Fabiano Duarte Machado

Título da dissertação: OS LIMITES DO DISCURSO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL.

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                    UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS – UFAL
Centro de Educação – CEDU
Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE

Fabiano Duarte Machado

OS LIMITES DO DISCURSO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL

Maceió
2010

FABIANO DUARTE MACHADO

OS LIMITES DO DISCURSO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do Título de Mestre
em Educação Brasileira pela Universidade Federal de
Alagoas / Centro de Educação (UFAL/CEDU).
Orientadora: Profa. Dra. Maria do Socorro Aguiar
Oliveira Cavalcante.

Maceió
2010

FABIANO DUARTE MACHADO

OS LIMITES DO DISCURSO DA IGUALDADE RACIAL NO BRASIL

BANCA EXAMINADORA

____________________________________________________
Profª. Dra. Maria do Socorro Aguiar Oliveira Cavalcante (UFAL)
Orientadora

____________________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Gama Florêncio (UFAL)

____________________________________________________
Prof. Dr. Helson Flávio da Silva Sobrinho (UFAL)

Maceió
2010

À Olguinha e à Wanessa, com minhas sinceras
desculpas pelas horas trancado na biblioteca, os
meus sinceros agradecimentos pela paciência e
por todos os momentos sempre elevando meu
ânimo.

AGRADECIMENTOS

A todos aqueles que de uma maneira ou de outra contribuíram para a
realização deste trabalho, os nossos eternos agradecimentos:
Aos meus pais e irmãos, que sempre estiveram ao meu lado em todas as
caminhadas.
À professora Maria do Socorro Aguiar Oliveira Cavalcante, pelo exemplo de
ser humano e, acima de tudo, uma excelente educadora que, com enorme
dedicação e paciência, assumiu a nossa orientação.
À professora Ana Gama, pelas contribuições sobre AD e suas sugestões
apresentadas no momento da qualificação.
Ao professor Helson Flávio, pelas contribuições sobre AD e suas sugestões
no momento da qualificação.
Ao companheiro Alexandre Fleming, por primeiro nos ter apresentado a
Análise do Discurso.
Aos trabalhadores que, com seu trabalho, produzem toda a riqueza da nação,
o que possibilita a existência da Universidade pública e gratuita.

“Os comunistas não se rebaixam a dissimular suas
opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que
seus objetivos só podem ser alcançados pela
derrubada violenta de toda a ordem social
existente. Que as classes dominantes tremam à
idéia de uma revolução comunista! Os proletários
nada têm a perder nela a não ser suas cadeias.
Têm um mundo a ganhar.”
Marx e Engels (1848)

RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo apontar os limites do discurso da igualdade e da
democracia racial desenvolvido no Brasil respectivamente pelo governo do
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo seus opositores nas políticas afirmativas
que em suas críticas resgatam a memória da democracia das raças no Brasil, na
tentativa de apagar as contradições da formação histórica brasileira. Para
desenvolver essa análise partimos das particularidades do Estado no Brasil, desde
as concepções clássicas, desenvolvendo a construção do Brasil como Estado
nação e seu projeto educacional ao longo dos séculos. A formação da identidade
negra também foi trabalhada a partir das influências teóricas do processo
abolicionista, para assim desenvolver as condições de produção do discurso de
democracia racial. Para efetivar nossa análise, utilizamos o referencial teóricometodológico da Análise do Discurso. Mediante as categorias condições de
produção, formação ideológica, formação discursiva, memória, implícito e
silenciamento mostramos, a partir das falas do governo e de seus opositores os
limites das referidas políticas.
Palavras-chave: Discurso, Democracia racial, Estado e Ideologia.

ABSTRACT

This paper aims to point out the limits of the discourse of equality and racial
democracy in Brazil developed by the government of President Luiz Inácio Lula da
Silva as well as his opponents of affirmative action policies which in his criticism
recover the memory of democracy of races in Brazil, trying to put an end to all
contradictions of Brazil’s historical formation. To develop this analysis we set out from
the particularities of the State in Brazil, from the classical concepts, developing the
construction of Brazil as a nation and its educational project over the centuries. The
formation of black identity has also been processed from the theoretical influences of
the abolitionist process to fully develop the conditions of production of the discourse
of racial democracy. To develop our analysis we use the theoretical and
methodological framework of its discourse analysis. Through the categories of
production conditions, ideological formation, discursive formation, memory, implicit
and silencing, we show from the speech of the government and its opponents the
limits of such policies.
Keywords: Speech, Racial Democracy, State and Ideology.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10
1 ESTADO, CAPITALISMO E EDUCAÇÃO NO BRASIL .................................... 14
1.1 Introdução à teoria geral do Estado ................................................................ 14
1.2 Particularidades da formação do Capitalismo e do Estado brasileiro .............. 19
1.3 A educação e o liberalismo escravocrata imperial .......................................... 23
1.4 A educação na República oligárquica ............................................................. 25
1.5 A crise do modelo agroexportador: educação e consenso pós-Constituição
de 1934 .................................................................................................................. 28
1.6 O nacional-desenvolvimentismo e a formação do capital humano .................. 31
1.7 A crise do nacional-desenvolvimentismo: o consenso neoliberal e as
políticas afirmativas ................................................................................................ 34
1.8 A construção das ações afirmativas no Brasil: a conjuntura histórica que fez
emergir o acontecimento discursivo da igualdade racial ....................................... 37
1.9 A década de 1990 e o governo FHC ............................................................... 42
2 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA ........................................................ 47
2.1 As condições de produção do discurso abolicionista no Brasil ....................... 47
2.2 A construção da república e a identidade nacional ......................................... 52
2.3 A crise do escravismo e o sentido da abolição ................................................ 57
2.4 As teorias raciais e a construção da imagem do negro ................................... 59
2.5 A construção do mito da democracia racial ..................................................... 61
3 NAS TRILHAS DA ANÁLISE DO DISCURSO .................................................. 65
3.1 Panorama histórico do conceito de ideologia no marxismo ............................. 65
3.2 O marxismo como ideologia ............................................................................ 67
3.3 O porquê da escolha do dispositivo teórico da AD ........................................... 75
3.3.1 Condições de produção do discurso ........................................................ 78
3.3.2 Implícitos e silenciamentos como forma de negar a exclusão
racial .............................................................................................................. 79
4 IGUALDADE RACIAL VERSUS DEMOCRACIA RACIAL: ANALISANDO
OS DISCURSOS ................................................................................................... 82
4.1 Considerações sobre a questão das políticas de ações afirmativas ............... 82
4.2 Os limites do discurso de igualdade racial do governo Lula ............................ 85
4.3 Todos têm direitos iguais na República democrática? .................................... 93

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 101
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 105
ANEXOS .............................................................................................................. 109
Anexo 1: Discurso do Presidente na criação da SEPPIR ................................ 110
Anexo 2: Manifesto:Todos têm direitos iguais na República Democrática.......118

10
INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem uma profunda relação com minha trajetória acadêmica
no curso de Licenciatura em História da Universidade Federal de Alagoas e com
minha atuação como liderança do movimento estudantil. Na verdade, o projeto de
escrever sobre os limites do discurso da igualdade racial se insere num momento de
reflexões históricas e teóricas profundas, em que está em curso no país um projeto
de reforma universitária, quando o discurso oficial busca envolver os movimentos
sociais no bojo de sua execução, difundindo a ideia de que suas atuais ações estão
sintonizadas com as necessidades históricas do movimento negro
Como minha formação acadêmica foi profundamente marcada pela luta
estudantil, e, consequentemente pela discussão da reforma universitária, procurei,
diante de minhas experiências de vida, desenvolver uma reflexão que desembocou
nesse projeto que, creio eu, terá utilidade não só para a comunidade acadêmica,
mas também para a militância e a sociedade em geral.
Além da minha atuação no Centro Acadêmico de História e no Diretório
Central dos Estudantes, outro aspecto que teve relevância na escolha do meu objeto
foi o meu ambiente de trabalho nas salas de aula de cursos pré-vestibulares e na
rede estadual, onde o tema das políticas afirmativas de inclusão como as cotas para
afrodescendentes nas Universidades causou frenesi e debates acalorados entre
defensores e opositores das referidas políticas.
Diante dos grandes debates travados entre estudantes e professores,
movimentos sociais e a sociedade, que vêm sendo realizados a partir da aplicação
das políticas de ações afirmativas e do estatuto da igualdade racial, principalmente,
das cotas para negros nas universidades, é que sentimos a necessidade de
desenvolver a presente dissertação, entendendo a pertinência e a importância desta
na contribuição desse debate, ora em andamento, no interior da sociedade
brasileira.
No primeiro capítulo – intitulado Estado, capitalismo e educação no Brasil –
desenvolvemos uma discussão inicial sobre a teoria geral do Estado, com o intuito
de demonstrar a natureza do Estado brasileiro e seu caráter conservador, e com

11
isso mostrar os limites do discurso do governo Lula no tocante à questão da
“igualdade racial”.
Para desenvolver esta dissertação, ainda no primeiro capítulo, foi de
fundamental importância localizar os afrodescendentes no processo histórico
brasileiro, consequentemente, a sua exclusão do processo educacional formal. A
partir desse enfoque foi feita uma análise da escravidão colonial e seus
desdobramentos, buscando fundamentar a pesquisa numa perspectiva histórica,
enfatizando um dos seus principais problemas que permanecem intrínsecos à
natureza da sociedade escravista durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, como
também a sua influência nas políticas públicas de educação, no tocante à questão
étnica no Brasil até os dias atuais.
Nosso foco principal neste trabalho foi analisar os efeitos de sentido do
discurso de uma política pública, em especial, o projeto de igualdade racial do
governo Lula para a sociedade brasileira. Nesse sentido, o governo tenta veicular o
seu discurso como sendo o discurso do movimento negro, e o próprio movimento
negro em sua maioria, de certo modo, reconhece no governo Lula alguns elementos
da proposta de igualdade racial defendida por ele.
No segundo capítulo procuramos demonstrar os limites da transição do
trabalho escravo para o assalariado no Brasil, mostrando as estratégias das elites,
através de políticas como a abolição lenta, gradual e controlada e o branqueamento
com o processo de imigração europeia. Ainda nesse capítulo buscamos refletir sobre
as transformações no capitalismo e suas repercussões no Brasil, trazendo as
influências teóricas que marcaram a formação das correntes abolicionistas
nacionais. O objetivo do segundo capitulo é demonstrar a construção da identidade
do negro na construção da república brasileira.
No governo Lula, já estão registradas cerca de 65 ações voltadas para a tão
propalada construção da igualdade racial no Brasil. Não é nosso objetivo analisar
essas ações que têm uma ampla gama de atuação nas três esferas de governo,
passando pelo: estímulo e ampliação do acesso de Afro-brasileiros ao ensino
superior; cursos de qualificação patrocinados pelo FAT (Fundo de Amparo ao
Trabalhador); o Projeto geração XXI; o Programa de combate à anemia falciforme;
reconhecimento e titulação de terras de comunidades remanescentes de quilombos;
atividades comunitárias destinadas à promoção de crianças e jovens, através de

12
reforço escolar e de atividades profissionalizantes; atividades de apoio e estímulo à
microempresários afro-brasileiros.
Nosso objetivo passa sim pela analise dos efeitos de sentidos do discurso do
governo e seus limites com a realidade objetiva, principalmente na possibilidade de
concretização ou não da igualdade racial no marco da sociedade capitalista.
Também é importante mencionar que o foco desta dissertação se concentrará
em analisar o discurso considerado por nós como o fundador da política da
igualdade racial, discurso esse proferido em Brasília no palácio do Planalto em 21 de
março de 2003, que criou a Secretaria Especial para Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) – órgão responsável pela implementação das políticas raciais, sendo as
mais importantes o Estatuto da Igualdade racial e as cotas –, e ainda mostrar os
limites no discurso dos opositores das políticas raciais do governo Lula.
Procuramos, nesta dissertação, mostrar os efeitos de sentidos do discurso de
igualdade racial do governo e seus efeitos para o movimento negro, principalmente
no processo de cooptação de parte desses movimentos para dentro do governo,
como nos mostra a estratégia do presidente Luis Inácio Lula na criação da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade racial e ainda na
composição de ministérios como o da Cultura, Meio ambiente e Assistência Social,
que através de um discurso de promoção racial procura comprometer o movimento
negro, ou, pelo menos, uma parte muito considerável, com as medidas do governo.
Assim,

especificamente,

o

nosso

trabalho

buscará,

mediante

a

fundamentação da Análise do Discurso (AD), assumindo uma perspectiva que
concebe a língua como constitutiva, opaca, incompleta, de autonomia relativa,
desvelar o confronto entre os discursos contrários à política de cotas e as intenções
presentes nos discursos oficiais do governo Lula. Procuraremos demonstrar que a
relação entre as reais necessidades e interesse dos negros brasileiros e as políticas
afirmativas do governo Lula encontra-se em descompasso. Na verdade, partimos do
pressuposto de que também elas estão inseridas na lógica da nova ordem do
capital. Nossa intenção é desvelar o real sentido da política de igualdade racial do
governo Lula e os limites dessa política, sem esquecer dos limites das críticas dos
seus opositores.

13
Para efetivar nossa análise, o terceiro capítulo foi construído com o intuito de
desenvolver as categorias da AD que foram utilizadas, dentre as quais merece
destaque uma discussão panorâmica sobre o conceito de ideologia no campo do
marxismo, para assim lançarmos mão do conceito de formação ideológica.
Ainda no terceiro capítulo tratamos da noção de condições de produção do
discurso e de silenciamento. Apesar de não ser uma categoria da AD, utilizaremos
também o conceito de implícitos pelo fato de essa categoria remeter ao não dito.
Feitas as reflexões teóricas, partimos para o capítulo quatro, onde
desenvolveremos a análise do discurso da igualdade racial do governo Lula e de
seus opositores, demonstrando seus limites e possibilidades.

14
1 ESTADO, CAPITALISMO E EDUCAÇÃO NO BRASIL

O objetivo deste capítulo é apresentar reflexões acerca dos limites do
discurso da “igualdade racial”, a partir da natureza do Estado brasileiro e da ação
deste na aplicação de políticas públicas. Para realizar uma análise sobre o tema
acima proposto, torna-se fundamental um resgate histórico dessas políticas – como
surgem, em que condições objetivas – e a relação delas com as características
peculiares do Estado brasileiro e no que diz respeito aos movimentos sociais, na
atualidade, em face do desenvolvimento do modelo econômico neoliberal.
Também pretendemos fazer um paralelo entre a formação do Estado
brasileiro, o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e a estruturação da
educação, buscando assim a formação de um alicerce histórico-crítico para analisar
os limites do discurso da igualdade racial do governo Lula e suas implicações na
realidade brasileira.

1.1 Introdução à teoria geral do Estado

Para entendermos as particularidades do Estado brasileiro, resolvemos antes
apresentar, de forma sucinta, os conceitos de Estado em pensadores clássicos,
como Thomas Hobbes, John Locke, Rousseau, Marx, Lênin e Gramsci.
O desenvolvimento do capitalismo na Idade Moderna inaugurou uma nova
formação de Estado, denominada de Estado moderno, que, por sua vez, foi-se
transformando, a partir do desenvolvimento da infraestrutura capitalista e de suas
novas necessidades de ampliação comercial.
Nos idos do século XV, em pleno processo de transição feudo-capitalista, o
desenvolvimento das forças produtivas e o equilíbrio de forças das classes sociais,
em especial da nobreza e da burguesia mercantil, exigiram um modelo de Estado
absolutista, em que a centralização do poder e a intervenção estatal na economia
foram fundamentais para o desenvolvimento e expansão da infraestrutura capitalista,
gerando o que Marx vai denominar de acumulação primitiva de capital, processo
decisivo para a consolidação do projeto societal do capital nos séculos seguintes.

15
Com o advento das relações capitalistas, o Estado moderno ganhou
características que o diferenciam dos Estados antigos. Dessas características
podemos destacar duas: a primeira é a sua autonomia, ou seja, a sua soberania lhe
permite que sua autoridade não dependa de nenhuma outra autoridade; a segunda é
a distinção entre Estado e sociedade civil, que vai se tornar mais clara com as
revoluções burguesas, a partir do século XVII, quando o Estado se torna uma
organização distinta da sociedade civil.
Essas transformações econômicas e políticas vão desenvolver a ciência
política e formar intelectuais que irão dedicar todas as suas energias a entender e
pensar o Estado como esse novo ente. Entre esses intelectuais destacaremos
Hobbes1, que como outros pensadores de sua época, parte do pressuposto de que
os homens em estado natural (primitivo) são autodestrutivos, devido à natureza
humana, que é povoada pelos anseios de poder e propriedade.
Para evitar a autodestruição e a “selvageria do espírito humano”, os homens
percebem a necessidade de estabelecer entre os seus pares um acordo, um
contrato que resulta da formação do Estado e que servirá de instrumento para
controlar “os lobos” contidos no interior dos indivíduos, ou seja, dito de outra forma,
seria o Estado, criado pelo contrato social, o instrumento fundante da sociedade,
pois é ele que teria a função de controlar e impedir que o egoísmo e a destruição
mútua triunfem, colocando em xeque a sociedade.
Para Hobbes, o elemento fundante da sociedade seria o contrato estabelecido
entre o povo e o soberano, ao qual era confiado o poder absoluto, ou seja, o Leviatã,
em que a sociedade de indivíduos competitivos seria controlada e regida por esse
poder supremo. A sociedade abriria mão da sua liberdade em troca da suposta
civilização que, na concepção hobbesiana, se realiza na constituição do Estado com
poderes absolutos.

1

Para um aprofundamento do referido pensador, ver o volume a ele dedicado da coleção “Os
Pensadores”, da editora Nova Cultural.

16
Com a explosão das revoluções burguesas na Inglaterra, no século XVII, a
idéia de habeas corpus2 desenvolvida por John Locke3 já criava mecanismos para a
proteção dos cidadãos, ou seja, com o triunfo da Bill of Rigths (Declaração dos
Direitos) os indivíduos deixariam de ser súditos para se tornarem cidadãos com
igualdade jurídica. Contudo, Locke não rompe com a idéia do suposto espírito
egoísta dos homens. Apesar de reconhecer a liberdade dos homens em seu estado
natural, ele reconhece o perigo dessa liberdade – a propriedade privada –, que para
ele é um direito natural. Dito de outra forma, Locke reconhece que é preciso
estabelecer limites a essa liberdade natural a fim de proteger a propriedade.
Em Locke, a ideia do contrato continua, ou seja, o elemento fundante da
sociedade civil continua a ser o Estado, com uma clara diferença e novidade em
relação a Hobbes, pois Locke admite o rompimento desse contrato, coisa impensada
no Leviatã, devido a sua natureza absoluta. Para Locke, o contrato pode ser
quebrado desde que o soberano conspire contra o que ele vai chamar de direitos
naturais, ou seja, a vida, a liberdade e a propriedade privada. Dito de outra forma, o
Estado em Locke continua a ser soberano, todavia seu poder vem do contrato que
lhe deu origem, isto é, seu poder não tem uma origem extraterrena (divina) e essa
característica do pensamento político de Locke vai se tornar a pedra filosofal do
liberalismo político.
A evolução do Estado moderno, depois de passar pelo Absolutismo
monárquico, evoluindo para o contratualismo hobbesiano, e depois para o
contratualismo liberal, chega ao modelo de Estado desenvolvido com as revoluções
do século XVIII, em especial a Francesa, ou seja, o Estado democrático-burguês,
que tem seu principal expoente em Rousseau.

2

Habeas corpus, significando em latim "Que tenhas o teu corpo", é uma garantia constitucional em
favor de quem sofre violência ou ameaça de constrangimento ilegal na sua liberdade de locomoção,
por parte do Estado. Sua origem remonta à Magna Carta, de 1215, imposta pelos nobres ao rei da
Inglaterra com a exigência do controle legal da prisão de qualquer cidadão. Sua utilização só foi
restrita ao direito de locomoção dos indivíduos em 1679, através do Habeas Corpus Act.
3
Para um aprofundamento do referido pensador, ver o volume a ele dedicado da coleção “Os
Pensadores”, da editora Nova Cultural.

17
O contrato social de Rousseau4, sem dúvidas traz uma novidade ainda mais
progressista que o contrato de Locke, pois, para este, o contrato produz a
sociedade, o governo e o Estado. Já em Rousseau, o contrato constitui a sociedade,
à qual deve servir, ou seja, a soberania pertence ao povo, através de sua
assembleia, pois o governo constitui-se apenas dos comissários do povo.
No século XVIII, Rousseau já inicia uma crítica com relação à ideia do Estado
como elemento fundante da sociedade civil, pois parte da ideia de que a sociedade
corrompe o homem, e que é necessário desenvolver uma sólida educação voltada
para potencialidades da cidadania, em que a vontade geral decidiria os rumos da
sociedade civil.
Sem dúvida nenhuma, é em Marx, no século XIX, que o conceito de Estado
aparece

com

um

corte

histórico-ontológico,

apontando

o

equívoco

dos

contratualistas e de Rousseau, que elegem a política como elemento fundante da
sociedade.

Para Marx, o elemento fundante do ser social seria o trabalho, que

retira a humanidade da sua condição natural para uma condição social, recolocando,
dessa forma, o papel do Estado na História, dando-lhe uma função estratégica na
superestrutura de uma determinada ordem econômica.
Marx observou a relação entre o conjunto das relações econômicas que
ocorrem na sociedade civil, e sua relação com as questões políticas que ocorrem no
Estado, o que nas concepções burguesas aparece de maneira separada e
distorcida. É por isso que para Marx o Estado é, em última instância, uma expressão
da sociedade civil, onde ocorrem as relações de produção.
Para compreender a concepção de Estado fundamentada em Marx, à qual
nos filiamos, é preciso perceber que as questões jurídicas, políticas e culturais não
podem ser explicadas por si mesmas, sem uma relação com a reprodução das
condições materiais de existência humana.

4

Para um aprofundamento do referido pensador, ver o volume a ele dedicado da coleção “Os
Pensadores”, da editora Nova Cultural.

18
Dito de outra forma, resgatando Lênin em sua obra O Estado e a Revolução,
o Estado se constitui como instrumento de preservação e dominação da classe
exploradora sobre as classes produtoras.
Para Lênin, o Estado aparece no momento histórico em que os antagonismos
de classes não podem ser conciliados objetivamente, ou seja, o Estado é o produto
e a manifestação do caráter inconciliável dos interesses antagônicos das classes
sociais, e a sua existência prova, historicamente, a incompatibilidade dos interesses
das classes sociais, ou seja, no marxismo o Estado perde seu suposto caráter
universal e imparcial e passa a ser visto com uma natureza de Classe e como uma
expressão dialética da estrutura econômica de uma dada época da história humana.
No campo da crítica marxista acerca da concepção de Estado, merece
destaque por sua predominância no ambiente acadêmico o pensador italiano
Antônio Gramsci, que apesar de sua fundamentação na obra de Marx, apresenta
uma definição diferenciada de Estado tanto do próprio Marx quanto de Lênin.
Gramsci desenvolve o conceito de Hegemonia, com a intenção de referir-se
ao sistema de alianças que o proletariado, organizado em um partido revolucionário,
deveria criar para derrotar o poder burguês e configurar a base social do poder da
classe trabalhadora. Para o referido autor, o partido seria o príncipe moderno na
construção de um novo consenso, com a formação de seus intelectuais orgânicos.
É importante salientar que Gramsci, diferentemente de Marx e de Lênin, não
via o Estado apenas como instrumento de força de classe, mas sim como um
somatório de força e consenso. Ou seja, para o pensador italiano, nas sociedades
modernas desenvolvidas uma determinada classe dominante não estabelece seu
domínio apenas pela força.
Dito de outra forma, a hegemonia da classe dominante ocorre através de
complexos instrumentos desenvolvidos na sociedade civil que estabelecem seus
interesses corporativos, exercendo “uma certa” liderança moral e intelectual que
desemboca na formação de um “consenso”, a partir dos interesses dominantes,
dentro da correlação de forças da luta de classes. Essa correlação é denominada
por Gramsci como bloco histórico.

19
O bloco histórico-social, na concepção gramsciana, representa, em última
análise, um limite mínimo para o estabelecimento de uma determinada ordem social,
em uma dada época histórica, na qual se desenvolve a hegemonia de uma
determinada classe dominante, por meio das instituições e de seus intelectuais
orgânicos.
Dialogando com a experiência da Revolução Russa, Gramsci desenvolve a
tese de que a sociedade russa do início do século XX, com suas características
peculiares – czarismo, atraso econômico, atraso político, fraco desenvolvimento da
sociedade civil e Estado forte –, permitiu a estratégia vitoriosa dos bolcheviques
liderados por Lênin.
Para o pensador italiano, as sociedades modernas podem ser divididas em
dois tipos, a partir do desenvolvimento de sua economia, do Estado e da sociedade
civil. Sendo assim, teríamos as sociedades do tipo “Ocidental”, que desde o
desenvolvimento clássico do capitalismo alcançaram as potencialidades dessa
forma de sociabilidade, consolidando não só um forte Estado, mas também uma
organizada e poderosa sociedade civil. E as sociedades do tipo “Oriental”, que
devido ao seu atraso econômico e suas formas anômalas de inserção na
modernidade, desenvolveram Estados poderosos, com uma sociedade civil pouco
organizada e fraca.
Gramsci, ao analisar a Revolução Russa, colocou o Império czarista no rol
das sociedades “Orientalizadas”.

1.2 Particularidades da formação do Capitalismo e do Estado brasileiro

Ao analisar a gênese do Estado brasileiro, o autor Carlos Nelson Coutinho
também trabalha com a categoria de Estado Tipo Oriental, ao afirmar que, até
recentemente, a história do Brasil caracterizou-se pela presença de um Estado
extremamente forte, autoritário, em contraposição a uma sociedade civil débil,
primitiva, amorfa.

20
Partindo da concepção marxista de Estado5, à qual nos filiamos, em que as
relações econômicas desenvolvidas no âmbito da sociedade civil vão determinando,
numa relação dialética, as relações políticas e o arcabouço do Estado, passaremos
a caracterizar a sociedade civil brasileira. Esta se constitui como expressão do
conservadorismo econômico das suas origens coloniais, assentada no latifúndio
escravocrata, caracterizando assim o Brasil como Estado nacional, integrado no
mercado capitalista, com uma função marginal, ou melhor, exportador de produtos
primários.
O Estado brasileiro vai pois se moldando de acordo com os interesses das
classes

controladoras

da

economia, mantendo um

caráter profundamente

reacionário.
Como não é o objetivo deste trabalho desvelar as minúcias da natureza do
Estado brasileiro, mas sim suas características gerais, afirmaremos que a tradição
bonapartista, ou seja, uma autocracia burguesa, inaugurada em 7 de setembro de
1822, e que irá se repetir com o 15 de novembro de 1889, em 1930 com Getúlio
Vargas, e em 1964 com os generais presidentes, é uma marca do Estado brasileiro,
pois os momentos históricos citados nos mostram como o discurso modernizador
das classes dominantes brasileiras, materializado no poder político ou Estado, serve
para encobrir, em cada momento de transformação do sistema capitalista, o
reordenamento geral da sociedade civil brasileira às demandas da economia
mundial.
A via de desenvolvimento capitalista brasileiro6, resumidamente, resultou na
formação de uma economia débil que implicou a formação de uma burguesia débil,
ligada umbilicalmente ao mercado mundial por sua atividade econômica débil,
agroexportação baseada na exploração da mais-valia absoluta, e foi ao longo da
História reforçando a natureza autocrática do Estado brasileiro.
O que podemos observar nas chamadas políticas públicas atuais é que, tendo
muitas delas nascido no seio dos anseios populares, como por exemplo as políticas
afirmativas, o Estado se apropria do discurso histórico dessas bandeiras de luta dos
trabalhadores para (re)significar essas políticas a fim de reforçar o domínio político,
5
6

A concepção à qual nos filiamos foi desenvolvida por Lênin em sua obra O Estado e a Revolução.
Para uma melhor compreensão da formação da economia e da burguesia no Brasil, ler a obra de
Mazzeo A. C., Burguesia e Capitalismo no Brasil, editora Ática, São Paulo, 1988.

