Regina Lúcia Buarque da Silva

Título da dissertação: REESCRITA DE TEXTOS NA ESCOLA: A SINGULARIDADE DA ESCUTA A PARTIR DA INTERFERÊNCIA DO PROFESSOR

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                    UNVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

REESCRITA DE TEXTOS NA ESCOLA:
A SINGULARIDADE DA ESCUTA A PARTIR DA INTERFERÊNCIA DO
PROFESSOR

Regina Lúcia Buarque da Silva

Maceió, outubro de 2009

Regina Lúcia Buarque da Silva

REESCRITA DE TEXTOS NA ESCOLA:
A SINGULARIDADE DA ESCUTA A PARTIR DA INTERFERÊNCIA DO
PROFESSOR

Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Educação Brasileira, do Centro
de Educação – CEDU, da Universidade
Federal de Alagoas, sob a orientação da profa.
Dra Adna de Almeida Lopes, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.

Maceió, outubro de 2009

Regina Lúcia Buarque da Silva
REESCRITA DE TEXTOS NA ESCOLA:
A SINGULARIDADE DA ESCUTA A PARTIR DA INTERFERÊNCIA DO
PROFESSOR

Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Educação Brasileira do Centro
de Educação – CEDU, da Universidade
Federal de Alagoas, sob a orientação da profa
Dra Adna de Almeida Lopes, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________
Profa Dra Adna de Almeida Lopes (Orientadora) – UFAL

______________________________________________
Profa Dra Maria Auxiliadora Bezerra – UFCG

______________________________________________
Profa Dra Maria Inez Matoso Silveira – UFAL

Maceió, 28 de outubro de 2009

Dedico:

À minha mãe, Maria de Lourdes Buarque da Silva, que me ensinou, com o exemplo
de grande mulher que é, a lutar dignamente por meus ideais.
À memória de meu pai, Luís Mendes da Silva, por saber que mesmo ausente
fisicamente, sempre ―olhou‖ por mim.
Às minhas filhas, Gabriella e Marianna e ao meu filho (de coração), Rafael, que me
fazem ter determinação para seguir sempre em frente. Por vocês eu sou. Por vocês eu faço.
A Sérgio, pelo apoio incondicional, neste e em outros percursos até hoje trilhados.

AGRADECIMENTOS
A Deus, pela presença constante e por me escutar sempre, mesmo quando não me sinto
merecedora.
À minha doce, querida e amada mãe, pelo amor incondicional e por ter sido
constantemente mãe/avó das minhas ―pequenas‖ e do meu ―bebê‖ durante minhas
ausências.
Às minhas amadas filhas, ―Gaby‖ e ―Nana‖, por terem ―suportado‖ pacientemente minhas
ausências, mesmo quando presente fisicamente.
Ao meu ―bebê‖ Rafael que, in (pacientemente) digitou este trabalho.
Ao meu ―grande‖ companheiro, Sérgio Onofre, pela compreensão, pela tolerância, pelo
apoio constante, pela ―escuta‖ incansável, pelas infinitas contribuições e, sobretudo, pelo
amor dispensado a mim e às nossas ―crias‖.
À professora Adna de Almeida Lopes que, na condição de orientadora, soube, com
competência e humildade, apontar o caminho a quem ainda buscava se ―achar‖. Meu
eterno agradecimento pela paciência, pela confiança e pelos preciosos ensinamentos.
Às professoras Maria Inez Matoso Silveira e Marinaide Lima de Queiroz Freitas, pelas
preciosas sugestões durante a qualificação deste trabalho.
Ao professor Eduardo Calil, por ter, com as discussões travadas durante suas aulas,
fomentado o caminho que esta pesquisa seguiria.
À minha amada tia/mãe, professora Maria Betânia Buarque Lins Costa, pelo apoio, por
sempre ter acreditado que eu chegaria até aqui e por ter contribuído imensamente para que
eu fosse parte do que sou hoje.
À minha irmã, irmãos, sobrinhos, tios(as), primos(as)
acompanhado essa jornada de perto, sempre torceram por mim.

que, mesmo não tendo

Às queridas amigas/companheiras/―irmãs‖/―comadres‖, Lúcia e Netinha, obrigada pela
amizade e por saber que terei sempre com quem contar, sejam quais forem as
circunstâncias.
À Quitéria Pereira de Assis, uma ―sujeita‖ muito especial que Deus colocou no meu
caminho durante essa jornada, obrigada por tudo: pelas contribuições, pela ―escuta‖, pela
―co-orientação‖, pelo momentos ―licoreiros‖, e sobretudo, pelo presente maior, sua
amizade.
À Amara, Gil e Helena que, mais que colegas de trabalho, tornaram-se amigas queridas,
com as quais pude compartilhar os bons e maus momentos desta e de outras jornadas.
Obrigada pela amizade e pela torcida sincera.
À Jô e à Ângela, amigas queridas; obrigada pelo apoio, pela amizade e por sempre terem
torcido por mim, desde a seleção para o mestrado.
À Vanilda, pelo apoio e pela frequente disponibilidade em contribuir comigo, sempre que
necessário. Obrigada por tudo.
À professora Cícero Valéria, pelo apoio e compreensão que se fizeram indispensáveis para
a realização deste trabalho.
A Melchior, pelo apoio, pelas palavras de incentivo e pela amizade.
Às Kekas, Marta, Cynthya e Gláucia, pelos favores prestados nos momentos de sufoco e
pela alegria compartilhada durante as viagens. À Cynthya em especial, pela incansável e
generosa disponibilidade em ―socorrer-me‖ sempre que necessário.
Aos companheiros e companheiras do mestrado pelas experiências compartilhadas. Em
especial à Rose Karla, Auda e Vilma, pelo companheirismo, pela troca de experiências,
pela partilha das angústias e incertezas e pela comemoração dos momentos bem sucedidos.
A todos que fazem a escola pesquisada; especialmente aos alunos e à professora que,
mesmo sabendo que poderia trazer à tona as fragilidades de nossa formação e de nossa

prática pedagógica, em nenhum momento furtou-se de contribuir para a realização desta
pesquisa.
A Israel Lessa, pelo apoio durante minha ―batalha‖ contra a burocracia e a morosidade do
poder público.
A todos que, de uma forma ou de outra, contribuíram para a concretização deste trabalho.

ANTES DO NOME

Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o "de", o "aliás",
o "o", o "porém" e o "que", esta incompreensível
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.

Adélia Prado. Bagagem.

RESUMO

Partindo de um lugar teórico que reconhece o sujeito enquanto ―efeito da língua‖e,
ancorados nos estudos de Saussure (1989); Jakobson (1975); Lemos (1997,1998,2001 e
2002) e Calil (2000 e 2008), dentre outros, é que, buscando fazer uma articulação entre
educação e linguagem, analisamos neste trabalho os efeitos das intervenções de uma
professora no processo de reescrita de textos de três alunos dos 6º e 9º anos do Ensino
Fundamental, de uma escola da rede municipal de ensino da cidade de Maceió. Partimos da
hipótese de que a dificuldade do aluno no processo escritural deve-se, em grande parte, à
forma como a professora intervém em seus textos. Tomamos como categorias para análise
dos dados os operadores fundamentais da linguagem ― processos metafóricos e
metonímicos

―

e

a

noção

de

―escuta‖,

preconizada

por

Lemos

(2002).

Metodologicamente, procedemos à coleta de dados através de observações sistemáticas de
aulas, aplicação de questionários, entrevistas não–estruturadas e análise das primeiras e
segundas versões dos manuscritos produzidos. Percebemos que a intervenção da professora
por si só não garante a melhoria dos textos no processo de reescritura, mas, pelo contrário,
pode levar o aluno a trilhar por caminhos que ele não escolheu, dando às segundas versões
de seus textos um caráter imprevisível e singular. Acreditamos que este trabalho possa
contribuir para que repensemos a forma como trabalhamos a relação do aluno com sua
escrita no processo de produção textual, bem como a maneira como o professor intervém
em seus textos, objetivando levá-lo a produzir textos coesos, coerentes e bem escritos.

Palavras chave: reescrita, intervenção docente, escuta e singularidade.

ABSTRACT

From a theoretical place that recognizes the subject as "effect of language" and anchored in
the studies of Saussure (1989), Jakobson (1975), Lemos (1997,1998,2001 and 2002) and
Calil (2000 and 2008), among others, that is, trying to make a link between education and
language, this study analyzed the effects of interventions of a teacher in the process of
rewriting the texts of three children from 6 and 9 years of elementary school, a school of
the municipal school the city of Maceio. We start from the assumption that the difficulty of
the student in the book is due in large part to the way the teacher spoke in his writings. We
as categories for analysis the fundamental operators of the language - metaphoric and
metonymic processes - and the notion of "listening" advocated by Lemos (2002).
Methodologically, we proceed to collect data through systematic observation of lessons,
questionnaires, unstructured interviews and analysis of the first and second versions of the
manuscripts produced. We feel that the intervention of the teacher alone can not guarantee
the improvement of the texts in the process of rewriting, but rather it can lead students to
walk in ways that he did not choose, giving to the latter versions of their texts an
unpredictability and singular. We believe that this work can help us to rethink the way we
work to respect the student with his writing in the process of textual production and the
way the teacher spoke in their texts aiming to take him to produce texts cohesive, coherent
and well written .

Keywords: rewriting, intervention teachers, listening and uniqueness.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................

005

Palavras Primeiras: do ensino à pesquisa ................................................

005

A Dissertação – breve apresentação .........................................................

006

CAPÍTULO 1 – O PERCURSO METODOLÓGICO DA PESQUISA .........

012

1.1 – A abordagem metodológica ..............................................................

012

1.2 – A constituição do corpus ...................................................................

013

1.3 – O contexto social da escola ...............................................................

015

1.4 – Os sujeitos da pesquisa .....................................................................

017

1.5 – A seleção dos dados ...........................................................................

021

1.6 – As propostas de produção ................................................................

022

CAPÍTULO 2 – O FUNCIONAMENTO DA LINGUAGEM EM
SAUSSURE, JAKOBSON E LEMOS: UM PERCURSO NECESSÁRIO ...

025

2.1 – Saussure: a língua e as relações Sintagmáticas e Associativas .....

026

2.2 – De Saussure a Jakobson: a metáfora e a metonímia em cena ......

032

2.3 – De Jakobson a Lemos: uma releitura dos processos metafóricos
e metonímicos .............................................................................................

038

CAPÍTULO 3 – REVISÃO DE TEXTOS NA ESCOLA: INTERVENÇÃO
DOCENTE, ESCUTA E SINGULARIDADE ..................................................

047

3.1 – A produção e a revisão de textos na escola .....................................

048

3.1.1 – Da revisão à reescrita: o papel do interlocutor/professor ..........

056

3.2 – Entre o ―ouvir‖ e o ―escutar‖: Lemos e as mudanças de posição
do sujeito na língua ....................................................................................

060

3.2.1 – Da ―escuta‖ à escrita: uma tensão permanente ..........................

066

3.3 – Reescrita e singularidade .................................................................

070

CAPÍTULO 4 – O QUE NOS REVELAM OS DADOS .................................

075

4.1-Texto

01-

A

singularidade

da

escuta

nas

ocorrências

mijando/migando .......................................................................................

077

4.1.1- Descrição da situação de produção e reescrita do texto................

077

4.1.2 – Transcrição do manuscrito ..........................................................

079

4.1.3 – As interferências da professora ....................................................

080

4.1.4– A ―escuta‖ dos alunos .....................................................................

083

4.2 – Texto 02- O deslizamento semântico-discursivo e a emergência
da singularidade .........................................................................................

090

4.2.1 – Apresentação do manuscrito (1ª versão) ......................................

091

4.2.2 – As interferências da professora ....................................................

097

4.2.3 – A escuta do aluno ..........................................................................

101

4.3 - Texto 03- Da ambigüidade da escrita à singularidade da escuta ..

108

4.3.1 - Descrição da situação de produção (primeira versão) ................

108

4.3.2 - As interferências da professora .....................................................

113

4.3.3 - A escuta da aluna ............................................................................

115

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................

122

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................

125

ANEXOS ..............................................................................................................

130

5

INTRODUÇÃO

Palavras primeiras: do ensino à pesquisa

Acreditamos que todo pesquisador, todo estudioso que se debruça a investigar, a
dissertar sobre determinada questão, foi motivado e/ou instigado por algo que o inquietava.
Em vista disso, sentimos necessidade de iniciar este trabalho contando um pouco de nossas
inquietações, das angústias, dos caminhos e descaminhos que nos fizeram chegar até aqui;
pois corroboramos com Mota (apud FARIA, 1997, p.15) ao afirmar que todo percurso
―sempre guarda uma história, que, decididamente, vale a pena ser contada, numa tentativa de
retorno, de outro(s) lugar(es), a caminhos teóricos trilhados não por acaso‖.
Ao concluir minha graduação em Letras, pela Universidade Federal de Alagoas, em
1996, submeti-me a um concurso público e, tendo sido aprovada, iniciei efetivamente minha
carreira como professora de Língua Portuguesa — digo efetivamente, porque já ensinara
desde os 18 anos, tendo em vista haver concluído o então curso de magistério no Ensino
Médio e já trabalhar desde esse período com crianças em fase de alfabetização — mas foi a
partir de então, do trabalho como professora de língua materna, no segundo ciclo do ensino
fundamental (6° ao 9° ano),1 que surgiram as inquietações, as angústias, a percepção de nossa
incapacidade em dar conta de todos os problemas do grande arcabouço que é a língua
portuguesa.
No início, junto com toda a empolgação e vontade de pôr em prática tudo o que
―pensava saber‖, com a gana de dar o melhor de mim para que os alunos tomassem gosto pela
arte da leitura e da escrita, coisa que sempre tive, veio também a angústia e o sentimento de
impotência ao deparar-me com a realidade da sala de aula e ao ouvir as ―queixas‖ de
companheiros que já trilhavam o percurso há mais tempo — professores e professoras de
língua materna — que faziam coro ao afirmar que os alunos passavam anos e anos na escola e
continuavam, segundo o discurso daqueles professores, ―na estaca zero‖; ou seja, na opinião
dos referidos docentes, os alunos não evoluíam na aquisição, ―no domínio da língua‖, mais
especificamente, da língua escrita. Tal fato pode ser facilmente constatado ao percebemos
empiricamente no cotidiano escolar, turmas que passaram do 6° ao 9° ano tendo o mesmo

1

Optamos por adotar a nomenclatura oficial em vigor, ou seja, ensino fundamental do 1° ciclo – 1° ao 5° ano
(séries iniciais) e 2° Ciclo – 6° ao 9° ano – (séries finais).

6

professor de língua portuguesa e, chegando ao último ano, apresentavam as mesmas
dificuldades diagnosticadas no primeiro ano desse segundo ciclo do ensino fundamental.
Passei anos ouvindo (dos pares) e fazendo-me estes questionamentos: o que provocava
esse ―entrave‖? Por que apesar de trabalharmos constantemente com as normas da língua
(ortografia, acentuação, pontuação, estrutura textual, processos de escrita e reescrita de
textos), nossos alunos não ―avançavam‖ na aquisição da língua escrita? E mais ainda: o que
poderia ser feito para que isso não se perpetuasse, ou fosse, ao menos, compreendido por que
ocorria e, posteriormente, quem sabe, tal realidade pudesse ser modificada?
A partir destes questionamentos, desta inquietude, retornei à Universidade, na
tentativa de preencher algumas lacunas deixadas em minha formação inicial e buscar uma
resposta teórica, um aporte ou quem sabe até, um alento às minhas inquietações; pois já estava
cansada de ser, conforme Perrenoud (apud LÜDKE, 2005, p. 30) ―O profissional‖, ―obrigado
a agir na urgência e decidir na incerteza‖. Pois pude perceber que, para ultrapassar os limites
de um professor reflexivo a um professor pesquisador (ibdem), faz-se necessário que nossa
reflexão seja bem embasada teoricamente para que possamos passar da empiria à análise
científica de algo que nos instiga.
Com esta concepção, buscando fundamentar e, principalmente, compreender
teoricamente minhas inquietações, ingressei, inicialmente como aluna especial, e no ano
seguinte, como aluna regular, no Mestrado em Educação Brasileira, no Centro de Educação,
da Universidade Federal de Alagoas. Foi a partir daí, das discussões germinadas durante as
aulas do mestrado, especialmente nas do grupo de pesquisa Escritura, Texto e Criação (ao
qual meu projeto estava vinculado) que se propõe a analisar as práticas de textualização na
escola, que algumas de minhas dúvidas foram esclarecidas, tantas outras surgiram e esta
pesquisa começou a tomar corpo.

A Dissertação – Breve apresentação

Neste trabalho, nos propomos a analisar os efeitos das intervenções de uma professora
em produções escritas por alunos dos sexto e nono anos do Ensino Fundamental, de uma

7

escola2 da rede municipal de ensino de Maceió. Partimos da hipótese de que a dificuldade do
aluno no processo escritural deve-se, em grande medida, à forma como o professor intervém
em seus textos, ou, dito de outro modo, à forma como o professor ―escuta‖ seu texto.
Acreditamos que a relevância desta pesquisa justifique-se por trazer à tona a tensão, a
instabilidade, os conflitos e a imprevisibilidade que permeiam o processo de escritura na
escola ― escrita e reescrita ― do qual poderá emergir tanto um aluno dividido entre ―escutar‖
a sua fala, a sua escrita e/ou a escrita da professora, materializada pelas intervenções que faz
em seus textos; quanto um professor que também ―sofre‖ os efeitos da escrita, ficando sem
saber o que fará com o texto do aluno, ora oscilando entre efetivar o discurso do outro ―
presente nos documentos oficiais que norteiam o ensino de Língua Portuguesa; nas formações
(inicial e continuada); nos livros e revistas acadêmicas que lê ― ou agir de acordo com suas
necessidades imediatas, adquiridas de forma empírica no dia a dia da sala de aula; ora
deixando emergir um sujeito que, submetido aos efeitos da língua (SAUSSURE, 1989), não
tem mais controle sobre seu dizer.
Assim, acreditamos que este trabalho também poderá nos fazer refletir sobre algumas
―certezas‖ que já encontram-se canonizadas no discurso pedagógico ― particularmente no
discurso dos professores de Língua Portuguesa ― a saber: ―o professor intervém no texto do
aluno sempre de forma clara, objetiva e consciente‖; ―o aluno ―erra‖ porque não sabe, porque
não presta atenção ou mesmo porque ―não quer saber de nada‖.
Destacamos ainda, que o que será posto aqui é fruto de muitas ―escutas‖, de muitas
vozes, e de muita reflexão a respeito das práticas de escrita e reescrita de textos na escola,
conforme veremos no decorrer desta apresentação.
As práticas de produção de texto na escola têm sido foco de grandes discussões por
parte de muitos teóricos que se debruçam sobre esta questão, dentre os quais podemos
destacar: Geraldi (1984, 1991, 1997 e 2003); Rojo (2003); Kaufman (1995); Abaurre (1997) e
Fiad (2001), dentre tantos outros; contribuindo dessa forma, para efetivarmos grandes avanços
no tocante ao ensino de língua portuguesa, e mais precisamente, ao trabalho com a produção
de textos em contexto escolar. Dentre os documentos oficiais que norteiam o ensino de língua
materna no país,3 dentre os quais destacamos os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997) consta como um dos principais objetivos do ensino de língua portuguesa ―formar
2

Destacamos aqui que fazemos parte do corpo docente da referida escola, no entanto, quando da realização desta
pesquisa estávamos afastados por dois anos em contingência da efetivação deste trabalho; enfatizamos ainda, que
realizamos a coleta de dados em um turno contrário ao que trabalhávamos, objetivando não interferirmos nos
resultados obtidos.
3
- Destacamos aqui que estes documentos são ancorados na base teórica bakhtiniana (Bakhtin, 1992).

8

alunos leitores e produtores de textos‖. O mesmo documento enfatiza ainda a necessidade de
um ensino do texto como objeto sócio-histórico, inscrito em modos de funcionamentos sociais
e comunicativos; visando desta forma, ―à formação de escritores competentes‖ (BRASIL,
1997, p. 65). Para tal, os já citados parâmetros trazem ainda, objetivando nortear o trabalho
com a prática de produção escrita na escola, diversos critérios que, espera-se, sejam atingidos
pelos alunos; dentre os quais destacamos:
1 – Escrever textos coerentes e coesos, observando as funções impostas pelo gênero;
2 – Escrever textos sabendo utilizar os padrões da escrita, observando regularidades
lingüísticas e ortográficas e;
3 - Revisar os próprios textos com o objetivo de aprimorá-los.
Este último tópico ratifica a necessidade e a importância da refacção, da produção de
quantas versões forem necessárias, destacando ainda a importância da ―ajuda‖ do professor
nesse processo. Nessa perspectiva, o ato de escrever passa a ser concebido como um processo
em constante construção e não mais como um produto, de versão única, no qual o aluno
produz e o professor apenas corrige, devolvendo-lhe em seguida para, posteriormente, passálo a limpo.
No entanto, apesar dos avanços do aporte teórico citado na introdução deste tópico e
dos documentos oficiais que norteiam o ensino de língua portuguesa no país, dentre os quais
os Parâmetros Curriculares Nacionais, enfatizarem a necessidade de se reconhecer a produção
de textos como um processo, com direito a diversas versões, sendo a refacção destacada como
constitutiva de todo ato de produção escrita; estes mesmos autores (Abaurre (1997); Fiad
(2001); Geraldi (1984, 1991, 1997 e 2003); Kaufman (1995) e Rojo (2003) e o documento
oficial acima mencionado compartilham de uma concepção teórica de língua e de sujeito da
qual buscamos nos distanciar;4 pois parte-se da concepção de um sujeito ―senhor da língua‖,
que a domina, a conduz, a usa de acordo com o contexto que se lhe apresenta, adequando-a às
suas necessidades. Ratificando tal domínio, tal controle, os próprios PCNs de Língua
Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 19) destacam: ―[...] o domínio da língua, como sistema
simbólico utilizado por uma comunidade lingüística, é condição de possibilidade de plena
participação social [destaque nosso]‖. Não queremos com isso negar tal fato, no entanto,
comungamos da concepção de que este domínio muitas vezes nos escapa e esta língua que
julgamos dominar, nos captura, nos atravessa, abrindo espaço para falhas, rupturas,
ambiguidades que, quebrando com a ―regularidade‖ fazem emergir a ―singularidade da

4

Não no sentido de negar, mas de mostrar que é possível e devemos buscar trilhar por outros caminhos teóricos.

