociais que desencadearam revoltas
populares;
Cultura artística do povo alagoano;
Com quantos paus se faz uma fortuna: a devastação da Mata
Atlântica;
Nossa herança étnica: índios, europeus e negros.
(2) Realizar oficinas coordenadas por profissionais das Artes Visuais
(pintura e desenho), Dança, Música e Teatro “onde os alunos possam
experimentar e utilizar materiais e técnicas específicas da área, capazes de
estimular as capacidades criativas dos mesmos” (PCN/Arte/MEC/1997).
(3) Comunicar para a sociedade alagoana em eventos pontuais, as
produções artísticas realizadas pelos alunos durante o desenvolvimento das
oficinas de artes (SEMED, 1999).
Nesse sentido, indagamos as educadoras: Como foi desenvolvida a prática
pedagógica? Quais as contribuições do projeto para uma prática diferenciada com os alunos?
De um modo geral, os depoimentos evidenciam a temática escolhida como uma
das grandes contribuições do projeto: “a escolha do eixo temático na perspectiva cultural foi
de suma importância para enriquecer o currículo e propiciar aos alunos e professores um
149
olhar crítico e revelador da cultura alagoana que, quando é trabalhada, é de forma restrita e
descontextualizada” (Entrevistada “A”), inclusive, o tema teria possibilitado
o resgate histórico crítico da cultura alagoana ajudou bastante, pois a
necessidade de pesquisa e de aprofundamento dos conhecimentos nos fez
constatar como conhecíamos pouco a cultura alagoana. Assim, com o estudo
passamos a tratar com mais autonomia o assunto (em particular danças e
folguedos), bem como as diversas situações com as quais nos
deparamos (Entrevistada “M”).
Segundo as educadoras, a relevância do tema se dá ainda por ter proporcionado a
“ampliação do universo cultural dos professores e conseqüentemente dos alunos através do
conhecimento da cultura como herança dos povos que fizeram a história” (Entrevistada “A”)
Na Escola Pedro Suruagy onde o eixo Cultura artística do povo alagoano foi
desenvolvido, os/as alunos/as e as professoras se envolveram em atividades artísticas e
folclóricas durante três meses. As experiências dessa escola foram registradas em relatórios
que, posteriormente, transformaram-se em um livreto da Série Sala de Aula (SEMED/2001)
(anexo IV). Nos registros e nos depoimentos, essas experiências são consideradas como
fundamentais, inclusive, “possibilitou aos alunos um avanço qualitativo na leitura e na
escrita [...] na disciplina e na socialização do grupo” (Relato/Técnica da SEMED).
Os/as alunos/as tiveram a oportunidade de encenar o texto teatral alagoano –
Estrela Radiosa – que trata da história de Alagoas de forma crítica e engraçada. Essa
experiência é evidenciada no registro de uma educadora que esteve envolvida diretamente
com a atividade:
por conta da parceria entre a SEMED e o Departamento de Artes da
Universidade Federal de Alagoas, o teatro, foi incluído no Projeto. Desta
feita, tivemos trabalhando conosco na escola, o professor, mestre de teatro,
Ronaldo de Andrade e o seu assistente artístico Sílvio Sarmento, que, com a
sensibilidade e competência, realizaram oficinas de leitura e interpretação
teatral com 44 alunos (Relato da professora “M”/Série Sala de Aula).
150
Durante a experiência com o Teatro (ensaios e apresentação), os/as alunos/as produziram
vários textos sobre as experiências (alguns se encontram no livreto Série Sala de Aula) dos
quais recortamos este depoimento.
Eu gostei muito de fazer teatro uma peça e também de poder mostrar o meu
talento quando eu estava estreando parecia que eu era uma artista, todos me
olhando e quando a peça terminou todas as pessoas que estavam lá bateram
palmas. Eu fiquei muito feliz [...] Eu achei maravilhoso fazer teatro [...] Eu
acho que a gente nasceu para fazer teatro (Aluna, VNA/SEMED, 2001)
Atendendo os objetivos específicos do Projeto Alagoas Atlântica, os/as alunos/as
foram envolvidos/as em oficinas de Arte, em pesquisas sobre Folclore alagoano e,
posteriormente, expuseram suas produções em eventos pontuais: “na Feira de Ciências da
própria escola, no SEMEA/SESC e na Feira de Conhecimento das Escolas da Rede
Municipal / SEBRAE” (Relato/Técnica da SEMED/Série Sala de Aula). Sobre a Exposição na
própria escola, uma professora falou em entrevista:
[...] considero muito importante pelo interesse, alegria, comprometimento,
satisfação e responsabilidade com que os alunos contribuíram e participaram
da construção da Exposição. Foi um momento em que tive a impressão que
eles se sentiram partícipes, viram no espaço escolar expressões do seu bairro,
apresentaram trabalhos, arrumaram seus grupos. E claro que o trabalho
desenvolvido no teatro contribuiu para isso (Entrevistada “M”).