21
marca da autocracia burguesa, e garantir assim as condições necessárias para a
reprodução das relações econômicas amorfas que caracterizam o capitalismo
brasileiro.
Na perspectiva da Análise do Discurso, o que possibilita esse processo de
(re)-significação é o caráter dialógico da linguagem, que permite a apropriação de
elementos já discutidos em outros momentos históricos, em outras formações
ideológicas, por sujeitos situados em formações ideológicas antagônicas7.
O que podemos observar sobre a natureza do Estado brasileiro é que a cada
ciclo do capital (sim, porque o Estado brasileiro foi e é uma (re)invenção da
modernidade burguesa) a sua natureza autocrática aflora, e o faz numa mão dupla
que tem como função, por um lado, neutralizar a marcha das classes proletárias, e
por outro, ao mesmo tempo, chamar para si as tarefas que historicamente seriam da
frágil burguesia nacional e do grande, porém disperso e mal organizado,
proletariado. Ou seja, as tarefas que deveriam ser resolvidas na arena da sociedade
civil são invertidas e resolvidas na arena da sociedade política, melhor dizendo, do
Estado, reforçando o caráter débil da sociedade civil brasileira.
O processo de desenvolvimento das estruturas capitalistas no Brasil não
seguiu a trajetória clássica de países como a Inglaterra e a França que, ao longo de
sua história, desenvolveram mecanismos de acumulação primitiva, com a
manufatura

consolidando

a

ordem

do

capital

via

revoluções

burguesas,

desenvolvendo desse modo a capacidade máxima societal desse sistema, ou seja, a
conquista da igualdade jurídico-fiscal com a manutenção das desigualdades sociais.
À medida que o desenvolvimento das forças produtivas no Brasil não rompe
com o modelo escravocrata agroexportador, o desenvolvimento da sociedade
brasileira vai sendo marcado profundamente pela polarização social, na qual uma
ínfima minoria da sociedade, ou seja, apenas os grandes proprietários de terras
escravocratas e uma ampla maioria de escravos, mantinha uma estrutura econômica
anacrônica e excludente. Dizendo de outro modo, através do monopólio da terra e
da monocultura da cana-de-açúcar desenvolveu-se um arcabouço social, amparado
jurídica e politicamente, extremamente desigual e excludente, que colocava as
populações negras completamente marginalizadas do sistema educacional.
7

Trataremos desses conceitos de análise do discurso nos próximos capítulos.

22
Quando observamos os dados históricos, as constatações são ainda mais
perversas. Para citar apenas duas variantes, podemos afirmar que o Brasil foi o
último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão, e, ao longo de três séculos,
mais de quatro milhões de africanos foram retirados de sua terra natal para ser
vendidos e utilizados como escravos.
O sistema educacional, durante os tempos coloniais, praticamente inexistia, a
não ser o trabalho desenvolvido pelos jesuítas com o objetivo de garantir a
catequização. De certo modo, era o equivalente ao processo de alfabetização dos
dias de hoje, porém, com forte conteúdo católico, pois o projeto colonial lusitano
estava sintonizado com as questões religiosas na Europa, ou seja, as disputas entre
católicos e protestantes. Sendo assim, era necessário ampliar os domínios
“espirituais da Igreja de Roma”, convertendo os povos ameríndios para a doutrina
papal, o que, do ponto de vista político-econômico, seria a justificativa e o facilitador
ideológico para uma colonização de exploração comandada pelo interesses
mercantilistas do Estado português, que, por sua vez, era ligado umbilicalmente à
Igreja Católica.
O ensino superior, que tinha como função a formação de uma burocracia para
a administração dos negócios coloniais, ficava a cargo da estrutura metropolitana,
que recebia os filhos dos grandes proprietários de terras, quando atingiam a
maioridade,

sendo

seus

estudos

financiados

e

garantidos

em

Portugal,

especialmente em Coimbra.
Com a expansão da revolução industrial e o avanço das idéias liberais
iluministas na Europa e América do Norte, as condições econômicas e políticas que
sustentavam o antigo regime colonial português vão sendo abaladas, possibilitando
o surgimento de movimentos nacionais que contestavam o pacto colonial e
desenvolviam um projeto nacional. Todavia, esse projeto, por circunstâncias da
conjuntura europeia do início do século XIX, será tutelado pela presença da corte
lusitana no Rio de Janeiro.
A transferência da corte para o Rio de Janeiro trouxe também todo o aparato
burocrático do Estado lusitano, o que resultou na estruturação do Estado imperial
brasileiro, à imagem e semelhança do modelo metropolitano, chegando ao ponto de
o Brasil ser o único país do mundo colonial em que os próprios metropolitanos

23
gritaram a independência, na contramão dos nossos vizinhos sul-americanos, que
mergulhavam em experiências republicanas.
Do ponto de vista oficial, a partir do controle estatal, as primeiras escolas
públicas organizadas no Brasil remontam ao início do século XIX, durante o período
joanino, que marcou a estada da corte no país, durante treze anos (1808-1821).
Nesse período, foi estruturada uma rede mínima de escolas e instituições de ensino
superior, que se concentrava na nova sede imperial, Rio de Janeiro, e em Salvador,
para atender às demandas da corte e das elites agroexportadoras. Como afirma
Chizzotti (2005, p.38),
D. João parece ter pretendido criar um sistema de escolas públicas, pois
‘compreendendo a vantagem e necessidade de organizar a instrução
pública e tudo o que lhe dissesse respeito, debaixo de um plano
sistemático, que reunisse todos os estabelecimentos entre si e os
submetesse a um mesmo pensamento, o da unidade da nação, (...) O
projeto elaborado pelo Conde de Barca, Gal. Francisco de Borja Gastão
Stockler (...), dividindo a instrução pública em quatro graus: as pedagogias,
que compreendiam o ensino elementar primário; os institutos, que
acrescentavam às pedagogias os conhecimentos necessários aos
agricultores, artistas, operários e comerciantes; os liceus, que ministravam
os conhecimentos científicos; e as academias, que desenvolviam os
conhecimentos das ciências abstratas e os estudos das ciências morais e
políticas. O projeto, pela sua inspiração liberal, pelo risco de formar uma
massa letrada e um sistema que nem Portugal, nem a própria França
possuíam, contrastava com os interesses colonialistas da Coroa. Por outro
lado, o erário, exaurido de todas as formas pelas cortes, não teria condições
de implementar plano tão amplo.

1.3 A educação e o liberalismo escravocrata imperial

Com a Independência do Brasil e a formação de seu estado nacional, a
situação pouco ou quase nada mudou em relação à questão negra e ao acesso à
educação, pois o significado do processo de Independência brasileiro foi o de
manutenção dos privilégios das elites latifundiárias, consequentemente, mantendo e
ampliando as estruturas de produção do agronegócio exportador com base no
trabalho escravo.
Como podemos observar, a Constituinte de 1823, que em 6 meses de
trabalho produziu mais discursos vazios que diretrizes para o funcionamento da
educação nacional, teve como resultado o abandono da educação básica, que foi

24
relegada à iniciativa privada, só se alterando lentamente a partir do Ato Adicional de
1834.
A Constituição outorgada em 1824, por D. Pedro I, consolidou uma estrutura
de legislação no Brasil Império que só aprofundou o abismo social entre a elite
branca e a maioria negra. Um exemplo que ilustra a fundo esse abismo social foi a
aprovação da lei imperial de terras em 1850, que decisivamente excluiu o acesso
dos negros à posse da terra, pois a dificuldade de registro das propriedades limitou o
acesso dos pequenos proprietários e dos negros alforriados.
Um outro elemento de análise são as leis abolicionistas de 1871, 1885 e
1888, que tratavam respectivamente da Lei do Ventre Livre, do Sexagenário e da Lei
Áurea, as quais demonstravam o papel do Estado brasileiro assentado no
capitalismo de “via prussiano-colonial’. Como afirma Mazzeo (1988, p. 21-22),
Fundamentalmente, na Inglaterra e na França, o desenvolvimento do
capitalismo passou por revoluções burguesas, respectivamente, 1640 e
1789, que destroçaram o poder feudal, construindo um capitalismo e uma
burguesia forte, verdadeiramente nacional. Esse caminho pode ser
chamado de ‘via clássica’ para o capitalismo. Um outro caminho de
desenvolvimento do capitalismo é o que se deu na Alemanha. Lá o
processo de construção capitalista é dado numa acumulação capitalista de
cunho agrário, onde a antiga nobreza Junker torna-se burguesia e onde,
como foi mencionado, o processo de consolidação do modo de produção
capitalista não passa por revoluções, mas por uma conciliação política entre
a burguesia e a nobreza, no estado bismarckiano. Lenin chamou esse
processo de ‘Via Prussiana’ de desenvolvimento capitalista. [...] A não
ruptura com a estrutura de produção escravista e exportadora
confirmará a dimensão colonial da economia brasileira, o que lhe dará
a condição de economia subordinada e dependente dos pólos centrais
da economia mundial. Daí denominarmos o caminho brasileiro para o
capitalismo de ‘via prussiano-colonial’. (Grifos nossos).

As referidas leis só contribuíram para o controle da luta negra em beneficio do
patronato agrário. De acordo com a Lei do Ventre Livre, previam-se indenizações
aos latifundiários que libertassem as crianças negras a partir da referida data, ou
podiam exigir o trabalho dessas por mais nove anos, quando completariam a sua
maioridade. A segunda lei do sexagenário tinha o conteúdo ainda mais perverso
para os negros, pois “agraciava-os” quando atingissem a idade de 60 anos,
trabalhando mais três para indenizar o senhor ou teriam de esperar completar os 65
anos e só assim receberiam a alforria. Como é de conhecimento público, a
expectativa de vida dos negros submetidos ao trabalho compulsório não passava
dos 35 anos. Por fim, a própria Lei Áurea quando assinada pela princesa Isabel

25
garantiu apenas a libertação de 5% da população negra do Brasil, já que os negros
escravos naquele momento, em sua maioria, já haviam sido substituídos pelos
trabalhadores imigrantes europeus assalariados, restando de escravos apenas os
tais 5%.
O projeto liberal de formação do Estado imperial brasileiro, assentado no
modelo agroexportador escravocrata, não conseguiu sair das formalidades retóricas,
pois um elemento básico como a expansão da educação básica, que caracterizava o
liberalismo clássico europeu, não fazia parte do corolário dos híbridos liberais
brasileiros. Como demonstra Sucupira (2005, p.67),
Numa sociedade patriarcal, escravagista como a brasileira do Império, num
Estado patrimonialista dominado pelas grandes oligarquias do patriciado
rural, as classes dirigentes não se sensibilizavam com o imperativo
democrático da universalização da educação básica. Para elas, o mais
importante era uma escola superior destinada a preparar as elites políticas e
quadros profissionais de nível superior em estreita consonância com a
ideologia política e social do Estado, de modo a garantir a ‘construção da
ordem’, a estabilidade das instituições monárquicas e a preservação do
regime oligárquico.

Como se pode observar, a prioridade da elite brasileira não era a
universalização da educação básica, e sim a formação de seus descendentes. A
mão de obra escrava não precisa ser minimamente qualificada, contudo, as
transformações de toda ordem no sistema capitalista vão impondo a necessidade da
instrução mínima dos trabalhadores.

1.4 A educação na Republica oligárquica

As limitações do liberalismo oligárquico dos cafeicultores já assinalavam o
prelúdio do que viria durante toda a República, principalmente em sua primeira e
segunda fase, ou seja, a busca da “domesticação” dos anseios do movimento negro,
e a estratégia conciliatória de classe na formação de um consenso, que vai
oficializando a marginalização do negro e a estruturação da falsa ideia da
democracia racial. Basta lembrarmos da ausência de leis trabalhistas na Primeira
República e do controle estatal, durante a Era Vargas (1930-1945), das
organizações sindicais que tiveram repercussões diretas e indiretas no movimento
negro.

26
A estrutura republicana montada no governo provisório, chefiado pelo
Marechal Deodoro, traduzia os anseios do bloco de forças sociais composto pelos
cafeicultores do oeste paulista, militares e uma burocracia estatal, que sintetizavam
influências que iam do liberalismo estadunidense até o positivismo francês de
Augusto Comte. Contudo, o discurso federalista desse bloco de poder atendia muito
mais as suas necessidades e pretensões hegemônicas, que se traduziam na
engenharia política do esquema do “café-com-leite”.
O “Estado mínimo” e o laissez-faire serviam apenas para justificar a
inexistência de leis sociais e para afirmar a não obrigatoriedade da educação, à
medida que esta é tida como virtus, ou seja, a busca do conhecimento seria uma
demanda individual; todavia, durante a maior parte do tempo, o Estado interveio na
economia para valorizar o café e beneficiar o bloco do poder.
Entretanto, em meados da década de 20, o capitalismo ocidental entra numa
encruzilhada histórica com o sucesso da URSS e o colapso do modelo de Estado
liberal nascido no século XVIII, com as revoluções burguesas. O esgotamento do
laissez-faire e as condições objetivas levaram o capitalismo a reformar sua
estratégia, aumentando a intervenção do Estado na economia, diante do
acirramento das lutas de classes, para consolidar um dique, evitando o
transbordamento da Revolução de 1917. A crise do capital nos países centrais
influenciou decisivamente na crise da república liberal oligárquica no Brasil, pois à
medida que o país se urbanizava, as classes médias e subalternas questionavam o
bloco hegemônico constituído em 1889. Podemos citar como exemplo da agonia
oligárquica o avanço das colunas tenentistas, que expressavam os anseios dos
setores médios urbanos.
Em meio à marcha da Coluna Prestes e à crise social instalada no país, o
Presidente Arthur Bernardes, às pressas, e contando com a indisposição de seus
opositores liberais, apresenta uma revisão constitucional em 1926 que significou o
fim do princípio contratual de mercado, estabelecido na Constituinte de 1891,
ampliando a intervenção do Estado e anunciando o prelúdio de novos tempos,
inclusive no tocante à questão da educação, como afirma Cury (2005, p.104):

27
De qualquer modo, a Revisão constitucional revelou pelo menos dois pontos
importantes: o primeiro foi a elucidação do papel da União quanto a
instrução básica, quer aceitando que a interferência já estava posta
implicitamente em 1891, quer posicionando que tal orientação deveria ficar
explícita, não se poderia resolver o ‘enigma’ do caráter nacional sem a
presença do Estado. É através da educação que o Estado se torna o
demiurgo da nação, e sem ele o país ou se cinde pelo regionalismo ou
acolhe a “perigosa” idéia de uma revolução internacional. O segundo foi a
antecipação de pontos que só se tornariam componentes do pacto
constitucional após a Revolução de 30.

Nos primeiros momentos da história do Brasil, durante o período colonial e
imperial, o movimento negro era tratado de forma intransigente, sem nenhuma
possibilidade legal de conquistas. Em seguida, emblematicamente com as leis
abolicionistas, o movimento negro tem a possibilidade de abertura legal de direitos,
porém, contraditoriamente, essas leis servem muito mais para legitimar a
marginalização do movimento do que, de fato, para garantir a sua integração à
sociedade.
A característica dessa legislação foi reforçada pela promulgação da
Constituinte de 1891, que ratificou o caráter excludente do liberalismo republicano,
tornando o pragmatismo elitista das oligarquias cafeeiras leis que convertiam as
questões sociais em caso de polícia, como afirmou o presidente Washington Luís
(1926-1930).
Como dissemos anteriormente, a luta do movimento negro, ao longo da
História e principalmente a partir da República, vai sofrer grandes alterações. A partir
de então, o Estado passará a assediar o movimento, no sentido de cooptá-lo e,
consequentemente, controlar a luta definindo seus limites, e assim, é claro, não
colocar em risco as estruturas econômicas do agronegócio, que se vêm perpetuando
ao longo do processo histórico. O mais relevante nesse sentido foi a ideia da
democracia racial que, sem dúvidas, revelou-se um grande obstáculo para o
movimento negro, ao longo da História, já que dissolvia as diferenças no interior
desse discurso.

28
1.5 A crise do modelo agroexportador: educação e consenso pós-Constituição
de 1934
Nesse momento, os movimentos sociais começavam a se organizar com mais
força, como reflexo do processo de urbanização ocorrido no Brasil durante a
primeira metade do século XX. A exemplo, podemos citar: o movimento tenentista,
que a partir dos anos 20, mais precisamente em 1922, passou a questionar o
domínio oligárquico e as lutas negras travadas dentro das forças armadas, como a
revolta da chibata8; a aprovação da Constituição de 1934 e a CLT9, que garantiram
as primeiras conquistas trabalhistas oficialmente reconhecidas pelo Estado, durante
o governo varguista.
Contudo, no tocante à educação, o caráter elitista continua, ao privilegiar-se o
ensino secundário e superior direcionado para as elites. As políticas públicas só
obtiveram força concreta nas décadas de 50 e 60, durante a Terceira República,
mais precisamente na fase populista (1946-1964), com o crescimento das
mobilizações populares, a partir de sua pressão contra o Estado para garantir as
reformas de base, com destaque para a reforma agrária e a reforma da educação.
Na atualidade, a discussão inflamada sobre a escola pública é, em verdade, a
retomada da bandeira do movimento dos pioneiros da Escola Nova que, na década
de 1920, defendiam a democratização do acesso à educação e a montagem de um
sistema de âmbito nacional que garantisse aos cidadãos o direito a escolas públicas,
laicas, obrigatórias e gratuitas. Essas preocupações são consubstanciadas em 1932,
com o lançamento do manifesto dos pioneiros da educação nacional: obrigatória,
laica e gratuita.
A conjuntura internacional anunciava tempos difíceis politicamente com a
ascensão dos regimes nazi-fascistas na Europa, porém o capitalismo em meados
da década de 30, começa a dar resposta à crise de superprodução com o Estado de

8

Luta dos marinheiros afrodescendentes que reivindicavam o fim dos castigos corporais e melhores
condições de trabalho ao governo do presidente Hermes da Fonseca (1910-1914).
9
Consolidação das Leis Trabalhistas.

29
bem-estar social10 e a corrida bélica, que conduziria a humanidade à barbárie da
Segunda Guerra. Todavia, a guerra, foi, é e será expediente do modelo capitalista
de sociedade para regular a taxa de lucro, o que nos leva à conclusão de que a
tragédia da II Guerra possibilitou um crescimento econômico em economias como a
dos EUA e inclusive do Brasil, a ponto de permitir o desenvolvimento da indústria de
base em nações periféricas, como as economias latino americanas, com destaque
para Brasil, Argentina e México.
À medida que esse processo de industrialização se consolidava com a
criação das estatais em setores estratégicos, como a mineração e o petróleo, a
classe operária desses países também se expandia, gerando a possibilidade de uma
revolução. Daí a necessidade de algumas reformas, para garantir a construção de
um mínimo consenso e reformar, ainda que minimamente, o pacto social.
Para não cairmos no personalismo vulgar, nem no objetivismo, é preciso
refletir

sobre

as

condições

subjetivas

e

objetivas

que

caracterizaram

o

desenvolvimento econômico de então. Com relação às condições subjetivas,
podemos destacar a “Revolução de 1930”, que iniciou um modelo de Estado
nacional-desenvolvimentista liderado por Getúlio Vargas. Quanto às condições
objetivas, no Brasil da década de 30 produziram-se condições históricas que
permitiram a formação de uma enorme classe operária, pois o capital vivia um
momento de expansão que possibilitou a formação da indústria de base nacional,
necessitando de uma nova composição no bloco de poder.
Além disso, é preciso levar em consideração os setores industriais urbanos e
o gigantesco sujeito histórico operário, pois já não era mais concebível tratar a
questão social como caso de polícia. Eram necessárias algumas concessões para
construir uma nova governabilidade no país que atendesse aos recorrentes
interesses das oligarquias, aos interesses da nascente burguesia industrial urbana e
aos anseios do operariado, para que este último não “caísse nas mãos” do Partido
Comunista e colocasse em xeque toda a estrutura vigente, ou seja, era necessário
10

Estado de bem-estar social ou Welfare State, também conhecido como Estado-providência, é
um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado como agente da promoção
(protetor e defensor) social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente
regulamentador da vida e saúde social, política e econômica do país em parceria com sindicatos e
empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do
bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população.

30
reformar para perpetuar a propriedade privada. Assim se articulava a elite dirigente
do Brasil.
O líder da “revolução de 30”, Getúlio Vargas, uma personagem histórica
bonapartista11, logo tornou-se o timoneiro da construção dessa recomposição no
bloco de poder. As reformas implementadas já no seu governo provisório (1930-34)
anunciavam uma ampliação do poder estatal com a criação de novos ministérios,
com destaque para dois que eram novidade para o cenário brasileiro – o da
Indústria, Comércio e Trabalho e o Ministério da Educação, em conjunto com a
saúde –, visando a atender às novas demandas do capital, e, claro, a necessidade
de uma educação voltada para as classes operárias urbanas.
A educação passa a ser vista como um pilar fundamental da pátria, junto, é
claro, da formação religiosa, pois sem elas tornava-se complicado combater a
ameaça comunista e o individualismo radical. A preocupação com a educação como
política de estado na Era Vargas já se fazia visível na reforma do Ministro Francisco
Campos em 1931 e na inédita vinculação de recursos públicos para a educação na
Constituição promulgada em 1934, como nos demonstra Rocha (2005, p.128):
A obrigatoriedade do Estado em aplicar recursos públicos em educação foi
um dos aspectos mais significativos aprovados pela Constituição de 1934.
Para os renovadores não seria possível, como nas constituições anteriores,
eximir-se dessa questão. Assim, o debate constituinte tratará tanto de
índices orçamentários da União, Estados e Municípios, referidos à
educação, como criação de fundos especiais de educação. Coloca-se,
então, a exigência de se estabelecer critérios para a distribuição desses
meios, abrindo-se aqui a possibilidade do subsídio público ao aluno carente
de recursos, através do sistema de bolsas de estudo em instituições
privadas, se comprovada a insuficiência do sistema público.

As transformações na educação na década de 30 possibilitam um grande
crescimento do setor privado, com a formação de um empresariado da educação,
concorrente do setor eclesiástico que tradicionalmente controlava a educação
privada para formação de uma elite no país, como afirma Rocha (2005,
p.136 e 137):

11

Conceito político construído por Marx ao analisar o governo de Luís Bonaparte na França de
meados do século XIX em sua obra O 18 Brumário de Luís Bonaparte(1852).

31
Mais radical, entretanto, são as transformações produzidas pela Reforma
Campos sobre o ensino secundário. Se a velha tradição republicana fora de
subalternizar o compromisso da União com este nível de ensino, em função
da prevalência da relação com o superior, a partir daquela reforma o
governo federal definitivamente compromete-se com a educação
secundária, dando-lhe conteúdo e seriação própria. A novidade da reforma
de 1931 foi ter rompido o monopólio estatal do acesso ao superior,
acabando com os exames “de preparatório” e “de madureza”, dando
amplitude à política de oficialização das escolas privadas. A normatividade
dada ao secundário pela Reforma Campos, que foi genericamente aprovada
pela Constituição de 1934,(...), trouxe consequências decisivas para a
questão do investimento público neste segmento. A política de equiparação
entre escolas públicas e escolas privadas, pela oficialização e equivalência
de ambas, promovida agora de forma não mais restrita, favoreceu o grande
“boom”, de expansão do ensino secundário de caráter privado nas décadas
de 1930 e 1940. Chegou, assim, à formação de um empresariado de
ensino, que já no início dos anos de 1940 começa a agir como um ator
político específico (no período anterior, o ator educacional privado
confundia-se fundamentalmente com a organização eclesiástica católica.) O
crescimento de setor privado foi um fator inibidor da iniciativa pública,
restringindo-se o ensino público àquele tempo a algumas escolas de grande
porte e de caráter modelar.

Como foi demonstrado, as transformações das décadas de 30 e 40
resultaram nas décadas seguintes no crescimento do setor privado. A Igreja Católica
terá de dividir o mercado, que no passado era quase que exclusividade sua, com
setores ligados a outras vertentes do cristianismo, como luteranos, presbiterianos e
principalmente setores leigos.

1.6 O nacional-desenvolvimentismo e a formação do capital humano

As transformações na conjuntura política, em meados da década de 1940,
vão alterar novamente, e substancialmente, a correlação de forças no bloco de
poder hegemônico no país. O clima antitotalitário, o avanço dos tanques soviéticos
em direção à Alemanha e a vitória das forças estadunidenses no Pacífico derrotam a
alternativa nazi-fascista na Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A posição do
governo estadonovista nessa nova quadra histórica era profundamente contraditória,
pois diante dos acordos econômicos e militares firmados entre o Brasil e o EUA, o
Presidente Vargas autorizava a utilização do território brasileiro para bases militares
norte-americanas, e, em troca, o Brasil receberia a tecnologia para a estruturação de
sua indústria de base (construção da Companhia de mineração Vale do Rio Doce e
da Companhia Siderúrgica Nacional).

32
Em contrapartida, o regime político, capitaneado pelo líder bonapartista
Getúlio Vargas, se assemelhava com os Estados totalitários derrotados na Itália e
Alemanha. A nova conjuntura que se apresentava necessitava de uma transição
política para uma democracia liberal. As pressões políticas que se abatiam sobre o
regime varguista partiam dos setores mais variados, inclusive de altos funcionários
da ditadura varguista, agora aliados dos EUA. Um exemplo emblemático desse
“repentino isolamento” do líder caudilho gaúcho vinha das próprias forças armadas,
que tanto o haviam ajudado na sua escalada ao poder. A maioria do alto oficialato
das forças armadas brasileiras caía na teia de aranha armada pelos EUA para
preparar a conjuntura política na América Latina para o pós-guerra.
Seguindo as orientações e a influência do pensamento estadunidense,
vestido na armadura de guardião da cultura “democrática cristã do Ocidente”, pois
ainda havia uma grave ameaça no horizonte (a URSS e a Guerra Fria), o
nacionalismo caudilhista de Vargas poderia, mais cedo ou mais tarde, tornar-se uma
perigosa ameaça para a estabilidade da civilização ocidental nos trópicos. Assim,
por mais que o governo demonstrasse cautela na transição para a democracia, o
cenário político exigia um modelo de estado liberalizante que estivesse sintonizado
com os interesses das multinacionais norte-americanas.
Diante das transformações históricas que o mundo vivia no pós-guerra, a
redemocratização brasileira consolidava um regime democrático-liberal com a
promulgação da Constituição de 1946. Essa nova Carta constitucional pouco alterou
a realidade educacional no país, porém a ideia de investir na educação como forma
de fazer a nação se desenvolver economicamente ganhou muita força, e era parte
fundamental do projeto nacional-desenvolvimentista.
Portanto, quando em 1959 os educadores voltam à cena para lançar o
segundo manifesto – "Uma vez mais convocados" –, estão sintonizados com uma
luta antiga, cujo eixo era, uma vez mais, o direito à escola pública. O debate, desta
feita, ficou concentrado em duas lideranças nacionais: pelo lado da defesa da escola
pública, Darcy Ribeiro; em defesa da escola privada, o deputado Carlos Lacerda. A
imprensa da época registra a veemência desta polêmica, com cartas trocadas,
convicções assinaladas, de lado e outro, e acaloradas acusações de parte a parte.
Destaca-se igualmente nesse período o Plano Nacional de Alfabetização
(PNA), desenvolvido também no governo Jango, sob o comando do Ministro da

33
educação Darcy Ribeiro, e, a partir de 63, com o novo ministro da pasta, Júlio
Sambaqui, que utilizou a Pedagogia da Libertação de Paulo Freire, inicialmente
desenvolvida em Pernambuco e posteriormente espalhando-se pelo Brasil e
América Latina.
Com o golpe militar de 1964, Paulo Freire foi exilado, e a prática de seu
método foi proibida no país, apesar de seus livros continuarem a ser editados e
vendidos livremente.
O regime militar consolidou, sob o ponto de vista político, um regime
autoritário. Todavia, sob o ponto de vista econômico, estabeleceu uma estrutura
liberal e privatizante, seguindo a lógica mecanicista do mercado capitalista, com
suas exigências de qualificação mínima, da mão de obra barata, para atender à
nova demanda das multinacionais que entravam no mercado brasileiro.
O resultado foi o desenvolvimento no campo educacional, de um projeto
intitulado MOBRAL12, e uma reforma universitária profundamente sintonizada com
as necessidades do capital norte-americano, conhecida como acordo MEC-USAID,
como nos esclarece, em seu artigo sobre a educação na Constituinte de 1966-67,
Horta (2005, p.224):
O projeto encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional suprime toda
referência à gratuidade em qualquer nível de ensino, introduzindo o
mecanismo de bolsas de estudos para os candidatos ao ensino médio e
superior que comprovassem insuficiência de recursos e demonstrassem
efetivo aproveitamento. No caso do ensino superior, seria exigido o
posterior reembolso do valor da bolsa concedida.

A nova realidade produzida pela sociedade do capital, a partir da década de
70, que tem na sua base uma profunda reestruturação da produção de mercadorias
e serviços, vem mostrando com mais clareza as contradições especificas da
população afro-descendente mundial, e mais precisamente da brasileira. O exemplo
concreto do desnudamento da democracia racial é percebido até no discurso de
correntes ideológicas que outrora sustentavam a referida ideia. Prova disso é o
projeto de educação desenvolvido no Brasil no referido período, que vai ter como
eixo de prática social a definição de uma “sociedade do conhecimento” (FRIGOTO,
1996.) baseada no desenvolvimento de conhecimento, atitudes, concepções,
12

Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado pela Lei 5.379, de 15 de dezembro de 1967.

34
habilidades e valores articulados para as necessidades das novas demandas do
capital, ou seja, reduzindo a educação ao fator economicista de produção, uma
estratégia bastante utilizada pelos defensores da ideia da produção de “capital
humano”, reflexo da natureza das novas tecnologias desenvolvidas na terceira
revolução industrial.