9

―escuta5‖ e da escrita. É a partir dessa perspectiva, de um lugar teórico que reconhece o
sujeito enquanto efeito da língua, que desenvolveremos esta pesquisa; onde buscaremos
perceber e tentar compreender o efeito da escuta no processo de reescritura, ou seja, de que
forma as intervenções feitas por uma professora, em produções escritas de alunos das séries
finais do ensino fundamental, podem interferir nesse processo.
Assim, buscando uma articulação entre educação e linguística, uma vez que
compreendemos a forma como a professora intervém nos textos dos alunos, como
materialização de sua prática pedagógica (concepção de língua, de sujeito, de texto e de
ensino de Língua Portuguesa), buscaremos perceber as relações entre o dizer e o fazer
docente, analisando este fazer a partir do que ―faz texto‖ (CALIL, 2000, p. 36) para essa
professora, através de suas intervenções nos textos dos alunos. Entretanto, destacamos que
nosso objeto de análise serão os manuscritos produzidos em segunda versão pelos alunos,
buscando compreender o caminho imprevisível que os escritos de alguns tomaram; caminho
este, conforme a concepção de sujeito adotada nesta pesquisa, a saber: sujeito efeito da língua,
segundo postula Saussure (1989), determinado pela relação singular entre sujeito, língua e
sentido.
Destacamos ainda, que utilizaremos como categoria de análise dos dados a noção de
―escuta‖ preconizada por Lemos (2002) e os operadores fundamentais da linguagem ―
processos metafóricos e metonímicos ― postulados por Jakobson (1975) e ressignificados
posteriormente por Lemos (1997; 1998 e 2002).
Desse modo, no Primeiro capítulo desta dissertação mostraremos o percurso
metodológico trilhado para a realização da pesquisa, bem como os critérios para seleção dos
dados (situando o contexto de produção dos mesmos) e dos sujeitos envolvidos no processo.
Para ancorar este percurso, buscaremos nos reportar em alguns momentos a Castro (1996) que
discorre sobre o método e dado em aquisição da linguagem e a Moreira (2006), buscando
respaldar a metodologia adotada.
No segundo capítulo iniciaremos a discussão a respeito do aporte teórico que sustenta
esta pesquisa. Neste capítulo traçaremos um percurso com Saussure (1989) percebendo os
eixos sintagmáticos e paradigmáticos como estruturantes na aquisição da linguagem;
Jakobson (1975) que, ancorado nos eixos saussureanos traz à tona o estudo da metáfora e da
metonímia para compreensão do funcionamento da língua e Lemos (1997; 1998; 2001 e
5

Tomamos por ―escuta‖ a interpretação, o retorno que o sujeito dá sobre algo que o interroga, que lhe causou
estranhamento. Nesta pesquisa, este conceito será empregado a partir da concepção desenvolvida por Cláudia
Lemos (2002), conceito este sobre o qual trataremos no terceiro capítulo deste trabalho.

10

2002) que, reportando-se a Jakobson, nos faz reconhecer os processos metafóricos e
metonímicos como mecanismo propulsores de mudanças no processo de aquisição da
linguagem das crianças. Tais teóricos vão nos ajudar a compreender os ―desvios‖ os
―deslocamentos de sentidos‖ ocorridos nas produções escritas dos alunos a partir da ―escuta‖
que fazem das intervenções da professora.
No terceiro capítulo abordaremos a interferência didática no processo de escrita e
reescrita de textos na escola e a emergência da ―singularidade‖ neste processo a partir da
―escuta‖ que o aluno/escrevente faz das orientações, sugestões, e/ou anotações, feitas pela
professora.
Na primeira parte deste capítulo, analisaremos o que pensam alguns teóricos sobre a
revisão de textos na escola, dentre os quais destacamos: Jesus (2001); Geraldi (1985 e 1991) e
Fiad (1991). Analisaremos também o que dizem os documentos oficiais que norteiam o
ensino de língua portuguesa no Brasil, entre os quais destacamos: os Parâmetros Curriculares
Nacionais – PCN -, (BRASIL, 1997 e 1998) e as Matrizes Curriculares para o ensino de
Língua Portuguesa no município de Maceió (MACEIÓ, 2005). A respeito desse processo e
fechando a primeira parte deste capítulo, buscamos fazer uma relação entre o que pensam os
estudiosos da área; o que prescrevem os documentos oficiais norteadores e o que pensam e
fazem os professores que estão no cotidiano das salas de aula de língua materna. Para tanto,
apresentaremos no final desta parte trechos de uma entrevista não estruturada realizada com a
professora, bem como partes de um questionário que ela respondeu, na análise destes
instrumentos aplicados, pudemos perceber algumas contradições entre o falar e o fazer
docente.
Já na segunda parte deste capítulo, para trabalharmos os conceitos de escuta e
singularidade, dialogaremos com Calil (2000; 2007); Lemos (1997; 1998; 2002) e Lopes
(2005); dentre outros. A apresentação de alguns dados já ilustrará esta segunda parte.
E, por fim, no quarto capítulo, à luz dos pesquisadores anteriormente citados,
buscaremos analisar, compreender mais acuradamente o que nos revelam os dados. O objetivo
desta última parte é mostrar que nem sempre o processo de escritura e reescritura é tão
simples quanto preconizam alguns estudos; nem sempre basta o professor intervir, orientar,
para o aluno, dentro da previsibilidade e da regularidade possível, ―escutá-lo‖ e transportar
esta escuta para seu texto da forma esperada; no entanto, não tratamos em nossa análise estes
―deslocamentos‖, as ―rupturas‖ ocorridas no processo de reescrita como erro, pois
corroboramos com Lopes (2005, p. 9) quando afirma que: ―trata-se aqui do erro como
fenômeno que, por um lado, quebra alguma coisa tida como regular na língua [...] e, por outro,

11

revela que mesmo no diferente e estranho fenômeno descartado, ou seja, no irregular, há uma
ordem interna (a ordem da língua) que o sustenta e o legitima‖.
Passemos aos procedimentos metodológicos utilizados para desenvolver esta pesquisa.

12

CAPÍTULO 01

O percurso metodológico da pesquisa

Como já foi citado na introdução deste trabalho, a pesquisa surgiu a partir da reflexão,
dos questionamentos presentes em nosso cotidiano, enquanto professora de língua materna e
da dificuldade que sentíamos em contribuir com o processo de produção textual de nossos
alunos, de forma a auxiliá-los, com nossa intervenção, na construção de textos coesos,
coerentes e que atendessem aos critérios convencionais da modalidade escrita da língua.
Optamos por adotar como procedimento metodológico a pesquisa qualitativa de
caráter etnográfico, uma vez que esta caracteriza-se por ―explorar as características dos
indivíduos e cenários que não podem ser facilmente descritos numericamente. O dado é
frequentemente verbal e é coletado pela observação, descrição e gravação‖. (MOREIRA,
2006, p. 73). Quanto ao caráter etnográfico da pesquisa, este pode ser justificado por,
conforme destacamos, haver um interesse, uma relação particular dessa pesquisadora com o
objeto de estudo, ou seja, os manuscritos escolares produzidos em contexto de sala de aula;
pois, ―a etnografia é um método e o ponto de partida é a interação entre o pesquisador e os
seus objetos de estudo‖ (MOREIRA, 2006, p. 85).

1.1 – A abordagem metodológica

A abordagem realizada nesta pesquisa para buscarmos ―compreender‖ o que permeia o
processo de escrita e reescrita de textos na escola onde os sujeitos envolvidos — professora e
alunos — participam de todo o percurso, levando-se em consideração que tomaremos como
dado o processo de reescrita (2° versão dos textos) com as intervenções escritas da professora,
não se pautará numa concepção da regularidade dos fenômenos que podem ocorrer no
processo de produção textual, onde a emergência do ―erro‖, da falta de coesão, coerência, das
ambigüidades ou equívocos, são explicados ou por teorias cognitivistas de processamento
mental, que adotam uma concepção de sujeito de autonomia diante da língua; ou por teorias
que buscam justificativas para estes fenômenos apenas dentro da previsibilidade de nosso
sistema ortográfico. Havendo, em ambos os casos, conforme Calil (s/d p.8) ―uma sujeito-

13

aprendiz que consegue ―refletir‖ sobre o objeto língua e operar com conhecimento sobre ele‖.
Tais teorias acabam por homogeneizar, generalizar e/ ou reduzir o processo de aquisição da
língua escrita.
Por acreditarmos que existem ocorrências na língua que nem sempre podem ser
―explicadas‖ ou ―compreendidas‖ pelas teorias acima mencionadas, buscaremos analisar os
dados trazidos para este trabalho numa perspectiva que reconhece os fenômenos singulares e
imprevisíveis que podem emergir no processo de enunciação e produção, como constitutivos
da língua; buscando mostrar que a relação sujeito-língua é atravessada por um funcionamento
que, muitas vezes, escapa ao domínio do sujeito.
Para tanto, partiremos da noção saussureana de língua e recorreremos a nomes como
Lemos, Saussure, Jakobson e Milner, dentre outros, para pensarmos como se dá a emergência
de ―ocorrências singulares‖,6 a partir de uma possível ―escuta‖, nos processos de escrita e
reescrita dos textos analisadas.

1.2 – A constituição do Corpus

O conjunto de textos do qual se originou o corpus analisado nesta pesquisa é
composto de 60 (sessenta) manuscritos em primeira versão (primeira escrita) e 25 (vinte e
cinco) em segunda versão (reescrita). Esta diferença de quantidade entre os manuscritos nas
duas versões decorreu pelo fato de nem todos os alunos estarem presentes no momento da
reescrita. Tivemos, portanto, um montante constituído inicialmente por 85 (oitenta e cinco)
manuscritos. Entretanto, devido ao objetivo da pesquisa (processo de reescrita), selecionamos
apenas os 25 (vinte e cinco) que foram produzidos também em segunda versão. Deste total,
selecionamos 05 (cinco) manuscritos do 6º ano e 05 (cinco) do 9° ano; estes últimos, tendo
como critério para escolha, o fato de terem sido produzidos por alunos que já vinham
estudando com a mesma professora desde o 6° ano (o objetivo deste critério de escolha será
justificado no decorrer deste capítulo). Tínhamos então em mãos, um banco de dados
constituído de 20 (vinte) manuscritos, dez produzidos em primeira versão e suas respectivas
versões reescritas. Foi portanto, deste total, que saíram os três manuscritos (em primeira e
6

Optamos por não classificar as modificações ocorridas entre a primeira e a segunda versão dos textos de
ERRO; levando-se em consideração, como veremos no capítulo que analisa os dados, que nem sempre se
constituem como tal. Doravante nos referiremos a tais modificações sempre como OCORRÊNCIAS
SINGULARES.

14

segunda versão) que constituíram o corpus deste trabalho. Selecionados, evidentemente, pela
escuta singular que os alunos fizeram das intervenções da professora na primeira escrita, o
que acabou por dar outros sentidos aos textos, de onde emergiram ―ocorrências singulares‖,
no processo de reescrita.
Os dados trazidos para análise neste trabalho foram coletados em uma escola da rede
municipal de ensino de Maceió. Para proceder à coleta dos dados, acompanhamos durante três
meses consecutivos, (abril, maio e junho de 2007) aulas de Língua Portuguesa, ministradas
por uma professora em duas turmas do Ensino Fundamental: um sexto e um nono ano.
Optamos metodologicamente por apenas observar as aulas sem, no entanto, interferirmos no
desenvolvimento das mesmas, opção esta que nos é permitida devido ao caráter etnográfico
desta pesquisa, pois ―o pesquisador pode atuar como um observador privilegiado do grupo,
não participando das atividades‖, (MOREIRA, 2006, p. 87). A opção em não participar
diretamente das atividades deu-se pelo fato de não pretendermos interferir nem no
comportamento dos alunos, nem na prática didática da professora, especialmente no momento
desta efetuar as intervenções nos textos; pois corroboramos com Castro (1996, p. 22), quando
afirma que: ―O observador pode, de fato, alterar o contexto comunicativo, de tal modo que o
dado pode não ser representativo‖.
Como instrumentos de investigação, nos valemos, além do acompanhamento e
observação sistemática das aulas, de um diário de campo, no qual anotávamos todas as
informações que julgássemos pertinentes para a posterior análise dos dados, pois
concordamos que, desse modo, ―o observador vê e ouve atentamente, registrando o mais
fielmente possível todas as informações pertinentes‖, (MOREIRA, 2006, p. 87). As
informações registradas foram coletadas através de conversas informais e entrevistas nãoestruturadas com a professora e com os alunos. Utilizamos esta técnica ― entrevista não
estruturada ― por reconhecermos que esta ―dá ao pesquisador maior liberdade para fazer
perguntas sem estabelecer previamente uma sequência‖, (MOREIRA, 2006 p.168), e por
concordamos que, ―o objetivo desse tipo de entrevista é criar uma atmosfera para que o
entrevistado sinta-se à vontade para fornecer ao pesquisador informações bastantes pessoais‖,
(ibdem). Além dessa técnica, aplicamos ainda um questionário com perguntas abertas e
fechadas com a professora, objetivando tecermos um perfil da docente e percebermos sua
opinião a respeito de algumas questões referentes ao ensino de Língua Portuguesa e ao
trabalho com produção de texto.
Quanto à análise dos dados, conforme destacamos na introdução deste trabalho, estes
serão interpretados à luz dos pressupostos teóricos desta pesquisa; especialmente a partir da

15

noção de ―escuta‖, (LEMOS, 2002) e dos operadores fundamentais da linguagem ―
processos metafóricos e metonímicos ― postulados por Jakobson, (1975) e posteriormente
por Lemos, (1987; 1988 e 2002).

1.3- O contexto social da escola

A escola7 em que foi realizada a coleta de dados pertence à rede municipal de ensino
de Maceió e está situada em um bairro periférico, que comporta em seus arredores quatro
conjuntos habitacionais populares ― um deles originado a partir de invasões de lotes ―
compostos em sua grande maioria por funcionários públicos de baixa renda, trabalhadores
informais, pequenos comerciantes e uma grande quantidade de desempregados. A localidade
apresenta, segundo relatos dos alunos e professores, altos índices de violência, desemprego e
falta de saneamento básico. Ratificando esta assertiva, Araújo8 (2007, p. 107), afirma:
―Uma área antes construída para ser destinada ao desfrute, à satisfação e ao prazer
de uma pequena parcela da sociedade, que passou a ser habitada a partir de invasões
e da fragmentação dos antigos lotes e chácaras, transformar-se-á na maior e mais
populosa comunidade da região, acumulando, na mesma proporção de sua densidade
demográfica e de seu crescimento desordenado, graves problemas socioestruturais, a
exemplo da mais completa e absoluta falta de saneamento básico [...] A grande
concentração populacional ali verificada gera ainda uma enorme demanda para as
áreas de educação, saúde e segurança pública‖.

O quadro acima descrito acaba por resvalar na escola, onde o índice de desistência,
evasão e falta de alunos às aulas é grande, devido a assaltos e outros delitos cometidos nos
arredores da referida unidade de ensino. Esta característica torna-se mais evidente ainda no
período noturno, turno em que foi realizada a pesquisa; o que dificultou em parte a coleta de
dados; pois por diversas vezes, ao chegarmos à sala de aula, havia apenas 6 ou 7 alunos, o que
impossibilitava a aplicação da reescrita dos textos, uma vez que, muitas vezes os alunos que
haviam produzido a primeira versão , não se encontravam na sala de aula no momento de
efetuarem a reescrita.

7

O nome da escola foi omitido visando preservar a identidade da professora, uma vez que esta não autorizou a
divulgação de seu nome, bem como do local em que trabalhava.
8
Fizemos referência ao autor acima citado, porque esse realizara, em seu trabalho de mestrado, uma pesquisa a
respeito da escola em que coletamos nossos dados.

16

Essa escola fora inaugurada, segundo relatos da diretora, em setembro de 1997 e passa
a funcionar efetivamente a partir de janeiro de 1998, com o objetivo de atender a população
dos conjuntos habitacionais mencionados no início deste tópico. Inicialmente, foram
oferecidas 500 vagas nos três turnos, para turmas de 1ª a 5ª série e uma turma destinada à
educação de jovens e adultos. No entanto, como era de se esperar, a demanda por vagas foi
aumentando e, atualmente, a escola funciona nos três turnos, atendendo alunos do primeiro ao
nono ano do Ensino Fundamental e a cinco turmas de jovens e adultos, contabilizando uma
média estimada de 1300 alunos distribuídos nos três turnos9; o que acaba superlotando
algumas salas, segundo relata a diretora em depoimento retirado de Araújo, (2007, p. 112), ―O
número mínimo de alunos em sala é de 45 [...] já temos duas mil famílias sendo atendidas
pela escola e aí o problema aumenta porque a única escola de 1ª a 4ª série é essa [...] vem todo
mundo pra cá e a gente não pode atender.‖
Vale salientar ainda que, apesar de a quantidade de alunos ter triplicado nos últimos
anos, a escola continua com a mesma estrutura física de quando fora inaugurada,
apresentando até hoje diversos problemas em sua estrutura,10 conforme ratifica depoimentos
retirados de Araújo, (2007, p. 110),

a escola não foi construída para ser escola, declara a então diretora; foi construída
por um leigo, reforça um engenheiro da SEMED, portanto, todo o esforço
empreendido pela municipalidade, segundo os depoentes, foi no sentido de melhorar
e adaptar suas instalações à finalidade educacional.11

No entanto, apesar de uma das características da escola ser o grande número de alunos
por turma, este não era o caso das duas turmas em que coletamos nossos dados, talvez pelos
fatores anteriormente expostos, a quantidade de alunos por turma no período noturno era
menor.

9

Esses dados nos foram informados pela direção da escola.
Fazemos tal afirmação, respaldados pelo fato de, conforme já enfatizado, fazermos parte do quadro de
docentes da referida escola e, por acompanharmos, já há algum tempo, muitos desses problemas na estrutura
física daquela unidade de ensino.
11
Julgamos pertinente destacar esses fatores porque, conforme veremos no capítulo que analisa os dados, um
dos manuscritos, (texto 03), levou dois meses para ser reescrito, devido a um problema hidráulico ocorrido em
um dos banheiros do andar superior, o que fez com que as turmas deste pavimento ficassem 45 dias sem aulas;
ou seja, são problemas que acabam por comprometer a aprendizagem dos alunos. Destacamos ainda que, após o
retorno às aulas, alguns alunos haviam desistido de estudar e não retornaram mais à escola; fato esse que
infelizmente não nos surpreende, pois reconhecemos que muitos desses alunos necessitam do estímulo, do
contato diário com a escola para manterem-se estimulados; especialmente em se tratando de alunos do turno
noturno que, na maioria das vezes são jovens e adultos fora de faixa, com grandes dificuldades de aprendizagem
e com o dia normalmente já comprometido com um trabalho que lhes garanta a sobrevivência. Desse modo, ao
ficarem tanto tempo afastados da escola, muitos acabam desistindo mesmo.
10

17

As salas em que efetuamos a observação tinham a mesma estrutura física: pequenas,
cheia de carteiras (algumas quebradas), muito quentes, pois os dois ventiladores que havia nas
mesmas não funcionavam e muito barulhentas, mesmo quando contavam com poucos alunos
em sala. As aulas de Língua Portuguesa12 que acompanhamos transcorriam naturalmente,
dentro dos moldes tradicionais: a professora entrava na sala, cumprimentava os alunos e
iniciava os trabalhos do dia que, nas aulas que observamos, centravam-se nas propostas de
produção de textos; as aulas não eram muito dinâmicas, interativas, mas a professora
mantinha um bom relacionamento com as turmas e todos os alunos a respeitavam bastante e
elogiavam sua conduta na sala de aula.