Na Escola Donizete Calheiros onde o eixo Nossa herança ética: índios, europeus
e negros foi desenvolvido, as atividades foram direcionadas para o conhecimento da
arquitetura colonial nos bairros de Maceió, principalmente, Jaraguá. Os/as alunos/as, durante
as visitas a esses bairros, fotografaram os prédios, as praças e as igrejas consideradas como
patrimônio cultural a ser preservado.
Dentro da proposta do Alagoas Atlântica, realizou-se um intercâmbio cultural com
o Instituto Nacional de Educação Integral (INEI) que, por sua vez, também estava realizando
estudos e pesquisas sobre a arquitetura colonial em Maceió.
151
Assim, foi realizada uma ação que consistiu na visita de alunos e alunas do (INEI)
que foram expor para os alunos e alunas da Escola Donizette Calheiros os resultados da
pesquisa. Esta atividade foi considerada pela equipe da SEMED, segundo registro em
relatório (anexo V), uma atividade que:
[...] aconteceu de forma produtiva e interessante para todos: os alunos
expositores colocaram nas paredes da sala reservada para a ocasião, as
produções artísticas sobre a cultura popular, fotos e recortes sobre a
arquitetura alagoana colonial, e eclética de influência européia. Os alunos da
escola Donizette, acomodados no chão da sala, ouviram atentos aos
conhecimentos e experiências dos alunos visitantes. Após a explanação,
fizeram perguntas e demonstraram curiosidades sobre o material exposto,
muitos reconheceram lugares alagoanos que ainda existem, tipo o Coreto
Musical na Praia da Avenida e o Museu Théo Brandão (Relatório de
atividades/SEMED, 1999).
Logo após a atividade, acima referida, foi solicitada aos/as alunos/as da Escola
Donizette Calheiros a produção de um texto sobre a experiência com a visita do Colégio
INEI. Nos textos produzidos, aos quais tivemos acesso (anexo VI), as idéias dos/das alunos/as
foram, essencialmente, as que aparecem no texto abaixo, escolhido para representá-las aqui
nesta reconstituição do projeto.
A visita do colégio INEI
No dia 4 de novembro o nosso Colégio foi visitado pelo Colégio INEI.
Os estudantes do Colégio INEI vieram fazer uma apresentação. Esta
apresentação foi feita por quatro alunos do 2º ano do ensino médio e uma
professora de artes. Eles falaram sobre o folclore alagoano, que estamos
estudando este assunto[...] Eles também falaram sobre Jaraguá [...] Eles
também falaram sobre monumentos históricos que são “estatuas”que nós
habitantes de Maceió vemos em muitas praças. Como na praça Deodoro.
Eles falaram sobre restauração de Jaraguá que quer dizer renovar o que foi
passado para nós habitantes de Maceió e outras pessoas, saibam que tem
prédios antigos em Jaraguá e que não se acabam porque fizeram uma
restauração nos patrimônios históricos de nossa cidade, sobre preservação e
valorização desses monumentos. Falaram também sobre a cultura regional e
sua preservação. Ex: bumba meu boi, capoeira, cantigas de rodas (Aluno,
GIL, 4ª série B).
152
Durante a entrevista com a educadora “L” que, na ocasião, coordenava as
atividades do Projeto Alagoas Atlântica nessa escola (hoje se encontra afastada da escola), em
vários momentos de sua fala, salientou: “foi importante que os alunos e professores tivessem
sido envolvidos nessas atividades, pois tiveram a oportunidade de pesquisar sobre a cultura
alagoana, inclusive pela motivação dos alunos nas visitas aos bairros, nos contatos com
outras realidades e também por ter (o projeto) envolvido outros profissionais de fora da
escola”. Salientou, ainda , sobre as atividades de pesquisa: “ajudou aos alunos conhecerem
mais a sua realidade cultural local e a diversidade cultural dos bairros contribuindo para o
desenvolvimento de sua identidade cultural” (Entrevistada “L”).
Referindo-se a uma viagem que um grupo de professoras da Escola Donizette
Calheiros fez com o objetivo de conhecer a cultura dos povos indígenas no interior do Estado
de Alagoas, uma educadora nos disse: “o projeto ajudou nas questões como a importância de
toda diversidade cultural, valorização de toda expressão cultural por sua legitimidade e por
representarem traços da formação dos diversos grupos étnicos” (Entrevistada “G”).
De maneira geral, nos depoimentos entrevistas com as educadoras, o Projeto
Alagoas Atlântica aparece como uma experiência que contribuiu para uma prática pedagógica
diferenciada, pois, além de “auxiliar no planejamento dos conteúdos” (Entrevistada “M”),
“possibilitou o uso de metodologia mais dinâmica, interativa e participativa, facilitando o
uso de diversos instrumentos (mapas, textos informativos ,palestras, utilização de vídeos,
cartazes, socialização das experiências)” (Entrevistada “A”).