1.7 A crise do nacional-desenvolvimentismo: o consenso neoliberal e as
políticas afirmativas
As transformações econômicas ocorridas na década de 1970, como o
desenvolvimento do toyotismo, o avanço da robótica e a crise mundial do petróleo,
levaram as economias centrais capitalistas ocidentais a substituir o modelo
keynesiano, o que colocou em xeque, na América Latina, o modelo nacionaldesenvolvimentista que vinha marcando a economia brasileira nas décadas de 1940,
1950, 1960 e 1970. A forte presença do Estado na economia passa a ser
responsabilizada pelo fraco desempenho desta.
A reestruturação produtiva vivida no mundo do capital coloca em cena
novamente velhos paradigmas do liberalismo clássico, com uma nova roupagem
para adaptá-lo à nova realidade da produção capitalista, ou seja, a década de 1980
foi o momento em que o modelo neoliberal, caracterizado pelo fundamentalismo do
livre-mercado e defendido fervorosamente por Friedrich Von Hayek e Milton
Friedman, foi implementado por governos de potências capitalistas como a Inglaterra
de Thatcher e os EUA de Ronald Reagan.
O esgotamento do modelo nacional-desenvolvimentista, implementado pelos
governos militares, gera um processo de convulsão social, pois suas características
centrais,

como

concentração

de

renda,

crescimento

da

dívida

externa,

desvalorização da moeda e inflação, levaram o Brasil a mergulhar numa grande
crise social, que ganhou um caráter ainda mais dramático devido à falta de
liberdade.
Ligado ao processo de reestruturação produtiva capitalista, há o surgimento
das políticas assistenciais desenvolvidas pelos governos. “As políticas sociais têm
sua gênese e dinâmica determinadas pelas mudanças qualitativas ocorridas na
organização da produção e nas relações de poder que impulsionaram a redefinição

35
das estratégias econômicas e político-sociais do Estado, nas sociedades capitalistas
do século passado”, afirma (NEVES, 1999, p. 11). A nova agenda programática do
capital pós-setenta não escondeu as contradições modeladoras do sistema do modo
de produção capitalista, sedento por uma determinada qualificação de mão de obra,
com a intenção de acompanhar o desenvolvimento tecnológico.
Essa questão pode ser também observada a partir da conferência mundial
contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata, realizada
em Durban, África do Sul, em 2001, da qual participaram os mais variados setores
da sociedade, desde os movimentos sociais (principalmente os movimentos negros)
até representações patronais de setores do governo, tendo uma forte repercussão,
inclusive servindo de parâmetro para aplicação das políticas afirmativas em vários
governos, com destaque para o governo brasileiro.
Sem dúvida que a luta do movimento negro ganhou uma maior visibilidade
pós-Durban, porém é necessário fazer um estudo dos impactos nos movimentos
sociais, nos governos e na sociedade, e a quem interessam os resultados. Segundo
Neves (1999, p.14):
Em relação a suas estratégias de dominação, o Estado, embora continue a
deter o uso legítimo da força, podendo pôr em funcionamento seu aparato
repressivo para inviabilizar a organização das massas populares, vê-se
compelido a utilizar cada vez mais amplamente estratégias políticas que
visem à obtenção do consenso, diante da ampliação dos espaços
superestruturais estreitos da democracia clássica. Tais estratégias,
resultantes do embate entre os interesses conflitantes das classes sociais
no âmbito do Estado – no sentido estrito – e na sociedade civil, tanto
incorporam demandas reais das classes dominadas como procuram garantir
a hegemonia do grupo monopolista, dependendo da correlação das forças
sociais em cada formação social concreta.

Com os reflexos de Durban13 (2001) já se notava uma alteração nas agendas
do governo brasileiro. Na época, o presidente era o sociólogo Fernando Henrique
Cardoso, que procurou promover, dentro da lógica neoliberal, a partir do Fundo de
Amparo ao Trabalhador (FAT), cursos que visavam a atender à demanda de
qualificação de mão-de-obra direcionada a grupos mais “vulneráveis”, como
mulheres, jovens e afrodescendentes.

13

III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Conexas
de Intolerância.

36
No Governo FHC, as políticas de ações afirmativas que inicialmente
ganharam destaque foram o programa do Ministério da Saúde de combate à anemia
falciforme que, graças à mobilização do movimento negro passou a ser implantado
em 1999, e o reconhecimento e a titulação de terras de comunidades
remanescentes dos quilombolas, atividade que vem sendo desenvolvida pela
Fundação Palmares, ligada ao Ministério da Cultura.
No governo Lula já estão registradas cerca de 65 ações voltadas para a
promoção da “igualdade racial” no Brasil. Essas ações têm uma ampla gama de
atuação

nas três esferas de governo, passando pelo estímulo e ampliação do

acesso de afro-brasileiros ao ensino superior; cursos de qualificação patrocinados
pelo FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador); o projeto geração XXI; até o citado
programa de combate à anemia falciforme14, como o também citado reconhecimento
e titulação de terras de comunidades remanescentes de quilombos. Há ainda
atividades comunitárias destinadas à promoção de crianças e jovens, através de
reforço escolar e de atividades profissionalizantes e, por fim, atividades de apoio e
estímulo à microempresários afro-brasileiros.
É importante mencionar que cerca de metade das ações afirmativas
desenvolvidas até o presente momento concentram-se na área da educação.
Todavia, os impactos dessas políticas afirmativas nas comunidades afrodescendentes e seus efeitos para o movimento negro desembocam principalmente
em um processo de cooptação, para a formação do “consenso” neoliberal.
Grande parte desses movimentos sociais vai para o governo, como nos
mostra a estratégia do presidente Lula na criação da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial e ainda na composição de ministérios como o da
Cultura, Meio Ambiente e Assistência Social.

14

Uma provável mutação genética ocorrida na África há milhões de anos pode ser a causa desse
tipo de anemia que atinge mais a população negra, numa proporção de 400 por 1. A doença é
hereditária e provoca alterações nos glóbulos vermelhos (ou hemácias), que assumem a forma
de foice. Daí o nome falciforme. Essas hemácias defeituosas se agregam, podendo obstruir a
artéria, dificultando a circulação do sangue. Ainda sem cura, essa doença genética e de origem
africana precisa ser detectada no nascer. Fonte: site Raça Brasil.

37
Através do discurso de promoção da “igualdade racial” procura comprometer
o movimento negro, ou pelo menos uma parte muito considerável, com a
implantação de políticas afirmativas.

1.8 A construção das ações afirmativas no Brasil: a conjuntura histórica que
fez emergir o acontecimento discursivo da igualdade racial
Inicialmente,

para

desenvolver

nosso

trabalho,

torna-se

necessário

contextualizar a educação e as políticas afirmativas no Brasil hoje, sendo
imprescindível entendê-la a partir da crise atual do capitalismo, que tem sua origem
nos anos sessenta e setenta, quando tal crise desencadeou a (re)organização de
todo o processo produtivo, atingindo desde a produção de mercadorias até a oferta
de serviços, estando o Japão no epicentro desse processo.
Tal crise se alastra por todas as esferas sociais, com o desenvolvimento da
lógica toyotista e o avanço do neoliberalismo no Ocidente, que atinge, como não
poderia deixar de ser, a educação em todos os seus níveis.
Nesse sentido, o papel da educação passou a ser revisto amplamente, desde
o currículo escolar, a prática pedagógica, a organização administrativa dos centros
educacionais, os conteúdos, até o ensino, a pesquisa e a extensão. Em geral, todas
as questões ligadas direta ou indiretamente à educação sofrem alterações que
refletem essa nova dinâmica produtiva.
Numa rápida observação, podemos constatar que a consequência desse
processo histórico é marcada essencialmente por duas variantes. A primeira é a
aplicação de políticas que pretendem (des)responsabilizar o Estado das políticas
públicas; a segunda é a adoção de medidas que buscam atrair a sociedade civil para
assumir a responsabilidade de importantes demandas sociais, que se agravam
ainda mais por conta desse processo.
Com o avanço das faculdades privadas, dos diversos cursos preparatórios
para o vestibular e o sucateamento das universidades públicas, surgem as políticas
afirmativas, como as cotas nas universidades. Esse processo tem-se desenvolvido
nos últimos anos com um discurso que busca caracterizar-se como um processo de
democratização do ensino para esses segmentos, como uma política de reparação.
Nesse sentido, remetemos a nossa análise às origens e consequências das diversas

38
exclusões junto à educação nacional, ao longo da História, em especial a exclusão
dos negros. Na atualidade, esse tema é muito debatido, e por isso o esforço para a
realização deste trabalho.
De acordo com o documento Educação e Ações Afirmativas: entre a
injustiça simbólica e a injustiça econômica (2003),
Muito se tem falado da desigualdade racial no Brasil, dos preconceitos
velados, implícitos e explícitos; do atraso escolar das crianças negras; dos
salários dos negros e negras, sempre menores, quando comparados aos
dos brancos e brancas, mesmo quando se prova que a escolaridade é a
mesma ou até maior; do desemprego, da marginalidade e da violência que
atingem níveis estatísticos mais altos nas comunidades negras, sobretudo
quando se constata que, no Brasil, 64% dos pobres e 69% dos indigentes
são negros ou afrodescendentes, quando se constata a quase inexistência
de negros nas universidades brasileiras e na pesquisa acadêmica.

Como podemos observar nos dias atuais, a relativa necessidade de qualificar
um setor do exército de reserva de mão de obra destinado a ocupar postos de
trabalho se choca com a busca cada vez maior de obtenção de lucros.
Os empresários da educação, a cada dia que passa, intensificam o processo
de mercantilização do ensino. Consequentemente, há por trás dessa política um
considerável aumento do desemprego, ao passo que avança a robótica e aumenta a
precarização e a exploração do trabalho.
As engrenagens capitalistas que têm desdobramentos nas políticas públicas
para a educação trazem como resultado o avanço da informalidade entre os
profissionais da educação, que na maioria das instituições de ensino privado, em
todos os seus níveis, do básico ao superior, estão completamente desprotegidos das
leis trabalhistas (CLT), vivendo as diversas atividades profissionais, em muitos
casos, com contratos ilegais ou por meio de Fundações de apoio.
No Brasil, essa situação se agrava com o processo de seleção dos alunos
concluintes do ensino médio, através do vestibular, que potencializa a segregação e
a competitividade. Essa herança da nossa história gera uma intensa política
estimulada

pelos

grandes

empresários

do

ensino,

que

cobram

elevadas

mensalidades, tornando ainda mais difícil o acesso dos trabalhadores, dos
afrodescendentes, indígenas e deficientes físicos ao ensino superior.

39
No entanto, ao passo que se amplia a oferta de cursos superiores privados,
com elevado custo de mensalidades, o conflito passa a nortear também a questão
de classe, pois não se conseguem absorver as camadas mais carentes.
Ou seja, diante das dificuldades financeiras do conjunto dos trabalhadores e
estudantes brasileiros, uma grande parte das vagas dessas diversas instituições
privadas encontra-se ociosa. Nesse sentido, utilizando-se de um discurso
democratizante, sobretudo no que se refere às políticas afirmativas aos negros, que
historicamente estiveram fora do processo educacional, visam a encobrir o processo
de exclusão ainda presente no modelo atual e ainda mais intenso com a
implementação das políticas neoliberais.
Somente um estudo dessa política de assistência na área de educação
desenvolvida atualmente no Brasil permitirá uma análise dos limites e das
possibilidades dessa política pública de afirmação, como também em que medida
ela contribui ou não para a diminuição da exclusão dos trabalhadores de origem
afrodescendente do ensino superior no Brasil.
Diante da grande necessidade de inserir-se no universo acadêmico, no
processo educacional, uma grande parte do movimento negro e até mesmo os
intelectuais e organizações de esquerda reagem positivamente ao advento das
cotas. Isso se explica pelo fato de que determinados setores sociais estiveram
excluídos sistematicamente do processo educacional brasileiro. De acordo com Ianni
(1987, p. 7),
A História do povo revela que há diversidades raciais que são criadas e
recriadas no interior das desigualdades sociais. Aliás, as características
raciais são produzidas socialmente nas relações entre diferentes etnias.
Nesse sentido é que raça, preconceito racial e o racismo são produtos das
relações entre membros de grupos que se consideram e agem como
diferentes e desiguais.

Analisar os limites do discurso da igualdade racial, investigando os sentidos
dos discursos das políticas afirmativas no projeto do governo Lula, comparando com
as necessidades, na gênese dos problemas, bem como a sua própria natureza,
permitirá identificarmos em que perspectiva as ações do governo estão
direcionadas, tendo em vista que nos últimos anos elas têm sido motivo de muitas e
acaloradas discussões entre estudantes e educadores, como nos demonstra o

40
manifesto15 que será analisado e tem repercussão nacional com a adesão de
intelectuais, sindicalistas e artistas de renome.
Nas últimas décadas, verificamos a apresentação, de forma “inovadora”, de
um conjunto de novos conceitos como única opção possível de mudanças dentro da
sociedade

capitalista.

Longe

de

apresentar

novas

soluções,

realmente

transformadoras, essas ditas inovações conceituais não passam de mais um
malabarismo teórico construído em meio à nova (des)ordem econômica.
Visando à manutenção do velho, formula-se um conjunto de conceitos de
forma a apresentá-los como algo novo, numa perspectiva transformadora da
realidade. O projeto, muito embora sofisticado e com uma aparente força
transformadora, pois de fato modifica as estruturas materiais das sociedades,
principalmente no tocante a sua capacidade de construção hegemônica, mantém a
lógica que regulamenta seu surgimento, ou seja, a lucratividade do capital.
De forma concreta, o capital se apropria de um discurso transformador e
opera grandes mudanças em diferentes regiões do mundo, aumentando o seu poder
hegemônico no campo político e também na construção de um senso comum
favorável as suas intenções, descredenciando outras concepções, como as que
sustentaram os processos transformadores do Leste europeu, criando uma forte
barreira ideológica de difícil penetração, mas ainda assim, não impossível de ser
transplantada como pretendem seus defensores.
Nacionalmente o discurso dos governantes, a partir da década de 90 em
diante, aparece em conformidade com a política traçada no bojo das mudanças
estruturais do capital. Todas as vertentes políticas alojadas no poder federal
constituíram-se como vozes das expectativas de mudanças. Ocasionalmente é
assim que se credencia um governante, mas para além das prerrogativas do pleito,
é na prática cotidiana de sua governança que se assemelham os modelos e suas
contradições.

15

Ver anexo 2.

41
Para entrar na trajetória histórica de aplicação das políticas afirmativas no
Brasil, sentimos a necessidade de apresentar alguns conceitos de ações afirmativas
desenvolvidos por pesquisadores que trabalham com esse tema:
O termo ação afirmativa refere-se a políticas e procedimentos obrigatórios e
voluntários desenhados com o objetivo de combater a discriminação no
mercado de trabalho e também de retificar os efeitos de práticas
discriminatórias exercidas no passado pelos empregadores. Da mesma
forma que no caso das leis antidiscriminatórias, o objetivo da ação
afirmativa é tornar a igualdade de oportunidades uma realidade, através de
um ‘nivelamento do campo’. Ao contrário das leis anti-discriminatórias, que
apresentam remédios aos quais os trabalhadores podem recorrer após
terem sofrido discriminação, as políticas de ação afirmativa têm como
objetivo prevenir a ocorrência da discriminação. A ação afirmativa pode
prevenir a discriminação no mercado de trabalho substituindo práticas
discriminatórias – intencionais ou rotinizadas – por práticas que são uma
proteção contra a discriminação. (RESKIN, 1997).
Num esforço de síntese e incorporando as diferentes contribuições,
podemos
falar
em
ação
afirmativa
como
uma
ação
reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir uma situação
de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos no passado,
presente ou futuro, através da valorização social, econômica, política e/ou
cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfase em um ou
mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contexto histórico e
social (MOEHLECKE, 2002).
Historicamente, as políticas públicas brasileiras têm-se caracterizado por
adotar uma perspectiva social, com medidas redistributivas ou assistenciais
contra a pobreza baseadas em concepções de igualdade, sejam elas
formuladas por políticos de esquerda ou direita (MUNANGA, 1996).

A redemocratização foi também acompanhada de rearticulação dos
movimentos sociais, que começaram a exigir uma postura mais ativa do Poder
Público diante das questões como raça, gênero, etnia, e a adoção de medidas
específicas para sua solução, como as ações afirmativas.
O primeiro registro encontrado da discussão em torno do que hoje
poderíamos chamar de ações afirmativas data de 1968, quando técnicos do
Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho manifestaram-se
favoráveis à criação de uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter uma
percentagem mínima de empregados de cor (20%, 15% ou 10%, de acordo com o
ramo de atividade e a demanda), como única solução para o problema da
discriminação racial no mercado de trabalho (SANTOS, 1999, p.222). Entretanto, tal
lei não chegou a ser elaborada.

42
Somente nos anos de 1980 haverá a primeira formulação de um projeto de lei
nesse sentido. O então deputado federal Abdias Nascimento, em seu projeto de Lei
n. 1.332, de 1983, propõe uma ação compensatória que estabeleceria mecanismos
de compensação para o afro-brasileiro, após séculos de discriminação. Entre as
ações figuram: reserva de 20% de vagas para mulheres negras e 20% para homens
negros na seleção de candidatos ao serviço público; bolsas de estudos; incentivos
às empresas do setor privado para a eliminação da prática da discriminação racial;
incorporação da imagem positiva da família afro-brasileira ao sistema de ensino e à
literatura didática e paradidática, bem como introdução da história das civilizações
africanas e do africano no Brasil. O projeto não é aprovado pelo Congresso
Nacional.
Em 1984, o governo brasileiro, por decreto, considera a Serra da Barriga,
local do antigo Quilombo dos Palmares, patrimônio histórico do país; em 1988,
motivado pelas manifestações por ocasião do Centenário da Abolição, cria a
Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, a qual teria a
função de servir de apoio à ascensão social da população negra.
No mesmo ano é promulgada a nova Constituição, que traz em seu texto
novidades como a proteção ao mercado de trabalho da mulher, como parte dos
direitos sociais, e a reserva percentual de cargos e empregos públicos para
deficientes.

1.9 A década de 1990 e o governo FHC

Em 1995, encontramos a primeira política de cotas adotada nacionalmente.
Através da legislação eleitoral foi estabelecida uma cota mínima de 30% de
mulheres para as candidaturas de todos os partidos políticos.
No âmbito do movimento negro, a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela
Cidadania e a Vida, representou um momento de maior aproximação e pressão em
relação ao Poder Público, quando foram apresentadas ao governo propostas de
políticas públicas para a população negra no Programa de Superação do Racismo e
da Desigualdade Racial, que inclui, dentre suas sugestões: incorporar o quesito cor
em diversos sistemas de informação; estabelecer incentivos fiscais às empresas que

43
adotarem programas de promoção da igualdade racial; instalar, no âmbito do
Ministério do Trabalho, a Câmara Permanente de Promoção da Igualdade;
regulamentar o artigo da Constituição Federal que prevê a proteção do mercado de
trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; implementar
a Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino; conceder bolsas
remuneradas para adolescentes negros de baixa renda, para o acesso e conclusão
do primeiro e segundo graus; desenvolver ações afirmativas para o acesso dos
negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de
ponta; assegurar a representação proporcional dos grupos étnicos raciais nas
campanhas de comunicação do governo e de entidades que com ele mantenham
relações econômicas e políticas (MARCHA ZUMBI, 1996).
Alguns tratados internacionais também foram utilizados como estratégias de
pressão de movimentos sociais em relação ao Poder Público. Um exemplo foi o uso
da Convenção n. 111, da OIT, concernente à discriminação em matéria de emprego
e profissão, ratificada em 1968 pelo Decreto n. 62.150, em que o Brasil se
compromete a formular e implementar uma política nacional de promoção da
igualdade de oportunidades e de tratamento no mercado de trabalho.Como
consequência, e depois de formalmente questionado pelo organismo, admite, em
1995, a existência do problema no Brasil e cria o Grupo de Trabalho, para
Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação (GTEDEO).
No dia 13 de maio de 1996 é lançado o Programa Nacional dos Direitos
Humanos – PNDH –, pela recém-criada Secretaria de Direitos Humanos, que
estabelece como objetivo, dentre outras coisas, desenvolver ações afirmativas para
o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de
tecnologia de ponta, formular políticas compensatórias que promovam social e
economicamente a comunidade negra e apoiar as ações da iniciativa privada que
realizem discriminação positiva (BRASIL, 1996, p. 30).
Em junho do mesmo ano temos a realização do seminário Ações Afirmativas:
estratégias antidiscriminatórias?, realizado no Instituto de Pesquisas Econômica
Aplicada - IPEA -, e, em julho, o seminário internacional Multiculturalismo e racismo:
o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos, promovido
pelo Ministério da Justiça em Brasília.

44
Na área educacional, podemos perceber certa atenção, ainda que pontual, do
Poder Público no que concerne à questão racial, como observamos nos Parâmetros
Curriculares Nacionais, no Programa Nacional do Livro Didático e no manual
“Superando o racismo na escola”. Entretanto, até final dos anos de 1990, ações
voltadas à melhoria do acesso e permanência no ensino superior estão restritas à
sociedade civil. Essas atividades são desenvolvidas por movimentos sociais, como o
Movimento Negro, por parcerias deste com empresas privadas, por entidades
ligadas à igreja ou por grupos de estudantes em universidades.
Dentre as experiências em prática podemos identificar três tipos de ações,
não necessariamente excludentes entre si: a) cursos preparatórios para o vestibular
e cursos de verão e/ou de reforço durante a permanência do estudante na
faculdade; b) financiamento de custos, para o acesso e permanência nos cursos,
envolvendo o custeio da mensalidade em instituições privadas, bolsas de estudos,
auxílio-moradia, alimentação e outros; c) mudanças no sistema de ingresso nas
instituições de ensino superior, pelo sistema de cotas, taxas proporcionais, sistemas
de testes alternativos ao vestibular.
Na esfera do Poder Legislativo nacional, encontramos propostas de ações
afirmativas, especialmente no que diz respeito ao acesso ao ensino superior. Em
1993, encontramos a proposta de Emenda Constitucional do então deputado federal
Florestan Fernandes (PT/SP); em 1995, a então senadora Benedita da Silva (PT/RJ)
apresenta os projetos de Lei n. 13 e 14; no mesmo ano é encaminhado o projeto de
Lei n. 1.239, pelo então deputado federal Paulo Paim (PT/RS); em 1998, o deputado
federal Luiz Alberto (PT/BA) apresenta os projetos de Lei n. 4.567 e 4.568; e, em
1999, temos o projeto de Lei n. 298, do senador Antero Paes de Barros (PSDB).
Analisando o conjunto dos projetos, observamos que são apresentadas
diferentes propostas: a concessão de bolsas de estudo; uma política de reparação
que, além de pagar uma indenização aos descendentes de escravos, propõe que o
governo assegure a presença proporcional destes nas escolas públicas em todos os
níveis; o estabelecimento de um Fundo Nacional para o Desenvolvimento de Ações
Afirmativas; a alteração no processo de ingresso nas instituições de ensino superior,
estabelecendo cotas mínimas para determinados grupos. Na definição dos grupos
beneficiados, os projetos estabelecem critérios exclusivamente raciais/étnicos ou
sociais, ou procuram utilizar ambos os critérios. Naqueles que estabelecem grupos

45
raciais, temos como público-alvo os negros afro-brasileiros, descendentes de
africanos, ou setores etnorraciais socialmente discriminados, em que estaria incluída
a população indígena. Há projetos específicos para a população denominada
carente ou para os alunos oriundos da escola pública.
Sobre a proporção daqueles atingidos pelas leis propostas, não há um padrão
nesse dimensionamento: alguns projetos definem todo o grupo especificado, racial
ou social, como beneficiário; outros estabelecem um percentual, como 20% das
vagas para alunos carentes, 10% das vagas para setores etnorraciais discriminados,
45% dos recursos para afrodescendentes; 50% das vagas para alunos oriundos das
escolas públicas. Até o final dos anos de 1990, nenhum dos projetos de lei citados
tinha sido aprovado ou implementado.
Somente a partir de 2001 foram aprovadas políticas de ação afirmativa para a
população negra por decisão do Poder Público. No Ministério do Desenvolvimento
Agrário, por exemplo, foi assinada, em setembro de 2001, portaria que cria uma cota
de 20% para negros na estrutura institucional do Ministério e do INCRA, devendo o
mesmo ocorrer com as empresas terceirizadas, contratadas por esses órgãos.
O Ministério da Justiça, em dezembro de 2001, assinou portaria que
determina a contratação, até o fim de 2002, de 20% de negros, 20% de mulheres e
5% de portadores de deficiências físicas para os cargos de assessoramento do
Ministério. O mesmo princípio será aplicado às empresas de prestação de serviços
para o órgão federal.
O Ministério de Relações Exteriores decidiu que, a partir de 2002, serão
concedidas vinte bolsas de estudo federais a afrodescendentes que se preparam
para o concurso de admissão ao Instituto Rio Branco, encarregado da formação do
corpo diplomático brasileiro.
No âmbito do ensino superior, a primeira lei com esse perfil foi aprovada no
Rio de Janeiro e entrou em vigor a partir da seleção de 2002/2003. Por meio de lei
estadual, foi estabelecido que 50% das vagas dos cursos de graduação das
universidades estaduais sejam destinadas a alunos oriundos de escolas públicas,
selecionados por meio do Sistema de Acompanhamento do Desempenho dos
Estudantes do Ensino Médio (Sade). No Paraná, o governo estadual regulamentou
uma lei que garante três vagas em cada uma das cinco universidades estaduais a

46
membros da comunidade indígena da região, entrando em vigência também em
2002.
O governo FHC também atuou, através da Fundação Cultural Palmares, na
promoção de debates visando subsidiar a participação brasileira na III CMR. Ainda
no plano preparatório, após ter se recusado a sediar a Conferência Regional
Preparatória das Américas (Prepcon), o governo brasileiro promoveu a Conferência
Nacional Preparatória à III Conferência Mundial contra o Racismo, que se realizou
no Rio de Janeiro, em julho de 2001, com destaque para a participação das ONGs e
organizações do Movimento Negro.

47
2 A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA

2.1 As condições de produção do discurso abolicionista no Brasil

Para desenvolver a construção da análise do discurso torna-se imprescindível
a compreensão das relações do sujeito – no caso em questão do negro – em sua
participação nas relações de produção social, como via de construção dos sentidos
no discurso, como afirma Orlandi (2001, p. 30):
Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a ser
decodificadas. São efeitos de sentidos que são produzidos em condições
determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo como se
diz, deixando vestígios que o analista do discurso tem de apreender. São
pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí
produzidos, pondo em relação o dizer em sua exterioridade, suas condições
de produção. Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também
em outros lugares, assim como com o que não é dito e com o que poderia
ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também
fazem parte dele.

Por isso a necessidade de fazer uma reflexão sobre o conceito de Condições
de Produção desses discursos abolicionistas, pois a categoria em debate é
essencial no entendimento de como os discursos se constroem, revelando seus
variados sentidos, e, ainda, sua intervenção na realidade, podendo realizar o papel
de transformação ou de estabilização da realidade em que é produzido, e ainda
possibilitando fazer uma leitura procurando ir além das aparências do que se diz nos
referidos discursos.
Na perspectiva da Análise do Discurso, à qual somos filiados, não há um
sentido único; o que existe são sentidos variados que vão além das aparências.
Para compreender como se constroem os sentidos que aparecem nos discursos e
dão possibilidade ao analista do discurso desvendar como ocorre essa produção,
mostrando como os dizeres não devem ser observados como mensagens que são
transmitidas e logo compreendidas em sua literalidade, mas sim desvelar seus
efeitos de sentido, produzidos por sujeitos em uma determinada conjuntura histórica
onde realizam suas escolhas a partir do que se mostram, no modo como dizem.
Essas escolhas dos sujeitos levam em consideração o que podem e devem dizer
nesse determinado momento histórico. Neste capítulo trataremos das condições de
produção do discurso abolicionista.