1.4 - Os Sujeitos da Pesquisa

a) Os alunos

Os manuscritos foram produzidos por alunos de duas turmas do ensino fundamental:
uma turma de 6° ano, composta oficialmente13 por 45 alunos, na faixa etária de 14 a 26 anos
de idade, com freqüência efetiva de apenas 22 alunos; e uma turma do 9° ano, composta,
também oficialmente por 39 alunos na faixa etária de 16 a 28 anos de idade, em que apenas 20
frequentavam efetivamente à escola. A escolha destas séries deveu-se ao fato de serem
respectivamente a primeira e a última série do segundo ciclo do ensino fundamental, pois
objetivamos, com esta escolha, perceber o perfil do aluno ao entrar e ao sair destas séries , a
partir do processo de produção textual; ou seja, buscamos observar os avanços ocorridos na
aquisição da linguagem escrita, após quatro anos de trabalho com processos de escrita e
reescrita de textos.14
São todos moradores do bairro anteriormente descrito, em sua grande maioria
habitantes do conjunto originado de invasões. São, portanto, jovens e adultos oriundos de
12

Essas aulas serão melhor explicitadas no último capítulo deste trabalho , no qual analisaremos os dados e
descreveremos as situações de produção dos textos.
13
Esta era a quantidade que constava na caderneta da professora, no entanto, devido aos fatores citados na
caracterização da escola, nos dias em que a sala estava mais ―lotada‖, contávamos 20 alunos.
14
Esta informação nos foi passada em conversas informais com a professora envolvida na pesquisa, ao ser
interrogada sobre de que forma buscava resolver as dificuldades dos alunos com a escrita; principal queixa da
professora.

18

famílias pobres, alguns filhos de pais desempregados, outros de empregadas domésticas,
faxineiras, ambulantes, vigias e trabalhadores informais. Muitos destes alunos exercem
alguma atividade profissional durante o dia e já constituíram suas próprias famílias. Dos
quatro15 discentes cujos manuscritos serão nosso objeto de análise, dois garotos, de 14 e 15
anos respectivamente, fazem ―carrego‖16 nos finais de semana em uma feirinha que há no
bairro, um terceiro (autor do segundo manuscrito a ser analisado) trabalha como ajudante em
uma vidraçaria nas proximidades de sua residência, das oito da manhã às 18:00; e, a aluna que
produziu o terceiro manuscrito ― a mais velha dos três, 19 anos ― já é casada, não tem filhos
e trabalha como empregada doméstica em um bairro nobre da cidade; devido à distância do
emprego para sua residência, a aluna desloca-se direto do trabalho para a escola e, mesmo
assim, segundo ela, chega atrasada quase todos os dias. No entanto, apesar das dificuldades
postas, todos quatro demonstram interesse pela escola e vêem nesta uma possibilidade de
melhoria de vida. São esses, portanto, os sujeitos que, com suas histórias de vida
impressionantes e fascinantes, com suas ―escutas‖ singulares e com suas escritas
imprevisíveis, forneceram os surpreendentes dados para esta pesquisa.

b) A professora

A professora que contribuiu conosco nesta pesquisa, tinha, quando da realização da
coleta de dados, 4917 anos de idade. Possui graduação em Letras por uma faculdade privada e,
no período da coleta estava cursando uma especialização em Psicopedagogia, também em
uma instituição particular, ambas em Maceió/AL. Participou ainda, de 1994 a 2007 de um
programa de formação continuada em Linguagem, promovido pela Secretaria Municipal de
Educação de Maceió, destinado aos professores da rede. Atua como professora de língua

15

Destacamos que, apesar de nosso corpus ser constituído de três manuscritos, tivemos quatro alunos/autores,
uma vez que o primeiro manuscrito a ser analisado fora produzido por uma dupla de alunos.
16
Os alunos usam esse termo para referirem-se àquelas pessoas que ficam nas feirinhas dos bairros, oferecendose para transportarem as compras em carrinhos de mão, cobrando em média, segundo os próprios alunos, dois
reais por ―carrego‖.
17
A idade da professora nos foi informada pela mesma em entrevista não estruturada (acostada ao diário de
bordo), não constando, portando, no questionário aplicado; uma vez que, neste instrumento, deixamos este
tópico(idade) como opcional,respeitando o fato de algumas pessoas optarem por não divulgar suas idades.

19

portuguesa há 26 anos, lecionando nas redes públicas municipal e estadual do estado Alagoas.
Ao todo ministra aulas em oito turmas do 6° ao 9° ano do Ensino Fundamental.18
Acompanhamos o trabalho dessa professora durante três meses consecutivos,
assistindo às aulas uma vez por semana; dias esses em que eram desenvolvidas as atividades
de produção de textos. Durante estas aulas foram desenvolvidas três propostas de produção19
(de gêneros diferentes) onde, após a escritura da 1ª versão, os manuscritos eram recolhidos
para que a professora os analisasse, fizesse as intervenções que julgasse necessário e,
posteriormente, os devolvesse aos alunos para que procedessem à refacção, observando às
sugestões e ou, orientações, feitas por escrito nos manuscritos, pela referida professora.
Este procedimento metodológico nos deu a base para atingirmos os objetivos
pretendidos com a pesquisa. A saber: objetivo geral: Analisar e discutir os efeitos das
intervenções da professora no processo de reescritura dos alunos; os objetivos
específicos: Buscar compreender em que medida a ―escuta‖ que o aluno faz das
intervenções da professora materializa-se no processo de reescrita de seus textos e,
identificar e analisar ―ocorrências singulares‖ emergidas da relação escuta/escrita no
processo de reescritura dos alunos. Tais objetivos, pretendidos evidentemente, a partir dos
pressupostos teóricos que sustentaram a pesquisa. Objetivos esses que emergiram da hipótese
inicial desta pesquisa: A dificuldade do aluno no processo de aquisição da língua escrita,
deve-se, em grande medida, à forma como o professor intervém em seus textos ,ou, dito
de outro modo, à forma como o professor ―escuta‖ seu texto. Desse modo, corroboramos
com Wersz (2002) apud Lopes (2005, p.99) quando diz que ―avaliar a aprendizagem do aluno
é também avaliar a intervenção do professor, já que o ensino deve ser planejado e replanejado em função das aprendizagens conquistas ou não‖.
A partir desta perspectiva, deu-se o critério de escolha da professora envolvida na
pesquisa; a saber: Uma professora que acompanhasse a mesma turma há pelo menos três anos
consecutivos. Na turma do 9° ano selecionada, havia treze alunos que eram acompanhados
pela mesma professora há quatro anos, ou seja, estudaram com a mesma professora de língua
portuguesa nos 6°, 7°, 8° e agora, no 9° ano. O trecho a seguir foi colhido de uma conversa
informal20 com um dos alunos do 9° ano, quando perguntado há quanto tempo estudava com a

18

Tais informações foram extraídas de um questionário aplicado com a professora. Cópia do mesmo encontra-se
anexada no final deste trabalho.
19
Estas propostas serão descritas posteriormente no decorrer deste capítulo.
20
Devido ao caráter adotado para a coleta de dados, optamos por entrevistas não estruturadas, em que, de porte
de um diário de campo, anotávamos grande parte das conversas que mantínhamos com professora e os alunos.

20

professora, ―Ah, eu já estudo com a professora [x] desde a 6ª série21, eu gosto muito dela, ela
é uma professora muito boa, mas eu tenho muita dificuldade na hora de escrever, mas a culpa
não é da professora não, é que esse português é muito difícil, professora‖ (Aluno W, 18 anos).
Apesar de o foco desta pesquisa não ser analisar a prática pedagógica do professor de
Língua Portuguesa, e sim analisar as ocorrências singulares emergentes no processo de
reescritura a partir da escuta que o aluno faz da intervenção do professor, e
consequentemente, de como a professora ―escuta‖ o texto do aluno, o que já fora mencionado
neste trabalho; não podemos desconsiderar que há uma relação intrínseca entre os dois
processos, uma vez que, a emergência destas ocorrências singulares pode ser compreendida
pelo professor como falta de atenção, de interesse, ou até mesmo ―incapacidade‖ do aluno,
conforme trecho retirado de uma ―conversa‖ informal com a professora quando nos mostrava
um dos textos reescritos onde aparecia uma dessas ocorrências:22

Tá vendo professora, esses alunos não querem saber de nada hoje em dia. Não leem,
não gostam de escrever, olhe pra qui [mostrando o manuscrito] parece até
brincadeira, a gente manda escrever , reescrever, e no fim, acabam errando mais na
refacção do que na 1° versão. A gente vai fazer o quê, né?

Tal fato nos faz inferir que a professora isenta-se de qualquer responsabilidade pelo
fato de o aluno não escrever seus textos dentro dos padrões tidos como ―normais‖ pela norma
escrita vigente. É desconsiderado o fato de este aluno estar estudando com ela desde o 6° ano
(o aluno já encontra-se no 9° ano). Isso acaba por nos mostrar que o distanciamento entre a
forma como o aluno escreve e a forma que a professora esperava que o mesmo escrevesse,
pode estar marcada, segundo (Lopes, 2005, p. 99) ―pelas condições do trabalho didático de
leitura e escrita a que os alunos estão submetidos‖. E foi a partir dessas condições de trabalho
didático, materializado, nesta pesquisa, pela intervenção que o professor faz nos textos do
aluno, que emergiram as ―ocorrências singulares (consideradas, em alguns momentos pela
professora, como ―brincadeiras‖ do aluno) que serviram de dados para análise na presente
pesquisa.

21

Em suas falas, na maioria das vezes professora e aluno usam o termo série e não ano, nomenclatura já utilizada
devido à implantação do ensino fundamental de nove anos.
22
Este manuscrito será analisado no quarto capitulo, onde faremos a análise dos dados.

21

1.5- A seleção dos dados

Vale ressaltar que, quando iniciamos a pesquisa, o objetivo era observar os efeitos das
intervenções do professor em processos de reescritura de textos, não havíamos, no entanto,
optado pelo tipo de abordagem que daríamos. A escolha pelo dado singular surgiu ao nos
depararmos com os manuscritos, onde percebemos ocorrências que escapavam ao ―esperado‖,
rompiam com o previsível; o que acabou por nos instigar a buscar compreender o porquê de
algumas palavras reescritas terem tomado outros caminhos, outros deslocamentos, outros
sentidos, sentidos estes, que escapavam empiricamente à nossa compreensão. Portanto, fomos
capturados, ou quem sabe, escolhidos, pelo dado singular, e não o contrário. Desta forma,
concordamos com Endruweit, (2006, p. 133) quando afirma que ―não há um dado pronto à
espera do pesquisador. O que há são fatos produzidos por um sujeito no momento da
enunciação, e estes, serão tomados para estudo segundo o ponto de vista do pesquisador‖.
Foi, portanto, a partir de nossa aproximação com os estudos em Aquisição da
linguagem preconizadas por Lemos (1997; 1998; 2001 e 2002), e, ancorados no aporte teórico
já definido na apresentação deste trabalho, que buscamos ―interrogar‖, ou melhor, fomos
interrogados pelos dados, nesta pesquisa analisados.
Para uma melhor compreensão, buscamos no quadro a seguir, ilustrar como foi feita a
classificação dos manuscritos dos quais serão analisados os dados.

Quadro I
1ª Versão – Com interferência
da Professora

Série

Gênero

Tipo de
Produção

2° Versão –
reescrita

Manuscrito 1

6°

História em quadrinhos

Dupla

........

Manuscrito 2

6°

História em quadrinhos

Individual

........

Manuscrito 3

9°

Texto de opinião

Individual

........

Conforme já fora destacado, o foco de análise serão os dados singulares emergidos no
processo de refacção, ou seja, nas 2ª versões dos textos. Entretanto, a análise das duas versões
faz-se necessária, uma vez que, a emergência das ―ocorrências singulares, como veremos,
decorre, tanto da escuta que a professora faz dos textos dos alunos, quanto da escuta que os
alunos fazem da intervenção feita pela professora na 1ª versão de seus textos. Portanto, a
análise dar-se-á sempre a partir do movimento:

22

1ª Versão

TEXTO

ALUNO
2ª Versão

Movimento este, que decorre da relação:

Escuta

ALUNO

PROFESSORA
Escuta

Portanto, será transitando por estes movimentos, por estas relações, caracterizadas pela
escuta que os sujeitos — aluno e professor — fazem da escrita um do outro, ou seja, o que a
professora ―escuta‖ do que o aluno produziu na 1ª versão dos textos; e que ―escuta‖ os alunos
fazem das intervenções feitas pela mesma em seus textos; que analisaremos os dados
singulares emergidos no momento da reescrita.

1.6- As propostas de Produção

As propostas de produção surgiram a partir de conversas com a professora, em que a
mesma nos relatou os gêneros e as tipologias textuais que já havia trabalhado com as turmas.
Objetivando não interferir no andamento das atividades que a professora já vinha
desenvolvendo e buscando fazer com que o trabalho ocorresse da forma mais natural possível,
pedimos que a mesma propusesse às turmas atividades de produção textual dentro das
condições que julgasse mais conveniente, a partir do que já havia trabalhado com os alunos.
As propostas foram estruturadas da seguinte forma:

23

1ª Versão

Quadro II
Séries

6° ano

23

9° ano

Gênero

Histórias em
Quadrinhos

Texto de Opinião

A Justificativa da Professora
Já havia trabalhado o gênero com a turma,
havendo, inclusive, uma exposição no mural
da escola com algumas histórias produzidas.
Os alunos gostam, são mais criativos na hora
de criarem as histórias e gostam de ilustrálas
O tema proposto havia sido discutido na
turma dias atrás, devido a um fato ocorrido
na sala. (uma aluna deixara de apresentar um
trabalho por ser bastante tímida).

As Consignas da
Professora
Produzir, em duplas, uma
história em quadrinhos,
com tema livre, seja
criativo. Não esqueça de
dar um título a sua história.
Produza um texto de
opinião, dizendo de que
forma a timidez pode
atrapalhar nossa vida.

2ª Versão

Descrição do Processo de reescritura

O intervalo de tempo entre a realização da 1ª e da 2ª versão de cada proposta de
produção durou em média de 15 a 20 dias, período esse necessário para que a professora
levasse os textos, analisasse-os, fizesse as interferências que julgasse necessário e os
devolvesse para que os alunos iniciassem o processo de re-escritura24. A seguir procuramos
ilustrar como tal atividade ocorreu nas duas turmas:

23

Os textos selecionados para o 6° ano foram originados de uma mesma proposta de produção; enquanto que o
do 9° ano, foi produzido a partir de uma proposta diferenciada, em dias distintos.
24
Os dois processos (escrita e reescrita) nas três propostas de produção realizadas foram desenvolvidos em sala
de aula; contando com nossa participação apenas como mera observadora do processo. Uma descrição mais
detalhada deste processo será dada no último capítulo deste trabalho, onde faremos a análise dos dados.

24

QUADRO III
Série

Ações Realizadas

A Consigna da Professora

Distribuição da 1ª versão dos manuscritos aos
respectivos autores (dupla ou individual)

Vocês devem reescrever as histórias
de vocês; não é para inventar outra
história não, vocês deverão refazer
a mesma história, consertando os
―erros‖ de acordo com a ―sugestão‖
que eu dei por escrito nos textos.
Tenham
bastante
atenção,
Caprichem.

6° ano

9° ano

Após essa orientação, os alunos começaram a arrumar-se com seus parceiros ou
individualmente (já informamos em momento anterior que alguns optaram — no momento da
escrita da 1ª versão — por escreverem sozinhos) e iniciaram a reescrita dos textos. A
atividade ocupou as duas aulas daquele dia, ambas com duração de 50 minutos cada. Durante
a atividade a professora apenas circulava pela sala e, quando solicitada por algum aluno,
limitava-se a dizer; ―prestem atenção no que foi solicitado, reescrevam de acordo com as
indicações que eu coloquei no 1° texto‖.25 Esta enunciação da professora vem ratificar o que
Calil (s/d,), referindo-se ao processo de intervenção do professor no texto do aluno afirma, ou
seja, ―evocar no professor a crença de que sua interferência no texto do aluno atue de modo
direto sobre a melhoria ou a qualidade do próprio texto, apagando ou minimizando os efeitos
da relação do sujeito com aquilo que escreve‖, (CALIL, s/d, p.02). Sujeito esse, concebido
pela teoria defendida neste trabalho, como submetido aos efeitos da língua, inserido em um
processo de subjetivação que pode, a qualquer instante, levá-lo a trilhar, a deslocar-se por e
para outros caminhos, outros sentidos que ele, enquanto sujeito assim concebido, pode tomar
de acordo com o que ―escutou‖ da enunciação da professora. E foi a partir desta ―outra
escuta‖, subjetiva, singular, que a reescrita de alguns alunos caminhou por trilhas diferentes
das esperadas pela professora; gerando desta forma, o objeto de estudo desta pesquisa, a
saber, ―as ocorrências singulares emergidas no processo de reescritura‖.
As formas de interferência da professora nos três manuscritos produzidos na 1ª versão
e o efeito singular que tais interferências provocaram nas versões reescritas serão analisadas
no último capítulo deste trabalho.
Iniciemos então, o percurso teórico.
25

Durante a realização da atividade fomos anotando em um bloco (diário de campo) algumas falas da professora
e / ou de alunos que julgássemos pertinentes para a compreensão do desenvolvimento do processo e posterior
análise.

25

CAPÍTULO 02

O funcionamento da linguagem em Saussure, Jakobson e Lemos: um percurso
necessário

A partir da concepção de sujeito adotada neste trabalho, quer seja: de um sujeito efeito
da língua e do objetivo central a que nos propomos com o mesmo, a saber: analisar e discutir
os efeitos da intervenção de uma professora no processo de reescritura dos alunos; processo
este, conforme concebido nesta pesquisa, que se dá não apenas a partir de relações/fatores
sociais, históricos e culturais e de reflexões metalingüísticas do aluno/escrevente sobre sua
escrita; mas, e principalmente, a partir das relações entre sujeito, língua e sentido; relações
estas, que neste trabalho se efetivarão a partir de uma ―escuta‖, de uma interpretação singular
dos dizeres, entre aquele que escreve e aquele que lê ou, dito de outro modo, do interstício
entre a fala da professora e a ―escuta‖ dos alunos, é que buscaremos compreender as
mudanças ocorridas entre a primeira e a segunda versão dos textos produzidos, não apenas
como uma ação do sujeito sobre a língua, mas como um movimento dos operadores
fundamentais da linguagem: processos metafóricos e metonímicos, aqui entendidos como
processos que governam as mudanças de posição do sujeito na língua (mudanças essas,
preconizadas por Lemos (2002) e sobre as quais discorreremos no terceiro capítulo deste
trabalho).
Desse modo, objetivando depreender os deslocamentos de sentidos, a emergência da
imprevisibilidade, e/ou o surgimento de ―ocorrências singulares‖ que podem emergir no
processo de escritura, faremos neste capítulo uma resenha dos escritos de Saussure (1989),
Jakobson (1975) e Cláudia Lemos (1997; 1998; 2002), no intuito de tentar refazer o percurso
que culminou com o estudo desses processos, para explicar as mudanças ocorridas na relação
entre sujeito, língua e sentido.
Para tanto, dialogaremos inicialmente com Saussure (1989), que afirma que o
funcionamento da língua baseia-se em relações associativas e sintagmáticas; em seguida
recorreremos a Jakobson (1975) que estuda a afasia a partir do funcionamento da linguagem
e, partindo das relações postuladas por Saussure, traz à tona o estudo da metáfora e da
metonímia, não como figuras de linguagem, mas como processos responsáveis por todo
funcionamento simbólico e; por fim, empreenderemos um diálogo com Lemos (1995; 1997;
1998; 2002) que, reelaborando os processos metafóricos e metonímicos (assim denominados

26

por Jakobson), utiliza-se destes para buscar compreender as mudanças na relação da criança
com a língua materna.
Iniciemos, então, nosso percurso.