Encontram-se, ainda, em registros nos documentos os contatos que professoras e
alunos/as mantiveram com instituições “do porte do Museu Theo Brandão, do Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros – NEAB, Secretaria de Cultura do Estado de Alagoas, Instituto do
Meio Ambiente – IMA, Biblioteca Central de Alagoas, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
– IBAMA e Departamento de Artes da Universidade Federal de Alagoas. Utilizamos, também,
153
os recursos das novas tecnologias, tais como a Internet, a TV Escola da Secretaria Estadual
de Ensino e a Videoteca da própria SEMED” (Relatório/SEMED).
3.3. Cultura, para conservar ou para transformar: o que está implícito no
Alagoas Atlântica?
As grandes descobertas provocaram grandes especulações sobre o destino comum
da humanidade. Seriam os ameríndios e os negros africanos seres humanos?
No período de 1870 a 1930, emergem teorias explicativas no Brasil, sob a
influência do iluminismo, da ciência positivista e do culturalismo que continuavam à procura
de respostas para as diferenças entre os homens desiguais étnica e socialmente. Passamos
pelo determinismo biológico e geográfico, pela raça e chegamos à cultura.
Nesse percurso tensionado, onde lutas foram travadas não só no campo das idéias,
mas também no corpo e na alma, esteve sempre implícito um processo de dominação de
homens sobre outros homens, que desencadeou, além das diferenças étnicas, culturais e
sociais, diferenças e desigualdades dentro do campo mesmo da cultura. Assim, fala-se da
“cultura popular”, da “cultura culta”, da “cultura de massa”, da “cultura alienada”, dos
“homens incultos” e dos “homens cultos”, da “cultura acadêmica” e da “cultura do senso
comum” (FREIRE, 1983), (CHAUÍ, 1993), (BOSI, 1992).
Independente de uma postura valorativa, não se pode negar que esses fenômenos
acontecem e que estão colocados como desafio, principalmente para os professores das
escolas públicas brasileiras. Eles acontecem em um momento histórico e social em
determinada sociedade, onde a condição de subalternos deixa males impressos na consciência
e na cultura dos homens (BRANDÃO, 2002).
Implícito nesse processo de classificação de “saberes” e “não saberes”, está uma
idéia de cultura que foi sendo construída atendendo aos interesses de uma visão de mundo
154
hegemônica, omitindo-se a discussão sobre seu potencial transformador com possibilidades de
humanizar e desumanizar os homens (FREIRE, 1983).
Como vimos em páginas anteriores, as discussões sobre os processos formativos
dos docentes, por um longo período histórico, não têm considerado, suficientemente, sua
dimensão
cultural seja na dimensão epistemológica, psicológica ou histórico-cultural.
Entretanto, não se pode negar que a preocupação com os processos excludentes que diversos
povos em condição de dominados vivenciaram e vivenciam, têm, também, a seu favor
teóricos e suas concepções de homem e de sociedade, dando-se, assim, um espaço de
esperança na transformação do estabelecido.
É nesse sentido que fizemos referência, no Cap. II, sobre os movimentos sociais e
políticos que, inicialmente, fora dos muros acadêmicos, investiram na humanização de
homens e mulheres marginalizados em suas diferenças. Aqui no Brasil – os Movimentos de
Cultura Popular – ao lado dos camponeses; na Inglaterra – os Estudos Culturais – ao lado dos
operários ingleses; nos Estados Unidos – o Multiculturalismo – ao lado dos guetos; hoje,
dentro dos espaços acadêmicos, vêm contribuindo para o debate do currículo monocultural e
as práticas pedagógicas excludentes.
Emerge, assim, a compreensão de que a cultura permeia toda a atividade humana,
e, como tal, toda atividade pedagógica. Acrescenta-se o caráter político e ético às idéias sobre
educação. Acrescenta-se na preparação continuada de professores a problemática das questões
culturais.
Respeitando-se suas especificidades, as concepções defendidas por esses
movimentos têm como pressuposto conceitual central a Cultura “como uma categoria
ideológica e política que se reproduz sob determinadas condições sociais promovendo
desigualdades e antagonismos, mas que pode ser transformada intencionalmente”
(BRANDÃO, 2002, p. 33).
155
É nesse sentido que se pretende analisar que concepção de cultura está implícita
no Projeto Alagoas Atlântica? De que saberes trata esse referencial curricular, saberes de
quem, de uma cultura hegemônica? Como se deu a preparação e a realização das ações
formativas de alunos/as e professoras?