48
São consideradas condições de produção do discurso as relações que
compreendem os sujeitos, a situação ou conjuntura histórica e a memória. Os
sujeitos são os produtores, no sentido estrito do enunciado, do discurso,
influenciados sempre pela exterioridade na sua relação com os sentidos produzidos
pela memória. Para que possamos entender como esta categoria – Condições de
Produção – é fundamental no desenvolvimento do nosso trabalho de análise do
discurso, é importante entendê-la em seus dois sentidos, o estrito e o amplo.
O sentido estrito são as circunstâncias da enunciação, ou seja, o contexto
imediato onde se pronunciam os discursos analisados, no caso específico da nossa
presente análise do discurso, o governo do presidente Luís Inácio da Silva.
O sentido amplo trata das relações de produção, com toda suas
características históricas, sociais e ideológicas; no caso do nosso trabalho seria a
constituição da memória de uma sociedade capitalista subdesenvolvida que vive um
processo de transição política no regime de trabalho no fim do século XIX. Já o
sentido estrito trabalha as condições imediatas em que ocorre a formulação do
discurso, ou seja, o momento em que as elites brasileiras produzem o seu discurso
abolicionista (re)significado, dentro dos limites de seus interesses de classe,
resultando no efeito de sentido de transformação. Essa transformação, contudo,
ocorre com mais intensidade no âmbito da superestrutura, mantendo seu domínio
nas relações de produção.
A segunda metade do século XIX foi de fundamental importância para a
consolidação da ordem capitalista liberal burguesa, na esteira das mudanças de
ordem econômica e política que já se desenrolavam no final do século XVIII,
profundas mudanças estruturais engendradas pela revolução industrial na Inglaterra
e com a queda da Bastilha na França.
Essas transformações quebraram as últimas amarras para o pleno
desenvolvimento da reprodução do capital, com a consolidação do poder político e
econômico da burguesia, garantindo o desenvolvimento do arcabouço jurídico liberal
que, ao longo do século XIX, iria se universalizar, pelo menos no Ocidente.
O crescimento da capacidade industrial ao longo do século XIX foi
acompanhado de um contínuo processo de financeirização da economia, no qual os
capitais industriais, para ampliar suas capacidades de competição, passavam a

49
recorrer cada vez mais aos capitais bancários. Esse processo de fusão dos bancos
com as indústrias, com algumas particularidades regionais, vai impulsionar uma
expansão industrial extraordinária, no final do século XIX, em praticamente toda a
Europa ocidental, EUA e Japão.
O surgimento de novas nações industrializadas leva o mercado mundial a um
momento de reorganização e redistribuição que altera as relações capitalistas
mundiais. Como o Brasil, desde os primeiros anos do século XVI vinha, como
colônia,

fazendo

parte

desse

crescente

mercado

mundial,

as

referidas

transformações também trouxeram mudanças para sua economia. Ou seja, no
quadro de um capitalismo imperialista monopolista, o acirramento das disputas no
mercado mundial vai exercer uma forte pressão para o fim das relações arcaicas de
trabalho, engendradas pelo escravismo mercantil dominante no Brasil.
O desenvolvimento de novas tecnologias na 2ª revolução industrial ampliou
de maneira extraordinária a capacidade de produção de mercadorias de um lado e
do outro radicalizou a divisão sociotécnica do trabalho. Essas transformações, sem
dúvida, foram acompanhadas de avanços no campo das ciências naturais, agora
unidas aos interesses das grandes corporações, que por sua vez impulsionavam
seus Estados nacionais a uma postura agressiva e expansionista.
Cabe salientar que não é nosso objetivo entrar na seara das ciências naturais
e biológicas que deram um salto qualitativo na segunda metade do XIX, contudo, no
clima predominante do cientificismo europeu uma teoria em especial nos é
necessário salientar, melhor dizendo, o impacto da teoria da evolução das espécies,
de Charles Darwin, que, de maneira brilhante, abre uma fissura irreparável nas
teorias religiosas. Darwin influenciou círculos intelectuais, tanto da esquerda como
da direita.
Os círculos intelectuais da elite europeia, em especial através da influência do
francês Herbert Spencer, logo trataram de adaptar as descobertas cientificas
darwinistas aos interesses das ciências humanas, que, impregnadas do cientificismo
da época, tentavam adaptar as leis e os paradigmas das ciências naturais para
conquistar o estatuto de ciência. Um resultado político dessas discussões foi a
formulação do darwinismo social, que se constituirá como a pedra angular das
teorias raciais que dominarão a agenda dos governos imperialistas europeus que

50
irão incessantemente difundir o “racismo cientifico” como justificativa das invasões
na África e Ásia, na esteira da conferência de Berlim, em 1885.
As transformações no conjunto da economia capitalista vão, sem dúvida,
alterar as relações entre os Estados e criar um clima beligerante na segunda metade
do século XIX. O ano de 1873 entrou para a História como a primeira grande crise
de superprodução. As condições de reprodução do capital entram em uma nova
etapa, em que a hegemonia do capital britânico e todas as suas acomodações
comerciais (inclusive a relação com o império escravocrata brasileiro) são duramente
questionadas pelos países considerados novas “potências”.
O imperialismo britânico tem agora um concorrente, O imperialismo alemão,
sedento por mercados, ou melhor, por colônias. Essa disputa irá marcar
profundamente as últimas décadas do século XIX, ou seja, pode-se dizer que a
estrutura de acumulação capitalista que havia sido montada no século anterior
estava profundamente em crise, tendo inclusive reflexos na América Latina.
Constatamos então que as contradições que marcaram a segunda metade do
século XIX, as quais, para um observador desatento, exibiam uma aparência
regional, sem qualquer relação entre si, tinham uma profunda relação com as
transformações no modo de produção capitalista em conjunto. Doravante, a
particularidade regional tinha também sua importância, como é caso da América
Latina, com as disputas regionais para acomodar as maiores economias da região
em sua relação com os grandes centros do capital. Encontramos respaldo para o
que acabamos de afirmar no posicionamento do General Bartolomeu Mitre,
presidente da Argentina na época da Guerra do Paraguai:
A República da Argentina está no dever de formar aliança com o Brasil a fim
de derrubar essa abominável ditadura de López e abrir ao comércio do
mundo essa esplêndida e magnífica região que possui, talvez, os mais
variados e preciosos produtos dos trópicos (CHIAVENATO, 1979. p. 104).

Também teve sua corrida bélica, que terminaria com um verdadeiro massacre
do nacionalismo paraguaio, que possuía uma mistura sincrética dos ventos liberais
napoleônicos com a cultura guarani.

51
A explosão da guerra do Paraguai (1864-70) no subcontinente latino
americano, sem sombra de dúvidas acelerou as contradições do Império brasileiro.
As consequências da guerra, mais imediatas, que podemos observar foram a
modernização do exército brasileiro e a sua adesão ao ideário liberal positivista, que
logo o tornou peça-chave da política nacional, em especial no processo de transição
gradual da mão de obra escrava para assalariada e na metamorfose do estado
imperial para o republicano.
A guerra da Tríplice Aliança sul-americana não foi a única razão das
transformações ocorridas no Brasil, no final do século XIX; há outra observação de
fundamental importância: o desenvolvimento da cafeicultura no oeste paulista, que
no período em questão, engendra um processo simbiótico de “modernização”,
acomodando

os

interesses

agroexportadores

das

tradicionais

elites

às

transformações trazidas pelo acúmulo de capitais, possibilitado pelo café.
A cafeicultura, em especial no oeste paulista, será responsável pelo
desenvolvimento da modernização do Brasil. As ferrovias, o beneficiamento do café,
as casas bancárias, ou seja, o moderno chegava ao Brasil pelas mãos do
conservadorismo latifundiário.
O desenvolvimento industrial das últimas décadas do século XIX também
diversificou o mercado de matéria-prima, o que decerto contribuiu para a ampliação
das áreas de extração da borracha no Norte do Brasil, que atraiu muitos nordestinos
que já vinham sofrendo com as oscilações do açúcar e sua crescente
secundarização na pauta de exportações nacionais, resultando em uma onda de
imigração nordestina, em direção ao Norte, para ocupar a Amazônia.
Além das transformações inter-regionais operadas pela diversificação da
economia, o final do século XIX também foi marcado pelo processo de chegada dos
imigrantes, em especial os italianos, comprovando o corte racial da política do
Estado brasileiro que, à medida que os europeus migravam para o Brasil,
estruturava uma rede de apoio mínimo para que estes pudessem adaptar-se à “nova
vida”. Essa mesma preocupação com os afro-brasileiros, os filhos da escravidão, no
novo momento nacional, não existia, o que deixava clara a intenção das elites
controladoras do estado em “branquear” a sociedade brasileira, sendo esse
movimento claramente racial, visto à época como ingrediente fundamental do
processo modernizador, refletindo as ideias do cientificismo racial. Todo esse

52
processo de transformação constitui as condições amplas de produção do discurso
abolicionista. No que concerne às condições estritas, esse discurso eclode no
período de transição do Brasil Imperial escravista para a República com trabalho
assalariado.

2.2 A construção da República e a identidade nacional

As transformações do final do século XIX nos levam a pensar nos sentidos do
discurso liberal abolicionista no Brasil como sendo parte dos interesses da elite
brasileira que, adaptando os interesses da estrutura da economia nacional aos
ideais do liberalismo europeu, em nome de uma suposta liberdade econômica e
igualdade de direitos, procura igualar o Brasil, ao menos teoricamente, às demais
nações civilizadas do mundo.
Ao longo do século XIX, no Brasil, a concepção liberal criou suas raízes no
Império, e uma das questões fundamentais do período era a noção de direito natural
à propriedade, colocando o escravo como propriedade, o que durante longas
décadas criou uma barreira ao desenvolvimento de uma mentalidade pró-abolição
nos círculos mais intelectualizados do País. Porém as fragilidades da ordem social
estruturada no trabalho escravo, geradora de uma contradição que colocava o país
na contramão do processo civilizador, e as relações de trabalho escravistas
impediam o desenvolvimento pleno das relações capitalistas no Brasil.
É preciso salientar que a mesma tradição liberal elitista que justificava o
direito à propriedade do escravo16 no inicio do Período imperial brasileiro irá se
ressignificar e, ao final do referido período, patrocinará a abolição gradual da
escravidão.
O desenvolvimento das leis abolicionistas, combinado com uma maior adesão
de setores das elites nacionais à causa da “abolição”, vão configurar o terreno fértil
para a suposta solução da questão humanitária do trabalho escravo. A explicação é
simples para o giro político que ocorrerá para o terreno da democracia racial. Esse
discurso se sustenta em três pilares ideológicos: primeiro, a escravidão brasileira era
16

Segundo a tradição ocidental aristotélica o escravo era considerado coisa, logo perdia seus direitos
naturais. Historicamente os gregos, os romanos, e na modernidade as nações europeias,
reinterpretaram essa noção de trabalho, caracterizando o homem escravo como desprovido de
direitos.

53
maleável e os negros eram “bem tratados”; segundo, a miscigenação dos brancos
com as negras e; por último, a legislação estava garantindo a libertação gradual de
todos os escravos.
Todavia, as condições objetivas nem sempre se coadunavam com o discurso
oficial emitido pelo Estado. A herança econômica de séculos de plantation17
escravista havia causado um dano muito profundo à formação do povo brasileiro,
pois não se tinha um aparato estatal, cultural e tecnológico para atender tamanha a
demanda.
Ao contrário do paraíso racial difundido pelo discurso estatal, a história dos
negros brasileiros após 1888 tem sido, em devida medida, a sina de sua
proletarização e exclusão, como afirma Ianni (1966, p. 18):
Egresso da escravatura, viu-se numa situação nova e desconhecida. Devido
às condições históricas pelas quais se estava verificando a formação do
capitalismo no Brasil, o negro não pôde ser absorvido imediata e
amplamente. Décadas se passaram, antes que ele pudesse sentir-se
seguro de um salário. Foi preciso que atravessasse várias fases, antes que
começasse a ser aceito e procurado como trabalhador. Portanto, o dilema
que cerca a existência do negro, depois de 1888, se resume aos seguintes
termos: nem ele estava preparado para vender sua força de trabalho, nem o
empresário estava preparado para comprá-la.

A formação do proletariado e do capitalismo brasileiro também seguiu as
regras do mercado, em especial a lei da oferta e da procura, em que, sem dúvidas,
os detentores do capital levam todas as vantagens possíveis e imagináveis. Ou seja,
ao passar teoricamente pela metamorfose escravo-cidadão, o negro teve contato da
maneira mais dolorosa possível com a liberdade alienada, possibilitada por um
capitalismo tardio.
A tradição liberal desenvolvida na sociedade brasileira largou o negro a sua
própria sorte, ficando sobre sua total responsabilidade a sua educação e adaptação
às profundas transformações societais pelas quais o Brasil passava, ou seja, era
17

O plantation é um tipo de sistema agrícola constituído de uma grande propriedade monocultora,
para produção de gêneros tropicais em sua maioria, normalmente voltada para exportação, já que
o mercado interno ficaria saturado destes gêneros. Sistema típico de países subdesenvolvidos,
que fora amplamente utilizado durante a colonização europeia nas Américas, e, mais tarde, fora
levada para a África e Ásia. Hoje em dia alguns países subdesenvolvidos ainda usam este tipo de
sistema agrícola, apesar de ele ser reconhecidamente ineficaz. Para isso, estes países contam
com mão de obra assalariada ou trabalho escravo ilegal. No Brasil, por exemplo, a plantation é
usada em vastas porções do território nacional, principalmente nas áreas de cultivo de café e
cana-de-açúcar, dois dos nossos principais produtos agrícolas de exportação.

54
tarefa dos negros recém-libertos atender às novas demandas de se transformar em
um novo homem, adequado aos novos padrões do regime republicano baseado na
mão de obra assalariada.
As particularidades do processo de formação do capitalismo brasileiro18
fizeram com que o processo de separação dos trabalhadores dos meios de
produção seguisse um caminho diferente das economias clássicas, ou seja, esse
processo ocorre no Brasil de maneira simultânea e dependente das transformações
que estão ocorrendo nos grandes centros do capitalismo mundial.
Assim sendo, a contradição entre o trabalho escravo e a produção de
mercadorias só vai realmente aparecer no momento em que a economia brasileira
sofre a influência das transformações externas, tendo de se reacomodar às
mudanças da fase imperialista orquestradas pelo capital.
A partir do final do século XIX, a coexistência do trabalho escravo com o
sistema produtor de mercadorias chega ao seu limite. Nos séculos anteriores, esse
regime escravo foi peça-chave do processo de acumulação primitiva19, porém à
medida que a mercadoria se torna o centro do sistema, com o advento do capital
industrial e sua fusão com o capital financeiro, o capitalismo brasileiro passa por um
profundo e rápido processo de adaptação às novas condições históricas de
reprodução do capital no cenário global.
Sem dúvida, a grande locomotiva que puxava os vagões dessas
transformações no âmbito nacional foi a cafeicultura, em especial no oeste paulista,
como nos demonstrou, com demasiada clareza, Ianni (1966, p. 79 e 80):
Na cafeicultura, em especial o Oeste Paulista, a fazenda se transforma
numa empresa. A racionalidade inerente à economia mercantil penetra
progressivamente a unidade produtora. Gerada na esfera da
comercialização do café, a organização racional dos negócios relacionados
à cafeicultura encaminha-se insistentemente para a fazenda. Assim, a
comercialização do café impõe a reelaboração dos fatores e da organização
da fazenda, transformando-a numa empresa, no sentido de
empreendimento capitalista. Para enfrentar os problemas relacionados à
organização eficaz dos elementos da produção, tais como a terra, o capital,

18

Para uma abordagem mais profunda do tema, ver Prado, Caio Jr, História econômica do Brasil.
Brasiliense, São Paulo, 1998.
19
Para um entendimento mais amplo e radical do tema, ver Marx, K. A origem do
capital/acumulação primitiva, coleção bases, 3ª Ed. Global, São Paulo, 1977.

55
a técnica, a mão de obra, além do financiamento do transporte, do crédito,
etc., o fazendeiro foi obrigado a adotar outras expectativas e
comportamentos, transformando-se
em empresário. A racionalidade
inerente ao modo capitalista de organização da produção difunde-se
progressivamente pelo sistema social. Nesse processo, desenvolve-se a
autorracionalização do comportamento do empresário. E também do
trabalhador. Nesse contexto, o fazendeiro de café descobre que o escravo é
um investimento relativamente oneroso.

O desenvolvimento do capital nacional entra em uma fase que vai exigir a
definitiva separação do trabalhador dos meios de produção, ou seja, a abolição da
escravatura passava também pela necessidade de ampliar no país um verdadeiro
mercado de mão de obra livre para regular o preço da mercadoria salário. O que
podemos perceber, além do discurso político e moral da liberdade, é que havia
necessidades históricas da economia capitalista na esfera nacional.
Por isso, o processo da abolição somado à imigração serão fruto de um longo
e doloroso processo de (re)acomodação do mercado, que vai definir uma maior
procura por vagas do que a quantidade de postos de trabalho existentes, o que
resultou numa seleção na qual os negros ocuparam os últimos lugares. O que
efetivamente vai ocorrer é que esses recém-libertos servirão como contingente para
a formação de um clássico exército de reserva que vai passar a vegetar nas favelas
das cidades do nascente capitalismo brasileiro.
À medida que o século XIX se findava e o capitalismo fincava suas raízes na
economia dos grandes centros do Brasil, a contradição entre o mundo rural e o
agora mundo urbano capitalista faz aflorar a contradição entre a escravidão e a
liberdade. A contradição retromencionada, na esfera econômica entre a mercadoria
e o escravo, ganha uma maior visibilidade no plano ideológico do universo urbano.
O novo momento histórico e econômico vai exigir uma nova racionalidade na
produção de mercadoria, o que determinará a alforria dos cativos, que vão deixar de
ser mão de obra escrava para se tornarem força de trabalho. Só assim se abre a
possibilidade da produção da mais-valia relativa e um aprimoramento da divisão
sociotécnica do trabalho, fundamentais para a consolidação do capitalismo nacional.
O que se pode concluir é que, para que as atividades capitalistas no Brasil
pudessem acompanhar as transformações do período em questão, tornava-se
imperativo que a atividade produtiva do trabalhador se transformasse em mercadoria
e o escravo adquirisse a “liberdade”, pois só alcançando a igualdade jurídica, ou

56
seja, sendo elevado à categoria de cidadão, é que o circuito clássico da sociedade
produtora de mercadoria poderia alcançar a sua maturidade.
Assim, somente quando o trabalhador é “livre” é que sua força de trabalho
ganha a condição efetiva de mercadoria, e como tal ela pode ser comprada segundo
as necessidades do mercado, isto é, da produção do lucro. Esse processo foi
fundamental para a entrada da economia brasileira no processo de industrialização.
Nos últimos quartéis do século XIX, o grande dilema da economia brasileira
era a questão da escassez de mão de obra20. O quadro econômico tinha as
seguintes características econômicas: o fim do tráfico de escravos que coincide com
o aumento da demanda do café no mercado internacional; o crescimento da
produção algodoeira no Norte e Nordeste devido aos reflexos da Guerra de
Secessão nos EUA, fato que aumentava a pressão por mão de obra na economia
nacional, pois restringia o já limitado tráfico interprovincial; e o interesse político
racial das elites em “embranquecer” a população, pois os negros, de acordo com as
teorias raciais que se vão desenvolvendo no período, eram sinônimos de atraso21.
O quadro econômico e político nacional descrito acima vai encaixar-se como
uma luva no cenário de transformações que ocorriam na Europa, em especial na
Alemanha e principalmente na Itália. Ou seja, a necessidade de mão de obra,
somada ao discurso racista da elite, vai traduzir-se em uma política do estado22, pois
essa mesma elite controlava o Estado e o colocava a serviço de sua atividade
econômica, como podemos observar na análise de Furtado (1978, p. 127):
A solução veio em 1870, quando o governo imperial passou a encarregar-se
dos gastos do transporte dos imigrantes que deveriam servir à lavoura
cafeeira. Demais, ao fazendeiro cabia cobrir os gastos do imigrante durante
o seu primeiro ano de atividade, isto é, na etapa de maturação de seu
trabalho. Também devia colocar à sua disposição terras em que pudesse
cultivar os gêneros de primeira necessidade para a manutenção da família.
Dessa forma o imigrante tinha seus gastos com transporte e instalação
pagos e sabia a que se ater com respeito à sua renda futura. Esse conjunto
de medidas tornou possível promover pela primeira vez na América uma
volumosa corrente imigratória de origem européia destinada a trabalhar em
grandes plantações agrícolas.
20

Para um maior detalhamento desse período de transição econômica no Brasil, veja-se o livro de
Furtado, Celso, A formação econômica do Brasil, 1976.
21
Para um maior detalhamento da integração do negro à sociedade brasileira pós-abolição e a
República, veja-se o livro de Fernandes, Florestan, A integração do negro na sociedade de
classes, 1978.
22
A concepção de Estado à qual nos filiamos pode ser mais bem detalhada em Lênin, V.I., O Estado
e a revolução, 2005.

57
O resultado da política de europeização das necessidades de mão de obra
levou o negro a um processo de marginalização, restando-lhe o caminho para se
tornar lumpen proletário23, pois o caminho para a proletarização lhe estava vedado,
como explica Fernandes (1978, p. 28):

Diante do negro e do mulato abrem-se duas escolhas irremediáveis, sem
alternativas. Vedado o caminho da classificação econômica e social pela
proletarização, restava-lhe aceitar a incorporação gradual à escória do
operariado urbano em crescimento ou abater-se penosamente, procurando
no ócio dissimulado, vagabundagem sistemática ou na criminalidade fortuita
meios para salvar as aparências e a dignidade de ‘homem livre’.

Vimos, portanto, que o domínio branco imigrante vai prevalecer nas
nascentes atividades capitalistas, em especial nas indústriais, o que de certa forma
estabelecerá uma concorrência brutal, na qual os negros perdiam esta disputa no
mercado de maneira absurda, por tudo o que já foi explicado. As influências teóricas
que vão alimentar os movimentos políticos que irão culminar na proclamação da
República em 1889, apesar de questionarem o trabalho escravo, reservaram para os
ex-cativos um lugar tenebroso, pois as correntes liberais e positivistas que faziam
parte do imaginário desses movimentos republicanos já estavam chegando aos
principais círculos intelectuais nacionais, contaminadas pelas ideias do darwinismo
social de Herbert Spencer que eram o esteio das teorias raciais, tão fortes no
período histórico em questão.

2.3 A crise do escravismo e o sentido da abolição

As condições estruturais da abolição levaram à incompatibilidade da força de
trabalho escravizada à nova realidade objetiva. O discurso abolicionista produziu a
redefinição do sentido de trabalho enquanto instrumento de desumanização para um
sentido de trabalho “dignificante”, ou seja, trabalho assalariado, na concepção liberal
burguesa.
A concepção de trabalho encontra-se ancorada no marxismo, em especial na
obra As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem, do filósofo
23

No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels definem o lumpen-proletariado como produto
passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade, que pode ser arrastado ao
movimento por uma revolução proletária; todavia, suas condições de vida o predispõem mais a
vender-se à reação.

58
húngaro Lukács24 (1978). O referido pensador entende que o trabalho está na base
da atividade econômica, pois é ele que torna possível a produção de qualquer bem,
criando valores que constituem a riqueza social. São as condições materiais de
existência e reprodução da sociedade, ou seja, a satisfação material das
necessidades das mulheres e homens que constituem a sociedade, obtida numa
interação com a natureza. A sociedade, através dos seus membros, transforma
matérias naturais em produtos que atendem às suas necessidades. Essa
transformação é realizada mediante a atividade que denominamos de trabalho. O
trabalho em Marx é a categoria central para compreensão do fenômeno humanosocial.
Na perspectiva do capital o trabalhador é reduzido à condição de mercadoria
– mão de obra –, sendo totalmente expropriada de suas possibilidades de
desenvolvimento e de suas individualidades através do trabalho.
A liberdade dada ao escravo é a de oferecer-se no mercado de trabalho como
mão de obra apenas, eliminando qualquer vínculo rígido e permanente do
trabalhador com os meios de produção.
Com a separação dos escravos da esfera dos meios de produção, os
empreendimentos puderam ganhar uma racionalidade mercantil, ou seja, ocorreu
um aprofundamento da divisão social da produção, possibilitando a eliminação do
obstáculo do capital imobilizado permanente, que representava a escravaria.
A abolição não produziu cidadãos no sentido pleno, e sim uma massa de mão
de obra reserva, o que desembocou na racialização das relações sociais, servindo
para facilitar a organização das classes de acordo com os interesses dominantes,
merecendo destaque o papel da ideologia das raças, em que se produziram os
sentidos: branco, superioridade; e negro, inferioridade.
A história do negro pós abolição, em boa parte é a história de sua
proletarização – nem o negro estava preparado para vender sua força de trabalho,
nem o empresário estava preparado para comprá-la.

24

Para maiores esclarecimentos sobre a ontologia do ser social, ver também a obra de Lessa, S.
Para compreender a ontologia de Lukács, Ijuí, editora Unijuí, 2007.

59
A formação do proletariado brasileiro segue a tradicional lei da oferta e da
procura (vantagens para os capitalistas e para os imigrantes como mão de obra
preferencial, e desvantagens para os negros como mão de obra reserva).
A conversão do negro de escravo em “trabalhador livre” representou para ele
o conhecimento da forma mais perversa dos limites da liberdade alienada capitalista.
Os limites do liberalismo desenvolvido no Brasil e o abolicionismo da elite nacional
eram extremamente estreitos, a exemplo de José Bonifácio e seus correligionários.
A ideia de integrar para dominar – o escravo como não cidadão era inimigo do
contrato social –, pois o negro era tido como coisa e não como homem, justificava o
fato de ele não ter os direitos naturais previstos no liberalismo clássico, durante a
colônia e o Império.

2.4 As teorias raciais e a construção da imagem do negro

Intelectuais nacionais ligados à perspectiva do racismo cientificista do final do
século XIX defendiam a imigração e procuravam, através de meios científicos25,
demonstrar os fatores favoráveis do branqueamento para a resolução de questões
estruturais da jovem nação brasileira e na busca do progresso tão almejado.
Mas se, em vez de se reproduzir entre si, a população brasileira estivesse
em condições de subdividir ainda mais os elementos daninhos de sua atual
constituição étnica, fortalecendo-se através de alianças de mais valor com
as raças européias, o movimento de destruição observado em suas fileiras
se encerraria, dando lugar a uma ação contrária. (GOBINEAU, 1855).

A presente citação desse influente pensador francês mostra de forma cabal a
visão preconceituosa que imperava nos círculos intelectuais da Europa e que tinha
lugar especial na formação da intelectualidade nacional.
A questão da abolição atendeu aos interesses da elite – resolver o problema
de como incluir excluindo –, ou seja, ao tempo que ele era incluído no mercado de
trabalho, já era simultaneamente transformado em mão de obra reserva. Entre

25

A influência do darwinismo social, da eugenia, desenvolvida na obra Ensaio sobre a
desigualdade das raças humanas (1855), de Arthur Gobineau, foi a pedra angular do racismo
cientificista do final do século XIX e teve seu auge no governo alemão do partido nazista de Adolf
Hitler.

60
outros fatos o fantasma da revolução negra26, a exemplo do Haiti, alimentou os mitos
que impulsionaram a penetração do racismo cientificista europeu. A construção da
imagem do negro como símbolo do atraso e da preguiça servia como justificativa
para a imigração e para resolver os grandes dilemas da nação, assim elencados: 1º
o progresso; 2ª escravidão era igual ao atraso; 3º a população constituída, em sua
maioria, por escravos, o que significava atraso; 4º o progresso requer mão de obra
qualificada e 5º a ausência dessa mão de obra qualificada no Brasil.
A ideologia do branqueamento materializa-se no discurso que constrói a ideia
de que o europeu (branco) é a única raça capaz de produzir a cultura do progresso
de que o Brasil necessitava, pois até os portugueses eram vistos como “mestiços” e,
por isso, mais propensos à “degeneração sexual” com outras raças tidas como
inferiores, no caso do Brasil, os índios e os negros. Com o fim do Império, a questão
do negro como escravo ia sendo resolvida, primeiramente, porque o discurso oficial
fincava no senso comum a ideia de que não havia preconceito racial, a mistura era a
prova cabal; e, em segundo lugar, as novas leis de caráter liberal e o Estado
garantiam a abolição gradual, o que impedia uma revolução à moda haitiana.
Os intelectuais racistas vão recorrer ao cientificismo racista para afirmar que
uma mudança do negro, da condição de escravo para homem livre útil e cidadão,
era impossível, pois reconhecem, então, os males causados nos longos anos da
instituição da escravidão que, supostamente, tinham destruído definitivamente a
alma e a capacidade civilizatória dessa raça, somando a isso sua “inferioridade
natural”. Como afirmava Louis Agassiz (1868):
Que qualquer um que duvide dos males da mistura de raças, e inclua por
mal-entendida filantropia, a botar abaixo todas as barreiras que as separam,
venha ao Brasil. Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama
das raças mais geral aqui do que em qualquer outro país do mundo, e que
vai apagando rapidamente as melhores qualidades do branco, do negro e
do índio deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e
mental.

O negro foi cristalizando-se como elemento do atraso e da preguiça, ou seja,
o elemento negro não poderia ser um trabalhador livre e assumir um lugar em uma
sociedade baseada no mérito e na competição; em outros termos, o negro foi
livrando-se da pecha de escravo para ganhar outra, de ser inferior, e no máximo seu
26

Para maiores esclarecimentos sobre a questão haitiana, ver também a obra de Eugene Genovese.
Da Rebelião à Revolução: as revoltas de escravos negros nas Américas, editora Global.

61
desenvolvimento intelectual seria semelhante ao de uma “criança mal criada” na
sociedade. Ao negro lhe restava o branqueamento, tanto pela imitação do senhor
quanto pela mestiçagem.
A constituição da nação a partir da República se associava às ideias de
progresso positivistas e às de seleção étnica, que desembocavam na inferiorização
do negro, visto como potencial inimigo.
Acabar com a escravidão, para a elite e o Estado, não era somente libertar os
escravos; era livrar o Brasil de qualquer resquício que recordasse a barbárie
escravocrata, porém, sempre dentro dos limites da legalidade imposta pelo estreito
liberalismo do Estado brasileiro.
A construção da sociedade civil republicana visava a afastar os negros do
processo político, através do convencimento de que no Brasil não havia o ódio
racial, ou seja, não havia o preconceito nem violência contra os negros libertos. Em
outras palavras, visava a escamotear a luta de classes.