2.1- Saussure: a língua e as relações sintagmáticas e associativas

Para o lingüista genebrino, Ferdinand de Saussure, o objeto concreto de estudo da
lingüística é o produto social depositado no cérebro de cada um, isto é, a língua (CLG, 1989,
p. 33). Ao separar língua e fala, Saussure dá à linguística estatuto de ciências, visto que, para
o célebre lingüista seria impossível estudar a linguagem enquanto constituída de língua e fala
conjuntamente. Levando-se em consideração a grande heterogeneidade desta última que, para
ele, apresenta-se ―multifacetada e heterogênea‖ e da qual o indivíduo é ―sempre senhor‖; a
fala é considerada portanto, múltipla, imprevisível; sendo impossível, segundo o autor,
estudá-la sistematicamente.
Dessa forma, Saussure elege a língua como objeto de estudo da linguística. Ao definila como tal, o lingüista exclui o falante, pois para ele, o falante não é autor da língua, e sim
está submetido a um funcionamento que a ele é anterior. Dito de outra forma, para Saussure, a
língua tem como premissa uma ordem própria, um funcionamento que não é passível de
influências externas, pois para o lingüista ―nenhum indivíduo tem a faculdade de criar a
língua, nem de modificá-la conscientemente [...] pois, a língua se impõe ao indivíduo
coercitivamente‖ (CLG, 1989, p. 25).26
Percebe-se, desta forma, que, para Saussure, mesmo a língua sendo concebida como
um produto de heranças sociais, passível, portanto, de transmissão, é também única, uma vez
que, ―o signo sempre escapa, em certa medida, à vontade individual ou social, estando nisso o
seu caráter essencial‖ (CLG, p. 25).
Para Saussure, a língua é de natureza homogênea e se materializa em signo lingüístico
através da união de um conceito com uma imagem acústica; sendo ambos de natureza
psíquica e estando unidos em nosso cérebro ―por um vínculo de associação ―(CLG, p. 80). No
entanto, Saussure destaca que esta relação conceito
Imagem
acústica
26

- Curso de Linguística Geral.

significante é totalmente arbitrária,
Significado

27

uma vez que, não há nenhuma explicação que motive a relação entre significante e
significado; tal fato decorre, segundo o linguista, devido aos efeitos da temporalidade, haja
vista que a evolução das palavras é constantemente afetada pelo tempo. Tomemos como
exemplo palavras que eram usadas em uma determinada época, tendo um determinado
significado e foram mudando, evoluindo, ou mesmo sendo extintas; a respeito disso, o próprio
Saussure argumenta: ―uma língua é radicalmente incapaz de se defender dos fatores que
deslocam, de minuto a minuto, a relação entre o significado e o significante. Sendo esta uma
das conseqüências da arbitrariedade do signo‖ (CLG, p. 90).
Falar em arbitrário do signo não significa, no entanto, dizer que o significante depende
da livre escolha do sujeito falante; significa, conforme já enfatizamos, que ele é imotivado em
relação ao significado, com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade. Desta
forma, quem determina essa relação (significante/significado) é a massa falante;27 pois ―a
língua não está completa [...], e só na massa falante ela existe de modo completo‖ (CLG, p.
21).
Decorre também deste fato, ou seja, do inevitável efeito do tempo, a opção de
Saussure por estudar a língua pelo método sincrônico, que consiste em observar e descrever
o funcionamento do sistema lingüístico num curto espaço de tempo, para poder, na prática, se
considerar um ponto nesse eixo temporal. Pois para Saussure, estudar a língua da outra
perspectiva temporal, ou seja, do método diacrônico, incidiria em sérias dificuldades de
delimitação, uma vez que a diacronia é tida como evolutiva e estudará, segundo ele ―as
relações que unem termos sucessivos não percebidos por uma mesma consciência coletiva e
que se substituem uns nos outros sem formar sistema entre si‖ (CLG, 1989, p. 116).
Desse modo, para Saussure, estudar a língua do ponto de vista diacrônico iria impedir
de compreender seu total funcionamento, pois teria que dar conta do todo, confrontando
diferentes aspectos de uma mesma língua, materializada na fala de cada indivíduo, pois para o
linguista ―É na fala que se acha o germe de todas as modificações‖, (CLG, p. 117).
Saussure distingue ainda os dois métodos, afirmando que ―é sincrônico tudo quanto se
relacione com o aspecto estático da nossa ciência; e diacrônico tudo que diz respeito às
evoluções‖. O linguista reconhece, no entanto que,

27

Saussure refere-se a um sistema gramatical depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes
à mesma comunidade; um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro. (CLG, 1989).

28

os fatos da evolução são mais concretos; falam mais à imaginação; as relações que
neles se observam se estabelecem entre termos sucessivos que são percebidos sem
dificuldades; é cômodo e, com freqüência, até divertido acompanhar uma série de
transformações. Mas a lingüística que se ocupa de valores e relações coexistentes,
apresenta dificuldades bem maiores (CLG, p.117).

Foi a partir das considerações acima traçadas, fazendo o ―corte epistemológico‖,
delimitando o objeto de estudo da lingüística (língua), ao separá-la da fala e encarregando-se
de pesquisar seu funcionamento, enquanto um sistema que conhece somente a sua ordem
própria, que Saussure tem sido considerado até hoje o fundador da lingüística moderna.
Por outro lado, ao definir a língua como um sistema que conhece somente sua ordem
própria, Saussure ―expulsa o falante da língua, pois para ele o falante não é autor da língua,
mas submete-se a um funcionamento que a ele é anterior; desse modo: ―o signo escapa
sempre, em certa medida, à vontade individual ou social, estando nisso seu caráter essencial‖
(CLG, 1989, p. 25).
E será a partir desta delimitação Língua/Fala – Sincronia/Diacronia, que daremos
início ao estudo das relações saussurianas que irão sustentar parte das análises dos dados
trazidos para este trabalho: a saber: Relações Sintagmáticas e Relações Associativas.
De acordo com Dor (2003, p. 34),

falar implica em efetuar duas operações simultâneas: de um lado, selecionar um
certo número de unidades linguísticas no léxico; por outro lado, combinar as
unidades linguísticas escolhidas; efetuando-se desta forma, um corte na linguagem
em duas direções: a das seleções e a das combinações.

Esta foi, segundo o mesmo autor, a segunda inovação da lingüística saussureana: ter
distinguido um duplo corte no sistema da linguagem. Corte este, destacamos, que irá justificar
todo o funcionamento da linguagem na perspectiva de Saussure.
Segundo Carvalho (2000, p. 86), para Saussure, ―tudo na sincronia se prende a dois
eixos: o eixo associativo (paradigmático) e o sintagmático‖. São estes dois eixos que
estruturam a concepção de língua saussuriana. Pois para Saussure, tudo num estado de língua
baseia-se em relações, e estas relações (sintagmáticas e associativas) correspondem às duas
formas de nossa atividade mental, ambas indispensáveis para a vida da língua. Isto significa
dizer que toda atividade linguística dá-se através destas relações.

29

As relações sintagmáticas são baseadas no caráter linear28 da língua. Isto significa
dizer que fica excluída a possibilidade de se pronunciar dois elementos ao mesmo tempo.
Desta forma, os elementos que compõem a cadeia da fala nestas relações só adquirem valor
porque se opõem a seu precedente ou antecedente, ou a ambos; visto que há uma combinação
linear entre os sintagmas que formam a cadeia da fala, impedindo assim, que um termo
apareça ao mesmo tempo em que outro. É necessário, deste modo, que se faça combinação
entre os termos que comporão a cadeia da fala. Estes termos, segundo Saussure, existem, in
praesentia, ou seja, unidades que estão presentes no enunciado; estão dentro do discurso,
formando uma unidade numa organização hierarquizada; em que, como já fora exposto, um
termo não pode ocupar o lugar de outro.
Tomemos como exemplo de ilustração para este princípio a frase; ―A planta secou‖;
não podemos pronunciar ta antes de plan; ou cou antes de se; e mesmo no nível de uma única
palavra, se tomarmos planta como exemplo, não poderíamos jamais no lugar de a, em plan,
substituirmos a vogal a pela consoante n, pois essa ―troca‖ de elementos na cadeia
sintagmática quebraria com a possibilidade de combinação de nosso sistema ortográfico, em
que não é possível a composição de uma sílaba com três consoantes juntas (C + C + C); é essa
cadeia fônica, essa combinação de lugares pré-estabelecidos, visto que não pode se dar
aleatoriamente, que faz com que se estabeleçam relações sintagmáticas entre os elementos que
compõem a cadeia da fala.
Embora não tratemos da análise dos dados neste capítulo, trouxemos um episódio que
ocorre em um dos textos de nosso corpus para darmos evidência desse processo, quer seja, de
como se dá esse encadeamento, essa linearidade, ou ainda, essa solidariedade na cadeia
sintagmática da qual fala Saussure. Vejamos então.

Texto 03 – segunda versão

Ao escrever, na segunda versão de seu texto, a frase ―O tímido tem dificuldade para
arranjar um profissão‖, a aluna acaba provocando uma ―quebra‖, uma ruptura com o que
prescreve o nosso sistema lingüístico, uma vez que, o substantivo feminino profissão,
28

O princípio de linearidade rege apenas o significante. Diz respeito à dimensão temporal do significante que se
apresenta em cadeias sonoras e possibilitam a segmentação (Silva, 2008, p. 46)

30

convocaria ―naturalmente‖, ou previsivelmente, ―dentro das normas coercitivas da sintaxe‖,
(CLG, 1989), um artigo feminino. No entanto, mesmo que tal construção nos cause
―estranhamento‖, não podemos negar que, há ainda assim uma solidariedade, uma linearidade
entre os elementos que compõem a cadeia significante, pois, nessa relação de ―lugares préestabelecidos‖, como assim definiu Saussure, a aluna, mesmo ―quebrando‖ com a
concordância nominal, mantém a linearidade sintática, uma vez que, precedendo um
substantivo ― profissão ― temos como possibilidade de combinação em nosso sistema
linguístico, um artigo.
Tal episódio nos mostra desta forma que, embora tenha havido essa ruptura, com a
irrupção de um termo que provocou estranhamento, a linearidade da cadeia significante se
mantém inalterada. Pois, se, conforme preconiza Saussure ―o todo vale pelas partes, as partes
valem também em virtude de seu todo‖ (CLG, 1989, p.148).
Quanto às relações associativas (ou paradigmáticas29) Saussure (CLG, p. 143)
destaca que, ―fora do discurso, as palavras se associam na memória e formam grupos dentro
dos quais imperam relações muito diversas‖. Isso significa dizer que temos em nosso
inconsciente um ―banco de dados‖ BORBA citado por CARVALHO (2004) que funciona
como um banco de reserva da língua. Segundo Saussure, essas relações, esse ―banco de
reservas‖, ―não tem por base a extensão; sua sede está no cérebro; elas fazem parte desse
tesouro interior que constitui a língua de cada indivíduo‖ (CLG, p. 143).
Ao contrário das relações sintagmáticas que existem in praesentia, a relação
associativa une termos in absentia, numa série mnemônica virtual (CLG, p. 143), ou seja, são
elementos que ficam armazenados na nossa memória de falante, podendo, a qualquer
momento, serem convocados inconscientemente por outra palavra, à qual possam ser
associadas. Ou seja, palavras que mantenham entre si uma relação de substituibilidade; como
exemplo, poderíamos pensar a palavra educação, que poderia convocar ensino,
aprendizagem, escola, e assim sucessivamente.
Segundo Saussure, esta associação não ocorre somente na analogia dos significados
como no caso acima, mas, e essencialmente, no nível da frase, entre significados lexicais.
Entretanto, tal associação se efetiva, ou seja, um termo se realiza, pela exclusão do outro,
sendo impossível a realização concomitante dos outros termos. Ilustrando essa propriedade,
poderíamos tomar como exemplo a frase: ―O pobre gato está morto‖.30 Existem, em cada
29

Segundo Carvalho, 2000 (p.87) Hjelmsleu rebatizou as relações associativas de paradigmáticas, pois o
lingüista dinamarquês achava que todo elemento lingüístico pode ser integrado num paradigma.
30
Exemplos retirados de Dubois, 2006 (p. 557).

31

ponto do enunciado, várias possibilidades de substituição; entretanto, uma se dará pela
exclusão da outra; a saber:
O
Este
Meu
Um

pobre gato está morto

O

Pobre
Gordo
Malva
do

gato está morto.

Percebe-se, desta forma, que uma palavra pode, segundo Saussure (CLG, p. 146),
―evocar tudo quanto seja suscetível de ser-lhe associado, de uma maneira ou de outra‖, desde
que, destacamos, não se realizem ao mesmo tempo; pois, como enfatizamos, um termo se dá,
pela exclusão do outro.
Finalizando a comparação entre os dois eixos, as duas relações estruturais da língua,
Saussure adverte ainda sobre o caráter limitado, restritivo das relações sintagmáticas e o
caráter ilimitado das possibilidades de elementos que podem emergir inconscientemente nas
relações associativas, pois, ―enquanto um sintagma suscita em seguida a idéia de uma ordem
de sucessão e de um número determinado de elementos, os termos de uma família associativa
não se apresentam nem em número definido nem numa ordem determinada‖ (CLG, p, 146).
É a partir deste dilema, da restrição imposta pela cadeia sintagmática e do nível de
liberdade proporcionado pelas relações associativas, que surge o que Lemos (1995), chama de
―tensão‖ na obra de Saussure; a saber: a dificuldade em separar o que é da ordem da língua,
do que é da ordem da fala. Desta forma, de acordo com Faria (1997, p. 42), ao mesmo tempo
em que, para isolar a língua como objeto da linguística, Saussure cede à necessidade de
excluir o falante, agora é levado a incluí-lo; mas, frisa a autora: ―O sujeito que surge, que se
revela [não é o que foi excluído (senhor do saber), acrescentamos]; é o sujeito ‗‗efeito da
língua‖, ficando, portanto, sua liberdade de combinação reduzida à escolha de um caminho,
dentre caminhos que ele não escolheu‖.
Assim, corroborando com Lemos (1995, p. 12), percebemos que ―o individual que
retorna é o que se dá na esfera da fala, definida agora como espaço do não-previsto‖, uma vez
que, segundo Saussure, há o tempo todo, uma língua em funcionamento agindo sobre o
sujeito.
Desse modo, o corte da cadeia da fala e/ou escrita pode ocorrer em qualquer ponto,
fazendo surgir elementos latentes, e será desta relação ― da simultaneidade entre os eixos
sintagmáticos e paradigmáticos ― que emergirá a imprevisibilidade e com ela a possibilidade
do aparecimento dos deslocamentos de sentido, do erro ortográfico, dos atos falhos, dos
equívocos; enfim da emergência das ―ocorrências singulares‖ que podem, a qualquer instante,

32

irromper no processo de proferição do dizer ― falado ou escrito ― de um sujeito que, ―antes
que portador de uma significação prévia ou externa à língua, já a habita e é o tempo todo
afetado por ela (LEMOS, 1995, p. 07).
Será, portanto, desse sujeito, que nos ocuparemos neste trabalho.
As considerações feitas até aqui serão imprescindíveis para compreendermos melhor o
próximo tópico deste capítulo.

2.2- De Saussure a Jakobson: a metáfora e a metonímia em cena

As reelaborar os conceitos postulados por Saussure a respeito das relações
sintagmáticas e paradigmáticas, o lingüista russo Roman Jakobson, preconiza que todos os
atos lingüísticos se baseiam na capacidade de combinação e seleção.
No artigo intitulado ―Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia‖ (1975),
Jakobson se propõe a investigar a afasia31 a partir do funcionamento da linguagem.
A partir de suas pesquisas, Jakobson reconhece nos distúrbios das falas dos afásicos
dois modos de arranjo da linguagem propostos por Saussure, quais sejam, as relações
sintagmáticas e associativas.
Após analisar tais distúrbios, Jakobson conclui que, o que na fala normal ocorre de
maneira simultânea e quase imperceptível, na fala dos afásicos torna-se manifesto de maneira
flagrante, a partir da predominância de um dos arranjos, como deficiência do outro; ou seja, se
a capacidade de combinação ― sintagmática ― funciona, automaticamente a de seleção ―
paradigmática ― estará comprometida. Jakobson classifica esse funcionamento deficiente
como distúrbios da similaridade e da contiguidade. Distúrbios estes sobre os quais nos
deteremos mais adiante.
Do ponto de vista clínico, a afasia consiste na perda da capacidade e das habilidades
da linguagem falada e escrita; tal problema decorre, na maioria das vezes, como conseqüência
de um acidente vascular cerebral que acaba por comprometer a região do cérebro responsável
pela linguagem. E foi em virtude da afasia ser um problema que afeta diretamente a
capacidade de comunicação, que Jakobson passa a investigá-la a partir do funcionamento da
31

Não nos deteremos neste trabalho à questão do estudo da afasia, tendo em vista não ser este nosso objeto.
Tocaremos, em alguns pontos apenas pertinentes à compreensão dos processos aqui discutidos, a saber:
metafóricos e metonímicos. Um aprofundamento maior sobre a afasia ver Lier de Vitto, 1997.

33

linguagem, pois para o lingüista ―para estudar qualquer ruptura nas comunicações, devemos,
primeiro, compreender a natureza e a estrutura do modo particular de comunicação que
cessou de funcionar‖ (JAKOBSON, 1975, p. 34)
Os estudos realizados por Jakobson com pacientes afetados de afasia demonstraram
que os dois hemisférios cerebrais, esquerdo e direito, regulam duas funções diferentes. O
hemisfério esquerdo controla a seleção paradigmática de palavras, enquanto que o direito
age sobre a combinação sintagmática.
Em virtude desta constatação, decorre o fato de Jakobson ter afirmado que todo ato
lingüístico relaciona-se à capacidade de combinação e de seleção. Compreender como se dá
esse processo, será imprescindível na análise dos dados que trouxemos para o corpus desta
pesquisa; uma vez que todos os deslocamentos, substituições e modificações ocorridas nos
manuscritos no processo de reescrita serão analisados a partir do funcionamento da linguagem
conforme os eixos saussurianos (sintagmáticos e paradigmáticos) e os processos de seleção e
combinação, postulados por Jakobson.
Segundo Jakobson (1975, p. 37), falar implica a seleção de certas entidades
lingüísticas e sua combinação em unidades lingüísticas do mais alto grau de complexidade,
pois, ―quem fala seleciona palavras e as combina em frases, de acordo com o sistema sintático
da língua que utiliza‖. No entanto, enfatiza o lingüista, tal seleção não se dá de forma
completamente livre, pois quem fala, escolhe seu repertório lexical a partir do que ele e seu
destinatário têm em comum.
Jakobson põe em xeque, desta forma, o nível de liberdade do falante, afirmando que
existe na combinação de unidades lingüísticas uma ―escala ascendentes de liberdade (p. 39).
Escala esta, que, segundo o linguista russo, tem seu menor índice na combinação de traços
distintivos em fonemas, em que a liberdade de quem fala é nula, pois ―o código já estabeleceu
todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua‖ e atinge o maior nível na
combinação de frases em enunciados, em que, ―Cessa a ação das regras coercitivas da sintaxe
e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce substancialmente,
embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados‖ (JAKOBSON, 1975,
p. 39).
Neste aspecto, Jakobson discorda de Saussure, pois o linguista genebrino considerava
que o falante estava, em qualquer ponto da cadeia, sujeito ao funcionamento da língua;
enquanto que Jakobson relaciona, conforme descrito acima, a relação de liberdade do falante a
níveis dentro da cadeia sintagmática, onde ora impera a restrição imposta pelo código
linguístico; ora emerge a possibilidade de criação de novos contextos.

34

Conceitos estes, que vêm à tona após o lingüista russo analisar os distúrbios que
caracterizam a fala dos afásicos e substituir os modos de arranjo da linguagem propostos por
Saussure: Relações sintagmáticas (in praensentia) e Relações associativas (in absentia);
pelo que ele passa a denominar de pólos metafóricos e pólos metonímicos.
Segundo Dubois (2006, p. 411) ―em gramática tradicional, a metáfora consiste no
emprego de uma palavra concreta para exprimir uma noção abstrata, na ausência de todo
elemento que introduz formalmente uma comparação‖; ou seja, é o emprego de todo termo
substituído por outro que lhe é assimilado.
Poderíamos ainda dizer que a metáfora é uma similitude que não expressa termos de
comparação. ―Esta mulher é uma pérola‖, é uma metáfora à qual se chega depois de
comparar, de forma implícita, o comportamento, a delicadeza da mulher, à preciosidade da
pérola, em uma operação associativa (paradigmática).
Quanto à metonímia, de uma forma geral, é apenas uma simples transferência de
denominação, numa relação de causa e efeito, continente e conteúdo e da parte pelo todo. Ou
seja, é uma figura retórica fundada numa relação de contigüidade entre o termo literal e o
figurado. Exemplificando: ―Ele ganha o pão com o suor do seu rosto‖ substitui ―ele ganha o
pão com um trabalho que provoca o suor de seu rosto‖. Trata-se, como se vê, de uma relação
sintagmática, de subtração.
Entretanto, destacamos que metáfora e metonímia, conforme concebidas por Jakobson,
não remetem às definições acima descritas; ou seja, figuras de estilo, prescritas conforme as
gramáticas e os manuais escolares.
Metáfora e metonímia são concebidas por Jakobson como processos responsáveis por
todo funcionamento simbólico da linguagem. Funcionamento este, conforme veremos mais
adiante, que foi redimensionado a partir da leitura que Cláudia Lemos (1992) fez de Saussure
e Jakobson, relacionando-os à releitura que Lacan32 fez destes processos.
Foi a partir da perspectiva traçada por Lemos que buscamos compreender as
―ocorrências singulares‖ que emergiram no processo de re-escritura dos textos trazidos para o
corpus desta pesquisa; entretanto consideramos ser imprescindível para este trabalho,
traçarmos o percurso trilhado pelos precursores de todo esse processo: relações sintagmáticas
relações associativas (paradigmáticas)

eixo metafórico

eixo metonímico; pois

será a partir destas relações, que daremos uma outra interpretação aos dados trazidos para o

32

Lacan ressignifica os processos metafóricos e metonímicos de Jakobson, colocando-os como modos de
emergência do sujeito na cadeia significante (LACAN, 1966).