Mesmo que a proposta inicial do projeto tenha recebido nas escolas um tipo de
contextualização, como diz uma professora em seu relato de atividades, “levando em
consideração a sua própria realidade” (Entrevistada, “M”), as idéias-chaves da proposta
elaborada pela SEMED direcionaram a elaboração e o desenvolvimento dos projetos de cada
escola. Daí, abordaremos nesta análise o projeto em sua totalidade. Assim, ao se fazer
referência ao Projeto Alagoas Atlântica, estarão incluídas as duas escolas (Pedro Suruagy e
Donizette Calheiros). Mas também, não se omitirá a relação de determinada unidade escolar
com uma situação apresentada, sempre que se tratar de um fenômeno particular. Dessa forma,
partindo da intencionalidade do projeto – um estudo histórico, geográfico e cultural sobre o
Alagoas – faremos recortes, aqui denominados de núcleos problemáticos, que se conectam em
suas particularidades.
1º núcleo problemático
O Projeto Alagoas Atlântica, fundamentalmente, teve como objetivos envolver
alunos e professoras em atividades de estudos sobre o Estado de Alagoas a partir de quatro
eixos temáticos contextualizados na história do Brasil. Para tanto, propôs o envolvimento dos
alunos em oficinas artísticas nas diversas modalidades (dança, teatro, artes plásticas, etc.) e,
também, em pesquisas sobre o folclore alagoano. As produções artísticas resultantes das
atividades realizadas pelos alunos e, também, os grupos folclóricos seriam apresentados para
a sociedade alagoana em eventos pontuais. Vimos, no tópico possibilidades, que esses
objetivos, respeitando-se as limitações do processo, foram alcançados principalmente na
156
Escola Pedro Suruagy. Vimos também que, na Escola Donizette Calheiros, os alunos foram
envolvidos em atividades de pesquisa sobre a herança dos povos que formaram o Brasil,
visitando bairros de Maceió, onde se localiza o patrimônio histórico da arquitetura colonial.
Salienta-se, inicialmente, como problemas implícitos nos objetivos, a formulação
dos eixos Cultura artística do povo alagoano e Nossa herança étnica: índios, europeus e
negros. Assim, o projeto expressa em seus próprios eixos temáticos: primeiro, a separação
entre cultura e história; segundo, a relação cultura artística com os produtos culturais eruditos
de uma determinada classe social e folclore com as produções artísticas do povo. Cultura é
Arte (cultura erudita) e Folclore (cultura popular), mas não é história.
Nesse sentido, Brandão (2002, p. 38), reafirma nossas observações:
A separação, por ignorância técnica ou má-fé política, dos pólos
constituintes de um mesmo processo e uma mesma realidade: história e
cultura, assim como referência ingênua de que uma existe e se desenvolve
sem contradições no interior do desenrolar da outra, é o que fazem até hoje
os livros escolares da educação de crianças e adolescentes em quase todos os
países da América Latina.
Com essa intencionalidade o Projeto Alagoas Atlântica foi influenciando as
atividades desenvolvidas nas escolas. Alunos/as e educadoras da Escola Pedro Suruagy
envolveram-se em processos essencialmente relacionados às artes e ao folclore alagoano.
Alunos/as e educadoras da Escola Donizette Calheiros envolveram-se em atividades sobre a
herança dos povos que contribuíram com a história de Alagoas.
A princípio, considera-se que a Arte é uma dimensão humanizadora e integradora
na formação de crianças e jovens, inclusive os movimentos de cultura popular liderados por
Paulo Freire tinham o teatro, a música e o folclore como “meios de conscientização,
politização e organização do povo” (Ação Popular apud BRANDÃO, 2002, p.64).
157
Como visto, nos próprios relatos dos/as alunos/as e nas entrevistas com as
educadoras, ressalta-se o quanto foram significativas as oficinas de arte, o trabalho com o
teatro e a exposição dos trabalhos produzidos.
Na separação entre cultura e história, acrescentam-se outras problemáticas.
Lembra-se que o projeto foi desenvolvido em escolas públicas e que, situadas em bairros
periféricos de Maceió, as crianças e adolescentes estavam imersos/as em uma cultura
periférica. Estavam imersos/as em uma história e uma cultura diferenciada da cultura e da
estética que a proposta eixo (relação de conteúdos para cada eixo temático (anexo VII)
recomenda.
Assim, entende-se que alunos e alunas seriam levados/as a um mergulho em um
universo cultural que, pronto e acabado, deveria ser acessado, apreendido e reproduzido
através das produções artísticas e folclóricas (Cultura artística do povo alagoano), e, também
que adquirissem uma postura diante da necessidade de preservar a herança histórica do
patrimônio cultural (Nossa herança étnica: índios, europeus e negros).
Quando se estabeleceram os conteúdos para serem trabalhados com os alunos/as,
operou-se o que Paulo Freire denominou de “invasão cultural”. Invade-se antes de tudo as
educadoras que, em processo de formação continuada também tiveram suas experiências
desconsideradas.