2.5 A construção do mito da democracia racial

O grande problema da interpretação da cultura brasileira ocorre devido à
incapacidade da ciência de lidar com a realidade objetiva e a subjetividade, em
decorrência da influência poderosa de correntes de pensamento geradas em nações
imperialistas e assimiladas, sem o devido espírito critico, pela intelectualidade
nacional, provocando uma distorção da autoconsciência do povo.
O Brasil, como nação, dentro da ordem capitalista ocidental é uma construção
do capitalismo europeu e só será possível compreender essa afirmação, sem querer
ser panfletário, se observar a teia das relações econômicas e políticas engendradas
pelas nações imperialistas, ou seja, o Brasil é um produto dessas relações da
civilização ocidental capitalista, daí a curiosa luta em busca da sua originalidade
nacional ao se intitular uma nação tropical. Pobre consciência infeliz de um povo que
busca seu destino na imagem e à semelhança de outros povos.
Se durante a escravidão o negro já era coisificado e desprezado como ser
humano, após a abolição essa situação se agravou, pois os cortiços e favelas irão
agravar esse terrível processo. A construção do discurso oficial (Estado) como

62
sendo o negro um ser inferior, sinônimo de vagabundagem e incompetência,
resultou na consolidação do negro como anticidadão, ou seja, como marginal.
O abolicionismo, fruto do liberalismo brasileiro do final do Império, funcionou
como uma locomotiva que trilhou o caminho dirigido pela elite branca, dirigente do
Estado, adequando o elemento negro a uma posição que não obstaculiza suas
reivindicações, à “nova ordem” republicana instalada.
O Estado foi determinando a posição dos indivíduos na “nova velha ordem”,
configurando o abortamento da revolução dos escravos e tomando para si a tarefa
da abolição, cristalizando um espectro de democracia racial como o único caminho
para o progresso e a unidade da nação.
Todas as tentativas de construir uma imagem positiva do negro vão desaguar
no dique da miscigenação e da suposta harmonia entre as raças, resultando no título
para o Brasil de nação laboratório das raças, que tem por base a “mistura das
cores”. Assim, o negro migra da sua condição de coisa para a de marginal nas linhas
da imprensa, e para exército de reserva no mercado.
Nessa conjuntura, ganha destaque a escola racista, cujo baluarte era Nina
Rodrigues, que vai fundamentar a suposta inferioridade inata da raça negra e a sua
inaptidão para a vivência em civilização. Como resta evidente nesta passagem do
próprio Nina Rodrigues (2004, p. 21):
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestes
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de
que cercou o resultante abuso da escravidão, por maiores que se revelem
os generosos exageros dos seus turifários, há de constituir sempre um dos
fatores da nossa inferioridade como povo.

Com a proclamação da República, seguiu-se um momento de consolidação
de uma identidade que se construía nacionalmente para o negro, destilada no senso
comum. Porém, vale ressaltar dois momentos importantes na esteira dos
acontecimentos da construção da imagem do negro como elemento da sociedade
brasileira: o 1º é o discurso médico-jurídico de Nina Rodrigues e o 2º

é a

Antropologia de Gilberto Freyre. Para Nina Rodrigues, os índios, negros e mestiços
são criminosos em potencial. Já Gilberto Freyre conseguiu afastar-se da visão
racista da escola pré-antropológica, apesar de ser oriundo dessa escola que tinha

63
uma forte tradição baseada em princípios darwinista, spencerianos e que
estabelecia uma diferenciação intelectual entre brancos e negros.
Em Gilberto Freyre a mestiçagem é vista de maneira positiva, ou seja, é a
tábua de salvação da nação, o nosso aspecto mais original:
Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos
sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno,
em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da
influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de
mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão
de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bichos
e de mal assombro. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho do pé de uma
coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao
ranger da cama de vento, a primeira sensação completa de homem. Do
moleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (FREYRE,
2003, p. 367).

Entretanto, o viés de interpretação do negro no desenvolvimento do Brasil
ainda traz a influência de sua origem intelectual, pois o negro ainda é visto como
portador de uma cultura exótica e que serve como complemento da cultura do
branco na composição da cultura brasileira. Como afirma Santos (2002, p. 150):
Embora a contribuição africana seja avaliada fora da perspectiva racista de
outrora, isso não significou a elevação do sujeito negro à mesma categoria
do branco. Ele ainda é o outro, diferente e estranho, portador de uma
cultura exótica. Mas agora é o estranho desejado por essas mesmas
características. Em Freyre, o negro continua sendo objeto, complemento
para o branco que se sobrepõe a ele do alto dos casarões, das casasgrandes e que olha, a distância, para a senzala. Passa-se, então, a uma
apologia da mestiçagem, não na prática, mas na teoria, na qual ela é
reconhecida como elemento básico da composição do povo brasileiro.
Mas, se muitas barreiras foram ultrapassadas pelo reconhecimento da
contribuição da cultura africana para a formação do nosso povo, isso só foi
possível mediante a mitificação do mestiço e, juntamente com ela, a
existência de uma ilusão que nos conduz a pensar que, no Brasil, haveria
uma democracia que permitiria um tratamento igualitário para brancos e
negros. Sob a égide da democracia racial, inúmeros preconceitos se
esconderam e se multiplicaram.

O colonizador é visto, em Freyre, com certa redenção e bondade por sua
capacidade e tendência “natural” para a miscigenação, explicadas por sua própria
composição étnica e histórica, o que justifica seu comportamento sexual com as
negras e as índias. Esse entendimento retoma, de maneira enviesada, os elementos
do cientificismo racial para explicar a composição étnica brasileira a partir de uma
apologia da miscigenação, reproduzindo por um caminho invertido o pensamento de
seus antecessores teóricos, mediante categorias como a mobilidade do português, a

64
miscigenação e a climatabilidade, evocadas para justificar o sucesso da colonização
lusitana nos trópicos.
Na democracia racial, sistematizada na antropologia freyriana, a harmonia
reinava nos engenhos, visto que o negro, através de suas características, se
destacava exercendo o papel da mulata zombeteira, da ama de leite maternal; da
mulata masoquista, do negrinho brincalhão; do preto velho contador de histórias e
do curandeiro. Somando-se a isso a cultura do homem branco e a cultura indígena,
teremos a construção da nação tropical.
Por isso os quilombos, de certo modo, foram silenciados27 na democracia
racial, reforçando o mito da passividade do negro e, por consequência, do mestiço,
ou melhor, do povo brasileiro.

27

Trabalharemos essa categoria posteriormente.

65
3 NAS TRILHAS DA ANÁLISE DO DISCURSO

3.1 Panorama histórico do conceito de ideologia no marxismo

Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram o conceito de
ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica da religião desenvolvida pelo
materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia
tradicional e a revalorização da atividade do sujeito, realizada pela filosofia alemã da
consciência e particularmente por Hegel.
A expressão “ideologia” ainda não aparece nos escritos iniciais de Marx, mas
os elementos materiais do futuro conceito estão presentes em sua obra A Ideologia
Alemã, definidas como “inversões” que obscurecem o verdadeiro caráter das coisas.
A “inversão” hegeliana consiste na conversão do subjetivo em objetivo, e viceversa, de tal modo que, partindo da suposição de que a ideia se manifesta
necessariamente no mundo empírico, o Estado prussiano surge como a
autorrealização da ideia, como o ”universal absoluto” que determina a sociedade
civil, em lugar de ser por ela determinado.
Embora aceite o princípio básico de Feuerbach de que o homem faz a religião
e a ideia segundo a qual Deus fez o homem é uma inversão, Marx vai mais longe ao
argumentar que essa inversão é mais do que alienação filosófica ou simples ilusão –
ela expressa as contradições e sofrimentos do mundo real. O Estado e a sociedade
produzem a religião, “que é uma consciência invertida do mundo, porque eles
próprios são um mundo invertido” – sustenta Marx em seu texto de introdução à
crítica da filosofia do direito de Hegel.
Depois do rompimento com Feuerbach28, por volta de 1845, ocorreu um
período dominado pela construção, por Marx e Engels, do materialismo histórico, em
que as premissas gerais de sua abordagem da sociedade e da história são
desenvolvidas e a tendência feuerbachiana de sua juventude seria definitivamente

28

Ludwig Andreas Feuerbach nasceu em Landshut, 28 de julho de 1804 — Rechenberg, e morreu
em Nuremberg, 13 de setembro de 1872. Foi um filósofo alemão.

66
abandonada. Nesse contexto, o conceito de ideologia é introduzido pela primeira
vez.
Assim, a inversão que Marx passa a chamar de Ideologia subsume tanto aos
velhos como aos jovens hegelianos e consiste em partir da consciência em vez de
partir da realidade material. Marx afirma, pelo contrário, que os verdadeiros
problemas da humanidade não são as ideias errôneas, mas as contradições sociais
reais e que aquelas são consequência destas.
Portanto, a ideologia surge como um conceito negativo e restrito. Porém, a
redação dos Grundrisse em 1858 e dos estudos aprofundados das relações sociais
capitalistas que resultaram na obra O Capital, fez com que a análise específica das
relações capitalistas levasse Marx à conclusão mais avançada de que a conexão
entre “consciência invertida” e “realidade invertida” é medida por um nível de
aparências que é constitutivo da própria realidade.
A partir da crítica inicial da religião, até o desmascaramento das aparências
econômicas mistificadas e dos princípios aparentemente libertários e igualitários do
capitalismo, há uma notável coerência na compreensão da ideologia por Marx. A
ideia de uma dupla inversão, na consciência e na realidade, é conservada em todos
os momentos, embora no fim se torne mais de produção capitalista.
Pouco depois da morte de Marx, o conceito de ideologia começou a adquirir
um novo significado. A princípio não perdeu necessariamente a sua conotação
crítica, mas surgiu uma tendência a colocar esse aspecto em segundo lugar. Os
novos significados tomaram principalmente duas formas: 1 - Uma concepção da
ideologia como a totalidade das formas de consciência social, que passou a ser
expressa pelo conceito de “superestrutura ideológica”; 2 - a concepção da ideologia
como ideias políticas relacionadas com interesses de classe.
Gramsci29, por exemplo, trabalha com o “Prefácio” de 1859, no qual Marx se
refere às formas jurídicas, políticas e filosóficas – “em suma, formas ideológicas
pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o solucionam pela luta”
–, em apoio de sua concepção da ideologia como esfera superestrutural que tudo

29

Para maiores entendimentos, ver a obra do marxista italiano Gramsci Os intelectuais e a
organização da cultura, da Editora Civilização Brasileira, 3 ed., 1979.

67
abrange, na qual os homens adquirem consciência de suas relações sociais
contraditórias.
Outro importante fator que contribuiu para essa evolução no sentido de um
conceito positivo de ideologia é o fato de que as duas primeiras gerações de
pensadores marxistas posteriores a Marx não tiveram acesso ao texto de A
Ideologia Alemã, que permaneceu inédito até a década de 1920.
Na ausência dessa obra, os dois textos mais influentes para a discussão do
conceito eram o “Prefácio de 1859”, de Marx, e o Anti-dühring de Engels,
frequentemente citados pelas novas gerações de marxistas.

3.2 O marxismo como ideologia

O primeiro pensador que propôs a questão se o marxismo era ou não
ideologia foi Bernstein30. Sua resposta é que, embora as ideias proletárias tenham
uma direção realista, porque se referem a fatores materiais que explicam a evolução
das sociedades, elas ainda são reflexos do pensamento e, portanto, ideológicas.
A mais importante causa da evolução do conceito de ideologia, porém, é
positiva, e está nas lutas políticas das últimas décadas do século XIX,
particularmente as que tiveram lugar na Europa oriental. O Marxismo centraliza sua
atenção na necessidade de criar uma teoria da prática política e, portanto, sua
evolução passa a relacionar-se cada vez mais com as lutas de classe e as
organizações partidárias.
Portanto, para Lênin, a ideologia torna-se a consciência política ligada aos
interesses de cada classe: em particular, ele dirige sua atenção para a oposição
entre a ideologia burguesa e a ideologia socialista. Com Lênin, portanto, o processo
de transformação do significado da ideologia chega ao seu ponto culminante. A
ideologia já não é uma distorção necessária que oculta as contradições, tornandose, em lugar disso, um conceito relativo à consciência política das classes, inclusive
da classe proletária.
30

Eduard Bernstein nasceu em Berlim em, 6 de janeiro de 1850, e morreu na mesma cidade, em 18
de dezembro de 1932. Foi um teórico político alemão considerado o primeiro grande revisionista
da teoria marxista e um dos principais teóricos da social-democracia.

68
A influência de Lênin fica evidente na produção de Lukács, por exemplo, que
desde seus primeiros ensaios emprega as palavras ideologia e ideológico para
referir-se tanto à consciência burguesa como à proletária, sem considerar implícita
uma necessária conotação negativa, ou seja, no sentido de falsa consciência31. O
marxismo para Lukács – em História e consciência de classe, 1974 – é “a
expressão ideológica do proletariado combativo”, na verdade a sua “arma mais
poderosa”.
Se a ideologia burguesa é falsa, isso não acontece por ser ela ideologia em
geral, mas porque a situação da classe burguesa é estruturalmente limitada. A
explicação dada por Lukács a esse fenômeno vai além da explicação de Lênin.
Enquanto para este a subordinação ideológica do proletariado resultava do fato de
ter a burguesia uma ideologia mais antiga e meios mais poderosos para a
disseminação das suas ideias, para Lukács são a própria situação e a prática do
proletariado, dentro das aparências reificadas da economia capitalista, que levam à
subordinação ideológica desta classe.
Já Gramsci, na obra Os intelectuais e a organização da cultura, 1979, propõe uma distinção entre “ideologias arbitrárias” e “ideologias orgânicas”,
concentrando seu interesse nestas últimas. A ideologia, nesse sentido, é “uma
concepção do mundo implicitamente manifesta na arte, no direito, na atividade
econômica e em todas as manifestações da vida individual e coletiva”.
É, portanto, na ideologia e pela ideologia que uma classe pode exercer
hegemonia sobre as outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das
grandes massas. Enquanto Lênin e Lukács trataram a ideologia como teoria,
Gramsci nela distingue quatro graus ou níveis, ou seja, filosofia, religião, senso
comum e folclore, em ordem decrescente de rigor e articulação intelectual.
O aprofundamento do conceito de ideologia, proposto pelo filósofo linguista
russo Bakhtin32 e seu círculo, ocorre com a acusação de que a produção teórica
marxista, até aquele momento, não havia colocado o problema do estudo da
ideologia no lugar certo, e o tinha tratado de forma mecanicista, ou seja, segundo
31

32

Sobre a questão da ideologia no pensamento de Lukács, ver também o texto A ideologia e sua
determinação ontológica, de Ester Vaisman, na revista Ensaio nº 17/18, 1989.
Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895 - 1975) foi um linguista russo. Para um melhor entendimento
do debate em questão, ver sua obra Marxismo e filosofia da linguagem.

69
Bakhtin e os membros de seu círculo, os teóricos marxistas procuravam estabelecer
uma ligação direta entre acontecimentos nas estruturas socioeconômicas e sua
repercussão nas superestruturas ideológicas.
Além disso, o outro ponto de partida para o estudo da ideologia é o combate
da perspectiva que vinha sendo defendida pelos estudiosos de então – marxistas,
linguistas, psicólogos e teóricos em geral das ciências humanas –

ao colocarem a

questão da ideologia ora na consciência, ora como um pacote pronto, advindo do
mundo da natureza ou mesmo do mundo transcendental.
Para Bakhtin, era necessário quebrar essa tradição de análise da ideologia
como subjetiva e interiorizada, entendida como uma ideia com lugar permanente na
cabeça do homem (se se mantiver apenas na consciência, a ideologia degenera e
morre, por carência de interação generadora), e como idealista/psicologizada que
entendia a ideologia como uma ideia já dada com a qual é possível apenas se
defrontar, e que também se desenvolve no interior individual, e inserir essa questão
no conjunto de todas as discussões filosóficas, que eles tratam de forma concreta e
dialética, como a questão da constituição dos signos, ou a questão da constituição
da subjetividade. Bakhtin vai construir o conceito na concretude do acontecimento, e
não na perspectiva subjetivista/idealista.
Nesse sentido, parte do que já era aceito pelo marxismo oficial, ou seja,
entender a ideologia como “falsa consciência”, vista como disfarce e ocultamento da
realidade social, escurecimento e não percepção da existência das contradições e
da existência de classes sociais, promovida pelas forças dominantes e aplicada ao
exercício legitimador do poder político e organizador de sua ação de dominar.
Entretanto, não concordam inteiramente com essa conceituação. Por isso destroem
e reconstroem parte dessa concepção, colocando ao lado da Ideologia Oficial33 a
Ideologia do Cotidiano34.

33

34

A Ideologia Oficial é entendida como relativamente dominante, procurando implantar uma
concepção única de produção de mundo.
A Ideologia do Cotidiano é considerada como a que brota e é constituída nos encontros casuais e
fortuitos, no lugar do nascedouro dos sistemas de referência, na proximidade social com as
condições de produção e reprodução da vida. Ver também a obra O freudismo, de autoria de
Bakhtin (2007, p. 88 e 89), no capítulo em que ele trata da consciência como ideologia.

70
Para Marx e Engels, o momento do surgimento da ideologia é o instante em
que a divisão social do trabalho separa trabalho manual e trabalho intelectual. De
um lado, a ideologia oficial como estrutura ou conteúdo, relativamente estável; de
outro, a ideologia do cotidiano, como acontecimento, relativamente instável; e ambas
formando o contexto ideológico completo e único, em relação recíproca, sem perder
de vista o processo global de produção e reprodução social.
O Conceito de ideologia em Bakhtin pode ser entendido como todo o conjunto
dos reflexos e das interpretações da realidade social e natural que têm lugar no
cérebro do homem e se expressam por meio de palavras ou outra formas sígnicas,
como podemos constatar nesta passagem de Marxismo e Filosofia da linguagem
de Bakhtin (1981, p. 35 e 36):
A única definição objetiva possível da consciência é de ordem sociológica. A
consciência não pode derivar diretamente da natureza, como tentaram e
ainda tentam mostrar o materialismo mecanicista ingênuo e a psicologia
contemporânea (sob suas diferentes formas: biológica, behaviorista, etc.). A
ideologia não pode derivar da consciência, como pretendem o idealismo e o
positivismo psicologista. A consciência adquire forma e existência nos
signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais.
Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis.

Logo se vê que não cabe a possibilidade de tratar a ideologia como falsa
consciência, ou simplesmente como expressão de uma ideia, mas como expressão
de uma determinada tomada de posição. Essa concepção de ideologia, construída
no movimento entre ideias relativamente instáveis e ideias já relativamente estáveis,
também está presente na concepção de signo bakhtiniana.
O conjunto de signos de um determinado grupo social forma o que Bakhtin
chama de universo de signos. E todo signo, além dessa dupla materialidade, no
sentido físico-material e no sentido sócio-histórico, ainda recebe um “ponto de vista”,
pois representa a realidade a partir de um lugar valorativo, revelando-a como
verdadeira ou falsa, boa ou má, positiva ou negativa, o que faz o signo coincidir com
o domínio do ideológico. Logo, todo signo é ideológico.
O ponto de partida da ideologia em Bakhtin é a comunicação na vida
cotidiana, que afirma ser extraordinariamente rica e importante. Esse tipo de
comunicação tem vínculo direto, tanto com os processos de produção material da
vida, no lugar da infraestrutura, quanto com as esferas das diversas ideologias

71
especializadas, na superestrutura, entendida como sistema de referência que troca
sentido com toda a sociedade.
Logo, o conceito de Ideologia bakhtiniano se concretiza como a expressão, a
organização e a regulação das relações histórico-materiais dos homens. Ao mesmo
tempo, esse ponto de vista também manifesta sua compreensão diversa da exercida
pela ideologia dominante. A superestrutura não existe a não ser em jogo e relação
constante com a infraestrutura, defende Bakhtin, e essa relação é estabelecida e
intermediada pelos signos e por sua capacidade de estar presente necessariamente
em todas as relações sociais. A neutralidade dos discursos e das ideias inexiste
nessa perspectiva, à qual somos filiados.
É nessa relação, portanto, que Bakhtin defende que as menores, mais ínfimas
e mais efêmeras mudanças sociais repercutem imediatamente na língua; os sujeitos
interagentes inscrevem nas palavras, nos acentos apreciativos, nas entonações, na
escala dos índices de valores, nos comportamentos ético-sociais, as mudanças
sociais. Como afirma Bakhtin (1992, p. 86):
(...) as palavras são tecidas por uma multidão de fios ideológicos,
contraditórios entre si, pois frequentaram e se constituíram em todos os
campos das relações e dos conflitos sociais.

Ou seja, dentro do discurso, em uma sociedade de classes, se dão
discursivamente as relações entre exploradores e explorados na luta de classes.
O terreno da organização da ideologia do cotidiano pode ser dividido em dois
estratos, o estrato imediatamente superior35 e o estrato inferior36. Já o terreno da
organização da ideologia oficial é onde circulam os conteúdos ideológicos que
passaram por todas as etapas da objetivação social e agora entraram no poderoso
sistema ideológico especializado e formalizado da arte, da moral, da religião, do
direito, da ciência etc., e portanto já se encontram mais estabilizados, mais bem

35

36

Estrato imediatamente superior: interações mais definidas e estáveis – grupos organizados que
possuem relação mais efetiva com o nível de ideologia oficial, infiltrando-se progressivamente nas
instituições ideológicas e as renovando, ao mesmo tempo que são renovados por elas, porém
neste ato de renovação entra o sinal de refração da ideologia(classe dominante).
Estrato inferior da ideologia do cotidiano: onde se dão os encontros fortuitos e por tempo limitado,
e as atividades mentais e a consciência se apresentam sem modelagem ideológica clara.

72
aceitos pelo conjunto social, mais testados pelos acontecimentos e mais amparados
pelo jogo do poder.
Esse nível, ao exercer forte influência no jogo social, por ser o sistema de
referência constituído e apossado pela classe dominante, se impõe na relação com
a ideologia do cotidiano e dá o tom hegemônico nas relações sociais, porém não é o
único e nem é neutro, visto que as contradições sociais ainda persistem nas bases
econômicas daquele grupo social.
A relação entre os diversos níveis ideológicos faz com que todo o conjunto
ideológico de uma dada sociedade se apresente como um conjunto único e
indivisível, e em constante movimento, pois reage às transformações que se dão na
cadeia produtiva. A não organização dos indivíduos em uma unidade social
impossibilitaria a constituição de um sistema de signos, exigência absoluta para que
a realidade seja construída como material significativo, e, portanto, como material
ideológico. As relações de produção e a estrutura sociopolítica determinam as
condições, as formas e os tipos de comunicações verbais possíveis em um contexto
dado.Ou seja, segundo Miotello (2005, p.175) vamos encontrar
as regras metodológicas básicas para o estudo das ideologias em Bakhtin
[que] podem ser resumidas em três: 1 - Não separar a ideologia da
realidade material do signo; 2- Não separar os signos das formas concretas
de comunicação; 3 - Não dissociar a comunicação e suas formas de sua
base material.

Sendo assim, na relação do indivíduo com a ideologia, na concepção
bakhtiniana, no nível mais inferior da ideologia do cotidiano tem importância o fator
biográfico e biológico, pois as reações do indivíduo ainda não são marcadas
ideologicamente, já que as interações são extremamente superficiais e casuais
nessa esfera da ideologia.
No nível superior da ideologia do cotidiano apresentam-se os conteúdos dos
signos que já passaram pela prova da expressão externa, e as representações, as
palavras, as entonações e as enunciações vão revelando estar completamente
integradas no sistema ideológico, realizadas pelo sistema social. O meio social
envolve então, por completo, o indivíduo como afirma Bakhtin: “O sujeito é uma
função das forças sociais”. Ele diz ainda: “O eu individualizado e biográfico é
quebrado pela função do outro social”.

73
Já o filósofo marxista francês de origem argelina Louis Althusser, em sua obra
Aparelhos ideológicos de Estado, 1985, também propôs uma concepção de
ideologia muito influente nas duas últimas décadas do século XX. Ele distingue uma
teoria da ideologia em geral (a – histórica), na qual a função da ideologia é
assegurar a coesão na sociedade, da teoria de ideologias específicas, na qual a
função geral já mencionada é determinada pela nova função de assegurar a
dominação de uma classe, ou seja, garantir o processo de assujeitamento ao
interpelar os indivíduos, transformando-os em sujeitos.
Essas funções podem ser desempenhadas pela ideologia, na medida em que
esta é “uma representação da relação imaginária dos indivíduos em suas condições
reais de existência”, e na medida em que interpela os indivíduos e os constitui como
sujeitos que aceitam seu papel dentro do sistema de relações de produção.
O pensamento de Althusser é uma releitura de Marx, revisando a concepção
marxista de ideologia enquanto “falsa consciência”, propondo, então, a ideologia
como a forma pela qual o ser humano se relaciona com as condições materiais de
sua existência, o que significa dizer que o marxismo althusseriano fez uma ruptura: a
de desenvolver o conceito de ideologia não como ideias, e sim como práticas sociais
condizentes às relações de produção. Althusser foi buscar fundamentação no
materialismo histórico. O autor considerava a influência da infraestrutura do modo
capitalista de produção sobre a superestrutura, isto é, a ideologia tem uma função
específica em dada formação social: ocultar e deslocar as contradições sociais. Os
sujeitos seriam “assujeitados” pela ideologia que determina a sua posição que, por
meio dela, ocupam em uma determinada formação discursiva. Para Althusser, as
ideologias se materializam nas estruturas políticas e econômicas da sociedade,
chamadas pelo autor de “aparelhos ideológicos de Estado”.
Por outro lado, Althusser também afirma que a ciência é o oposto absoluto da
ideologia, mas, ao mesmo tempo, define a ideologia como um nível objetivo da
sociedade que é relativamente autônomo. A dificuldade dessa abordagem está na
impossibilidade de conciliar a existência de uma ideologia revolucionária com a
afirmação de que toda ideologia sujeita os indivíduos ao sistema dominante.
Todavia, o marxismo althusseriano influenciou a Análise do Discurso e seu fundador
Pêcheux na elaboração do conceito de formação ideológica, a partir do qual
Pêcheux desenvolveu a noção de “condições de produção do discurso”, que

74
considera a relação da língua com a ideologia e o posicionamento do sujeito dentro
de uma determinada formação social.
A partir dessa discussão sobre o conceito de ideologia, podemos então
afirmar que as formações sociais, no caso da sociedade capitalista, produzem
ideologias antagônicas no universo do capital e do trabalho, porém o processo de
transformação dos indivíduos em sujeitos não vai ocorrer de maneira idêntica e
homogênea para todos os indivíduos, senão através de formas específicas dentro da
perspectiva específica da ideologia assumida, seja ela na perspectiva do capital
(burguesa) ou do trabalho, pois essas formas específicas de ideologias são
denominadas de formações ideológicas, como nos demonstra Cavalcante
(2007, p. 42):
As formações ideológicas são, pois, expressão da estrutura ideológica de
uma formação social que põem em jogo práticas associadas às relações de
classe. Trata-se de realidades contraditórias, na medida em que numa
conjuntura dada, as relações antagônicas de classe possibilitam o confronto
de posições políticas e ideológicas que não são atos individuais, mas que
se organizam em formações, conservando entre elas as relações
antagônicas de aliança e de dominação.

As formações ideológicas são a expressão da estrutura ideológica de uma
determinada formação social que põem em jogo práticas associadas às relações de
classe, ou seja, à luta de classes. Ocorre também nas formações ideológicas a
construção da matriz do sentido comum a um conjunto de discursos que vão
expressar as posições assumidas pelos indivíduos. Dito de outra forma, é o lugar
com o qual os sujeitos se identificam e a partir do qual enunciam.
Qualquer discurso que enfoca questões sociais pode, conforme seus efeitos,
transformar ou manipular as representações coletivas com a finalidade de manter
certas estruturas de poder; da mesma forma pode modificá-las, visando à superação
dessas mesmas estruturas. Assim, adquirem identidade particular, aparecendo
como formações que se definem pelos sentidos ideológicos que reiteram e que vão
direcionar a sua função enunciativa. Desencadeadas a partir da interação de
opiniões diferentes sobre questões de interesse comum, tais formações apresentam
regularidades em seu funcionamento que permitem interpretá-las como parte de
uma matriz de sentido específica, constituindo o que se denomina, na Análise do
Discurso, de formação discursiva.

75
O conceito de formação discursiva foi introduzido por Foucault (1969), na sua
obra Arqueologia do saber, com o objetivo de determinar os conjuntos de
enunciados relacionados a um mesmo sistema de regras determinadas pelo
momento histórico. A partir desse debate foi que Pêcheux (1975, p.11) desenvolveu
esse conceito, apropriando-se dele e o construindo dentro da análise do discurso
como aquilo que pode ser dito a partir de uma posição dada em um momento
histórico dado.
Desenvolvido dentro da AD por Pêcheux, o conceito de formação discursiva
tem como função determinar um domínio de saber, um lugar onde as formações
ideológicas atuam, estabelecendo os sentidos e selecionando formulações
aceitáveis, e separando outras que não são aceitáveis, a depender do tipo de
formação discursiva, seja ela religiosa, jurídica, jornalística, científica, cultural,
política, nos seus mais variados domínios de saber.