35

corpus deste trabalho; em que buscaremos sair da interpretação regular, simplificada, para
uma interpretação singular, que, ao invés de procurar explicar, busca interrogar os dados.
Retornando ao percurso trilhado por Jakobson no artigo referido neste capítulo, o
autor, após afirmar que todos os atos lingüísticos baseiam-se nas capacidades de seleção e
combinação e re-elaborar estes conceitos, relacionando-os aos eixos metafórico e
metonímico, discorre a respeito dos dois tipos fundamentais de afasia, que ocorrem quando
há problemas no eixo da seleção (metafórico) ou no eixo da combinação (metonímico).
Na seleção (eixo paradigmático, vertical, metafórico), uma palavra situa-se em relação
às demais em função da similitude, onde um termo substitui outro com o qual possui uma
relação de similaridade.
Para Jakobson, o processo metafórico, que tem na metáfora sua expressão mais
condensada, dá-se por um processo de similaridade, em que, a emergência de um termo em
substituição a outro se dá por oposição a termos ausentes, mas que estão presentes na
memória do falante, podendo emergir a qualquer momento.
Entretanto, nos pacientes afásicos, tal capacidade de substituição fica comprometida,
pois uma palavra fora de contexto perde seu significado, praticamente anulando a capacidade
do paciente de substituir um termo por outro similar.
Em vista disso, Jakobson considera o contexto fator decisivo para os pacientes
afetados por esse distúrbio, denominado pelo autor de ―distúrbio de similaridade‖, que
Jakobson assim caracteriza:

quando a capacidade de seleção é fortemente afetada e o poder de combinação, pelo
menos parcialmente é preservado, a contigüidade determina todo o comportamento
verbal do doente e nós podemos designar esse tipo de afasia como distúrbio da
similaridade (JAKOBSON, 1975, p. 50).

Jakobson considera, dessa forma, a linguagem desse tipo de paciente meramente
reativa; sendo para esses pacientes bastante difícil dizer algo que não corresponde a uma
réplica; daí o contexto ser considerado indispensável e decisivo nesse processo.
Para exemplificar esse diagnóstico Jakobson faz referência a um paciente que não
proferia jamais a palavra faca sozinha, mas, conforme seu uso e circunstância, designava faca
respectivamente como apontador, cortador de maçã, faca de pão e talher; ou seja, quando era
conectada a outras palavras que compõem seu contexto lingüístico, a palavra emergia, era
produzida. Desta forma, concordamos com Landi (1997, p. 97) quando afirma que ―os dados

36

desse paciente apontam para um apoio na contigüidade sintagmática, cujo funcionamento se
baseia em operações metonímicas‖.
O que se observa neste caso é que, com a capacidade de seleção comprometida, a
tendência dos pacientes que sofrem do distúrbio de similaridade é substituir a palavra
descontextualizada por outra mais ajustada ao contexto, numa relação de contigüidade; dessa
forma, enfatiza Jakobson, quando se pede ao paciente que nomeie um objeto, ―lápis‖, por
exemplo, ele dirá ―para escrever‖.
O que ocorre nos exemplos citados é, segundo Landi, (1997, p. 97) ―a perda da
capacidade metalingüística‖; em que, segundo Jakobson (1975, p. 43) ―apenas as palavras que
comportam uma referência inerente ao contexto, como pronomes, advérbios pronominais e as
palavras que servem apenas para construir o contexto, tais como conectivos e auxiliares, estão
propensas a sobreviver‖.
Passemos agora ao segundo eixo que, segundo Jakobson, sustenta o funcionamento da
linguagem, a saber; eixo metonímico.
Na combinação (eixo sintagmático, horizontal, metonímico), uma palavra se situa na
relação com a seguinte em função da contigüidade; por exemplo: na frase ―Paulo dirige a
empresa de café‖ entre Paulo e ―dirige‖ não há similitude, mas contigüidade e as duas partes
podem ser combinadas. O mesmo ocorre entre as palavras ―dirige‖ e ―empresa‖ e entre ―a
empresa‖ e ―café‖.
Podemos perceber, na relação entre essas palavras que, há uma combinação na cadeia
da fala; combinação esta, que se dá entre termos, entre elementos linguísticos presentes no
enunciado (in praesentia). No entanto, esta combinação não ocorre de forma aleatória, mas
forma uma unidade, numa organização hierarquizada.
Entretanto, conforme os estudos postulados por Jakobson, pacientes afetados pelo
segundo tipo fundamental de afasia, denominado pelo lingüista de distúrbio de contiguidade,
perdem a capacidade de combinar entidades linguísticas mais simples em unidades mais
complexas.
Jakobson destaca a importância dos estudos de Hughlings Jackson para o estudo dos
distúrbios da linguagem; de onde destaca, remetendo-se ao distúrbio da contiguidade, a
seguinte citação;

37

Não é suficiente dizer que o discurso consiste de palavras. Consiste de palavras que
se relacionam umas com as outras de maneira particular; e, à falta de uma interrelação específica de seus membros, um enunciado verbal seria uma simples
sucessão de nomes que não englobam nenhuma proposição (JACKSON apud
JAKOBSON, 1975, p. 50)

É exatamente esta inter-relação da qual fala Jackson, que falta entre as unidades
lingüísticas na fala dos pacientes portadores do distúrbio da contiguidade.
Jakobson afirma que os portadores deste tipo de afasia tendem a reduzir o discurso a
pueris enunciados, onde, na maioria das vezes, a palavra é a última unidade linguística
preservada, e apenas algumas frases estereotipadas conseguem sobreviver.
Ao contrário do paciente de afasia do tipo distúrbio de similaridade, que tem no
contexto seu suporte linguístico, pois apresenta carência quanto ao código; o paciente do
distúrbio de contigüidade é carente em relação ao contexto, e busca seu apoio apenas na
palavra.
Desta forma, como a deficiência diz respeito ao contexto, as regras sintáticas se
perdem; as palavras dotadas de funções gramaticais desaparecem; ocasionando o que se
chama de agramatismo, onde a frase se degenera, formando apenas um ―monte de palavras‖;
Se tomássemos como exemplo a frase citada no início deste tópico (combinação – eixo
metonímico) provavelmente teríamos: ―empresa café dirigir‖.
Percebemos, conforme este exemplo, que esse indivíduo tem capacidade
paradigmática (passa em revista as possibilidades linguísticas), mas não sintagmática, pois
combina as palavras de forma aleatória, fazendo com que estas percam sua função
significativa.
Jakobson finaliza sua reflexão nos mostrando como os processos metafóricos e
metonímicos fazem-se presentes na poesia, especificamente no paralelismo entre versos
sucessivos. No entanto, o linguista dá ênfase sempre à predominância de um processo sobre o
outro; conforme podemos perceber no seguinte trecho: ―nas canções líricas russas, por
exemplo, predominam as construções metafóricas, ao passo que na epopéia heróica o
processo metonímico (grifos nossos) é preponderante‖ (1975, p. 57).
Entretanto, corroboramos com Landi (1997, p. 98) ao destacar que ―os processos
implicados no funcionamento linguístico se mostram simultaneamente presentes‖. Uma vez
que, ao substituir um termo por outro (mesa por lâmpada), por exemplo, o paciente opera a
substituição de acordo com uma similaridade. No entanto o paciente não introduz qualquer
termo. O escolhido foi selecionado a partir de uma contiguidade.

38

Será a partir desta perspectiva, da fusão entre os eixos metafóricos e metonímicos que
buscaremos compreender os dados traduzidos para esta pesquisa, onde a ressignificação
ocorrida com os termos no processo de re-escritura apontam para uma relação
metaforonímica33 entre seleção e combinação.

2.3- De Jakobson a Lemos: uma releitura dos processos metafóricos e metonímicos

Cláudia Lemos (1998), ancorada nos estudos de Saussure a respeito dos dois eixos
estruturais da linguagem (sintagmático e paradigmático), e, posteriormente em Jakobson
(1975), que através de pesquisa com pacientes de afasia (conforme já fora explícito
anteriormente neste capítulo) vê nos processos de seleção e substituição (eixo metafórico) e
nos de combinação e contexto (eixo metonímico), a explicação para todo o processo do
funcionamento lingüístico; busca — a partir da releitura feita por Lacan (1966) a respeito dos
respectivos processos —; reelaborá-los e trazê-los para buscar compreender as mudanças
ocorridas na relação da criança (em processo de aquisição da linguagem) com a língua
materna.
Em suas pesquisas Lemos busca interpretar a fala da criança a partir da relação entre
os fragmentos produzidos pela mesma e a fala do adulto/outro (na maioria das vezes, a mãe).
A autora destaca, no entanto, que essa interação ― entre a fala da criança e do adulto
― difere daquelas visões empiristas inspiradas na psicologia ― como o interacionismo ou o
sociointeracionismo ― na qual o acesso da criança à língua dá-se por estágio de
desenvolvimento; mas diz de uma interação, de uma relação, na qual se articulam língua,
fala e sujeito.
Assim, questões relativas ao outro, à alienação à fala desse outro, aos erros, à
instabilidade na fala da criança e à recusa do desenvolvimento, levam Lemos (2002) à noção
de captura, o que a aproxima da psicanálise, ou melhor da possibilidade responder à questão
da compatibilidade entre uma concepção de sujeito e de língua. Isso significa dizer que não é
a criança que se aproxima da língua via capacidades perceptuais ou cognitivas, mas ao
contrário, ela é capturada numa estrutura que implica três polos: o do sujeito, o da língua e o

33

Este conceito será explicitado na releitura que Cláudia Lemos faz de Jakobson; questão essa, que iremos
abordar ainda neste capítulo.

39

do outro. Outro, concebido pela autora, não como sócius, mas como instância da língua
constituída, ou, dito de outro modo, outro, criança ou adulto ,que demanda interpretação.
É, portanto, buscando dar conta do imprevisível e das mudanças emergentes na fala da
criança, que Lemos (1998), a partir da formulação saussureana da teoria de valor e da releitura
dos processos metafóricos e metonímicos de Jakobson (1975), busca uma noção de estrutura
compatível com a inserção do sujeito na língua como ―ordem própria pela sua consequente
emergência na cadeia enquanto um sujeito de um significante para outro significante‖,
(FELIPETO, 2008, p. 600).
Desse modo, o outro, representado pelo interlocutor adulto, não tem a função de
fornecer a língua ou de acionar um conhecimento linguístico interno à criança, ou seja, não
ensina a criança a falar, mas, fala com e por ela; numa relação entre significantes que
emergem tanto na fala do interlocutor adulto, quanto na fala da criança.
Ratificando a importância do trabalho de Jakobson na depreensão desta relação
(criança/outro) em suas pesquisas, Lemos afirma:

Essa possibilidade de dizer algo sobre um movimento que poderia dar lugar à
mudança, se caracterizou, porém, na releitura do admirável texto de Jakobson (1963
[1956]) sobre os processos metafóricos e metonímicos, em que as relações
associativas e as relações sintagmáticas de Saussure eram reinterpretadas a partir das
figuras de linguagem — a metáfora e a metonímia — tidas como sua expressão mais
condensada (LEMOS, 2002, p. 11).

Lemos (2002) destaca ainda que, mesmo que tenha sido através do estudo de uma
lesão orgânica, Jakobson dá um passo em relação ao estruturalismo, ao incluir o falante na
língua.
E é a este sujeito/falante que Lemos se refere. A esse respeito, Faria (1997, p. 53) diz,

[...] o retorno do sujeito excluído da lingüística, não tanto enquanto questão, como
ocorre com Saussure, mas como afetação. Isto é, apesar de ser desconsiderado, o
sujeito afeta a reflexão de Jakobson, na medida em que retorna, e o faz dividido, ora
submetendo-se a ―enunciados estereotipados‖, ora se libertando da ação das ―regras
coercitivas da sintaxe (grifo da autora).

Na perspectiva teórica defendida por Lemos, sujeito e língua não se separam. A autora
concebe o sujeito como posterior à língua, à qual está submetido, deixando portanto, de ser
―causa‖ para ser ―efeito da língua‖ (SILVA, 2008, p. 45). Consideramos, desta forma, que se
há língua, há sujeito; um sujeito que não detém todo conhecimento, podendo, desse modo,

40

estar passível a cometer deslizes, ―erros‖, ato falho; ou seja, um sujeito submetido aos efeitos
da língua.
A partir desta perspectiva, Lemos busca compreender o processo de aquisição da
língua materna em crianças, uma vez que, em suas pesquisas, a autora percebe que as
explicações para o processo de aquisição da língua, expostas sob outras perspectivas teóricas,
não davam conta de abarcar todas as questões relativas à aquisição da língua pela criança;
especialmente, aquelas questões, episódios e ou situações que fugiam à regularidade, ao que
já estava prescrito e que, podia ser ―facilmente‖ justificado por algumas destas teorias.
Dentre essas teorias, Lemos destaca o socioconstrutivismo e o sociointeracionismo de
Vygotsky.34 Estas teorias colocavam em relação processos intersubjetivas e linguagem; nesse
enfoque os processos intersubjetivos, regulados pelo adulto, é que serviam de mediação na
construção da linguagem e do conhecimento por partes das crianças. A respeito destas teorias
Lemos diz, ―Processos esses que não foram bem sucedidos, pois não conseguiram demonstrar
como as propriedades estruturais e as categorias da linguagem e do raciocínio podem ser
derivadas de processos interativos‖ (LEMOS, 1992, p. 152).
Na perspectiva Vygotskiana, a aquisição da criança à linguagem se dá na operação
com signos, esta operação, no entanto, não é inventada, nem se deve exclusivamente à
herança dos adultos, mas advém de uma série de transformações qualitativas; transformações
estas, segundo Vygostsky, resultantes da relação criança/adulto que se definiria pela
transformação de processos intersubjetivos (intercâmbio verbal entre o falante e o ouvinte) em
processos intra-subjetivos (que compreendemos aqui, com aquilo que é interiorizado a partir
da fala do outro).
No entanto, Lemos continua a interrogar essas concepções na medida em que
questiona; ―qual é natureza da mediação nos processos intersubjetivos?‖ e ainda mais; ―como
algo vem a ser uma operação com signos?‖ (LEMOS, 1992, p. 154).
A autora conclui que, para responder a tais questionamentos, faz-se necessário que se
busque um outro caminho; outra concepção para tentar compreender como se dá o processo
da aquisição da linguagem na criança. A esse respeito, a própria autora diz;

[...] devemos reconhecer que o que se necessita é de uma teoria cujos primitivos não
sejam nem unidades atribuídas a categorias que operam sobre elas, assim como
tampouco signos que obtenham seu significado básico na relação direta do sujeito
com o mundo (LEMOS, 1992, p.154).

34

Não nos deteremos nas concepções destas teorias, uma vez que não é esse nosso propósito nesta pesquisa.

41

Lemos destaca, no entanto, que a aquisição da linguagem apresenta muitos problemas,
levando-se em consideração a necessidade de descrever a mudança de algo em constituição,
onde não se aplicam categorias de línguas já constituídas; algo em cuja constituição está
implicada a relação com o discurso do outro. A este respeito, Lemos (2002) indaga; ―o que,
do outro ou de sua fala, mediaria o acesso da criança ao que na língua se furta à percepção, à
apreensão imediata pelos sentidos?‖
A autora irá buscar possíveis respostas a essas indagações exatamente na releitura que
fez do texto de Jakobson a respeito dos processos metafóricos e metonímicos, ratificando tal
assertiva, a própria Lemos diz:
―Na medida em que mantinham o que, em Saussure, tem o estatuto de propriedades
mínimas e, ao mesmo tempo, apontavam para um efeito para além dessas
propriedades, tais processos permitiriam apreender, a meu ver e como queria
Jakobson, a linguagem em seu estado nascente na fala da criança, assim como o
movimento que produziria a mudança‖ (LEMOS, 2002, p.11).

A partir das dificuldades já expostas em depreender a fala da criança, Lemos busca, a
partir dos processos metafóricos e metonímicos preconizados por Jakobson, preencher as
lacunas até então existentes. A esse respeito a autora afirma: ―Os processos metafóricos e
metonímicos propostos por Jakobson me parecem, por vários motivos, a resposta a essa
necessidade‖ (LEMOS, 2002, p. 06) Desta forma, a autora busca, a partir dos referidos
processos, tentar dar conta das mudanças na relação da criança com a língua no decurso de
sua constituição como falante.
Ao introduzir os processos de Jakobson em suas pesquisas, Lemos (1992) busca suprir
uma carência deixada pelas teorias anteriormente citadas; a saber; tentar explicitar um
funcionamento que desse conta, tanto dos fragmentos não analisados, como do ―erro‖ e até
mesmo da mudança inferida do reconhecimento da diferença entre um e outro‖ (LEMOS,
1997, p. 3).
Desse modo, conforme destacado no tópico anterior deste capítulo, Lemos recorre aos
processos metafóricos e metonímicos propostas por Jakobson, a partir da releitura que Lacan
(1966) faz desses processos; ou seja, ―como modos de emergência do sujeito na cadeia
significante‖; onde, segundo Dor (2003, p. 49) ―as noções de metáfora e metonímia
constituem, na perspectiva lacaniana duas das pedras fundamentais na concepção estrutural do
processo inconsciente [...] o inconsciente estruturado como uma linguagem‖. Pois, segundo
Lacan, ―se há língua, há inconsciente‖; ao que acrescentaríamos que, se há inconsciente há
desejo, atos falhos, ―erros‖ e ressignificações de outros dizeres.

42

Será, pois, a partir desta releitura feita por Lacan dos processos estruturais da
linguagem preconizados por Jakobson, que Lemos buscará compreender a imersão da criança
no universo linguístico.
Nesta ressignificação dos processos metafóricos e metonímicos, Lemos não concebe
como prevalência de um sobre o outro, conforme postulava Jakobson, onde, ora um, ora outro
se fazia presente; mas como uma relação interdependente, na qual os dois processos estão
imbricados, no processo de interlocução entre a fala da criança e a do outro; em que
inconscientemente, um processo convoca o outro, numa relação que a autora chama de
metaforonímica. A respeito desta relação Lemos diz: ―[...] o processo metonímico também
implica o metafórico. A possibilidade de substituição é que cria lugares/posições e, portanto,
cria a própria cadeia/estrutura‖ (LEMOS, 1992, p. 160).
Para buscarmos ilustrar esta afirmação trouxemos um episódio do corpus analisado
pela autora, (LEMOS, 1992, p. 162) onde discorreremos brevemente sobre as reflexões que
Lemos fez a respeito desse episódio; e ao qual acrescentaremos algumas considerações.

Mariana, 1; 2, 15
(Menina e mãe folheando uma revista)
Criança: é bebê
O au-au
Mãe: au-au? Vamos procurar o au-au?
Oh, a menina está tomando banho (aponta uma figura na revista)
Criança: ava? ava?
Mãe: Sim, está lavando o cabelo. Olha não tem nenhum au-au nesta revista.
Criança: au-au
Mãe: só tem um menino, carro, telefone.
Criança: auô?
Mãe: Alô? Quem fala? É a Mariana?
(Grifos nossos)
Segundo Lemos, os primeiros enunciados da criança (bebê – au-au) são expressões
não analisadas, extraídas do discurso adulto, numa situação em que se mostrou bebês e
cachorros. Corroborando com Lemos, acrescentamos que, ao usar esses enunciados a criança
faz uma relação metonímica com cenas que já viu, cenas enunciativas; no entanto, neste
movimento, numa relação de contiguidade com a língua, a criança acaba por fazer também
séries associativas, recorrendo ao termo latente35 (animal) que se materializa, em sua fala no
termo manifesto (au-au). Dessa forma metáfora e metonímia transitam no mesmo enunciado.
35

Compreendemos aqui termo manifesto pelo que é enunciado e por latente o que o sustenta.

43

Referindo-se ao episódio ava (lava), produzido depois do enunciado da mãe ―a menina
está tomando banho‖; Lemos destaca que essas ocorrências apontam para uma relação entre
um significado do enunciado da mãe e o texto em que este ocorreu, texto que a menina torna
presente enunciando outro significante do mesmo. Lemos enfatiza ainda que o efeito dessa
conexão metonímica é desviar a referência do significante do adulto para outro contexto,
outro aspecto do mesmo contexto (Lemos, 1992, p. 163).
Acrescentaríamos ainda que, a resposta da mãe (sim ele está lavando o cabelo)
é uma ressignificação da fala da criança; ou seja, quando a mãe interpreta a fala da criança,
coloca sentido no significante; dito de outra forma, ―promove a emergência do sujeito na
cadeia significante‖.
Lemos busca, assim, uma perspectiva alternativa, para compreender os mecanismos de
mudança na aquisição da linguagem, que não seja aquelas teorias que ainda conservam um
ponto de vista construtivista. Dessa forma, após fazer uma releitura crítica do
sociointeracionismo de Vygotsky e buscar alguma similaridade (ainda que parcial) na
perspectiva reorganizacional do desenvolvimento,36 a autora encontra nos processos
metafóricos e metonímicos, um viés para tentar compreender o processo de aquisição da
língua pela criança; em que a língua não seja vista como imposta, transmitida à criança pelo
interlocutor adulto; mas onde ambos, criança e adultos possam ser intérpretes de sua fala e da
fala do outro. Em que as falhas, os ―erros‖, possam ser vistos como tentativas de acerto, de
ressignificações; de outros sentidos que também são constituintes da língua, uma língua em
que, tanto a criança quanto o adulto estão submetidos aos seus efeitos (LEMOS, 1992, p.
170).
Finalizamos este capítulo, destacando que, com o que fora exposto até agora,
buscaremos sustentar parte da análise dos dados. Particularmente no explicitado neste último
tópico; pois, mesmo não se tratando os sujeitos envolvidos na produção dos manuscritos
trazidos para a pesquisa, de crianças em fase de aquisição da língua materna; acreditamos que
os jovens alunos que produziram os textos trazidos para este trabalho estão em constante
processo de aquisição da língua (no caso de nossa pesquisa, especificamente escrita), e
portanto, sujeitos aos mesmos percalços que a criança na aquisição da língua materna.
E será a partir da concepção de um sujeito que está submetido aos efeitos da língua, e
que, portanto, comete deslizes, falhas, ocorrências singulares, em seu processo de escritura,

36

Uma breve explanação sobre os processos reorganizacionais encontram-se em Lemos (1992, p. 161).