Hoje analisando a nossa prática, enquanto formadora naquele processo, estamos
cientes de que optamos pelo caminho mais fácil. Quer dizer, poderíamos ter refletido, por
exemplo, sobre as denúncias de Paulo Freire, referenciadas no Cap. II e repetidas a seguir:
Desrespeitando-se as potencialidades do ser a que condiciona, a invasão
cultural é a penetração que fazem os invasores no contexto cultural dos
invadidos, impondo a estes sua visão do mundo, enquanto lhes freiam a
criatividade, ao inibirem sua expansão (1983, p. 143)
158
Na ausência do diálogo, desconsideraram-se a voz e a vez dos sujeitos envolvidos
no projeto. Assim, a proposta distanciou-se da realidade sociocultural das crianças e jovens
em processo de aprendizagem, conseqüentemente, das experiências das professoras em
processo de formação continuada.
Operou-se, dessa forma, o que Paulo Freire (1983) denominou de “invasão
cultural” que acontece sempre em uma relação pedagógica “antidialógica” em que os
educadores acreditam-se sujeitos desses processos, e os invadidos levados a produzirem uma
cultura inautêntica e alienada.
2º núcleo problemático
Em um questionário (modelos anexos VIII) aplicado na Escola Donizette
Calheiros para alunos e alunas das últimas séries do Ensino Fundamental18, as perguntas
versavam, basicamente, sobre o conhecimento que os/as alunos/as tinham: dos artistas
alagoanos; da cultura popular (capoeira, pastoril, reisado, coco de roda, bumba-meu-boi,
comidas típicas); de nomes de pessoas e de logradouros de Maceió, relacionados com a
cultura indígena e negra; da arquitetura colonial em Maceió.
Perguntava-se, ainda, se os/as alunos/as conheciam alguém que tivesse sofrido
discriminação racial; se consideravam o Candomblé uma religião; o que mais admiravam no
povo negro; qual o povo que mais contribuiu e ainda contribui para a construção do Brasil. No
final do questionário, um espaço aberto com sete linhas, sugeria que registrassem sua opinião
sobre o tema Brasil 500 anos. Cabe lembrar que a Escola Donizette Callheiros optou por
desenvolver o eixo: Nossa herança étnica: índios, negros e europeus. Como indica o título,
18
Na Escola Donizette Calheiros, o Projeto Alagoas Atlântica foi ampliado para as últimas séries do
Ensino Fundamental.
159
intencionou-se
identificar as contribuições desses povos para a formação da sociedade
alagoana.
O questionário foi aplicado após dois meses do início das atividades relacionadas
ao projeto, tendo uma participação fundamental como elemento indicador sobre o que os/as
educandos/as estavam pensando sobre a herança étnica dos povos que formaram nossa
alagoanidade. Foi através dele que se denunciaram explicitamente os preconceitos com a
religiosidade dos povos africanos.
Dos questionários aplicados 99,9% (noventa e nove virgula nove por cento) não
consideravam o Candomblé como religião, e um deles disse ser o Candomblé “coisa do
diabo”, sendo, inclusive, um elemento indicador para a necessidade de se investigar sobre a
formação continuada dos professores no interior da diversidade cultural.
Emerge, nos questionários e nos surpreende no momento da análise dos
documentos, a voz dos/das educandos/as sobre a temática Brasil 500 anos, dizendo:
"É, o Brasil faz seus 500 anos, anos e anos se passaram e nada mudou.
Precisa melhorar muita coisa e acabar com a miséria e a fome". (8ª série, 16
anos)
"Que não há nada para se comemorar, mas, sim para reflexão de 500 anos de
sofrimento e extorsão do nosso povo. Isso é só um derrame de dinheiro atoa
que não dá em nada". (8ª série, 16 anos)
"É uma honra saber que o nosso Brasil vai completar 500 anos, e , também é
uma pena que ninguém colabore com isso e continuam fazendo as mesmas
coisas. Nós não temos um presidente exemplar para ajudar o nosso povo
que continua morrendo de fome , sede, etc...(7ª série, 15 anos)
"O Brasil 500 anos é uma besteira, porque isso é só para gastar dinheiro do
Brasil. E porque em vez de gastar dinheiro com isso, não gasta com a saúde
e com a educação?" (6ª série, 15 anos)
"Gostaria que o Brasil fosse um país muito conhecido com bom valor e, que
não existisse drogas no mundo" (5ª série, 12 anos)
"Precisa melhorar ainda muitas coisa, como a miséria nas favelas, e a
desigualdade social” (8ª série, 17 anos)
"Para mim, Brasil 500 anos é um tema importante, mas os políticos estão
desatentos com o povo" (5ª série, 11 anos)
160
Emergem, também, denúncias sobre casos de discriminação racial com amigos e
parentes dos/ as/ alunos/as. Enquanto eram questionados sobre a cultura alagoana, artística,
folclórica, sobre a arquitetura colonial a ser preservada, e a herança dos povos índio, europeu
e negro, denunciavam um Brasil injusto e racista, distanciado
das necessidades reais
daqueles jovens de uma escola pública na periferia de Maceió. Mesmo assim, as atividades na
escola caminham em busca de um passado histórico e branco, como veremos mais adiante,
nesta análise.