3.3 O porquê da escolha do dispositivo teórico da AD

As políticas afirmativas, ou as cotas, não representam uma ruptura no Estado
republicano democrático que foi forjado em 1889 e se desenvolveu até os dias
atuais no Brasil. Pelo contrario, a nosso ver, apesar de ser uma bandeira histórica
que existe desde o início do século XX com as lutas da “castas inferiores” do povo
indiano para a ascensão social no interior do Império britânico, passando pelas lutas
dos direitos civis nos EUA na década de sessenta, as políticas afirmativas entram no
século XXI passando por um processo de (re)significação profunda, quando o
Estado assume como seu o discurso da “igualdade racial”, quando se sabe que na
verdade o objetivo do Estado é garantir a “ordem”.
A temática abordada já foi objeto de inúmeros trabalhos de caráter
sociológico, histórico, político, jornalístico, jurídico e econômico. Todavia, pensamos
que ainda é possível produzir conhecimento analisando sua engrenagem discursiva
sem ser repetitivo. Por isso nos propomos a examinar os discursos contrários às
cotas e o discurso do governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva como
momento de (re)significação e cooptação que desembocam na construção da
“igualdade racial”.

76
Examinar o funcionamento do discurso sobre as políticas afirmativas que vêm
do Estado e dos setores sociais que são contrários às cotas implica analisar o
funcionamento de um discurso multifacetado, pois o Estado apropriou-se do discurso
do movimento negro, ocorrendo assim um deslocamento de uma formação
discursiva para outra. Isso ocorre quando alguns setores ligados ao movimento
social resgatam o discurso da democracia racial brasileira, construído pelo Estado
ao longo do nosso período republicano, e o (re)significam, ou quando ocorre o
movimento inverso, ou seja, quando o Estado se apropria do discurso dos
movimentos sociais e o ressignificam.
A nossa opção pela Análise do Discurso tem como objetivo desvelar os
sentidos dos discursos produzidos pelo Governo Lula e pelos seus opositores,
mostrando os mais variados sentidos a partir dos lugares em que são produzidos. As
relações dos sujeitos, como esclarece Orlandi (2001, p. 10), nunca são homogêneas
Movimento dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de
conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de
incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o
ritual da palavra. Mesmo o das que não dizem. De um lado, é na movência,
na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem; de outro,
eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um
lado, há imprevisibilidade na relação do sujeito com o sentido, da linguagem
com o mundo, toda formação social, no entanto, tem formas de controle da
interpretação, que são historicamente determinadas: há modos de se
interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua
vontade, há especialistas, há um corpo social a quem se delegam poderes
de interpretar(logo “atribuir” sentidos), tais como o juiz, o professor, o
advogado, o padre, etc. Os sentidos estão sempre ‘administrados’, não
soltos. Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico, somos
instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar. Ao
falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar
sempre lá.

A Análise do Discurso situa-se como área do conhecimento que tem por
objetivo estudar o discurso. Apesar de ter sua origem na linguística, a A.D. à qual
nos filiamos tem como entendimento que o discurso é práxis social; dito de outra
forma, o discurso tem como função a mediação das relações sociais entre os
homens, e sua marca fundamental é a relação entre o dizer e suas condições de
produção.
Desde suas origens, a AD constitui uma perspectiva crítica ao quadro teórico
dominante nas teorias linguísticas, onde predominava o Estruturalismo saussuriano
e o Gerativismo chomskiano. Porém, a proposta dos fundadores da AD, com

77
destaque para M. Pêcheux , não era apenas criar um instrumento de análise de
discurso político, apesar de os primeiros estudos se darem no campo político, mas
sim desenvolver uma teoria científica marxista do discurso que fosse capaz de
relacionar língua e discurso, em que nem o discurso é visto como uma liberdade em
ato,

ou

seja,

sem

elementos

condicionadores

de

caráter

linguístico

ou

determinações históricas, nem a língua como instrumento totalmente fechado em si
mesma, perfeita e sem falhas, sem lacunas ou desvios.
O desenvolvimento da AD, no campo do marxismo, resultou na construção de
um conceito de discurso diferenciado do que prevalecia nas correntes dominantes
da linguística. Dentro desse campo marxista, o conceito de discurso no qual nos
ancoramos é aquele que concebe antes de tudo o discurso como práxis social, e
como tal tem como suporte a concepção de língua explicitada por Cavalcante (2007,
p. 34 e 35):
(...) Uma concepção de língua, não como uma entidade pronta e
determinada, mas como constitutiva, opaca, incompleta, de autonomia
relativa que no interior das relações sociais e no processo da história, atua
para transformar as atividades humanas.[...]. É constitutiva porque o seu
funcionamento não diz respeito a ela própria, é produzida socialmente, nas
relações com os sujeitos e com a história; é opaca porque não tem sentido
único; incompleta, porque é atravessada pelo silêncio e pela falta. Nunca se
consegue dizer tudo, domesticar o dizer. Finalmente assumimos que ela é
de autonomia relativa, porque tem uma ordem que lhe é própria e, sendo de
natureza social, está sempre aberta a novos sentidos.

Como já foi dito, o discurso é entendido como práxis social, e como tal ocorre
em um determinado momento histórico, estando sintonizado com as necessidades
de produção e reprodução do ser social.
Para construir nossa análise, torna-se necessário o desenvolvimento de
alguns conceitos da Análise do Discurso que nos permitirão um entendimento mais
claro da trama social onde se constroem os discursos de “igualdade racial” e seus
sentidos, que serão de imprescindível importância. São eles: o conceito de
condições de produção do discurso; formação discursiva; implícitos; silenciamentos;
formações ideológicas; e o desenvolvimento da questão da Ideologia no campo do
marxismo.
Não temos a pretensão de examinar exaustivamente cada um dos referidos
conceitos, até porque não é esse o objetivo do presente trabalho. Discutiremos, de

78
maneira introdutória, apenas os que consideramos mais relevantes para desenvolver
a nossa análise.

3.3.1 Condições de produção do discurso

São consideradas condições de produção do discurso as relações que
compreendem os sujeitos, a situação ou conjuntura histórica e a memória. Os
sujeitos são os produtores, no sentido estrito do enunciado do discurso, porém
influenciados sempre pela exterioridade e pela sua relação com os sentidos
produzidos na memória.
Nessa perspectiva, há que se considerar as condições de produção
imediatas e amplas, levando sempre em consideração o momento histórico que se
está vivendo no momento de produção do discurso. E a memória é o que sustenta
os dizeres do discurso. Tudo que já se disse sobre o assunto abordado.
No caso do nosso objeto, trata-se de resgatar, a partir da produção
historiográfica e antropológica da questão negra no Brasil, a memória, ou o já-dito
sobre a questão da “democracia racial”, e agora no contexto do século XXI, o
discurso da “igualdade racial”. O fato de que existe um já-dito que sustenta a
possibilidade de dizer é fundamental para se compreender o funcionamento do
discurso e sua relação com os sujeitos, com a ideologia e com as condições
históricas do momento da produção do discurso.
Os fatores que constituem as condições de produção do discurso
compreendem três fatores, segundo Orlandi apud Cavalcanti (2007, p.38)
Um deles é o que se denomina ‘relações de sentido’. Segundo essa
noção, os sentidos resultam sempre de relações: ‘um discurso aponta para
outros que o sustentam, assim como para dizeres futuros.[...] não há, desse
modo, começo absoluto nem ponto final para o discurso. ’ [...]. Outro fator é
o denominado ‘antecipação’ – mecanismo utilizado pelo sujeito para
colocar-se no lugar do seu interlocutor e avaliar os efeitos que suas
palavras produzirão, orientando sua argumentação de um modo ou de
outro, conforme identifique seu interlocutor como cúmplice ou adversário.
Finalmente, o terceiro fator apresentado é o denominado ‘relações de
força’. Segundo essa noção, podemos dizer que o lugar do qual fala o
sujeito é constitutivo do que ele diz. Assim se o sujeito ‘fala do lugar do
Professor, suas palavras significam diferente do que se falasse do lugar do
aluno’ [...]. (Grifos nossos).

79
Para concluirmos essa discussão sobre a questão das condições de produção
do discurso, ainda podemos dizer, mesmo que de maneira resumida, que esse
conceito se refere às relações dos sujeitos com a infraestrutura e a superestrutura
da sociedade em um determinado momento histórico, como assevera Cavalcanti
(2007, p. 38):
[...] concluímos que as condições de produção do discurso compreendem,
fundamentalmente, os sujeitos falantes em constante relação com a cultura,
com a sociedade e com a economia de um determinado momento histórico.
Nessa inter-relação os sujeitos assumem posições em relação a
determinadas formações ideológicas e discursivas.

3.3.2 Implícitos e silenciamentos como forma de negar a exclusão racial

A metamorfose do discurso, no contexto da sociedade brasileira, na qual se
verifica a passagem de uma fala que ressalta a possibilidade de uma “democracia
racial” na construção da República brasileira para uma “igualdade racial no novo
milênio”, vai se efetivar no discurso do governo Lula e seus opositores, quando tanto
(uma posição) um setor como o outro buscam a negação ou a afirmação do passado
para justificarem suas posições ideológicas. Esse processo de negação e
recuperação do passado pode ser explicado pelo estudo dos implícitos e dos
silenciamentos que ambos os grupos em disputa irão produzir.
A sociedade brasileira, ao longo de seu desenvolvimento, produziu e produz
constantes conflitos de classe, e por suas peculiaridades capitalistas esses conflitos
não são apenas de classe, mas também raciais, pois os séculos de escravidão e a
sua posterior abolição produziram silenciamentos, tanto no sentido de negar a
manutenção de referências ideológicas, como objetivando a construção do mito da
“igualdade racial” pelo governo, através do resgate, por parte de seus opositores, do
discurso da “democracia racial”.
Quando o governo constrói um discurso “novo” com a idéia de “igualdade
racial”, ou seus opositores ao negarem as políticas afirmativas, resgatando o mito da
“democracia racial”, realizam um processo de seleção do que é correto e aceito e se
rejeitam mutuamente. Esse processo quase sempre se dá de maneira velada nos
enunciados dos sujeitos envolvidos, como nos demonstra Cavalcante (2007, p. 77
e 78):

80
E, à proporção que se elege um produto cultural como único correto e
aceito, rejeitam-se os produtos culturais de outros segmentos. Isso não se
dá forma explícita, mas velada, às vezes quase imperceptível, uma vez que
os conflitos ideológicos quase nunca se mostram, alojando-se nas
entranhas do discurso, à sombra das palavras. Para desvelar sua trama é
preciso penetrar nas frinchas do discurso e perscrutar os indícios das
determinações ideológicas nele sinalizados.

A percepção desses indícios só é possível quando atentamos para uma
minuciosa leitura do não dito, ou seja, do que os textos, em sua luta política, deixam
implícito ou silenciam, pois em todo texto pode-se perceber a presença do outro
silenciado, mas que em ambos os casos o constitui.
No que concerne ao conceito de implícito, recorremos a Ducrot (1972, p. 75):
Diz ele:
são modos de expressão que permitem deixar entender sem incorrer na
responsabilidade de ter dito. [...] Ora, se tem frequentemente necessidade
de dizer certas coisas e ao mesmo tempo de poder fazer como se não as
tivéssemos dito, de tal modo que se possa recusar sua responsabilidade.

O que se verifica no processo de desenvolvimento desse mecanismo
discursivo é que ele ocorre quanto o sujeito enunciante não pode , ou não quer,
assumir a autoria de um determinado texto ou sentido, embora apele para o dito,
para

manter

uma

relação

de

significação.

Assim

dá-se

o

implícito

da

responsabilidade do interlocutor, pois este vai necessitar de um processo de
interpretação. Esse mecanismo discursivo faz o outro dizer no lugar do enunciante.
Já o processo discursivo do silenciamento não depende do dito para realizarse no discurso, pois este não deriva do sentido literal das palavras, vindo a se
realizar no momento em que, ao dizermos algo, impreterivelmente apagamos outros
sentidos existentes, porém não desejáveis, para o enunciante, em uma situação
discursiva determinada por uma conjuntura histórica dada.
Em ambos os discursos, do governo e dos oposicionistas às cotas, que
tentam, cada um apelando para os mais variados recursos, sejam eles implícitos ou
silenciados, tendo como objetivo garantir uma ampliação de ambas as posições
políticas em questão, quando ambos os enunciados esbarram nos limites de uma
condição de produção que tem como linha de demarcação uma sociedade
capitalista perversa.

81
Na qual a marginalização do elemento afro-brasileiro é visível a olho nu,
quando são majoritariamente colocados nos postos de trabalho mais subalternos da
sociedade.
Sendo ainda necessários na construção de um exército de mão de obra
reserva, para assim baratear o custo do capital variável e garantir a reprodução da
economia capitalista nacional com taxas de lucro elevadíssimas.
Com base nesse referencial desenvolvido é que procederemos à análise do
discurso no corpus definido anteriormente, no capítulo seguinte.

82
4
IGUALDADE RACIAL VERSUS DEMOCRACIA RACIAL: ANALISANDO
OS DISCURSOS

4.1 Considerações sobre a questão das políticas de ações afirmativas

As políticas afirmativas, ou as cotas, não representam uma ruptura no Estado
republicano democrático, como já foi dito anteriormente. Pelo contrário, a nosso ver,
as políticas afirmativas entram no século XXI como mais uma alternativa
assistencialista da ordem capitalista para garantir o pacto social e dar continuidade à
lógica da produção mercantil, quando o Estado passa a assumir como seu o
discurso da “igualdade racial”. Sabemos que, na verdade, o seu objetivo é garantir a
“ordem” para a reprodução das relações sociais alienadas capitalistas.
Por isso nos propomos a examinar o discurso do Presidente da República,
Luís Inácio Lula da Silva, na cerimônia de instalação da Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), como momento de
(re)significação e cooptação que desemboca na construção do efeito de sentido de
“igualdade racial” (Sequência Discursiva 1 - SD1), produzindo também discursos
contrários às cotas, como o manifesto analisado no segundo momento(Sequência
Discursiva 2 - SD2).
É nessa materialidade, expressa em textos, que realizaremos recortes de
sequências discursivas que constituirão nosso corpus de análise. Apoiamo-nos na
noção de corpus adotada por Courtine (1981, p. 24):
Um conjunto de sequências discursivas estruturadas de acordo com um
plano definido referente a um certo estado das condições de produção de
um discurso. A constituição de um corpus discursivo é, com efeito, uma
operação que consiste em realizar por um dispositivo material de uma certa
forma (isto é, estruturado de acordo com o plano), as hipóteses emitidas na
definição dos objetivos de uma pesquisa.

Tendo em vista o objetivo do trabalho que ora empreendemos, nosso corpus
está, pois, constituído em torno de dois eixos: o discurso do Presidente Lula sobre
as ações afirmativas e o discurso contrário às referidas ações.

83
Examinar o funcionamento do discurso sobre as políticas afirmativas que vêm
do Estado e dos setores da sociedade civil que são contrários às cotas implica
analisar o funcionamento de um discurso multifacetado, pois o Estado apropriou-se
do discurso do Movimento Negro, gerando assim um acontecimento discursivo
duplicado, ou seja, quando ocorre uma apropriação de uma determinada Formação
discursiva37, no caso do Movimento Negro. Essa duplicidade ocorre quando alguns
setores ligados ao movimento social resgatam o discurso da democracia racial
brasileira, construído pelo Estado ao longo do nosso período republicano, e o
(re)significam, ou quando ocorre o movimento inverso, ou seja, quando o Estado se
apropria do discurso dos movimentos sociais e também o (re)significam.
Para proceder à referida análise, lançaremos mão da base teórica e
conceitual da Análise do Discurso, além de fazer interlocução com autores que,
significativamente, apresentaram elementos que nos permitem entender os
atravessamentos ideológicos no processo de produção de sentidos, na perspectiva
do materialismo histórico-dialético. Assim, além de Pêcheux, utilizaremos Marx,
Luckács, Meszáros e Bakhtin como principais teóricos na fundamentação deste
trabalho, em relação ao materialismo e ao discurso.
Nosso foco principal, nesse exercício de análise do discurso, será observar os
efeitos de sentido materializados no primeiro momento – o discurso do Presidente
Luís Inácio Lula da Silva, quando da criação da SEPPIR –, que é a pedra angular da
política

de

promoção

da

igualdade

racial.

As

sequências

discursivas

correspondentes a esse primeiro eixo serão denominadas SD1. No segundo
momento, analisaremos sequências discursivas contidas num manifesto de
conteúdo contrário às políticas de afirmação racial – SD2 - que tem como título
“TODOS TÊM DIREITOS IGUAIS NA REPÚBLICA DEMOCRÁTICA”.
• SD1
SD1.1 Preconceito é uma coisa doentia, e eu estou aqui, de frente para
vocês e atrás de vocês há um artigo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o artigo primeiro, que foi feito em 1948, que começa assim:
'Todos os homens [...] nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos
outros, com espírito de fraternidade.(Grifos nossos)

37

Trataremos dessa categoria posteriormente.

84
SD1.2 Mais de 64 por cento dos pobres e pelo menos 70 por cento dos
indigentes brasileiros são negros, como também a maior parte dos
desempregados e subempregados do país também são negros.[...]
Essa situação injusta e cruel é produto da nossa História –da escravidão
que durou quatro séculos no Brasil, deixando marcas profundas em nosso
convívio social –, mas é também resultado da ausência de políticas públicas
voltadas para superá-la. (Grifos nossos)
SD1.3 O Estado brasileiro não deve ser neutro em relação às questões
raciais. Cabe a ele assegurar a todos os brasileiros e brasileiras igualdade
de oportunidades na busca de melhores condições de vida.
SD1.4 É importante que a gente tenha claro o que está escrito na nossa
Constituição. Eu lembro do papel extraordinário e dos debates que nós
fizemos na Constituinte de 1988. E tínhamos lá a companheira Benedita, o
companheiro Caó, que falavam na tribuna.[...] E o que foi escrito na
Constituição, a começar do seu artigo 3º? Dizia assim: Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil. Inciso 4º–Promover o bem
de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. [...]Artigo 5º- Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, [...]homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos da Constituição. A prática do racismo –
inciso 42 –constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de
reclusão nos termos da lei.
SD1.5 Benedita e eu estávamos fazendo campanha para ela, em 1992, no
Rio de Janeiro. Um dia, mais ou menos 7 horas da noite, depois de uns 10
ou 12 comícios, eu e ela fomos à casa de uma personalidade no Rio de
Janeiro, nosso companheiro também – porque nós também temos
companheiros personalidades – e chegamos, eu com uma camiseta
surrada, porque tinha andado o dia inteiro fazendo comício, e a Benedita,
que não andava tão chique assim ainda, chegamos ao prédio e nos
dirigimos à entrada principal. Eis que o porteiro, um senhor negro, que
certamente não conhecia a Constituição, e certamente não tinha tido o
direito de ter auto-estima pela sua própria cor, disse à Benedita e a
mim: 'Pelo elevador de serviço.' Ela, já Deputada Federal e eu, naquele
tempo, já pensava em ser Presidente da República. Ou seja, eu fiquei
nervoso, peguei o telefone, eu não quis brigar com o porteiro, porque
ele não tinha culpa, peguei o telefone e liguei para a personalidade e
disse: 'Olha, não é possível.' Aí ele falou com o porteiro e Benedita e
eu entramos pelo elevador principal. (Grifos nossos)
SD1.6 Quer dizer, vocês imaginem o quanto a gente vai ter que lutar
para tirar essas placas nos elevadores dos prédios do Brasil inteiro. E
já há algum avanço, obviamente. [...]Agora, tudo isso pode ser que,
individualmente, não seja culpa de ninguém, é culpa de uma estrutura
de dominação cultural a que nós somos submetidos ao longo de anos,
anos, anos. (Grifos nossos)

• SD2
SD2.1 O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um
fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa
a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção
por diversos dispositivos dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do
Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000) que logo serão submetidos a
uma decisão final no Congresso Nacional.

85
SD2.2 O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma classificação
racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas raciais no serviço
público e cria privilégios nas relações comerciais com o poder público para
empresas privadas que utilizem cotas raciais na contratação de funcionários.
Se forem aprovados, a nação brasileira passará a definir os direitos das
pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já
condenou dolorosamente estas tentativas.
SD2.3 Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis
conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas
gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o
preceito da igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais
não deve ser imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos
"raciais" estanques em nome da justiça social não eliminam o racismo e
podem até mesmo produzir o efeito contrário, dando respaldo legal ao
conceito de raça, e possibilitando o acirramento do conflito e da intolerância.
SD2. 4 A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo
de racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E
ainda bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de
desigualdades.
SD2. 5 Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja
discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida
íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços
públicos; que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante
do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade
não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo
que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para
viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua
pele, mas pela força de seu caráter.
SD2. 6 Nos dirigimos ao congresso nacional, seus deputados e senadores,
pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000
(PL do Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.

4.2 Os limites do discurso de igualdade racial do governo Lula

Como podemos perceber na SD1.1, o Presidente da República refere-se ao
preconceito como uma coisa doentia, ou seja, uma patologia, um mal que assola a
sociedade, ou alguns de seus membros, impedindo seu pleno desenvolvimento.
SD1.1 Preconceito é uma coisa doentia, e eu estou aqui, de frente para
vocês e atrás de vocês há um artigo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, o artigo primeiro, que foi feito em 1948, que começa assim:
'Todos os homens [...] nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
São dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos
outros, com espírito de fraternidade.(Grifos nossos)

Num segundo momento o Presidente refere-se à Declaração Universal dos
Direitos Humanos. E então ele recorre a esse documento histórico para autorizar e
legitimar o seu discurso. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“Todos os homens [...] nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São

86
dotados de razão e consciência e devem agir, uns em relação aos outros, com
espírito de fraternidade” (Grifos nossos).
Ao utilizar o indefinido todos o discurso dos direitos humanos pretende
produzir o efeito de sentido de inclusão, ou seja, todos os homens, sem exceção,
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. A explicação para essa afirmação
vem logo em seguida: são dotados de razão e consciência. Por aí podemos inferir
que o fato de os seres humanos serem dotados de razão e consciência assegura
liberdade e igualdade em dignidade e direitos para todos. Até que ponto isso é
verdade? Que acontecimento histórico possibilitou a produção desse discurso?
Respondendo à primeira pergunta: as relações de produção capitalistas, por
sua própria natureza, cuja lógica é a exploração do homem pelo homem, já
estabelecem, na sua origem, a desigualdade socioeconômica. A afirmação de que
todo homem é dotado de razão e consciência constitui uma manobra discursiva da
classe dominante, que se utiliza de características universais do gênero humano,
silenciando as particularidades, ou seja, todos os homens possuem características
genéricas, são dotados de razão e consciência, mas são também dotados de
particularidades que os caracterizam como pertencentes a diferentes classes
sociais, diferentes regiões e ocupam diferentes espaços nas relações de produção.
Também percebemos na mesma SD o silenciamento da luta de classes. O
que vem a seguir é consequência dessa igualdade em dignidade e direitos, pois se
todos são iguais em dignidade e direitos, devem agir, uns em relação aos outros,
com espírito de fraternidade, eliminando-se assim os conflitos de classes inerentes
ao capitalismo.
Respondendo à segunda pergunta, qual acontecimento histórico possibilitou a
produção desse discurso, estamos nos remetendo às condições de produção do
discurso dos direitos humanos após a Segunda Guerra Mundial, quando se
desenhava o seguinte quadro: a ruína dos grandes impérios coloniais francobritânicos com suas populações que vinham sendo excluídas por leis racistas e
passaram a vislumbrar uma possibilidade de libertação dos impérios pela via do
socialismo, pois as condições históricas da época tinham como característica a
bipolarização mundial entre os EUA e a URSS.

87
Por que o Presidente Lula resgata esse discurso? Para legitimar o efeito de
sentido do discurso de igualdade racial através de uma memória histórica e
discursiva, da declaração dos direitos humanos.
SD1.2 Mais de 64 por cento dos pobres e pelo menos 70 por cento dos
indigentes brasileiros são negros, como também a maior parte dos
desempregados e subempregados do país também são negros.[...]
Essa situação injusta e cruel é produto da nossa História – da escravidão
que durou quatro séculos no Brasil, deixando marcas profundas em nosso
convívio social –, mas é também resultado da ausência de políticas públicas
voltadas para superá-la. (Grifos nossos)

Analisando a SD1.2 percebemos que o Presidente Lula vai recorrer a dados
estatísticos da sociedade brasileira para justificar a política da igualdade racial como
uma necessidade histórica do povo brasileiro. Além disso, recorre à memória
histórica da construção da sociedade brasileira que, baseada na escravidão e na
ausência de políticas públicas, produziu esses índices de indigência localizados,
majoritariamente, na população negra.
Ocorre aqui um processo de mistificação do discurso das políticas públicas
como solução para os problemas da sociedade brasileira. Segundo Voese (1996, p.
68), “o processo de mistificação se dá através da cristalização de uma imagem
positiva de um discurso, de tal forma que ele se torne quase inquestionável”. Ainda,
podemos destacar que o processo de mistificação de uma determinada formação
social visa dar poder ao discurso dominante e ocultar suas fragilidades e possíveis
rivais. É isso que percebemos no discurso da política de igualdade racial, ou seja,
que a implementação dessa política será suficiente para superar os índices de
indigência e desemprego atestados estatisticamente: Mais de 64 por cento dos
pobres e pelo menos 70 por cento dos indigentes brasileiros são negros, como
também a maior parte dos desempregados e subempregados do país também
são negros.
Identificamos também na SD1.2 um processo de silenciamento. Segundo
Orlandi (1995, p. 68),
o silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos
necessariamente outros sentidos possíveis mas indesejáveis, em uma
situação discursiva dada[...]. por aí se apagam os sentidos que se quer
evitar, sentidos que poderiam instalar o trabalho significativo de uma outra
formação discursiva.

88
O presidente Lula até critica a escravidão, no entanto silencia que as origens
dos dramáticos índices estáticos por ele citados se devem ao modelo de sociedade
capitalista, que também vai impedir o suposto sucesso anunciado por ele com a
implementação das referidas políticas.
SD1.3 O Estado brasileiro não deve ser neutro em relação às questões
raciais. Cabe a ele assegurar a todos os brasileiros e brasileiras igualdade
de oportunidades na busca de melhores condições de vida.

Na SD1.3 o sujeito enunciante fala de uma suposta neutralidade do Estado,
quando afirma: O Estado brasileiro não deve ser neutro[...], ao mesmo tempo ele
delimita a extensão dessa neutralidade: em relação às questões raciais. Em
seguida, ele estabelece as funções desse Estado: Cabe a ele assegurar a todos
os brasileiros e brasileiras igualdade de oportunidades na busca de melhores
condições de vida. De que Estado fala o enunciante? Do Estado burguês neoliberal
que ele representa, sim, porque a esse Estado não cabem essas funções.
Sendo assim, podemos interpretar esse discurso por dois caminhos. O
primeiro, o do cinismo político, ou seja, representando o Estado brasileiro, que –
como já foi dito no primeiro capítulo – preserva como marca sua natureza oligárquica
e neoliberal, o enunciante tem consciência das funções desse Estado, que é garantir
os privilégios da classe dominante, mas age como se não soubesse disso. O
segundo caminho seria o do atravessamento de uma memória discursiva que,
consciente ou inconscientemente, é convocada por um sujeito que em outros
tempos já representou a posição da classe trabalhadora, identificando-se com a sua
formação ideológica, todavia, hoje fala do lugar da ideologia dominante, como
representante do Estado burguês brasileiro.
SD1.4 É importante que a gente tenha claro o que está escrito na nossa
Constituição. Eu lembro do papel extraordinário e dos debates que nós
fizemos na Constituinte de 1988. E tínhamos lá a companheira Benedita, o
companheiro Caó, que falavam na tribuna.[...] E o que foi escrito na
Constituição, a começar do seu artigo 3º Dizia assim: Constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil. Inciso 4º– Promover o bem
de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. [...]Artigo 5º- Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, [...]homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos da Constituição. A prática do racismo –
inciso 42 –constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de
reclusão nos termos da lei.