44

que buscaremos compreender como se dá o processo de aquisição da língua escrita desses
sujeitos (alunos), a partir da relação com o outro (professor) no processo de escrita

escuta

reescrita de seus textos.
Nessa perspectiva, compreender o funcionamento da linguagem a partir dos eixos
metafóricos e metonímicos e, principalmente da leitura que Cláudia Lemos fez destes, como
mecanismos de mudança, será imprescindível para nossas análises; uma vez que, conforme
dito na introdução deste trabalho, será sob essa perspectiva, com esse olhar, que buscaremos
compreender os dados trazidos para esta pesquisa. Ou seja, analisaremos as mudanças, as
ressignificações, os deslocamentos de sentidos, as ocorrências singulares surgidas entre as
versões dos textos produzidos; não como falta de atenção dos alunos (como nos dissera a
professora, conforme trechos de uma ―conversa com a mesma, acostado ao primeira capítulo
deste trabalho) ou como meras reflexões metalinguísticas, de um sujeito que atua o tempo
todo sobre a língua; mas, pelo contrário, buscaremos analisar esse processo (escrita e
reescrita), permeado pela interferência do outro (professora), como uma ação dos processos
metafóricos e metonímicos sobre o sujeito.
Optamos trilhar por esse caminho teórico por percebemos que, nem todas as
ocorrências na língua podem ser explicadas pela via da regularidade ou dão-se a partir de um
sujeito que escolheu perceptual e conscientemente todo o caminho do seu dizer. Senão, como
explicarmos, por exemplo, um episódio ocorrido em um dos manuscritos que analisamos, no
qual, ao ler a intervenção da professora na primeira versão de texto para a grafia incorreta da
palavra ―gulias‖ (sic); o aluno a substitui para ―sansão‖ (sic), na versão reescrita? Teria
ocorrido aí uma reflexão metalingüística do aluno? Seria simplesmente falta de atenção do
mesmo? O que o teria levado a efetuar tal ressignificação de seu dizer, de sua escrita? Sobre
isso discorremos mais adiante, no quarto capítulo deste trabalho.
Sabemos que, buscar articular metáfora e metonímia para tentarmos compreender a
relação do aluno com sua escrita, a partir de uma ―escuta‖ subjetiva da fala do outro (em
nosso caso, a professora), pode trazer seus riscos, uma vez que Lemos faz uso desses
processos para compreender a fala da criança em fase de aquisição da linguagem; entretanto, a
própria autora nos ―conforta‖, nos ―encoraja‖, quando aponta para a possibilidade da
articulação dos processos metafóricos e metonímicos na fala de adultos; ao afirmar que: ―a
estabilização não é interpretável como ponto final na atuação desses processos, já que uma
certa homogeneidade na fala dos adultos não os homogeneíza enquanto falantes, não elimina
a singularidade e a diferença‖ (LEMOS, 1997, p.12, grifos nossos).

45

Será, portanto, por estarmos nos ocupando neste trabalho, de ocorrências
imprevisíveis, inesperadas e singulares, que podem irromper a qualquer instante no processo
escritural; que, rompendo com a ―expectativa‖ ou com a ―crença‖, de que basta a professora
enunciar, intervir, para o aluno ―escutar‖, interpretar coincidente e reciprocamente tal
enunciado que, ― mesmo correndo os riscos que tal opção possa nos impor ― buscaremos
interpretar os dados trazidos para análise, não como evidência de um saber ou não saber,
mas como indícios de um sujeito que pode, a qualquer momento, ser capturado
inconscientemente pelos ―efeitos da língua‖ e/ou pelo ―equívoco provocado entre aquele que
escreve (professora) e aquele que escuta (aluno) ―de um lugar outro‖ (CALIL,2000).
Continuemos no capítulo seguinte nosso percurso teórico.

46

CAPÍTULO 03

Revisão de textos na escola: intervenção docente, escuta e singularidade

Ao analisarmos textos reescritos por alunos dos anos finais do ensino fundamental
esperamos nos deparar com produções que atendam aos critérios convencionais da
modalidade escrita, tais como coesão, coerência, acentuação, pontuação e ortografia.
Temos também a expectativa de que o trabalho com versões de textos escritos pelos
alunos na escola produza os efeitos necessários à construção da unidade de sentido nos textos
desses alunos.
Nesse sentido, a escola, e mais especificamente, os professores de Língua Portuguesa,
acabam por legitimar a escrita como regularização e reservam para o aluno um lugar de
sujeito ―imaginário‖ dos textos escolares. Dizemos imaginário porque a própria escola não
consegue encontrar os meios eficazes de levar o aluno a produzir textos ―bem escritos‖, mas,
no entanto, os professores continuam ―cobrando‖, idealizando em seus imaginários, alunos
que tenham, que mantenham habilidosamente o ―domínio‖ da língua escrita, fato esse que,
conforme veremos no decorrer deste capítulo, é legitimado pelos próprios PCN‘ de Língua
Portuguesa, (BRASIL, 1998).
Sabemos que a escrita está presente na maioria das práticas sociais dos povos em que
penetrou, pois mesmo quem não sabe escrever está constantemente sendo influenciado por
ela. Desse modo, é função da escola introduzir a criança no mundo da escrita para que esta
seja capaz de fazer uso desse tipo de linguagem, especialmente em uma sociedade que
privilegia tanto essa modalidade.
A escrita faz parte da escola desde os tempos mais remotos, tanto que nos parece
impossível imaginar uma sala de aula sem quadro negro ― ou branco ― principalmente nos
ensinos fundamental e médio. Dessa forma, por mais que mudem as metodologias, os
recursos pedagógicos e/ou tecnológicos, ―dar aula‖ significa, ainda e também, escrever no
quadro. E para o aluno, não temos como negar tal evidência, aprender a escrever representa a
aquisição de um bem cultural, significando um certo ―prestígio‖ no processo de escolarização.
Em vista do exposto é que buscaremos, nesta pesquisa, perceber em que medida as
intervenções feitas pela professora podem levar os alunos a melhorarem seus textos no
processo de re-escritura, e mais ainda, que efeitos tais intervenções terão na escrita desses
alunos.

47

Ao intervir no texto do aluno, certamente o professor espera que as
interferências/intervenções, feitas na primeira versão do texto, sejam postas em prática,
atendidas, ―escutadas‖ no momento de produzir a segunda versão. No entanto, sabemos que
nem sempre isso ocorre; nem sempre, no processo de re-escritura as interferências do
professor surtem o efeito esperado; pois conforme Abaurre (1997, p. 32)

a atitude das crianças frente à escrita que produzem não parece ser a de
espontaneamente reler cuidadosamente as versões dos textos e as
indicações/interferências da professora [...] mas trabalham naquilo que por motivos
muitos particulares, parece lhes chamar a atenção.

No decorrer deste capítulo, buscaremos tentar compreender o que permeia o processo
de escrita e reescrita de textos na escola e, por que nem sempre há uma ―escuta‖ entre o que o
professor solicita e o que aluno escreve nas segundas versões de seus textos.
Para tanto, deixaremos de lado a noção já constituída de uma língua homogênea,
universal e previsível; para adotarmos, a partir da perspectiva teórica defendida neste
trabalho, uma noção de língua constituída pela falta, marcada pelo equívoco, pelo heterogêneo
(MILNER, 1987). Desse modo, consideraremos ambos os sujeitos (aluno e professor)
submetidos aos efeitos da língua.
Assim sendo, neste capítulo discorremos primeiramente sobre o que preconizam alguns
estudos que se debruçam sobre a questão da produção de textos na escola ― envolvendo o
processo: escrita/revisão/intervenção didática e reescrita ― dentre os quais destacamos
Geraldi (1997), Fiad (1997), Fiad e Mayrink-Sabinson (2001), Jesus (2001) e Serafini (1989).
Nos estudos desenvolvidos por estes autores, parte-se da concepção de um sujeito que opera
sempre conscientemente sobre a linguagem; numa relação de interação entre o que se pensa e
o que se escreve; e entre o que o interlocutor/professor orienta, sugere, e o que o aluno
―escuta‖, reescreve. Buscaremos ainda, fazendo uma articulação entre educação e linguagem,
analisar trechos de conversas que mantivemos com a professora durante nossa estada na
escola ― bem como de um questionário aplicado com a mesma ― objetivando perceber as
relações existentes entre o pensar e o fazer docente.
Em seguida, nos tópicos finais deste capítulo, à luz da concepção defendida neste
trabalho (qual seja: de um sujeito que muitas vezes é submetido aos efeitos da língua, e,
interação é concebida não como ação que se dá recíproca e simultaneamente ― entre o
aluno/escrevente e o professor/interlocutor ― mas como interpretação; em que ambos os
sujeitos, professor e aluno, submetidos ao funcionamento da língua, carecem interpretar o

48

dizer um do outro, apresentamos os conceitos dos quais nos valemos para buscarmos
compreender os dados trazidos para análise nesta pesquisa.
Para tanto, recorreremos a nomes como Calil (2000, 2002, 2008), Lemos (1991, 1997,
2001), Abaurre (1997), Lopes (2005) e Milner (1987), dentre outros, para discutirmos as
noções de escuta e singularidade; noções estas que, junto com os processos metafóricos e
metonímicos, apresentados no capítulo anterior deste trabalho, nos servirão de sustentação
para a análise das situações de escrita e reescrita de textos, no quarto capítulo.

3.1- A produção e a revisão de textos na escola

Fecundas são as discussões a respeito da produção de textos na escola. Atualmente,
um grande número de estudiosos se debruça sobre esta temática. Dentre os quais elencamos
Wanderley Geraldi que destaca que o ensino de português deve privilegiar o trabalho com o
texto em sentido amplo. O autor enfatiza ainda que nas aulas de língua portuguesa é o texto
que sustenta todo o processo de ensino-aprendizagem, pois ―sem o texto não é possível
estudá-la (a língua) [...] ninguém aprende sem produzi-los‖ (GERALDI 1997, p. 13); Raquel
Salek Fiad (1997) que afirma que, no processo de produção de um texto, as modificações, os
apagamentos, as várias versões, são marcas deste percurso, deixadas pelo escrevente e,
(SERAFINI, 1989) que analisa as diversas formas de intervenção didática nos textos dos
alunos.
Nesse percurso, percebemos que, independente da concepção adotada, pelo menos em
um aspecto, todos comungam da mesma opinião: a construção de um texto é um processo que
não se dá de uma hora para outra; requer preparação, condições de produção, revisão e,
principalmente, várias versões até que o ―produto final‖ fique ―suficientemente bem escrito
para o momento‖ (BRASIL, 1977, p. 53-54) e, neste percurso, a revisão, a reescrita e a
mediação do professor são indispensáveis.
No entanto, questionamos: como avaliar a mediação do professor no processo de
produção textual? De que parâmetros abriremos mão para mensurar os efeitos do trabalho
docente? Será o desempenho do professor uma atividade fácil de ser avaliada e/ou
mensurada? Teremos como efetivar algum instrumento avaliativo para que possamos perceber
em que medida a mediação, a intervenção do professor no processo de aprendizagem do aluno
― e, mais especificamente neste caso, no processo de produção textual ― dá-se de maneira

49

satisfatória e/ou, obterá os resultados ―esperados‖? E mais: em que medida a ―intenção‖, o
pensar do professor, traduz-se em ações efetivas? Vejamos o que dizem alguns estudos e o
que nos mostram alguns dados ― retirados do corpo desta pesquisa ― sobre esse assunto.
Avaliar os resultados do trabalho docente não é tarefa fácil uma vez que, os efeitos da
prática educativa não podem ser percebidos ou mensurados em um curto período de tempo, ou
mesmo dentro de um prazo predeterminado, pois, tanto o ―serviço‖ ofertado ― ensinar ―
quanto o ―produto‖ resultante deste ―serviço‖ ― aprender ― são atividades, são ações, que
envolvem sujeitos ― professores e alunos, mais especificamente ― com todas as suas
particularidades, limitações, subjetividades e, nessas relações, muitas vezes nem sempre o
bom desempenho do ―serviço‖ garantirá a qualidade do ―produto‖, ou vice versa; pois há
nesse processo uma série de outros fatores ― internos e/ou externas à instituição escolar ―
que poderão interferir no decorrer desse percurso; decorre daí a dificuldade em conseguirmos
avaliar pragmaticamente o trabalho docente.
A esse respeito, Tardif (2002, p.133) destaca:
―Em certas ocupações ou profissões de relações humanas, é sempre possível
formular um juízo claro a respeito do objeto de trabalho e de seu resultado: o
advogado ganhou ou perdeu uma causa, o músico tocou ou não uma determinada
peça o paciente está curado ou ainda está doente, etc. Em outras atividades humanas,
porém, e é o caso do ensino, é difícil, senão impossível, especificar claramente se o
produto do trabalho foi realizado. Por exemplo, a socialização dos alunos se entende
por muitos anos, e seu resultado pode se manifestar bem depois do período de
escolaridade‖.

Objetivando situar melhor o que diz autor, trouxemos, a título de ilustração, um
quadro no qual esta faz uma comparação entre o trabalho industrial e o trabalho docente.
Vejamos:

Quadro IV
Trabalho na Indústria com Objetos
Materiais

Objetivos do
Trabalho

Precisos
Operatório e delimitados
Coerentes
A Curto Prazo

Trabalho na escola com seres
humanos
Ambíguos
Gerais e Ambiciosos
Heterogêneos
A longo prazo (destaque
nosso)

50

Trabalho na Indústria com Objetos
Materiais

Natureza do
Objeto do
Trabalho

Material
Seriado
Homogêneo
Passivo
Determinado
Simples (pode ser analisado e
reduzido aos seus componentes
funcionais.

Trabalho na escola com seres
humanos
Humano
Individual e social
Heterogêneo
Ativo e capaz de oferecer
resistência
Comporta uma parcela de
indeterminação (liberdade)
Complexo/ não pode ser
analisado nem reduzido aos
seus componentes funcionais.

(TARDIF, 2002, p.124)

Conforme percebemos no quadro exposto, são muitos os fatores que tornam difícil
mensurar e avaliar o trabalho docente, e dentre esses fatores, existe um que, em nosso ponto
de vista acaba por gerar um certo ―comodismo‖ no professor, que é a constatação, a
percepção, de que o produto de sua ação, de seu trabalho só será perceptível (quando assim o
for) a longo prazo.
Tal constatação acaba por legitimar, respaldar, o discurso da maioria dos professores
que, isentando-se de qualquer responsabilidade, acaba, na maioria das vezes, a ―jogar‖ no
aluno, toda e qualquer culpa pelos objetivos não alcançados; pois a impressão que se tem é
que apenas o ―produto‖ está sendo avaliado naquele momento e não também quem prestou o
―serviço‖. Tal fato pode ser ratificado com um trecho37 retirado de uma conversa informal que
mantivemos com a professora que participou conosco desta pesquisa, conversa essa anotada
em nosso diário de campo. Vejamos:

Tá vendo professora, esses alunos não querem saber de nada hoje em dia. Não
leem, não gostam de escrever, olhe pra qui (mostrando o manuscrito) parece até
brincadeira, a gente manda escrever, reescrever, e no fim, acabam errando
mais na refacção do que na primeira versão. A gente vai fazer o quê, né?

Após o ―desabafo‖ da professora, perguntamos o que ela achava disso, por que será
que um aluno no 6° ano ainda apresentava tantas dificuldades com a escrita, e mais, por que a
versão reescrita apresentava mais problemas ― essa ao menos era a opinião da professora ―
que a primeira versão do texto. Ela então nos disse: ―Porque é desligado mesmo, não presta
atenção. Eu também não posso fazer milagre, né; esse é o primeiro ano que ele estuda
comigo, tomara que consiga fazer ele melhorar‖.
37

Destacamos que esse mesmo trecho da conversa já encontra-se explícito neste trabalho no primeiro
capítulo.Transportamo-o para este capítulo a fim de exemplificarmos melhor o tópico exposto.

51

Como podemos perceber, a fala da professora ratifica a impossibilidade de se
mensurar, de se avaliar os resultados do trabalho docente a curto prazo. No entanto, em outro
momento, ao passar para nós a primeira versão de um texto produzido por uma aluna do 9°
ano38, para que providenciássemos a cópia que iríamos usar nesta pesquisa ― texto esse, com
diversos problemas de ortografia, pontuação e acentuação ― a professora nos diz: ―Veja só,
isso parece texto escrito por uma aluna de 8ª série? Noventa por cento das palavras estão
escritas erradas. É professora, aqui, só Deus, minha filha‖.
Nesta fala da professora, o que nos chama a atenção é que a referida aluna já estudara
com ela desde o 6° ano, ou seja, no caso anterior como o aluno estava estudando com a
professora há apenas alguns meses, ela isenta-se da ―culpa‖, afirmando que não tem como
―fazer milagres‖, ao mesmo tempo em que mantém a ―esperança‖ de que ele talvez ―melhore‖
com o passar tempo. No entanto, com relação à aluna do 9° ano, segundo a fala da própria
professora,― só Deus,‖ daria jeito. Como percebemos, a professora parece desconsiderar
completamente o fato de essa aluna já estar estudando com ela há quatro anos.
Queremos, no entanto, enfatizar que não concebemos a professora como ―vilã‖ nesse
processo, uma vez que, conforme destacamos na introdução desse tópico, existe uma série de
fatores que podem ter contribuído para que a aluna tenha chegado ao último ano do ensino
fundamental apresentando inúmeras dificuldades com o uso da língua escrita. Entretanto,
salientamos que, os professores de Língua Portuguesa não podem simplesmente cruzar os
braços e entregar ―a Deus‖, isentando-se de qualquer responsabilidade nesse processo.
Pois, corroboramos com Abaurre (1997, p. 150) quando afirma que: ―o que o
adulto/professor faz e diz tem repercussão no que o aluno faz, diz e escreve‖.
Por outro lado, também reconhecemos que, nem sempre o professor, como qualquer
outro sujeito efeito da linguagem (LEMOS, 2002), reflete sobre seu dizer e/ou suas ações;
dito de outro modo, falamos, sem estarmos necessariamente conscientes do que estamos
dizendo. Desse modo, inferimos que talvez seja isso que ocorre na proferição da professora,
uma vez que, conforme percebemos nos trechos abaixo, há uma certa contradição entre o que
pensa e o que efetivamente se materializa em sua prática pedagógica.

Pergunta A: Qual a sua concepção de texto (processo ou produto)? Poderia falar sobre
isso?

38

Esse manuscrito será analisado no 4° capitulo deste trabalho, sob o título “texto 03”.

52

Resposta A: É um processo, como tudo na vida precisamos praticar para atingir um
resultado satisfatório. A prática de produção melhora muito com o processo de
reescrita. Os textos ficam muito melhores.
Pergunta B: Com que frequência ocorre a prática de reescrita de textos em suas aulas?
Resposta B: No turno noturno uma vez por semestre (mais ou menos) no diurno, com
mais freqüência.

Diante do exposto, poderíamos interrogar: se os professores sabem o que fazem, como
podem reproduzir fenômenos aos quais se opõem conscientemente? Pois, conforme
percebemos, a professora comunga da opinião de que a produção de um texto é um processo e
que a reescrita é parte imprescindível nesse percurso, no entanto, essa prática raramente
ocorre em suas aulas. Diríamos que, na resposta à pergunta A, não é apenas a voz da
professora que fala, há ai uma reprodução de outros discursos, de outras vozes ― Formações
continuadas, PCNs, livros didáticos, as leituras que faz, dentre outras ― vozes estas, que
habitam o universo simbólico da professora, mas que, no entanto, não se efetivam em sua
prática pedagógica; e, talvez apenas na resposta à pergunta B, a professora ―escute‖ sua
própria voz.
A esse respeito, Tardif (2002, p. 213) nos lembra que, ―a ação cotidiana constitui
sempre um momento de alteridade para a consciência do professor. Não fazemos tudo aquilo
que dizemos e queremos; não agimos necessariamente como acreditamos e queremos agir [...]
Agir nunca é em plena consciência‖.
Desse modo, conforme já enfatizamos, não concebemos a professora como única
responsável pelo ―mau desempenho‖ dos alunos, mas, como mais um ―ator‖ nesse processo
que, seguramente, não pode isentar-se de sua responsabilidade, uma vez que, socialmente,
compete ao professor, e no nosso caso, ao professor de Língua Portuguesa, a tarefa de levar os
alunos a produzirem textos coesos, coerentes e bem escritos, como preconizam os PCNs de
Língua Portuguesa (BRASIL,1998). Do contrário, a escola continuará ―entregando a Deus‖ os
alunos que, assim como os que produziram os manuscritos trazidos para análise neste
trabalho, ainda não conseguem produzir textos dentro dos padrões ―esperados‖ pela
instituição escolar.
Como já fora enfatizado no capítulo inicial deste trabalho, um dos principais objetivos
do ensino de língua portuguesa no país, segundo os PCN, de Língua Portuguesa, é formar
alunos leitores e produtores de textos (BRASIL, 1998) e ainda, segundo estes mesmos
documentos, a refacção faz parte do processo de escrita, pois ―durante a elaboração de um

53

texto, se releem trechos para prosseguir a redação, se reformulam passagens. Um texto
―pronto‖ será quase sempre produto de sucessivas versões‖ (BRASIL, 1998, p. 77). Em outro
documento que também norteia o ensino de Língua Portuguesa, desta vez as Matrizes
Curriculares para o ensino fundamental, no município de Maceió (MACEIÓ, 2005), também é
enfatizada a necessidade da revisão e das diversas versões no processo de produção de textos,
onde constam, dentre os objetivos a serem atingidos pelos alunos nas séries finais do ensino
fundamental, os seguintes tópicos:

Revisar seus próprios textos até considerá-los suficientemente bem escritos para
o momento;
Analisar e revisar o próprio texto em função dos objetivos estabelecidos, da
intenção comunicativa e do leitor a que se destina, redigindo tantas quantas
forem as versões necessárias para considerar o texto produzido ―bem escrito‖
(MACEIÓ, 2005, p. 20 – grifos nossos).