Volta-se à problemática da ausência do diálogo com “os saberes de experiências
feitos” (FREIRE, 1992). Nesse sentido, a prática educativa deve comungar das experiências
que os sujeitos trazem transformando-as em conteúdos a serem problematizados. É o caminho
entre “consciência real” e “consciência possível” (FREIRE, 1983).
Ora, se os/as alunos/as denunciam uma realidade na qual estão imersos, por que
não ouvi-los/as, por que não problematizá-la? Quando um dos alunos diz "Gostaria que o
Brasil fosse um país muito conhecido com bom valor, e que não existissem drogas no mundo"
ou "É, o Brasil faz seus 500 anos, anos e anos se passaram e nada mudou. Precisa melhorar
muita coisa e acabar com a miséria e a fome" e, ainda, quando diz um aluno no questionário
“Meu tio muitas vezes ele chega em casa com muita raiva e triste porque chamavam ele de
preto safado etc.” (7ª série, 15 anos) Por que não relacionar o passado histórico com a
realidade atual denunciada nessas vozes? Ao contrário, estava-se tentando encontrar uma
identidade cultural “perdida”, tendo como referência os conteúdos previamente estabelecidos.
O que foi proposto em oposição à “invasão cultural” pelos movimentos de cultura
popular em Pernambuco? Vimos no Cap. II que a “síntese cultural” está para o diálogo e para
a libertação, assim como a “invasão cultural” está para o antidiálogo e para a opressão. Nessa
dialética, em nosso entender, reside a força do pensamento freireano.
161
Em Freire, se a escola se propõe a transformar a vida social e simbólica dos
educandos em situação de exclusão social e cultural (em que se encontram as crianças e
jovens nos bairros periféricos onde a escola pública atua), há de se considerar que é partindo
da problematização dessa realidade que incidem as possibilidades de mudança. Assim, o
contexto histórico-cultural pode ser considerado, em sua essência, um instrumento,
possibilitando aos homens atuarem direta ou indiretamente sobre a realidade.
3º núcleo problemático
Os textos produzidos pelos alunos da Escola Donizette Calheiros sobre a visita de
alunos e de alunas do Instituto Nacional de Educação Integral (INEI) demonstram que os/as
alunos/as estavam sendo preparados para preservarem a cultura colonial européia, pois o texto
é o resultado de um processo de aprendizagem e expressa o que cognitivamente foi
interiorizado como conhecimento de determinado objeto. Essas experiências pedagógicas não
contribuíram para que os/as alunos/as realizassem o que foi proposto nos objetivos didáticos
do Alagoas Atlântica “incentivar o estudo da história como forma de intervir no presente,
descobrindo acontecimentos ‘ocultos’ intencionalmente e que não esclarecem os motivos dos
fatos vivenciados na atualidade” (SEMED/1999).
Por sua vez, na Escola Pedro Suruagy, foi trabalhado com os/as alunos/as o texto
– A Cultura da sua gente – (anexo IX), produzido por uma professora a partir da bibliografia
(anexo) disponibilizada pela equipe SEMED. Apesar de ser longo e constar em anexo em seu
suporte original, estamos trazendo nesta página, abaixo.
Cultura é tudo que é criado pelo ser humano. É o conjunto de hábitos,
regras, línguas, tradições e técnicas de um povo. Há, pois, uma cultura negra,
uma cultura indígena, uma cultura européia, entre outras.
Em Alagoas, a cultura é rica e diversificada. Nas artes, ciências e
letras há ilustres representantes. O seu folclore e artesanato se destacam na
cultura popular do Nordeste.
162
Entre as instituições culturais mais destacadas estão a Fundação Pierre
Chalita, onde estão expostas pinturas brasileiras, imagens sacras, pratarias e
mobiliário; a Fundação teatro Deodoro; o Teatro Sete de Setembro, em
Penedo; o Museu Théo Brandão, com suas peças do folclore regional; o
Museu de Arte sacra de Alagoas Dom Ranulfo, com objetos e imagens
sacras; o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, que guarda o acervo
histórico e geográfico do estado; o Museu da Imagem e do Som, onde há
rico acervo de fotos e filmes antigos; a Academia Alagoana de Letras; a
Casa do barão de Jaraguá, onde estão abrigados a Biblioteca Pública e o
Arquivo público; o Museu Xucurus; a Fundação Arnon de Mello; a Casa de
Graciliano Ramos; a casa de Cultura de Penedo; e o Museu José Aluísio
Vilela.