89
Na SD1.4, o Presidente Lula, utilizando-se de uma estratégia de
personificação, chama a atenção dos presentes para o conteúdo da Constituição
federal com a intenção de mostrar o caráter avançado desta e, é claro, ressalta sua
participação como deputado constituinte, tentando apagar todo o processo de lutas
dos movimentos sociais que ocorreu ainda no final do regime militar, “por uma
constituinte livre e soberana”, quando afirma: Eu lembro do papel extraordinário e
dos debates que nós fizemos na Constituinte de 1988. E tínhamos lá a
companheira Benedita, o companheiro Caó, que falavam na tribuna, resgatando
uma memória de um tempo em que o sujeito enunciante ainda assumia uma posição
na perspectiva da formação ideológica do trabalho.
É possível ainda detectar um processo de mistificação do texto constitucional
na SD1.4, ao afirmar: É importante que a gente tenha claro o que está escrito na
nossa Constituição, como se bastasse estar escrito no texto constitucional para
garantir a sua aplicabilidade. Prosseguindo, o enunciante cita alguns artigos da
Constituição: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil. Inciso 4º– Promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. [...] Artigo 5ºTodos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, [...]
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos da
Constituição.
Ocorre,

aqui

também,

um

processo

de

“mistificação”

do

discurso

constitucional. Como já foi dito anteriormente, essa manobra discursiva visa à
cristalização de uma imagem positiva desse discurso, de maneira que ele se torne
quase inquestionável. O resgate do texto constitucional reforça essa manobra
discursiva retomando a memória da declaração universal dos direitos humanos.
Além disso, deixa explícito que o desconhecimento da Constituição e das conquistas
que esta representou foi responsabilidade dos governantes anteriores e, em último
caso, dos indivíduos.
SD1.5 Benedita e eu estávamos fazendo campanha para ela, em 1992,
no Rio de Janeiro. Um dia, mais ou menos 7 horas da noite, depois de
uns 10 ou 12 comícios, eu e ela fomos à casa de uma personalidade no
Rio de Janeiro, nosso companheiro também – porque nós também
temos companheiros personalidades – e chegamos, eu com uma
camiseta surrada, porque tinha andado o dia inteiro fazendo comício, e
a Benedita, que não andava tão chique assim ainda, chegamos ao

90
prédio e nos dirigimos à entrada principal. Eis que o porteiro, um
senhor negro, que certamente não conhecia a Constituição, e
certamente não tinha tido o direito de ter auto-estima pela sua própria
cor, disse à Benedita e a mim: 'Pelo elevador de serviço.' Ela, já
Deputada Federal e eu, naquele tempo, já pensava em ser Presidente
da República. Ou seja, eu fiquei nervoso, peguei o telefone, eu não
quis brigar com o porteiro, porque ele não tinha culpa, peguei o
telefone e liguei para a personalidade e disse: 'Olha, não é possível.' Aí
ele falou com o porteiro e Benedita e eu entramos pelo elevador
principal. (Grifos nossos)

O que observamos na SD1.5 é que o enunciante utiliza um exemplo de sua
vida no passado, carregado de efeitos de sentido e implícitos. O implícito, embora
não seja uma categoria da AD, pode ser utilizado como dispositivo de análise, pois
remete ao não dito. Referindo-se ao termo implícito, Ducrot (1972 p. 75) o define:
São modos de expressão implícita que permitem deixar entender sem
incorrer na responsabilidade de ter dito. [...] Ora, se tem frequentemente
necessidade de dizer certas coisas e ao mesmo tempo de poder fazer como
se não as tivéssemos dito, de modo tal que se possa recusar a sua
responsabilidade. O não dito remete ao dito, tem com ele uma relação de
dependência para significar.

Como podemos observar na forma como o Presidente Lula, em seu discurso,
descreve uma experiência do seu passado – e de sua companheira de partido, a
Deputada Benedita da Silva, que por sinal é afrodescendente – colocando-se como
vítima do racismo: [...]eu e ela fomos à casa de uma personalidade no Rio de
Janeiro,

nosso

companheiro

também

–

porque

nós

também

temos

companheiros personalidades[...]. Percebemos nesse enunciado, mediante a
utilização de também, um duplo efeito de sentido de inclusão – uma personalidade
no Rio de Janeiro, nosso companheiro também – e – porque nós também
temos companheiros personalidades. Ou seja, tanto existe a possibilidade de
personalidades se inserirem na categoria de companheiros da classe trabalhadora,
como o inverso. Daí é possível inferir um texto implícito a esse enunciado: é possível
haver alianças entre diferentes classes sociais, no caso a classe trabalhadora e a
elite. Mais uma vez o enunciante retoma sua memória histórica para personificar a
classe trabalhadora e demonstrar, no presente, na condição de Presidente, que é
possível a um trabalhador como ele um dia foi, “chegar lá”, ou seja, a possibilidade
de mobilidade social existe.
Agora temos até um presidente que teve uma origem humilde e conseguiu
vencer na vida, tornando-se um símbolo personificado de que, apesar das

91
dificuldades, é possível “vencer na vida” e obter tamanha conquista pessoal, mesmo
numa sociedade tão cruel e desigual como a capitalista, que tem como marca
fundante a exploração do homem pelo homem.
O enunciante, ainda em seu discurso contra o racismo, mostra os efeitos do
desconhecimento popular da Constituição e suas consequências: SD1.5 “[...] Eis
que o porteiro, um senhor negro, que certamente não conhecia a Constituição,
e certamente não tinha tido o direito de ter autoestima pela sua própria cor,
disse à Benedita e a mim: 'Pelo elevador de serviço.' Ela, já Deputada Federal e
eu, naquele tempo, já pensava em ser Presidente da República. Ou seja, eu
fiquei nervoso, peguei o telefone, eu não quis brigar com o porteiro, porque ele
não tinha culpa”.
Como podemos perceber nessa sequência, o enunciante denuncia uma
atitude preconceituosa de um negro com relação a outro negro e apresenta dois
motivos como justificativa: o desconhecimento da Constituição; e o fato de o “senhor
negro” não ter tido o direito de ter autoestima pela sua cor. Essa afirmação é
reiterada através do modalizador “certamente”.
A nosso ver, a atitude do porteiro tem outra justificativa: sua identificação com
a ideologia dominante38. É desse lugar que ele fala, quando diz: “pelo elevador de
serviço”. Ou seja, ele, o porteiro, mesmo pertencendo à classe explorada, não se
identifica como tal e usa esse lugar que ocupa para também discriminar as pessoas
que aparentemente são “inferiores” a ele. Entendemos que esse comportamento é
resultado da influência do poder da ideologia dominante e de seu aparato ideológico
midiático utilizado cotidianamente pela burguesia, como destaca o filosofo húngaro
Mészáros (1993, p. 10) em sua obra O poder da ideologia:
Deve-se enfatizar que o poder da ideologia é indubitavelmente enorme, não
só pelo esmagador poder material e por um equivalente arsenal políticocultural à disposição das classes dominantes, mas sim porque esse poder
ideológico só pode prevalecer graças à posição da mistificação, através da
qual os receptores potenciais podem ser induzidos a endossar
consensualmente valores e diretrizes práticas que são, na realidade,
totalmente adversos a seus interesses vitais.

38

Ver o segundo capítulo, no qual trabalhamos a construção da imagem do negro na transição do
trabalho escravo para o assalariado e as influências teóricas da época.

92
Vejamos como o enunciante coloca seu governo como o momento em que a
classe trabalhadora, em especial os negros, vivem sua redenção, ou melhor, o
direito de ter autoestima pela sua própria cor, pois no passado esse direito lhes
foi negado. Ocorre que não foi o atual governo o fundador das políticas afirmativas;
como dito anteriormente, essas políticas são reflexo de uma conjuntura histórica
diferente do exemplo norte americano e indiano, nos quais as referidas políticas
ocorreram na esteira de grandes lutas dos setores marginalizados e a sua aplicação
teve como efeito de sentido uma suposta inclusão nas sociedades em questão
desses setores.
No caso do Brasil, apesar de não ocorrerem grandes lutas, como nos
exemplos norte-americano e indiano, temos o fato de que as periferias das grandes
cidades brasileiras ardem em chamas pela violência que produz números dignos de
uma guerra civil, com o tráfico de drogas e suas mais variadas faces recrutando a
juventude para essa guerra que chega a colocar o próprio Estado em situação
vexatória. É aí onde o efeito de sentido das políticas afirmativas no caso brasileiro se
assemelha aos exemplos citados, pois por trás do discurso da “cidadania e do
orgulho da cor negra” é silenciada a necessidade do Estado em formar um fração
negra da classe média proprietária, e até mesmo da burguesia, que venha a servir
de exemplo para os demais de como supostamente é possível vencer na vida, com
a atuação do atual governo e dentro do sistema da propriedade privada.
SD1.6 Quer dizer, vocês imaginem o quanto a gente vai ter que lutar
para tirar essas placas nos elevadores dos prédios do Brasil inteiro. E
já há algum avanço, obviamente. [...]Agora, tudo isso pode ser que,
individualmente, não seja culpa de ninguém, é culpa de uma estrutura
de dominação cultural a que nós somos submetidos ao longo de anos,
anos, anos.(grifos nossos) Nessa SD1.6 o enunciante convoca os
presentes para lutar:[...]vocês imaginem o quanto a gente vai ter que
lutar[...]. Agora imaginemos contra o quê nos convocou para lutar o
Presidente Lula, [...] para tirar essas placas nos elevadores dos prédios
do Brasil inteiro [...], como se tirar as placas que designam os elevadores
social e de serviço resolvesse a questão do racismo. Porém, para não
parecer que estamos sendo muito rigorosos com o enunciante, na
sequência seguinte ele vai afirmar de quem, na sua visão, é a culpa das
situações constrangedoras de racismo: tudo isso pode ser que,
individualmente, não seja culpa de ninguém, é culpa de uma estrutura
de dominação cultural a que nós somos submetidos ao longo de anos,
anos, anos.

Pode ser – existe a possibilidade de que – que individualmente não seja
culpa de ninguém, é culpa de uma estrutura de dominação. Ora, mas essa

93
estrutura de dominação não é o resultado de ações humanas? Ela não é uma
abstração. É o resultado de práticas sociais concretas, assumidas por sujeitos
concretos.
O que ocorre nessa SD também é o silenciamento sobre as verdadeiras
causas do racismo que se encontram nas entranhas do capitalismo, que
historicamente criou mecanismos de divisão das classes exploradas, e o racismo,
sem dúvida, é mais um desses mecanismos ideológicos. O silenciamento não
depende do dito para significar, como já nos demonstrou Orlandi (1995, p.68): “se
define pelo fato de que ao dizer algo, apagamos necessariamente outros sentidos
possíveis, mas indesejáveis em uma situação discursiva dada”.
Partindo do já mencionado conceito de língua e discurso, e partindo do
pressuposto da AD de que as palavras não possuem significado único, mas podem
ter significados variados, dependendo da posição que ocupam na trama social
aqueles que pronunciam, observamos que o discurso da igualdade racial no que
concerne à sua efetivação é uma impossibilidade nos marcos da sociedade
capitalista, e que persiste, num momento de dificuldade de reprodução das relações
sociais mercantis, tendo como finalidade absorver e evitar o choque que inviabilize a
sua reprodução.

4.3 Todos têm direitos iguais na República democrática?

A partir das reflexões a respeito dos limites do discurso de igualdade racial do
governo Lula, passaremos agora a analisar também o discurso de oposição a essa
política do governo, que também esbarra nos limites da sociabilidade do capital e
não chega, de maneira nenhuma, a questioná-la; ao contrário, vem no sentido de
defendê-la e reforçá-la. Como já podemos observar na sua primeira SD.
SD2. 1 O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um
fundamento essencial da República e um dos alicerces sobre o qual
repousa a Constituição brasileira. Este princípio encontra-se
ameaçado de extinção por diversos dispositivos dos projetos de lei de
Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000)
que logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso
Nacional.

94
Nessa SD2.1, ao abordar a questão das políticas afirmativas como sendo as “
verdadeiras causadoras do racismo”, o enunciante tem como finalidade alimentar um
mito fabricado para cumprir determinadas funções sociais, ou seja, fortalecer a ideia
de democracia

racial desenvolvida pela elite como forma de ocultar as reais

contradições da sociedade brasileira. Utiliza-se a estratégia de colocar as políticas
de

afirmação

racial

como

“bode

expiatório”,

fazendo-as

aparecer

como

responsáveis, ou futuras responsáveis, por uma guerra racial no país.
Com essa estratégia produz-se então uma mistificação, dispondo-se uma
cortina de fumaça ao redor do debate central que se deve travar no tocante à
questão racial no Brasil, impedindo assim o dimensionamento correto para se
ultrapassar o nível dos preconceitos e visões preconcebidas, ou ainda, o problema
das interpretações unidirecionais ou tendenciosas. Nesse sentido, o texto tenta
enunciar o seu discurso como sendo o discurso dos defensores da democracia e da
igualdade de oportunidades.
Qualquer discurso que enfoca questões sociais pode, conforme seus efeitos,
transformar ou manipular as representações coletivas com a finalidade de manter
certas estruturas de poder. Da mesma forma pode modificá-las, visando à
superação dessas mesmas estruturas. Assim, adquirem identidade particular,
aparecendo como formações que se definem pelos sentidos ideológicos que
reiteram e que vão direcionar a sua função enunciativa, desencadeada a partir da
interação de opiniões diferentes sobre questões de interesse comum. Tais
formações apresentam regularidades em seu funcionamento que permitem
interpretá-las como parte de uma matriz de sentido específica, constituindo o que se
denomina, em Análise do Discurso, de formação discursiva.
Exploram-se, assim, as relações entre ideologia e linguagem, ultrapassando a
noção de linguagem como sistema de comunicação para relacioná-la com os
fenômenos conflitantes de estruturação social da qual ela própria faz parte. Nenhum
discurso escapa do envolvimento com a dimensão ideológica; deve-se discernir uma
avaliação contingente dos efeitos de sentidos dominantes, permitindo compreender
o alcance de determinado fenômeno social, no caso, as políticas de ações
afirmativas.
No trabalho ora desenvolvido, optou-se pela Análise do Discurso como
instrumento adequado para examinar a ligação entre a linguagem apresentada e a

95
ideologia subentendida. Sua metodologia permite explicar os processos de produção
de sentidos produzidos no Manifesto ante políticas afirmativas e detectar intenções
secretas ou interesses escusos.
Na sua origem a AD, tal como idealizada por Pêcheux, aparece ligada à
dimensão político-histórica. Suas premissas básicas apoiam-se na concepção da
linguagem como tendo sua constituição histórica, não sendo possível dissociá-la do
conjunto das práticas humanas. Por essa razão, saber quem fala, para quem fala,
em que situação, de que lugar da sociedade, com que intenções, são elementos de
suma importância no processo de análise.
Na análise do discurso de combate às políticas afirmativas desenvolvidas no
Manifesto, aparece como particularmente relevante para apreensão dos sentidos a
análise dos implícitos. Estes se deixam considerar como mecanismos discursivos
para neutralizar possíveis consequências de uma compreensão dos sentidos. Assim,
querendo dizer mais do que se diz ou apagando sentidos pelo silenciamento de
aspectos

cruciais

das

políticas

de

afirmação

racial,

é

possível

produzir

representações convenientes a uma determinada formação social. O não dito, por
exemplo, sob a vertente do implícito (diz “X” querendo dizer “Y”) e aquela do antiimplícito (diz “X” querendo silenciar “Y”), pode determinar certas significações
ocultadas no discurso “oficial” (Orlandi, 1990).
A SD2, de uma maneira geral, foi selecionada pela especificidade e
regularidade discursiva, correspondendo às características da formação impregnada
pelo senso comum infiltrado pela ideologia dominante da democracia racial. Assim, a
recorrência de determinadas particularidades linguísticas, retóricas e temáticas
serviu para diferenciar e agrupar partes de um mesmo processo de propaganda
ideológica.
Silenciamento acerca das diferenças sociais e da afirmação de igualdade de
direitos, colocando a República brasileira como democrática desconsiderando a
construção histórica e social do Brasil, sem localizar a situação da maioria dos
afrodescendentes no referido texto, como podemos observar: SD 2.1[...]O princípio
da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento essencial da
República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição brasileira.
Este princípio encontra-se ameaçado de extinção[...]. Ocorre o silenciamento dos

96
motivos pelo quais o Estado aplica as políticas de afirmação racial, não levando em
consideração as condições subjetivas e objetivas da conjuntura atual.

SD2.2 O chamado Estatuto da Igualdade Racial implanta uma
classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros, estabelece cotas
raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais
com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais
na contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira
passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da
sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas
tentativas.

O enunciante, na SD2.2, utiliza uma manobra discursiva simplificando a
questão racial no Brasil, não levando em consideração a localização do negro na
História, nem no processo educacional do país. E, ainda, enfoca o problema das
questões raciais como sendo uma ameaça à suposta democracia brasileira e à
igualdade de oportunidades entre seus cidadãos. Trata de forma genérica a questão
racial como se, ao longo da História, as raças tivessem as mesmas condições de
oportunidades econômicas, formação cultural e educacional.
Na SD2.2 também encontramos uma associação dramática da memória
discursiva ao longo do texto com experiências históricas, tendo como implícito a
memória do apartheid ou do holocausto nazista:[...] Se forem aprovados, a nação
brasileira passará a definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da
sua pele, pela "raça". A história já condenou dolorosamente estas
tentativas.,[...]. A questão racial é tratada de maneira superficial, sem levar em
consideração as condições objetivas atuais e as dos referidos exemplos.
É

possível

observar

um

processo

de

silenciamento

dos

dados

socioeconômicos que atingem a população afrodescendente no tocante à falta de
escolaridade e à exclusão social na SD2.3. Esta análise não é realista nem
sustentável e tememos as possíveis conseqüências das cotas raciais.
Transformam classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em
identidades e direitos individuais contra o preceito da igualdade de todos
perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser imposta e regulada
pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em nome da
justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito

97
contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o
acirramento do conflito e da intolerância.
Um fato curioso é que tanto o Presidente Lula, na defesa do discurso da
igualdade racial, ver a SD1.1, como seus opositores utilizam a retórica liberal
burguesa

para

justificar

suas

posições

ideológicas:

SD2.3[...]Transformam

classificações estatísticas gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos
individuais contra o preceito da igualdade de todos perante a lei. Contudo, o
discurso dos opositores vai além, ao resgatar a velha ideia da democracia racial
utilizando uma visão maniqueísta como forma de convencimento ideológico,
evocando a crença no caráter universal da democracia como solução dos problemas
sociais e raciais, sem levar em consideração as diferentes visões e a aplicação da
democracia, e os limites das relações de produção capitalistas.
Na SD2. 5 Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém
seja discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua
vida íntima e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços
públicos; que se valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante
do caminho de toda a humanidade para um futuro onde a palavra felicidade
não seja um sonho. Enfim, que todos sejam valorizados pelo que são e pelo
que conseguem fazer. Nosso sonho é o de Martin Luther King, que lutou para
viver numa nação onde as pessoas não seriam avaliadas pela cor de sua pele,
mas pela força de seu caráter. Nessa sequência, percebemos a sugestão da
meritocracia como solução do problema das desigualdades entre as raças, sem
levar em consideração a questão da luta de classes. Para tanto, se utilizando em
seu intradiscurso referências de lideranças históricas da luta negra como Martin
Luther King, a fim de justificar seu posicionamento ideológico.
Os resultados demonstram a fragilidade da SD2, em que o tema discutido não
obteve o devido rigor de que o debate necessita, sendo tratado de forma meramente
panfletária e propiciando práticas que atendem às necessidades de controle social e
de manutenção de certos padrões da ordem vigente no Brasil.
O corpus analisado nos remete a uma visão preconceituosa do tema em
debate. Há uma tendência no texto a atender aos anseios da ideologia dominante,
ou seja, da ideologia do cotidiano, resgatando o referido conceito em Bakhtin,
alimentando o desconhecimento do tema, seja numa visão mais conservadora, ou

98
até mesmo numa visão mais progressista. O impressionismo e a monossemia são
marcas que direcionam suas operações verbais, dirigidas aos leitores com o objetivo
claramente persuasivo, visando a exercer influência decisiva sobre as suas
representações, como de fato qualquer discurso de propaganda ou de publicidade.

As afirmações do Manifesto funcionam então como cúmplices nas
explicações e justificações dessa visão preconcebida da questão das cotas raciais
nas universidades.
Para facilitar os resultados do trabalho, procuramos enumerar os principais
efeitos de sentidos construídos neste discurso, observados pelo exercício de análise
trabalhado.
1.

A retórica utilizada pelos autores do Manifesto tem como destaque

inicial a meta de persuasão.

Termos expressivos e combinações linguísticas

diversas estão voltadas para a construção de um sentido dominante. Palavras
carregadas de conteúdos ameaçadores como: ameaçado, extinção, condenou,
dolorosamente,

tememos,

acirramento,

conflito,

intolerância,

semear,

perigoso, racismo e outros são utilizados no texto , ajudando a construir
enunciados de teor passional, o que dificulta uma avaliação sóbria da problemática.
2.

O tom de ultimato e alarmista utilizado no Manifesto materializa um

discurso que traz como resultado a ideia de saber único e exclusivo. A tendência de
se apresentar como detentor da verdade está então duplamente presente; quer pelo
caráter formal do texto, quer também pela utilização da memória

discursiva,

utilizando exemplos históricos em tom ameaçador, impedindo o leitor de um
posicionamento crítico.
3.

Uma das técnicas fundamentais na construção do discurso contrário às

cotas desenvolvido no Manifesto são os silenciamentos das contradições sociais
relativizando as estatísticas: SD2.3 [...]Transformam classificações estatísticas
gerais (como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o
preceito da igualdade de todos perante a lei.[...], utilizados para omitir
propositalmente alguma informação, falando superficialmente de um fato que
poderia colocar em xeque o manifesto e sua causa. Assim, tenta-se passar a ideia
de que as políticas afirmativas são uma ameaça ao processo de construção da

99
democracia: SD 2.2 [...] a nação brasileira passará a definir os direitos das
pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A história já
condenou dolorosamente estas tentativas, induzindo a quem lê o texto a ter a
visão de que as políticas afirmativas irão levar o país a uma guerra racial, sugerindo
como exemplo o holocausto. O enunciado apela para o fato de que todos têm
direitos iguais na república democrática, ocorrendo aí um silenciamento brutal, pois
sabemos que os índices socioeconômicos dizem exatamente o contrário, sem contar
com os problemas que a justiça tem com relação às questões que se referem aos
cidadãos de baixo poder aquisitivo, ou seja, na justiça burguesa o direito dos
trabalhadores é colocado de lado, em detrimento dos interesses do capital.
4.

Característica também marcante do texto analisado refere-se a uma

visão de mundo simplista e maniqueísta. Seus autores, referenciados pela ideologia
liberal burguesa, enveredam facilmente pelo campo do dogmatismo absoluto. Usam
verbos no imperativo e frases com efeito que expressam posição de certeza e
verdade, como as afirmações seguintes: SD2.3[...] não eliminam o racismo e
podem até mesmo produzir efeito contrário, SD2.2[...] a História já condenou
dolorosamente[...], SD2.3[...] acirramento do conflito e da intolerância[...],
SD2.4[...] a invenção de raças tem tudo para semear esse perigoso tipo de
racismo[...].
O que observamos durante a análise é que o tema é de uma complexidade
enorme, apesar de o Manifesto analisado tentar simplificar o debate como forma de
persuasão para seus leitores.
Porém, um tema que nos chamou a atenção no corpus foi a utilização das
políticas afirmativas como empecilho para o funcionamento da democracia. Evidente
que foi um recurso retórico dos autores do Manifesto, que desde seu enunciado até
a sua conclusão colocam o termo democracia como sendo um valor universal. Ora,
sabemos que essa estratégia faz parte de uma visão ideológica utilizada tanto pela
esquerda reformista social-democrata quanto pelos liberais, que tentam adaptar as
tradicionais reivindicações do conjunto dos trabalhadores e sua luta pela construção
de uma sociedade para além do capital à visão liberal de democracia que tem como
eixo o sufrágio universal, liberdades políticas, o império da lei e a competição
política, tendo como base a meritocracia.

100
Por isso a falsidade da ideia desenvolvida pelos autores do manifesto, que
utilizam as políticas afirmativas como empecilho ao funcionamento da democracia,
ocultando que a democracia em questão seria a formal, pois para a realização
da democracia em sua plenitude, ou seja, na sua forma direta, exige-se de maneira

fundante que os trabalhadores construam novas relações de produção livres da
alienação mercantil e que assim possam alicerçar no trabalho associado e não
explorado a democracia direta. As políticas afirmativas não são um grande
empecilho à democracia formal. A (des)funcionalidade desse regime encontra-se
exatamente nas condições socioeconômicas alienadas da sociedade capitalista que
o manifesto procurou ocultar para não debilitar seu discurso.

101
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para nossas considerações finais, gostaríamos de dizer que esta jornada está
apenas começando, e que teremos um longo caminho pela frente para chegarmos
às conclusões. As inquietações teóricas que nos levaram à produção deste trabalho
já nos remetem a outras questões.
O objetivo inicial do nosso trabalho foi analisar os limites do discurso de
igualdade racial do governo do Presidente Lula e desvelar os seus sentidos. Porém,
sentimos a necessidade de fazer uma rápida discussão sobre a questão do Estado,
nela mostrando o desenvolvimento da educação e das políticas afirmativas para, a
partir daí, localizar o negro na História do Brasil, ressaltando a construção de sua
imagem .
Nesse sentido, procuramos utilizar a AD de linha francesa, porém

numa

abordagem de perspectiva ontológica do materialismo histórico-dialético, buscando
aliar a nossa escrita a uma discussão teórica marxista, o que na maioria das vezes
foi muito difícil, por conta da complexidade dos teóricos trabalhados, além dos
conceitos que foram aparecendo à medida que a dissertação se foi desenvolvendo.
Destacamos, também, que procuramos enfocar, ao longo dos capítulos,
aspectos que demonstram a impossibilidade tanto da democracia racial como da
igualdade racial na sociedade capitalista, e para isso utilizamos uma análise do
discurso que leva em conta as contradições sociais de uma sociabilidade dividida
em classes sociais. Para isso, a perspectiva da AD à qual somos filiados articula o
linguístico ao sócio-histórico e ao ideológico.
O nosso percurso neste trabalho procurou demonstrar que o discurso
pensado como efeito de sentidos entre locutores é a arena na qual os sentidos se
realizam, onde os sujeitos lutam, devido aos seus envolvimentos sociais, históricos e
ideológicos, e é através da sua concretização que podem trazer, à luz dos
acontecimentos, discursos anteriores ou apontar para discursos passados. A visão
de discurso à qual somos filiados pode nos oferecer uma abertura para
(re)significações, associações, transformações, mediante uma visão histórica da
língua e do sujeito.

102
Vimos, no nosso corpus, a postura autoritária do sujeito que enuncia a partir
de seu lugar social e institucional – a presidência da República –, porém a todo
momento o mesmo sujeito vai no passado buscar um sentido popular para se
colocar como portador do discurso da classe trabalhadora.
Porém, o desvelamento do funcionamento discursivo nos mostrou que tanto
o governo do Presidente Lula com o seu discurso da igualdade racial, quanto seus
opositores com o discurso da democracia racial tentam criar um consenso, cada um
por seu caminho, contudo, sem tocar na questão central, a nosso ver, que são as
relações capitalistas de produção e seus efeitos sociais.
No atual momento histórico do capitalismo monopolista as políticas
afirmativas, principalmente no campo da educação, como as cotas, cumprem, entre
outras mediações, as funções de diminuir a pressão da classe trabalhadora pela
demanda por emprego, enquanto colocam na educação a saída para resolver uma
mazela histórica e ainda reforçam a ideia de que é na vida escolar que se encontra o
caminho para entrar no mercado de trabalho, construindo e difundindo assim, nas
atuais e futuras gerações de afrodescendentes, o compromisso com a cultura
empresarial e com a ordem social do capital, justificando dessa forma o
individualismo e a competição.
A situação de exclusão social em que se encontram os afrodescendentes,
somada à visão dominante, como vimos no início desta dissertação com alguns
conceitos de políticas afirmativas (une-se aí “a fome com a vontade de comer”)
justificam a aplicação dessas políticas como redentoras dos negros. Entretanto, a
intenção dessas políticas raciais é incluir essa massa excluída na ordem social do
capital, para, a partir daí, aumentar a produtividade desses setores na economia
capitalista, ou seja, aumentar a extração de mais-valia e beneficiar de maneira geral
o grande capital.
Tudo isso evidencia que tanto a política de igualdade racial do governo Lula
como a de seus opositores. Visam, nos marcos do capitalismo, de maneira pontual e
privatista, não entrar em choque com a lógica perversa do capital; muito pelo
contrário, a expansão dessas políticas promovida atualmente está em perfeita
sintonia com as necessidades da reprodução do capital no seu atual contexto.

103
Não é nossa intenção desprezar as lutas do movimento negro; pelo contrário,
nosso objetivo é demonstrar os limites que as políticas afirmativas possuem, sem
deixar de reconhecer que a efetivação dessas ações contribui para desvelar o
racismo no Brasil, provocando várias reflexões sobre a discriminação racial e a
desigualdade social presentes na sociedade brasileira ao questionar o acesso
“democrático e universal” à educação – em que a igualdade é apenas formal.
Concluímos que não há possibilidade de realizar uma verdadeira igualdade
racial enquanto o capital continuar existindo. Qualquer política na direção da
igualdade racial só será realmente substantiva se for além do sistema do capital e
vier a contribuir com a eliminação de seu ato fundante, a compra e venda da força
de trabalho, com a qual se realiza a exploração do homem pelo homem. Do
contrário, essas políticas só reforçam a lógica do capital e cooptam os melhores
quadros afrodescendentes para a sua lógica. Com isso, não estamos sugerindo o
abandono das lutas, mas a sua radicalização.
Para finalizar, gostaríamos de dizer que os limites dessas políticas raciais de
adaptação aos interesses do capital, em especial as políticas afirmativas, apesar de
seu apelo de reparação social, o agente executor, ou seja, o Estado brasileiro e
todas as suas características históricas que foram desenvolvidas nos capítulos
anteriores, tem como objetivo garantir a adequação dos setores marginalizados pelo
histórico de escravidão, evitando assim que esses mesmos setores venham a
concorrer para destruir a ordem capitalista nacional, acenando com a possibilidade
de, através das políticas afirmativas, contribuir para a formação de uma “classe
média de cor”, ou melhor, uma “pequena burguesia negra” comprometida com a
ordem nacional.
A teoria marxista revolucionária tem, no seu momento crucial, o objetivo de
elaboração de uma educação comprometida com a emancipação humana, quando
coloca na ordem do dia a disputa com as concepções de mundo dominantes.
Passados 90 anos da maior e mais instigante experiência revolucionária do
proletariado na História, a Revolução de Outubro de 1917, recai sobre os ombros do

104
marxismo revolucionário a responsabilidade e a tarefa de transmitir a ciência social
histórica, fundamentada no materialismo histórico e dialético, para as novas
gerações de lutadores do proletariado, para assim contribuir decisivamente na
resolução do grande dilema da conjuntura atual, desmascarar a barbárie do capital e
recuperar o fim teleológico da razão humana, apontando para a construção da
individualidade livre e universal, baseada no trabalho associado, somente possível
nos marcos de uma sociedade para além do capital, ou seja, socialista.