Estes mesmos documentos ratificam também o ―apoio‖ e/ou a intervenção do
professor nesse processo até a versão final do texto.
No entanto, apesar de a atividade de produção de textos ser concebida como um
processo por pesquisadores de diferentes correntes teóricas e de ser destacada em diversos
documentos oficiais que norteiam o ensino de língua materna no país, pudemos constatar —
de forma empírica, através de conversas informais com professores de Língua Portuguesa nas
escolas em que lecionamos, e nos cursos de formação continuada que participamos,
anteriormente como cursista e mais recentemente como formadores; e agora, de forma
respaldada pela pesquisa desenvolvida neste trabalho — que ainda prevalece na escola, a
prática de produção de textos como um ―produto‖ que deve ficar ―pronto‖ em apenas uma
versão, e que, mesmo quando há no professor a consciência e a intenção da necessidade da
refacção, ou seja, da prática da escrita como um processo , essa ―intenção‖, esse ―pensar‖,
não consegue traduzir-se em ação, em ―fazer‖, conforme percebemos nas falas da professora
expostas nas páginas anteriores.
Percebemos, desse modo que, apesar de a professora reconhecer a necessidade de
várias versões para a produção de um texto, e de conceber, desta forma, texto como um
processo de escrita e reescrita, idas e vindas, esta prática raramente ocorre em suas aulas.
A esse respeito, Antunes (2006) afirma que:

54

a escola favorece a aceitação de um grande equívoco: o de que escrever um texto se
faz numa primeira e única versão (...) o planejamento e a revisão do que escrevemos
ainda parecem ser, na escola, um procedimento eventual e não uma prática
sistemática, que já previsse, como coisa natural, o momento do planejamento e o
momento da revisão (ANTUNES, 2006, p. 37-38).

Nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) consta
como um dos objetivos a ser atingido pelo aluno das séries/anos finais do ensino fundamental
(6° ao 9° ano)39 a capacidade de analisar e revisar o próprio texto. No entanto, o trabalho com
produção de textos na escola tem revelado que esta tarefa não é tão fácil, pois em geral, os
alunos têm dificuldade em revisar sozinhos seus próprios textos; a esse respeito, Góes (1992)
destaca:

pesquisas mostram que a criança é pouco propensa à revisão espontânea e que,
quando esta ocorre, se limita a alterações de aspectos de superfície (como questões
ortográficas, flexões), não afetando aspectos de base (como incompletude de
enunciados e ambigüidade referencial). Este é um motivo adicional para que as
condições de produção incluam momentos de exame do próprio texto (GÓES, 1992,
p. 63).

Todavia, também temos constatado ao longo de nossa vivência profissional, que, as
interferências dos professores nos textos dos alunos — objetivando levá-los a revisar seus
textos para o momento da reescrita — também têm se concentrado nos aspectos da superfície
textual; tais como pontuação, ortografia, acentuação e concordância; o que nos leva a inferir
que, ao revisarem sozinhos seus textos, os alunos acabam reproduzindo a prática do professor;
ou seja, tomam como alvo para revisão e uma possível refacção, aqueles aspectos que
normalmente lhes são ―cobrados‖ nas atividades diárias em sala de aula.
Tal fato pode ser ratificado com o exemplo abaixo, retirado de um dos dados que
trouxemos para análise neste trabalho: No primeiro manuscrito40 que apresentaremos no
último capítulo desta pesquisa, em um dos momentos da primeira versão do texto, o aluno
escreve a palavra ―mijando‖; ao devolver o texto para o aluno, para ser reescrito, dentre as
interferências feitas pela professora constava uma, fazendo referência à palavra destacada
acima, na qual a professora puxa uma seta e faz a seguinte inscrição; cuidado com o uso de
certas palavras; ao reescrever o texto o aluno grafa a palavra da seguinte maneira:
―migando‖.
39

No referido documento consta como terceiro e quarto círculo, no entanto, optamos por utilizar a nomenclatura
atual, conforme já informado no primeiro capítulo deste trabalho.
40
Este dado será analisado no quarto capitulo deste trabalho. Trouxemos aqui apenas um exemplo, objetivando
ilustrar de que forma a maneira como o professor faz sua interferência no texto do aluno reflete-se na forma com
este reescreve, revisa seus textos.

55

Tal fato, nos faz acreditar que este aluno já se encontra tão acostumado a ser cobrado
apenas nos aspectos da superfície da textualidade que, a escuta41 que faz da interferência da
professora recai diretamente na ortografia; fato este, canonizado pela imposição do nosso
próprio sistema ortográfico. Desta maneira, onde provavelmente a professora esperava que
ocorresse uma mudança de ordem semântica (por exemplo: ―urinando‖, ―fazendo xixi‖)
ocorre uma mudança ortográfica; gerando, o que neste trabalho estamos denominando
―ocorrência singular‖, tendo em vista ter rompido, quebrado, com a expectativa do previsível,
do esperado, do regular; o que, neste caso, seria, pelo menos na expectativa da professora,
uma mudança de ordem semântica, lexical.
Não podemos afirmar com certeza que escuta a professora fez da palavra ―mijando42‖,
já que do ponto de vista ortográfico não há nenhum problema com a palavra, entretanto,
inferimos que se deva ao fato de a mesma ter achado que tal palavra não caberia no contexto
da linguagem escrita em sala de aula (o que iremos analisar posteriormente no último capítulo
deste trabalho). No entanto, não podemos perder de vista a emergência de traços individuais
do sujeito/aluno ao usar recursos linguísticos nas produções de seus textos. A este respeito,
Fiad (1997, p. 157) afirma que ―o papel da escola na constituição da individualidade vai na
contramão desse processo, isto é, há a produção de um ―estilo escolar‖ que visa à
homogeneização.
Voltemos à questão da revisão. Nas atividades de reescrita, que têm na revisão seu
primeiro passo, o aluno se constitui o leitor do próprio texto. Há uma mudança de posição, ele
deixa de ser interpretado para tornar-se intérprete de seu texto; o texto, desta forma, passa a
ser visto não sob o ponto de vista da escrita, mas da leitura, ou mais precisamente, dentro da
perspectiva que adotamos em nossas análises, da escuta que o aluno faz da escrita da
professora (nas interferências materializadas em seu texto) e da escuta, da interpretação, que
faz de sua própria escrita.

41

Tomamos por escuta aqui, o retorno que o aluno dá a algo que de alguma maneira lhe chamou a atenção; numa
relação subjetiva com a língua. Um aprofundamento maior sobre esta noção (escuta) será dada no decorrer deste
capítulo.
42
O aspeamento aqui indica que, embora reconhecendo a existência do que Bagno denomina de preconceito
lingüístico (BAGNO,2006), quando da interferência da professora especificamente no vocábulo destacado, não
nos deteremos nessa questão, considerando não ser esse o objeto desta pesquisa.

56

3.1.1 – Da revisão à reescrita: o papel do interlocutor/professor.

Conforme discorremos no tópico anterior, a primeira etapa para a atividade de
reescrita do texto é a revisão; é a partir da leitura do que escreve que o aluno irá (ou não)
ressignificar, substituir, ratificar ou, simplesmente apagar alguns dizeres presentes na primeira
versão de seus textos. Segundo Rocha (2003, p.73)

A revisão é entendida como um procedimento que permite não apenas ver melhor,
mas também, ver de outra perspectiva, na medida em que se considera que, durante a
produção da primeira versão do texto, o aprendiz tem sua atividade reflexiva
centrada em aspectos como; o que dizer, como dizer, que palavras usar. [...] Durante
o processo de revisão o aluno tem possibilidade de centrar esforços em questões
pertinentes ao plano textual discursivo, como o dizer mais, dizer de outro jeito,
analisar e/ou corrigir o que foi dito‖ (ROCHA, 2003, p. 73).

Vimos também, no início deste capítulo, segundo Góes (1992), que não é tão fácil para
os alunos revisarem sozinhos seus próprios textos; sendo necessário para isso, a
mediação/intervenção do professor. No entanto, também percebemos — conforme
exemplificado anteriormente com um dado de nosso corpus — que o professor normalmente,
ao intervir no texto do aluno, centra-se apenas em ―corrigir‖ os aspectos gramaticais, tais
como ortografia, acentuação, pontuação, dentre outros. Essa prática é denominada por Jesus
(2001), de ―higienização da escrita‖, que a autora caracteriza como:
uma espécie de ―operação limpeza‖ em que o objetivo principal consistia em
eliminar as ―impurezas‖ previstas pela profilaxia linguística, ou seja, os textos são
analisados apenas no nível da transgressão ao estabelecido pelas regras de
ortografia, concordância e pontuação, sem se dar a devida importância às relações de
sentido, emergentes na interlocução (JESUS 2001, p. 102).

Tal prática acaba por legitimar uma concepção de intervenção comum em nossas escolas,
ou seja, intervenção como sinônimo de correção; em que a reescrita quando acontece, visa
apenas a avaliação, a correção do professor. A esse respeito Calil (2000), afirma que,

Esta relação que se estabelece entre o professor, o aluno e o texto compõe um
imaginário que parece apagar a heterogeneidade e singularidade das práticas de
textualização, constituindo um processo de significação sobre as relações entre
sujeito e texto, de forma linear, higiênica, objetiva e homogênea (CALIL, 2000, p.
29)

57

Sabemos que o ato de intervir no dizer do outro é uma atividade complexa; desta
forma, ao intervir no texto do aluno, visando levá-lo a ―adequá-lo‖ às normas lingüísticas e
discursivas, não devemos e tampouco podemos, proceder a essa atividade de forma mecânica
e dentro de modelos pré-estabelecidos; desconsiderando, conforme já enfatizamos, a
heterogeneidade e singularidade das práticas de textualização e a relação singular do
aluno/sujeito com seu dizer/ sua escrita.
Serafini (1989), citada por Bezerra, Queiroz e Tabosa (2004, p.236-237) expõe seis
princípios que considera indispensáveis à prática de correção de textos na escola; quais sejam:
1- a correção não deve ser ambígua (o que precisa ser mudado, deve estar bem explicitado); 2Os ―erros‖ devem ser reagrupados e catalogados; 3- o aluno deve ser estimulado a rever as
correções feitas, compreendê-las e trabalhar sobre elas, ratificando desta forma, a concepção
de que escrever é um processo contínuo; 4- devem-se corrigir poucos erros em cada texto,
evitando abordar muitos pontos que necessitem ser revisados ao mesmo tempo. Ratificando
esta necessidade, mesmo partindo de uma outra perspectiva teórica, Calil destaca que,

na realização da intervenção (que é necessariamente uma interpretação), optar por
um conjunto de aspectos ou outro irá depender, por um lado, de um imaginário
constituído em torno do que ―faz texto‖ para o professor e, por outro, mais
interligado ao primeiro, da ―escuta‖ deste professor diante do texto do aluno‖
(CALIL, 2000, p. 32).

Retornando a Serafini, como quinto princípio a autora destaca que: o professor deve
estar predisposto a aceitar o texto do aluno, tendo uma postura receptiva, sem preconceitos em
relação ao tema, à linguagem e ao estilo; e por fim, como sexto princípio nos chama a atenção
para o fato de que a correção deve ser adequada à capacidade do aluno, devendo-se apontar
apenas pontos que o mesmo tenha maturidade para corrigir.
Bezerra, Queiroz e Tabosa (2004, p.236-237), destacam ainda que, para Serafini
esses princípios levam o professor a proceder de modos diferentes com o texto do aluno; o
que traz como resultado as diversas formas de ―corrigir‖. Formas estas que Serafini classifica
como:
Correção indicativa – na qual são marcadas as palavras as frases e os períodos que
apresentam algum problema na perspectiva do professor; ficando o aluno com a difícil
tarefa de ―inferir‖ o que errou;
Correção resolutiva – consiste um corrigir todos os erros, reescrevendo o que se
considera incorreto; onde a eliminação do ―erro‖ reflete a opinião do professor sobre a
―solução‖ encontrada para ―resolver o problema‖;

58

Correção classificatória – neste tipo de correção, os ―erros‖ são corrigidos de acordo
com sua classificação (se são de ordem sintática, de ortografia, de pontuação, dentre
outras).
Complementando a classificação proposta por Serafini, as autoras acima mencionadas
acrescentam ainda um quarto tipo de correção; agora proposto por Eliana Ruiz (2001);
correção esta, que Ruiz denomina de textual-interativa e consiste em uma intervenção que não
é realizada diretamente no corpo do texto do aluno, mas dá-se através de bilhetes ou cartas
escritas pelo professor com o objetivo de reforçar positivamente a tarefa realizada ou ―cobrar‖
algo que não ficou claro na primeira versão do texto. Segundo Ruiz (2001), esse quarto tipo
de correção complementa os outros tipos expostos, uma vez que consegue preencher as
lacunas deixadas pelas outras formas de corrigir um texto, pois de acordo com a autora, na
correção textual-interativa é estabelecida uma comunicação direta do professor com o aluno/
autor; para Ruiz (op. cit.) a característica diferencial deste tipo de correção é, pois, a
interação.
No entanto, tanto as formas de correção descritas, quanto este processo de interação
preconizado por Ruiz (op. cit), pautam-se na concepção de sujeitos (professora e alunos) que
agem o tempo todo conscientes do seu dizer; dizer este, que nunca lhes escapa. Entretanto,
conforme veremos no decorrer deste capítulo; muitas vezes o dizer requer, reclama
interpretação; pois só assim, se dá a interação.
A respeito dessa interação no processo de escritura, Fiad e Mayrink-Sabinson (1991)
privilegiam a concepção de escrita como processo, no qual o alvo não é o texto como produto
final, mas o escritor e seu processo de escritura. Desta maneira, ao intervir no texto do aluno,
o professor não pode, segundo as autoras, perder isso de vista.
Para essas autoras (op. cit.), a escrita deve ser concebida como uma construção que se
processa na interação e a revisão é vista como um momento que demonstra a vitalidade desse
processo construtivo.
Fiad e Mayrink Sabinson (2001) destacam ainda a reescrita como parte essencial no
processo de escritura, uma vez que, para as autoras o texto original e os textos dele
decorrentes, podem nos dar uma dimensão do que é a linguagem e suas possibilidades.
Em estudos realizados a respeito do processo de reescrita de textos na escola, por
alunos que já ―dominam‖ os recursos básicos da escrita, Raquel Salek Fiad (1997) destaca a
importância do papel da escola e do ―outro‖ — professor — como interlocutor do aluno nesse
processo.

59

Ratificando a importância e a necessidade da refacção no processo de construção da
escrita, a autora remete-se a autores consagrados, escritores proficientes, destacando que ―até
se dar por satisfeito com seu texto, o escritor o refaz, modifica-o, deixando em seus
manuscritos os rastros de seu percurso‖ (FIAD, 1997, p.71).
No entanto, a pesquisadora afirma que, na escola, a prática de reescrita ainda ocorre de
maneira muito esporádica; apesar de reconhecer que já adquire um espaço antes inexistente. A
autora destaca que a mola propulsora dessa ―mudança‖ vem das propostas curriculares de
língua portuguesa e dos manuais didáticos de português, presentes nos próprios livros
didáticos. A esse respeito, Fiad (1997) afirma que

o trabalho de reescrita, quando ocorre na escola, é direcionado, seja pelo professor,
seja pelo material didático que o mesmo utiliza. Esse direcionamento pode ser mais
explicito e enfático, quando o professor aponta aspectos a serem refeitos nos textos
de seus alunos, ou mais implícito, quando é sugerido ao aluno que releia seu texto e
o refaça sem nenhuma interferência de um interlocutor (FIAD, 1997, p. 73).

Discorrendo sobre estes dois momentos no processo de refacção: com interferência
direta do interlocutor/professor ou de forma mais ampla, implícita, em que é sugerido ao
aluno que releia seu texto e faça as modificações que julgar necessário; Fiad (1997), buscando
perceber o que os alunos mudam em seus textos quando os reescrevem, chega à conclusão
que, ao reescreverem seus textos sem a interferência direta do interlocutor os alunos refletem
sobre sua escrita e ao reescrevem, escolhem que aspectos serão modificados. A autora destaca
ainda que, neste tipo de refacção, as modificações mais frequentes se dão na substituição de
termos utilizados na modalidade oral, por características mais comuns na escrita.
Quanto à refacção a partir da interferência direta do interlocutor/professor, Fiad (1997)
destaca que o aluno/autor, sente mais dificuldade ao tentar deixar clara ao leitor — professor
— a explicação que quer dar. Ratificando esta assertiva, a autora mostra, a partir de dados
analisados, que em determinados momentos, o aluno chega a interromper a narrativa que
vinha desenvolvendo, inserindo um outro sentido ao seu texto, buscando atender aos
questionamentos feitos pela professora na 1ª versão ; o que acaba por gerar um
―estranhamento‖, uma dificuldade, ao sentido de seu texto.
Entretanto, nos dois processos de refacção — com ou sem intervenção direta do
professor — a autora concebe o aluno/autor/escrevente como sujeito de seu dizer; numa
condição de autonomia sobre a língua, ―refletindo‖; ―escolhendo‖ sempre que palavras
escrever, que reformulações irá realizar; ratificando esta concepção, a autora destaca que,

60

estudantes que já dominam a língua escrita se colocam como leitores de seus
próprios textos, reelaborando-os, refazendo-os a partir dos conhecimentos sobre a
escrita de que já dispõem. Mesmo nas condições em que a escrita é produzida no
contexto escolar podemos observar que os autores a elaboram em vários momentos,
trabalhando-a em busca do texto que expresse o que pretendem e que seja adequado
aos seus objetivos. Ao aprender que aprender a escrever significa escolher entre
possibilidades, tomar diferentes decisões os autores vão se formando e se
constituindo (FIAD 1997, p. 37 — grifos nossos).

Reconhecemos a relevância dos estudos da referida autora para a compreensão do
processo de construção da escrita no contexto escolar, especialmente por tratar-se da escrita
de alunos que já se encontram em um estágio mais avançado de aquisição da língua escrita —
caso dos sujeitos da pesquisa que ora realizamos —, e mais ainda, por Fiad dar ênfase à
reescritura, o que em nossa concepção é essencial no processo de produção textual.
No entanto, na perspectiva que adotamos neste trabalho, partimos de uma concepção
de sujeito/aluno, que não detém total controle e monitoramento sobre aquilo que escreve, e
que, em determinados momentos, ao invés de escolher que palavras irá usar — conforme
preconiza Fiad —, este sujeito/aluno é capturado pela língua, numa ―relação de
desconhecimento, não-controle e imprevisibilidade que afeta intermitentemente o processo de
escritura‖, (CALIL, s/d, p. 01). Processo este, segundo o autor acima citado, no qual aquele
que escreve pode, ao mesmo tempo, ser ―senhor‖ e ―escravo‖ do próprio texto (op.cit.).
Assim, a concepção de escrita e reescrita vai além da relação do aluno com seu texto,
mediado pela intervenção do professor; mas é marcado por uma ―tensão constante entre
aquele que escreve e aquele que lê‖, (op.cit.); tensão esta que será explicitada no decorrer
deste capítulo.