Nas letras, têm destaque Graciliano Ramos, Jorge de Lima, Tavares
Bastos (a maior expressão política de Alagoas) Artur Ramos, Aurélio
Buarque de Holanda, Manuel Diegues Júnior, Ledo Ivo, Pontes de Miranda,
entre outros.
Na pintura, encontram-se nomes renomados como Rosalvo Ribeiro ( o
mais famoso artista plástico alagoano), Teixeira Rocha, Pierre Chalita,
Getúlio Mota, Rogério Gomes, mais a nova geração com Reinaldo Lessa,
Rosival Lemos, Benetito Ramos, Gaspar Luiz Rodrigues e outros.
No teatro, merecem destaque José Brito, Bráulio Leite Júnior, Linda
Mascarenhas e Pedro Onofre.
Na dança, entre vários grupos, destacam-se o Ballet Íris Alagoense e o
Ballet Folclórico de Alagoas (Grupo Transarte).
Como folcloristas, Théo Brandão, Estevão Pinto, José Aluísio Vilela,
José Maria Tenório Rocha muito contribuíram para o estudo da cultura
popular. Como produtor cultural, com seu pastoril em Chã Preta, destaca-se
o professor Pedro Teixeira.
No folclore destaca-se o “Guerreiro” como manifestação autêentica de
Alagoas, entre outras manifestações como do “Pastoril”, do “Quilombo”, do
“Reisado”, da “Cavalhada”. O Guerreiro surgiu em Alagoas em 1927 como
fusão de Reisado, Caboclinhos, Chegança e Pastoril, porém com muita
riqueza nos trajes e nos cantos.
Destacam-se como memória da história alagoana as cidades de
Penedo, Marechal Deodoro, Porto Calvo e, em Maceió o bairro de
Jaraguá.(Escola Pedro Suruagy/SEMED, 1999).
Durante o desenvolvimento das atividades do Alagoas Atlântica, procurou-se
não utilizar os livros escolares, principalmente, por não serem contextualizados na
história e na cultura alagoana. Todavia, quando se busca analisar os textos trabalhados,
percebe-se que não se avança muito em relação aos textos tradicionalmente
disponibilizados sobre a história de Alagoas.
Nesse sentido, a professora que produziu o texto acima, ao ser abordada
sobre a bibliografia utilizada no Alagoas Atlântica, expressou sua opinião, dizendo que
“no momento a bibliografia, apesar de escassa, pobre, atendeu as expectativas. Mas,
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hoje a considero pobre, sem aprofundamento sobretudo nas informações sobre a
diversidade cultural, sua importância e sobre Alagoas, o tempo era pouco para
aprofundar as questões” (Entrevistada “M”). Pensando com Brandão (2002, p. 38) ):
Ali ela é a cultura erudita dos senhores letrados e seus intelectuais. [...] Essa
cultura erudita, que faz as suas histórias setoriais e isoladas uma das outras,
de “nossa literatura”, “nossas artes”, “nossa educação”, existe por oposição à
cultura do povo (que no Brasil mistura romanticamente “a contribuição do
índio, do negro e do português”).
A proposta dos movimentos de cultura popular era, antes de tudo, considerar as
diversas dimensões da cultura, compreendida em seu caráter instrumental e político. Assim,
cultura é arte e folclore, mas, também, higiene, alimentação, moradia, transporte, formas de
trabalho, relações com os semelhantes, saúde, relações patrão/empregado, espiritualidade,
afetos e tudo o mais que se vivencia no cotidiano social, material e psicológico. Tudo isso faz
o contexto histórico-cultural dos homens e das mulheres no mundo. Pensamos com Freire:
não basta que os educandos acessem a cultura erudita para desfrutá-la. É preciso que o
desfrute se dê pela ação desses sobre e através da cultura.
À luz dessas reflexões e voltando-se ao texto – A cultura da sua gente – , concluise que, fundamentalmente, no Projeto Alagoas Atlântica, a Cultura transita entre dois pólos:
as figuras ilustres e a cultura popular. A cultura está nas instituições culturais, como memória
(cultura erudita das letras, dos pincéis, da arquitetura, do ballet e dos santos católicos) a ser
preservada e conhecida pelas novas gerações. Uma cultura imutável que só interessa à
memória dos que sempre dominaram nossa alagoanidade.
Cultura foi concebida como produtos a serem transmitidos. As instituições
educacionais e culturais servem como um reservatório de “bens culturais”, operando-se,
assim, um recorte simplista de cultura que ora ressalta a dimensão artística quando
relacionada à cultura erudita e, ora a dimensão folclórica quando produzida pelos homens
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“simples”. No Alagoas Atlântica, estabelece-se uma relação contemplativa entre os alunos e
os objetos de artes, entre os alunos e o patrimônio cultural a ser preservado. Entende-se que
nesse referencial curricular em processo os ”saberes” evidenciados foram os “saberes” da
cultura dominante, hegemônica. O currículo escolar sofreu uma espécie de “maquiagem”.