105
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ANEXOS

110
ANEXO 1
Discurso do Presidente na criação da SEPPIR

Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na cerimônia
de instalação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.

Palácio do Planalto, 21 de março de 2003.

Eu penso que, depois da Lucinda, a gente deveria terminar o ato e nos dar
por agradecidos. Eu tinha tido a oportunidade de ver a Lucinda em Guarapari em
1995, não sei por que a gente não vê uma figura, como a Lucinda, mais presente
nas televisões brasileiras.
Eu queria agradecer a presença aqui da família do nosso querido Florestan
Fernandes, está aqui a sua viúva, minha querida companheira Miriam Rodrigues
Fernandes, a Beatriz Fernandes, sua filha e o nosso companheiro jornalista
Florestan Fernandes Júnior.
Eu tinha visto a Zezé Mota aqui, nossa querida Zezé Mota. Precisava alguém
citar mais nomes de personalidades que estão aqui, porque todo mundo aqui é
personalidade, mas uns são mais personalidades porque ganharam notoriedade.
Meu querido Antônio Pitanga, Pitanga ultimamente é mais do que um pitanga,
está virando uma jabuticaba.
Minha querida companheira e esposa Marisa, Meu caro e querido
companheiro José Alencar, Vice-Presidente da República, Minha querida Mariza
Gomes da Silva, esposa do José Alencar, Senhoras e Senhores Embaixadores
acreditados junto ao Governo brasileiro, Senhoras e Senhores Ministros, Meus
companheiros de labuta nesses próximos 4 anos, Companheiras Ministras, Minha
querida companheira Benedita da Silva, As mulheres devagarzinho vão ocupando
espaço no Governo, Meu querido companheiro Abdias Nascimento, que eu pensei
que tinha 39 anos e está com 89, Minha querida Matilde, prepara-te, a luta é dura
mas será compensadora. Meus queridos companheiros Senadores, Deputados,
Prefeitos, Companheiros dirigentes partidários, Companheiros do Movimento Negro,
Meus amigos e minhas amigas, Preconceito é uma coisa doentia, e eu estou aqui,

111
de frente para vocês e atrás de vocês há um artigo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, o artigo primeiro, que foi feito em 1948, que começa assim:
'Todos os homens – ou seja, não tinha mulher naquele tempo) –nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir,
uns em relação aos outros, com espírito de fraternidade. 'Não é possível que as
mulheres do mundo inteiro ainda não tenham feito uma pressãozinha para a ONU
mudar o artigo primeiro e dizer: 'Todos os homens e mulheres do mundo.' Mas essa
é uma forma de preconceito que está estampada nos livros escolares que a nossa
meninada lê todo santo dia, está estampada nos jornais, nas revistas que a gente lê,
está estampada nas novelas, nos filmes, em outros que tais.
Mas eu vou falar um pouco disso mais adiante. Primeiro, tem uma parte oficial
aqui. Eu não sei como é que vou fazer para quebrar todos os cerimoniais, mas um
dia... nós estamos começando.
Nós estamos aqui para tratar de problemas com os quais ninguém gosta de
ser identificado: preconceito racial, discriminação, intolerância, racismo. Tem gente
até que acredita que eles não existem no Brasil. Ou pensa que, quando ocorrem,
prejudicam apenas algumas minorias. A realidade é bem diferente: esses males,
aparentemente invisíveis, causam muito sofrimento entre nós.
Pelo menos metade da população brasileira vem sendo prejudicada por essa
situação: a metade negra do nosso povo. Ela não é somente negra –é em sua
grande maioria pobre. Mais de 64 por cento dos pobres e pelo menos 70 por cento
dos indigentes brasileiros são negros, como também a maior parte dos
desempregados e subempregados do país também são negros.
No caso das mulheres negras, a discriminação é dupla, de gênero e de raça.
Muitas são submetidas a trabalhos precários, baixa remuneração, violência e abuso
sexual, além do abandono que as obriga a assumirem sozinhas o sustento de suas
famílias.
Essa situação injusta e cruel é produto da nossa História –da escravidão que
durou quatro séculos no Brasil, deixando marcas profundas em nosso convívio
social –, mas é também resultado da ausência de políticas públicas voltadas para
superá-la.(implícito, formação ideológica utilização do dirscurso do povo, e a
mobilidade do sujeito)

112
O Estado brasileiro não deve ser (implícito ou seja tentativa de passar q idéia
da neutralidade)neutro em relação às questões raciais. Cabe a ele assegurar a
todos os brasileiros e brasileiras igualdade de oportunidades na busca de melhores
condições de vida.
É importante que a gente tenha claro o que está escrito na nossa
Constituição. Eu lembro do papel extraordinário e dos debates que nós fizemos na
Constituinte de 1988. E tínhamos lá a companheira Benedita, o companheiro Caó,
que falavam na tribuna.
E o que foi escrito na Constituição, a começar do seu artigo 3º? Dizia assim:
Constitui objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Inciso 4º–
Promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Artigo 4º- A República Federativa do Brasil rege-se, nas suas relações
internacionais, pelos seguintes princípios: Inciso 8º - púdio ao terrorismo e ao
racismo.
Artigo 5º- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros, residentes no país, a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos
seguintes: Primeiro, homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos da Constituição. A prática do racismo –inciso 42 –constitui crime inafiançável
e imprescritível, sujeito a pena de reclusão nos termos da lei.
Artigo 7º- São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros,
que visam a melhoria da sua condição social. Inciso 30º- Proibição de diferenças de
salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo,
idade, cor ou estado civil.
Artigo 216 da Constituição: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira nos quais se inclui. Ficam tombados todos os
documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos.
Ato das disposições constitucionais transitórias.

113
Artigo 68 – os remanescentes das comunidades dos quilombos, que estejam
ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado
emitir-lhes o título respectivo.
Eu não sei, meu caro amigo Cristovam Buarque, meu caro amigo Miro
Teixeira, respectivamente Ministro da Educação e das Comunicações, meu caro
Márcio Thomaz Bastos, Ministro da Justiça, e os outros Ministros, mas, sobretudo,
esses três, a tarefa que vocês terão pela frente.
Eu vou contar dois episódios. Benedita e eu estávamos fazendo campanha
para ela, em 1992, no Rio de Janeiro. Um dia, mais ou menos 7 horas da noite,
depois de uns 10 ou 12 comícios, eu e ela fomos à casa de uma personalidade no
Rio de Janeiro, nosso companheiro também –porque nós também temos
companheiros personalidades –e chegamos, eu com uma camiseta surrada, porque
tinha andado o dia inteiro fazendo comício, e a Benedita, que não andava tão chique
assim ainda, chegamos ao prédio e nos dirigimos à entrada principal. Eis que o
porteiro, um senhor negro, que certamente não conhecia a Constituição, e
certamente não tinha tido o direito de ter auto-estima pela sua própria cor, disse à
Benedita e a mim: 'Pelo elevador de serviço.' Ela, já Deputada Federal e eu, naquele
tempo, já pensava em ser Presidente da República. Ou seja, eu fiquei nervoso,
peguei o telefone, eu não quis brigar com o porteiro, porque ele não tinha culpa,
peguei o telefone e liguei para a personalidade e disse: 'Olha, não é possível.' Aí ele
falou com o porteiro e Benedita e eu entramos pelo elevador principal.
Mas isso não acontece só com negro e negra, não. Esses dias eu mudei para
um apartamento e um filho de um amigo meu, amigo do meu filho, essa meninada
que usa essas bermudonas que você não sabe se são calça ou bermuda, porque
não está nem no joelho, nem no tornozelo, está no meio da canela. Chega esse
amigo do meu filho, na minha casa, de bermuda, de camiseta, todo esculhambado,
como é próprio da idade, e chega na portaria e o porteiro –não era um negro, era um
branco, mas que o salário era igual ao do negro, salário mínimo –diz assim para o
menino: 'Por favor, pelo elevador de serviço.' Eu fui obrigado a pegar o telefone,
porque eu perguntei para o menino: 'Por que que você veio pelo elevador de
serviço?' 'Ah, porque o guarda mandou.' Eu olhei para ele assim. Eu falei: 'Pelos
trajes, até que merecia.' Aí liguei para o porteiro e falei para o porteiro: 'Olha, daqui
para a frente, quem vier à minha casa e disser que veio à minha casa, entra pelo

114
elevador considerado principal. São os dois da mesma marca, os dois do mesmo
tamanho, cabe a mesma quantidade de pessoas, estão no mesmo prédio, próximos
um do outro, ou seja, está escrito lá, um social e o outro de serviço.
Quer dizer, vocês imaginem o quanto a gente vai ter que lutar para tirar essas
placas nos elevadores dos prédios do Brasil inteiro. E já há algum avanço,
obviamente.
Há alguns anos, negro só aparecia na televisão se houvesse um personagem
de escravo ou de bandido. Negra, até outro dia, o máximo que chegava era a ser
chefe de cozinha.
Agora, tudo isso pode ser que, individualmente, não seja culpa de ninguém, é
culpa de uma estrutura de dominação cultural a que nós somos submetidos ao longo
de anos, anos, anos. E nós mudamos pouco, porque se a gente não começar, na
pré-escola, a contar a História do Brasil diferente para nossas crianças, elas
crescerão achando que os negros sempre foram escravos. Eles começarão achando
que os negros são uma raça inferior. Então, se nós não começarmos a mudar, meu
amigo Cristovam, na cartilha em que a criança começa a aprender o bê-a-bá, se nós
não começarmos a discutir que as pessoas devem ter papel importante nos filmes e
na televisão, pela sua competência e não pela sua cor, nós nunca mudaremos isso.
Vamos continuar achando e admitindo que a mulher negra e o homem negro
são bons para dançar, são bons para jogar futebol, são bons para disputar as
Olimpíadas, mas que outras atividades: gerente de banco tem que ser branco,
dentista, médico, tem que ser branco, advogado tem que ser branco, chefe em
repartição pública tem que ser branco. Até dentro das fábricas, e está aqui um negro
saído de dentro da fábrica, o companheiro Vicentinho, sabe que se, numa empresa,
houver dois trabalhadores para serem escolhido para um deles ser chefe, se houver
um negro e um branco, pode ficar certo de que o branco será escolhido para ser o
chefe daquela fábrica.
Portanto, vocês percebem que a tarefa é muito maior do que criar uma
Secretaria, é muito maior do que colocar na Constituição ou na Declaração Universal
dos Direitos Humanos. A coisa é muito mais profunda, a coisa está na raiz, no
nascimento do nosso e de outros países. E a gente vai precisar, quem sabe, de
alguns anos para que comece a mudar.

115
Por isso, minha querida companheira Matilde, eu estou certo de que, hoje, o
que nós estamos fazendo, é jogando, meu caro Gilberto Gil, uma sementezinha
Vocês são a terra e os que não estão aqui são a água que vai aguar essa semente.
E eu espero que, no menor espaço de tempo possível, essa árvore brote, dê frutos e
a gente possa estar preocupado com outro problema e não mais com o problema do
preconceito racial no nosso país.
A criação dessa Secretaria é o começo de um trabalho que precisa dar certo.
Um trabalho que tem de ser articulado com o de outros Ministérios. Um trabalho
cotidiano, persistente, que estimule, coordene e torne mais eficientes as ações do
Governo nessa área. E aí, minha companheira Matilde, toda vez que a gente
trabalha numa fábrica ou num quartel, ou em qualquer atividade em que entre uma
pessoa nova, essa pessoa nova leva mais tempo. Você vai começar a tratar os
outros Ministros como autoridades maiores do que você, porque é mais nova. E
todos os Ministros, aqui, são seus amigos, minha cara. Você tem que pedir licença
por educação, mas por direito você é igual a qualquer companheiro que já está no
Governo.
Tenho certeza de que a nova Secretaria terá condições de fazer isso porque é
fruto de movimentos amplos, participativos e profundamente comprometidos com a
democracia no nosso país. É que eu vi alguém aqui da 'Cidade de Deus' que eu não
vou falar agora.
O próprio processo de criação da Secretaria foi fruto de um trabalho integrado
por nove Ministérios e representantes de movimentos sociais, coordenado pelo meu
companheiro Luís Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Durante o período de transição de Governo, no final do ano passado,
verificamos que algumas iniciativas de Governo, ligadas às questões raciais, eram
ações isoladas ou de caráter meramente propagandístico.
Ao nascer, a nova Secretaria dá a devida importância à promoção da
igualdade racial no nosso país e abre espaço para a efetiva integração de projetos e
ações em todo o conjunto de Governo.
Por razões históricas, e pela importância da população negra no Brasil, a
Secretaria terá o seu foco principal nos problemas dessa etnia. Mas não só.

116
Qualquer parcela da população que seja vítima de discriminação racial receberá
também da Secretaria a devida atenção.
A nova Secretaria surge em uma data de grande significação: 21 de março é
o Dia Internacional de Combate à Discriminação Racial, instituído pela ONU em
homenagem às dezenas de jovens negros que, em 1960, foram vítimas do
massacre na África do Sul.
Surge ainda como uma resposta positiva do Brasil às questões levantadas em
2001 pela Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância, realizada também na África do Sul.
Mais de 16 mil pessoas de 173 países participaram dos debates daquele
encontro –500 representantes do nosso Brasil. O seu lema, inclusive, merece ser
lembrado aqui: 'Unidos para combater o racismo –Igualdade, Justiça e Dignidade'.
É nesses termos que o Brasil do presente e do futuro deve agir.
Nas relações internacionais, o nosso país praticamente esqueceu a África. O
meu Governo vai voltar a dar atenção a esse grande continente, que é o nosso
irmão de sangue e de raízes espirituais. Em alguns países africanos o Brasil não
tem Embaixada e nem sequer um escritório de representação. Vamos buscar maior
intercâmbio político, cultural e comercial, imprescindível aos nossos povos, em
particular os de língua portuguesa.
Já comuniquei ao meu companheiro Celso Amorim, Ministro das Relações
Exteriores, que ainda este ano eu quero fazer a visita a alguns países da África para
demonstrar que nós vamos reatar as nossas relações.
A História do Brasil é rica em exemplos de resistência e luta pelos direitos dos
negros à plena cidadania.
Zumbi dos Palmares é um herói brasileiro e a data de 20 de novembro –Dia
Nacional da Consciência Negra –deve se tornar uma data comemorativa de toda a
sociedade.
A superação do racismo requer políticas públicas e ações afirmativas
concretas.
Algumas personalidades brasileiras têm que ser lembradas neste ato, entre
tantas que dedicaram suas vidas à defesa da igualdade racial.

117
Quero homenagear todas elas recordando, com respeito político e afeto
pessoal, a professora, antropóloga e militante Lélia Gonzalez, e os mestres
Florestan Fernandes, que já em 1950 desmistificava as relações raciais no Brasil, e
também o nosso querido Milton Santos, o nosso maior geógrafo, mundialmente
reconhecido.
Quero parabenizar homens e mulheres, simples e ilustres, que durante
décadas contribuíram com seu esforço, talento e persistência para a efetivação
dessa conquista.
A democracia brasileira será tanto mais substantiva quanto maior for a
igualdade racial no nosso país.
Muito obrigado.

118
ANEXO 2
Manifesto: Todos têm direitos iguais na República Democrática

1 - Todos têm direitos iguais na República Democrática
2 - O princípio da igualdade política e jurídica dos cidadãos é um fundamento
essencial da República e um dos alicerces sobre o qual repousa a Constituição
brasileira. Este princípio encontra-se ameaçado de extinção por diversos dispositivos
dos projetos de lei de Cotas (PL 73/1999) e do Estatuto da Igualdade Racial (PL
3.198/2000) que logo serão submetidos a uma decisão final no Congresso Nacional.
3 - O PL de Cotas torna compulsória a reserva de vagas para negros e
indígenas nas instituições federais de ensino superior. O chamado Estatuto da
Igualdade Racial implanta uma classificação racial oficial dos cidadãos brasileiros,
estabelece cotas raciais no serviço público e cria privilégios nas relações comerciais
com o poder público para empresas privadas que utilizem cotas raciais na
contratação de funcionários. Se forem aprovados, a nação brasileira passará a
definir os direitos das pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela "raça". A
história já condenou dolorosamente estas tentativas.
4 - Os defensores desses projetos argumentam que as cotas raciais
constituem política compensatória voltada para amenizar as desigualdades sociais.
O argumento é conhecido: temos um passado de escravidão que levou a população
de origem africana a níveis de renda e condições de vida precárias. O preconceito e
a discriminação contribuem para que esta situação pouco se altere. Em decorrência
disso, haveria a necessidade de políticas sociais que compensassem os que foram
prejudicados no passado, ou que herdaram situações desvantajosas. Essas
políticas, ainda que reconhecidamente imperfeitas, se justificariam porque viriam a
corrigir um mal maior.
5 - Esta análise não é realista nem sustentável e tememos as possíveis
conseqüências das cotas raciais. Transformam classificações estatísticas gerais
(como as do IBGE) em identidades e direitos individuais contra o preceito da
igualdade de todos perante a lei. A adoção de identidades raciais não deve ser
imposta e regulada pelo Estado. Políticas dirigidas a grupos "raciais" estanques em
nome da justiça social não eliminam o racismo e podem até mesmo produzir o efeito

119
contrário, dando respaldo legal ao conceito de raça, e possibilitando o acirramento
do conflito e da intolerância. A verdade amplamente reconhecida é que o principal
caminho para o combate à exclusão social é a construção de serviços públicos
universais de qualidade nos setores de educação, saúde e previdência, em especial
a criação de empregos. Essas metas só poderão ser alcançadas pelo esforço
comum de cidadãos de todos os tons de pele contra privilégios odiosos que limitam
o alcance do princípio republicano da igualdade política e jurídica.
6 - A invenção de raças oficiais tem tudo para semear esse perigoso tipo de
racismo, como demonstram exemplos históricos e contemporâneos. E ainda
bloquear o caminho para a resolução real dos problemas de desigualdades.
7 - Qual Brasil queremos? Almejamos um Brasil no qual ninguém seja
discriminado, de forma positiva ou negativa, pela sua cor, seu sexo, sua vida íntima
e sua religião; onde todos tenham acesso a todos os serviços públicos; que se
valorize a diversidade como um processo vivaz e integrante do caminho de toda a
humanidade para um futuro onde a palavra felicidade não seja um sonho. Enfim, que
todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Nosso sonho é o
de Martin Luther King, que lutou para viver numa nação onde as pessoas não seriam
avaliadas pela cor de sua pele, mas pela força de seu caráter.
8 - Nos dirigimos ao congresso nacional, seus deputados e senadores,
pedindo-lhes que recusem o PL 73/1999 (PL das Cotas) e o PL 3.198/2000 (PL do
Estatuto da Igualdade Racial) em nome da República Democrática.
Rio de Janeiro, 30 de maio de 2006.

Adel Daher Filho - Diretor do Sindicato dos Ferroviários de SP-Bauru/MS e MT
Adilson Mariano - Vereador PT Joinville (SC)
Alberto Aggio - Professor livre-docente de História, UNESP/campus de Franca
Alberto de Mello e Souza - Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ
Almir da Silva Lima - Jornalista, MOMACUNE
(Movimento Macaense Culturas Negras, Macaé-RJ)
Amandio Gomes - Professor do Instituto de Psicologia
da UFRJ e do PPGHC (IFCS-UFRJ)
Ana Teresa Venancio - Antropóloga, pesquisadora
da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

120
André Campos - Professor do Departamento de História
da UFF e da UERJ
André Côrtes de Oliveira - Professor
Angela Porto - Historiadora, Pesquisadora do Departamento de
Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Anna Veronica Mautner - Psicanalista da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de S.Paulo e colunista da Folha de S. Paulo.
Antonio Carlos Jucá de Sampaio, Professor Adjunto
do Departamento de História - UFRJ
Antonio Cícero - Poeta e ensaísta
Antonio Marques Cardoso (Ferreirinha) - Fábrica Cipla (Ocupada pelos
Trabalhadores), Joinville/SC
Aurélio Carlos Marques de Moura - Presidente do Conselho Municipal de Cultura da
Serra (ES) e da Associação Cultural Afro-brasileira "Ibó de Zambi".
Bernardo Kocher - Professor Departamento de História da UFF
Bernardo Sorj - Professor titular de sociologia UFRJ
Bila Sorj - Professora titular de sociologia UFRJ
Bolivar Lamounier - Cientista Político
Cacilda da Silva Machado - Professora do Departamento de História da UFPR (PR)
Caetano Veloso
Carlos Costa Ribeiro - Professor; atuou como especialista contratado no Programa
das Nações Unidas Para o Meio Ambiente - PNUMA/UNEP
Claudia Travassos - Pesquisadora Titular da Fundação Oswaldo Cruz
Cláudia Wasserman - Professora Adjunta de História da UFRGS
Celia Maria Marinho de Azevedo - Historiadora
Célia Tavares - Professora Adjunta de História (FFP/UERJ)
Cyro Borges Jr. - Professor Adjunto do Departamento
de Engenharia Mecânica da UERJ
Darcy Fontoura de Almeida - Professor Emérito, UFRJ
Demétrio Magnoli - Sociólogo e articulista da Folha de S. Paulo
Dilene Nascimento - Historiadora, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Domingos de Leers Guimaraens - Artista Visual
Dominichi Miranda de Sá - Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz
Egberto Gaspar de Moura - Professor Titular de Fisiologia, Instituto de Biologia,
UERJ
Elvira Carvajal - Professora de Biologia Molecular e Genética, UERJ
Eunice R. Durham - Professora titular de Antropologia,
Professora emérita da FFLCH da USP

121
Fabiano Gontijo - Professor Adjunto de Antropologia, Departamento de Ciências
Sociais, Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas,
Programa de Pós-Graduação em Letras, UFPI
Fernanda Martins - Pesquisadora da Fundação Oscar Niemayer (RJ)
Fernando Roberto de Freitas Almeida - Coordenador do curso de Economia da
Faculdade Moraes Junior/Universidade Presbiteriana
Mackenzie-Rio.
Ferreira Gullar - Poeta
Francisco Martinho - Professor de História da UERJ
George de Cerqueira Leite Zarur - Professor Internacional da Flacso e Consultor
Legislativo da Área de Educação Superior da Câmara dos Deputados
Gilberto Hochman - Cientista Político pesquisador da Casa de Oswaldo
Cruz/FIOCRUZ
Gilberto Velho - Professor titular e decano do Departamento de Antropologia do
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Academia
Brasileira de Ciências
Gilda Portugal - Professora de Sociologia da UNICAMP
Gilson Schwartz - Economista, Professor de Economia da Informação da ECA-USP
e Diretor da Cidade do Conhecimento (USP)
Giselda Brito - Professora Adjunta de História da Universidade Federal Rural
de Pernambuco
Gláucia K. Villas Boas - Vice-Diretora do IFCS/UFRJ e professora do departamento
de Sociologia da UFRJ
Guilherme Amaral Luz - Professor do Instituto de História da UFU
Guita Debert - Professora Titular de Antropologia do Departamento de Antropologia
UNICAMP
Helena Lewin - Professora Titular aposentada da UFF
Hercidia Mara Facuri Coelho - Pró-reitora, Universidade de Franca (UNIFRAN)
Hugo Rogélio Suppo - Professor adjunto de História da UERJ
Icléia Thiesen - Professora Adjunta do Programa de
Pós-graduação em Memória Social da UNI-Rio
Isabel Lustosa - Pesquisadora Titular da Fundação Casa de Rui Barbosa
João Amado - Mestrando em História da UERJ e professor da rede pública
João Leão Sattamini Netto - Economista, membro do Conselho de Cultura do Estado
do Rio de Janeiro, Comodante do Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
João Paulo Coelho de Souza Rodrigues - DECIS, UFSJ
John Michael Norvell - Professor Visitante, Pitzer College, Claremont, CA EUA
José Augusto Drummond - Cientista político, professor do Centro de
Desenvolvimento Sustentável (CDS/UnB)

122
José Carlos Miranda - Diretório Estadual do PT SP, Coordenação do Comitê por um
Movimento Negro Socialista (MNS)
José Roberto Ferreira Militão - Advogado, AFROSOL-LUX - Promotora de Soluções
em Economia Solidária
José Roberto Pinto de Góes - Professor de História da UERJ
Josué Pereira da Silva - Professor de sociologia, IFCH, UNICAMP
Kátia Maciel - N-Imagem - Escola de Comunicação da UFRJ
Kenneth Rochel de Camargo Jr. - Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social
da UERJ
Laiana Lannes de Oliveira - Professora de História da PUC (RJ)
Lena Lavinas - Professora do Instituto de Economia da UFRJ
Lilia K. Moritz Schwarcz - Professora Titular de Antropologia da USP
Lucia Lippi Oliveira - Socióloga, pesquisadora e professora do CPDOC/FGV
Lúcia Schmidt - Professora Adjunta da Faculdade de Engenharia da UERJ.
Luciana da Cunha Oliveira - Mestranda em História pela UFF e professora
da rede pública de ensino
Luiz Alphonsus de Guimaraens - Artista Plástico
Luiz Fernando Almeida Pereira - Professor de Sociologia da PUC-Rio
Luiz Fernando Dias Duarte - Professor do Departamento de Antropologia do Museu
Nacional da UFRJ
Luiz Werneck Vianna - Professor titular do IUPERJ
Madel T. Luz - Professora Titular do Instituto de Medicina Social da UERJ
Magali Romero Sá - Historiadora, Pesquisadora da Casa de Oswaldo
Cruz/FIOCRUZ
Manolo Florentino - Professor de história, IFCS/UFRJ
Marcos Chor Maio - Sociólogo, Fundação Oswaldo Cruz
Maria Alice Resende de Carvalho - Socióloga, professora do IUPERJ
Maria Conceição Pinto de Góes - Pós-Graduação em História Comparada, UFRJ.
Maria Hermínia Tavares de Almeida - Professora Titular de Ciência Política da USP
Maria Sylvia de Carvalho Franco - Professora Titular de Filosofia, Unicamp
Mariza Peirano - Professora titular de antropologia, UnB
Mirian Goldenberg - Professora de Antropologia IFCS-UFRJ
Moacyr Góes - Diretor de cinema e teatro
Mônica Grin - Professora do departamento de História da UFRJ
Monique Franco - Professora FFP/UERJ
Nisia Trindade Lima - Socióloga, Fundação Oswaldo Cruz
Oliveiros S. Ferreira - Professor de Política na PUC-SP e USP-SP

123
Paulo Kramer - Professor do Departamento de Ciência Política da UnB
Peter Fry - Professor titular de antropologia UFRJ
Priscilla Mouta Marques - Professora de Português e Literaturas Brasileira e
Africanas de Língua Portuguesa, auxiliar de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz
Ronaldo Vainfas - Professor Titular de História Moderna da Universidade Federal
Fluminense
Renata da Costa Vaz - Diretora do Sindicato Servidores
Públicos Municipais Campinas/SP
Renato Lessa - Professor titular do IUPERJ
Ricardo Ventura Santos - Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e Professor do
Departamento de Antropologia do Museu Nacional, UFRJ
Rita de Cássia Fazzi - Professora do Departamento de
Ciências Sociais da PUC (MG)
Roberto Romano - Professor Titular de Filosofia, Unicamp
Roney Cytrynowicz - Historiador
Roque Ferreira - Coordenador Nacional da Federação dos Trabalhadores sobre
Trilhos - CUT, Conselho Comunidade Negra Bauru-SP
Serge Goulart - Integrante do Diretório Nacional do PT
Sergio Danilo Pena - Professor Titular do Depto. Bioquímica e
Imunologia da UFMG
Silvana Santiago - historiadora
Silvia Figueiroa - Historiadora, Professora do Instituto de Geociências da UNICAMP
Simon Schwartzman - Presidente do Instituto de Estudos
do Trabalho e Sociedade no Rio de Janeiro
Simone Monteiro - Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz
Ubiratan Iorio - Professor Adjunto da UERJ e Presidente do
Centro Interdisciplinar de
Ética e Economia Personalista (Cieep)
Uliana Dias Campos Ferlim - Cantora e professora, mestre em história
Vicente Palermo - Instituto Gino Germani, Buenos Aires, Conicet, Argentina.
Wanderley Guilherme dos Santos - Cientista político
Wlamir José da Silva - Professor Adjunto de História da Universidade Federal de
São João del-Rei (UFSJ)
Yvonne Maggie - Professora titular de antropologia IFCS/UFRJ
Zelito Vianna - Cineasta