Quando se tentou trabalhar com a história, a geografia e a cultura alagoana, em uma
perspectiva diferenciada, não se avançou em relação ao racismo e ao autoritarismo de nossa
alagoanidade.
A SEMED, as escolas e, conseqüentemente, os sujeitos envolvidos na elaboração
e na ação do Projeto Alagoas Atlântica expuseram, em sua intencionalidade, o pensamento
que condiciona o imaginário da sociedade alagoana: a cultura dominante deve ser acessada
pelos/as alunos/as que estão no patamar da cultura popular. E nesse sentido as ações foram
desenvolvidas.
4º núcleo problemático
As discussões progressistas sobre os programas que preparam os professores para
o trabalho com a diversidade cultural, investigam em primeira instância qual perspectiva de
diversidade cultural é enfocada; por conseguinte, acredita-se que é a concepção conservadora
ou progressista que se tem de cultura e de diversidade cultural que, ao ser incorporada aos
processos formativos, define a visão conservadora ou progressista dessa formação (CANEN:
1997).
Entende-se que a dimensão formadora do Projeto Alagoas Atlântica,
comprometida, pois, com uma concepção de cultura conservadora sugere relacioná-la com as
análises apresentadas por Canen (1997), no cap. II, sobre as propostas curriculares de
formação de professores para o trabalho com a educação multicultural. Identificamos duas
possibilidades de classificação do Alagoas Atlântica:
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(1) formação que preparava as professoras para desenvolverem atividades
pedagógicas em que os/as educandos/as de diversos grupos étnicos culturais
se adaptassem a um currículo único (aos saberes da cultura dominante) sem
possibilidade de criticá-lo. Essa perspectiva reconhece a diversidade cultural
como “excepcional e diferente”; mas, objetiva a adaptação cultural das
minorias diferentes à cultura dominante;
(2) formação que, dando “ênfase” nas “relações humanas”, prepara as professoras
para estimularem a criação de laços positivos entre os/as educandos/as
pertencentes a grupos étnicos, culturais e religiosos diferentes. Objetiva
elevar a auto-estima dos/as educandos/as, mas, também, não possibilita o
debate crítico sobre os processos de dominação de classe, raça, religião e
diversidade cultural.
Neste segundo momento, tomaremos como referência as análises, realizadas sobre
programas de formação de professores para a diversidade cultural, a partir da visão de mundo
que embasam diferentes concepções educacionais e como a diversidade cultural é concebida
nesse contexto. Nessa abordagem, busca-se identificar a proposta de formação que melhor
atenda ao perfil de professores críticos e transformadores (CANEN, 1997) Ver cap. II.
Entre as propostas educacionais (estrutural-funcionalista, teorias do conflito,
fenomenologia e a teoria crítica) e as concepções de diversidade cultural (assimilação
cultural, reprodução cultural, aceitação cultural e conscientização cultural) identificamos na
fenomenologia e na aceitação cultural os pressupostos que embasaram o projeto em sua
dimensão formativa.
Nessa perspectiva, quando o Alagoas Atlântica entende Cultura como herança dos
diversos povos que fizeram a história de Alagoas, levando os sujeitos em formação
a
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conhecerem para aceitar as diferenças culturais, pois estas já estão estabelecidas, opera-se um
processo formador pautado na perspectiva da aceitação cultural. Por sua vez, essa
perspectiva, implícita na abordagem fenomenológica de educação, permite que as relações
entre os educandos (sujeitos diferentes) e entre os educandos e outros grupos diferentes,
fossem tratadas em nível da subjetividade dos sujeitos envolvidos.
Nesse sentido uma professora diz “a cada etapa do projeto surgia novos desafios,
novas aprendizagens iam sendo internalizadas, contribuindo assim na formação dos
professores e alunos” (GRA). A “internalização” é uma categoria de base psicológica como o
“self” e “interação”, amplamente utilizada pela abordagem fenomenológica de educação. As
experiências conflituosas são vistas a partir do ponto de vista dos sujeitos envolvidos. Assim,
aceitam-se os diferentes a partir do desenvolvimento da auto-reflexão e auto-aceitação
(CANEN, 1997).
Inserido na postura da aceitação da diversidade cultural e nos fundamentos da
fenomenologia de educação, o Projeto Alagoas Atlântica distanciou-se da possibilidade de
preparar as professoras para o debate crítico sobre os conflitos que surgiram no interior das
escolas e no confronto dos/as educandos/as com outros grupos sociais e culturais durante o
desenvolvimento do projeto.