3.2- Entre o ―ouvir‖ e o ―escutar‖: Lemos e as mudanças de posição do sujeito na língua

Diferentemente do que fora exposto no tópico anterior, procuraremos mostrar neste
tópico que a relação do escrevente com o texto no processo de escrita e reescrita, permeada
pela interferência do outro (professor) pode trilhar por caminhos que vão além da simples
relação de interação entre professor e aluno, conforme postulado pelos autores anteriormente
citados.
Para buscarmos dar conta de tal tarefa, recorremos — conforme destacado no início
deste capítulo — à noção de escuta preconizada por Lemos (1991) e posteriormente por Calil

61

(1997; 1998; 2000) em que analisaremos a relação escrita-interferência do professorreescrita a partir das mudanças de posição do sujeito na língua, postuladas por Cláudia
Lemos. Mudanças estas que serão apreendidas como efeito dos processos metafóricos e
metonímicos43 (JAKOBSON, 1975).
Em sua dissertação de mestrado, Grillo (1995) parte da hipótese de que a intervenção
do professor, no processo de reescrita do texto do aluno, faz com que este reflita sobre os
recursos expressivos utilizados, modificando-os, em busca de uma melhor adequação de seu
texto aos seus objetivos comunicativos. A autora infere tal hipótese embasada na teoria
sociointeracionista, segundo a qual o conhecimento é constituído na dinâmica das interações
sociais. Não pretendemos — conforme citado no capítulo introdutório deste trabalho — negar
que a interação professor-aluno contribua (positivamente ou não) no processo de reescrita; no
entanto, pensamos ser esta uma suposição um tanto reducionista, do ―tenso‖ e complexo
processo da relação do escrevente com seu texto, sendo reescrito, modificado, segundo a
autora supracitada, objetivando adequá-lo a objetivos pré-determinados pelo outro
(professora, sistema linguístico, normas ortográficas ou sintáticas). Tal concepção parte,
portanto, de um sujeito completo, sempre consciente, que tem total controle sobre o que fala,
o que ouve e o que escreve.
Conforme já destacado por diversas vezes neste trabalho, o caminho que percorremos
para desenvolver esta pesquisa foi outro; partimos — conforme citado no capítulo
introdutório desta pesquisa — da noção saussureana de língua e de um sujeito efeito desta
língua. Sujeito este que pode, a qualquer momento, ser ―capturado‖ por esta língua; em que,
no processo de interação, o outro — no caso deste pesquisa, a professora — funciona,
segundo Lemos (1992) como não-socius , como instância do funcionamento da língua; e a
linguagem que emerge desta relação, demanda, não uma interação, e sim, uma interpretação.
Interpretação esta da escrita que emergirá da ―escuta‖ que a professora faz dos textos do aluno
e, simultaneamente, da ―escuta‖ que este aluno fará das interferências escritas, feitas pela
professora em seus textos e que, poderá materializar-se, de forma singular e imprevisível, no
processo de reescritura.
Iniciaremos esta reflexão distinguindo o ―ouvir‖ do ―escutar‖. Segundo Ferreira
(2001, p. 505) ouvir é descrito como perceber; entender; atender; escutar. De acordo com
43

Gostaríamos de destacar mais uma vez que, ao nos referirmos a processos metafóricos e metonímicos não
estamos fazendo menção a figuras de linguagem, mas, conforme enfatizado no segundo capitulo deste trabalho,
trata-se de uma reinterpretação de Jakobson (1975) das relações associativas e sintagmáticas de Saussure (1989).
Processos estes, que serão essenciais em nossa tentativa de descrever e interpretar as ―ocorrências singulares
presentes nos textos trazidos para análise neste trabalho.

62

o mesmo autor (2001. P.284) escutar é o ato de: tornar-se ou estar atento para ouvir;
atender os conselhos, prestar atenção para ouvir alguma coisa. Desta forma, podemos
inferir que para o célebre lexicógrafo ouvir e escutar são termos similares, podemos dizer
até sinônimos.
Se partirmos do pressuposto de que os autores citados no tópico anterior deste capítulo
comungam da opinião de que tanto o processo de produção, quanto o de revisão (escrita,
revisão e reescrita) de textos na escola dá-se pela interação direta entre professor e aluno e
que este, após ―ouvir‖, ―escutar‖ as ―instruções‖, ―orientações‖ do professor, irá ―modificar‖
―moldar‖ seu texto progressivamente até ―atender‖ aos critérios pré-estabelecidos, podemos
inferir que, para esse autores, ouvir e escutar constituem-se como termos sinônimos.
Em vista do exposto, sentimos a necessidade de esclarecer que, neste trabalho, ouvir, e
escutar constituem-se termos distintos: ouvir é aqui concebido como uma capacidade orgânica
— pura e simplesmente orgânica — relativa ao bom funcionamento do sentido auditivo; ou
segundo Lemos (2002, p. 15) atividade de ordem fisiológica. Enquanto que, o termo ―escuta‖,
preconizado por Lemos (2002), com base na psicanálise Lacaniana, é aqui caracterizado pela
relação da criança à fala do outro, atravessada pelo funcionamento da língua; atravessamento
este, que abre lugar para a emergência do sujeito; sujeito este, acrescentamos, que nem
sempre pode decidir sobre seu dizer.
Em suas pesquisas, Lemos (op. cit.), analisa o que pode emergir da escuta da criança
— da passagem de ―infans‖ a sujeito falante — a partir de mudanças que a autora denomina
de ―mudanças de posição do sujeito na língua‖. Nestas posições a questão da escuta ocupa
um lugar privilegiado, pois indica o movimento da criança (que neste trabalho remetemos ao
aluno em processo de aquisição da linguagem escrita) sobre sua ―escuta‖ para a fala — tanto
sua, quanto do outro — o que constitui-se num ponto de tensão, num deslocamento de
sujeito percipiente para sujeito do inconsciente. Dito de outra forma, mudança de um
sujeito que detém, domina, controla a língua; para um sujeito que, sem perceber, sem dar-se
conta, é capturado por esta língua.
Em decorrência disso, Lemos (2002), recusa a noção de desenvolvimento cronológico
(comum às teorias cognitivas/gerativistas) e adota a de captura (que tem a função de
abreviatura de processos de subjetivação por efeito da língua). O que significa dizer que, não
é a criança que se apropria da linguagem, via capacidades cognitivas ou sociointeracionistas;
mas ela é capturada por esta, numa estrutura que implica três pólos: o do sujeito, o da língua
e o do outro.

63

Relacionando estes pólos às três posições subjetivas, Lemos (op. cit.), assim os divide:
1ª posição – marcada pela relação dos enunciados da criança com o enunciado do outro; 2ª
posição – marcada pelas relações entre enunciados; submetidos ao funcionamento da língua
e por fim, a 3ª posição, marcada, segundo a autora, pelas relações entre fala e escuta.
Na primeira posição, Lemos (op. cit.), destaca que a criança está colada à fala do
outro, em uma relação de dependência, em que enunciados aparentemente corretos revelam
ser meros fragmentos congelados da fala do outro. A autora destaca, no entanto, que, apesar
desta dependência da fala da criança à fala/interpretação do outro, fragmentação e
dependência aqui, não implicam em ―antes da fala‖, nem uma assimilação reprodutiva dos
enunciados do outro; mais há, desde sempre, ―uma língua em funcionamento‖ (LEMOS,
2002, p. 16) que determinaria um processo de subjetivação que impede que se pense em uma
coincidência entre a fala da criança e a do outro. Ilustrando esta característica de nãocoincidência entre a fala da criança e a fala do outro na primeira posição, apresentamos
abaixo um episódio dos dados de Lemos (2002, p. 16) sobre os quais teceremos alguns
comentários.

Episódio 5. (Criança se aproxima da televisão, mãe tenta afastá-la).
C.: não/ não/ PO (entre pô e bô)
M.: quebrô sim
C.: A PO
M.: O Pô vem aqui amanhã. Amanhã o pô com a Titê para levá a mariana na
praia
C.: iáia/ iáia
M.: Ai que gostoso que a Titê vai chegar, né filhinha?
C.: Iga/ Eva baldinho moía?
M.: Ahm?
C.: eva baldinho moía?
M.: Leva? Ah, você vai levar o baldinho na praia ? ...
(Mariana 1; 8.6)
Neste episódio, característico da primeira posição, podemos claramente perceber que
apesar de haver fragmentos que migram da fala da mãe para a fala da criança, estes se dão por
uma não-coincidência entre a fala da criança e a fala da mãe; pois a emergência de eva,
baldinho e moía, metonimicamente convocados a partir do significante ―praia‖, presente no
enunciado da mãe, mostra que a escuta da criança encontra-se muito mais submetida aos
significantes ausentes do que à fala imediata da mãe. Dito de outro modo, a fala da criança

64

parte do enunciado do outro, mas é ―capturada pelo tesouro das significantes‖, à língua
(LEMOS, 2002).
Assim sendo, podemos dizer que na primeira posição o sujeito escuta de um lugar
outro, que não o empírico imediato da situação interacional. Essa constatação será necessária
para compreendermos por que nem sempre ocorre uma relação de coincidência, de interação
entre o que a professora solicita e o que o aluno escuta, no momento de reescrever seus
textos44. Ou seja, no processo de refacção o aluno pode ―escutar‖ a fala a partir de um texto,
cena que não necessariamente o presente imediato: o enunciado/solicitado pela professora.
Neste sentido, sua produção poderá ser imprevisível, mas não indeterminada.
Destacamos que imprevisível, aqui, caracteriza-se como imprevisível tanto para o outro —
que não pode antecipar o efeito de sua fala, quanto para a criança, e/ou aluno — que não pode
decidir sobre seu dizer.
Quanto à segunda posição, Lemos (2002) destaca que a criança descola-se da fala do
outro e passa a ser submetida ao funcionamento da língua. Segundo a autora, é na segunda
posição que emergem os erros, as ressignificações; pois nesta posição os enunciados da
criança são cadeias permeáveis a outras cadeias; sendo portanto, possíveis de deslocamentos,
de ressignificações, de sentidos outros.
De acordo com Lemos (2002), nesta posição a criança não é afetada nem pelos
enunciados que produz, nem pelas correções do adulto feitas sobre sua fala. Lemos (op. cit.),
enfatiza ainda que além de a língua figurar como pólo dominante da segunda posição, há,
neste ponto, uma vigência do processo metafórico para além do erro. Desse modo, na segunda
posição, a criança, enquanto sujeito falante, não emerge apenas na relação entre a sua fala e a
fala do outro (como ocorre na primeira posição), mas ―no intervalo entre os significantes que
metaforicamente se substituem, tanto no erro quanto nas sequências paralelísticas‖ (LEMOS,
2002, p. 20). Tais características desta posição são exemplificadas pela autora no seguinte
episodio:
Episódio 7: (brincando com uma boneca)
Eu falo tudo que eu quero
Ela come tudo que eu quero
Ela faz tudo que eu quero
Ela brinca que eu quero
Ela brinca que eu faço
(Mariana 2; 9;28)

44

Tal fato será posto em análise no último capítulo deste trabalho.

65

Neste episódio podemos perceber que, ao contrário do que ocorre na primeira posição,
em que o enunciado da criança funciona como um vestígio metonímico das cadeias pelas
quais o outro a interpreta, na segunda posição, seus enunciados são cadeias passíveis de
deslocamento, em que, o termo metaforicamente evocado incide como uma ―intromissão das
cadeias latentes na cadeia manifesta‖ como em: ela brinca que eu faço (LEMOS, 2002, p.
20).
E, por fim, na terceira posição, a criança passa da condição de interpretada à de
intérprete de sua própria fala e da fala do outro. É nesta posição, segundo Lemos, que
geralmente ocorrem as pausas, as reformulações, as autocorreções; que podem estar
relacionadas ou não, à fala do interlocutor adulto. A autora destaca, no entanto, que, ao
contrário do que preconiza a proposta chomskiana, as autocorreções, a aproximação a um
estado estável de conhecimento ou aparente coincidência da fala da criança com a fala do
outro, nem sempre se constituem como operações metalinguísticas; mas à emergência de um
sujeito que se manifesta entre a ―instância que fala e a instância que escuta.
Desta forma, para a autora, as pausas, reformulações e correções nem sempre ocorrem
onde se faria necessário; não sendo, portanto, previsíveis, como noção de metaconhecimento.
Dito de outra forma, as mudanças, as reformulações ocorridas, revelam muito mais sobre a
subjetivação do que sobre a língua. Assim, o que retorna na fala da criança — a partir da
escuta de sua fala e da fala do outro — poderá ser uma resposta divergente, uma resposta
outra.
Retomando estas três posições, buscaremos uma ressignificação para analisarmos os
textos escritos, em primeira e segunda versões, por alunos ―já escolarizados‖, em que
tentaremos apreender as mudanças ocorridas entre as duas versões a partir de uma concepção
que reconhece o sujeito (criança e ou/adulto) submetido ao funcionamento da língua e
transitando, ora entre uma, ora entre outra posição.
Na proposta de análise da aquisição da linguagem escrita por alunos dos anos finais do
ensino fundamental — sujeitos desta pesquisa — estas posições poderiam estar assim
relacionadas: na 1ª posição a reescrita do aluno estaria alienada à fala da professora; na 2ª
posição, o erro emergiria de uma operação da linguagem sobre a linguagem em que a ―dúvida
da reescrita‖ instaura no aluno uma ―tensão‖ entre o que irá ou não modificar na segunda
versão de seu texto; e por fim, na 3ª posição, o aluno dividido ―entre a instância subjetiva que
fala e a instância subjetiva que escuta de um lugar outro‖, (Lemos, apud Lopes, 2007, p. 05),
conclui a reflexão do seu texto a partir do reconhecimento desta dupla instância.

66

Compreender o funcionamento destas três posições será imprescindível para
buscarmos analisar a partir de que posição o aluno irá escutar as interferências feitas pela
professora na primeira versão de seus textos e, de que forma, esta escuta irá retornar na versão
reescrita; tarefa esta, que nos propomos a realizar no último capítulo deste trabalho, no qual os
dados serão analisados.

3.2.1 – Da ―escuta‖ à escrita: uma tensão permanente

Neste tópico buscaremos compreender a ―tensão‖ que é gerada no momento da
reescrita, a partir da ―escuta‖ que o aluno faz da interferência da professora em seus textos;
ou, dito de outra forma, a partir de Lemos (2002), ―os efeitos da fala do outro sobre o sujeito‖;
ou ainda: os ―efeitos da ―escuta‖ da fala do outro‖. Escuta esta, que, segundo a autora,
repercute sobre a sua própria fala. Desta forma, buscaremos mostrar aqui que, ancorados na
―noção de escuta‖ e nas ―mudanças de posição do sujeito‖ na língua, conforme postula Lemos
(2002), podemos trazer estes conceitos para o processo de aquisição da língua escrita dos
alunos, adolescentes e jovens ― sujeitos desta pesquisa ― em que a interferência da
professora em seus textos (interferência do ―outro‖) irá repercutir (a partir da escuta do aluno)
sobre o que este ―escuta de sua própria escrita e da escrita do outro (professora); o que
acabará por gerar um tensionamento, ou, segundo Lemos (2002), ―um ponto de nevralgia‖, a
partir do qual podem emergir os ―equívocos‖ os ―sentidos outros‖; ou no nosso caso, as
―ocorrências singulares‖ trazidas para análise no último capítulo deste trabalho.
A palavra tensão, segundo a lexicografia, significa estado de tenso; estado em que há
retesamento, ou sensação de retesamento de certos músculos; ou em que se é levado além de
um limite normal de emoção; estado de grande concentração física e/ ou mental...
(FERREIRA 2001, p.667 — grifos nossos). É nesse estado de tensão que concebemos o
sujeito/aluno diante de sua escrita e da necessidade de refazê-la, ressignificá-la, a partir da
interferência do outro; fazendo com que haja, segundo Felipeto (2008, p. 67) ―uma oscilação
entre o olhar que relê e a mão que escreve‖.
Compreendemos que ambos os sujeitos — alunos e professora — estão submetidos a
essa ―oscilação‖; a esse estado de tensão; uma vez que, cabe ao professor a difícil tarefa de
intervir no texto do aluno, visando, ―almejando‖, levá-lo a aprimorar sua produção escrita;
interferência esta que irá depender, conforme já destacamos neste trabalho, da concepção de

67

texto que tem este professor; ou conforme Calil (2000) ―daquilo que faz texto para o
professor‖.
No entanto, gostaríamos de destacar que neste trabalho nos deteremos mais
especificamente na ―escuta‖ que os alunos fazem da interferência do professor e de que forma
esta ―escuta‖ materializa-se no processo de reescritura. Entretanto, conforme exposto desde a
introdução desta pesquisa, não desconsideraremos que o sujeito/professor também encontra-se
submetido ao funcionamento da língua.
Em estudos realizados a respeito da interferência de professores em manuscritos de
alunos dos anos iniciais do ensino fundamental, Calil (s/d) afirma que as formas de
interferência do professor no texto do aluno se estabelecem a partir de dizeres ligados ao
ensino de gramática (ortografia, acentuação, pontuação) e que a configuração imaginária que
aí se impõe ―evoca no professor a crença de que sua interferência no texto do aluno atue de
modo direto sobre a melhoria ou a qualidade do próprio texto, apagando ou minimizando os
efeitos da relação do sujeito com aquilo que escreveu‖, (CALIL, s/d, p. 02). Conforme
abordamos no primeiro tópico deste capítulo, tal crença acaba por ser endossada por teóricos e
pesquisadores que defendem perspectivas interacionistas; o que é ratificado por Grillo (1995)
ao afirmar que o professor enquanto ―cooperador‖ deve ser o desencadeador das reflexões
epilinguísticas que os alunos ainda não desenvolveram. A autora coloca ainda como um dos
objetivos de sua pesquisa, buscar compreender como as intervenções do professor podem
―moldar‖ a escrita dos alunos.
Tal perspectiva acaba por desconsiderar a relação do aluno com sua própria escrita e
os efeitos que esta pode ter sobre ele; ou dito de outro modo, conforme Calil (s/d) ―não
permite tratar aquilo que o aluno escreve como uma peça singular e produto de um processo
de subjetivação‖ (CALIL, s/d, p.02).
Sabemos que a relação do aluno com o processo de reescrita, levando em consideração
as interferências/sugestões e ou/orientações do professor, não ocorre de forma tão linear
quanto costumeiramente se espera; pois, conforme Calil (2000) uma intervenção nem sempre
―terá os mesmos efeitos sobre qualquer sujeito pois ela não determina uma única possibilidade
de ‗escuta‘ e, portanto, de mudança no texto. Assim como cada texto que sofre uma
intervenção depende da ―escuta de quem o lê‖ (CALIL, 2000, p. 38).
Retomando a ―noção de escuta‖, presente nos estudos de Lemos — conforme já
destacado neste trabalho — Calil (2000) afirma que há, nesta noção, um retorno do sujeito,
sempre de uma posição imaginária, sobre algo que lhe causa estranhamento. O autor destaca
também que o professor pode ―escutar‖ problemas no texto do aluno, em função daquilo que

68

ele elege como ―valor de verdade‖. Ou, conforme já destacamos, em função daquilo que ―faz
texto para o professor‖.
O autor destaca ainda, em trabalho posterior (CALIL, 2008), que esta ―escuta‖ — do
aluno (que escreve) do professor (que intervém) e novamente do aluno (que reescreve)
―raramente coincide‖. Não-coincidência esta, que pode ser ratificada — com o dado retirado
do corpus deste trabalho — no exemplo que usamos no primeiro tópico deste capítulo:
ocorrências mijando (1ª versão), migando (2ª versão); em que a professora ―escutou‖ um
problema de ordem semântica — centrando sua interferência neste aspecto (―cuidado com o
uso de certas palavras‖) — e o aluno efetua uma mudança; ―escuta,‖ um problema, de ordem
ortográfica.
Dessa forma, contrapondo-nos à perspectiva defendida por Grillo (1995), que defende
a interferência do professor (numa concepção sociointeracionista) como capaz de ―moldar‖ a
escrita do aluno; corroboramos com Calil (s/d) ao enfatizar que,

Os comentários efetivados pelo professor sobre o texto de seu aluno não garantem,
por si só, sua alteração em uma versão posterior, [...] pois, não se pode apagar que o
retorno do aluno ao seu texto possa sofrer tanto as interferências daquilo que o
professor destacou, quanto daquilo que o próprio texto produz como efeito sobre ele
(CALIL, s/d, p.04)).

Igualmente, reconhecer esta não-linearidade, esta ―oscilação‖ entre o que o professor
orienta/sugere, e o que o aluno escuta, reescreve; torna-se imprescindível para buscamos
compreender a ―tensa‖ e imprevisível relação do aluno com seu texto no processo de escrita–
revisão–reescrita.
Ao ―escutar‖ na fala/escrita do outro, uma interrogação sobre sua fala/escrita, o aluno
— neste processo de tensão — vê-se diante de um ―estranhamento‖, de algo que o interroga,
levando-o muitas vezes, a ―lutar com seu próprio texto‖; com seus dizeres, com sua escrita,
num constante embate com as palavras (suas e do ―outro‖) — neste caso, professora —; com
outros textos, com os sentidos. No entanto, há, entre essa ―escuta‖ e a percepção, a
interrogação do outro sobre sua fala/escrita, o que Felipeto (2008) denomina de ―tempo de
suspensão‖, ou seja, espaço entre a ―percepção‖ do ―erro‖, ―problema‖ e sua escuta. Escuta
que segundo a concepção adotada por este trabalho, caracteriza-se pela resposta que o aluno
dá ao que o interrogou, e que, no entanto, muitas vezes, pode levá-lo ao equívoco, à
emergência de ―ocorrências singulares‖. Ocorrências estas, inferidas na hipótese deste
trabalho, surgidas; emergidas; a partir da ―tensão‖ gerada a partir da forma como a professora
intervém nos textos dos alunos e da ―escuta‖ que estes alunos fazem de tais intervenções.

69

Buscando compreender melhor este ―tempo de suspensão‖; este ―hiato‖ entre o ―erro‖
e sua ―escuta‖; tentaremos relacionar aqui brevemente, as posições subjetivas propostas por
Cláudia Lemos aos ―tempos lógicos‖ de Lacan.45 Para tanto, nos reportamos a Riolfi (2000, p.
91) que traça uma breve descrição do que caracterizaria cada instância deste tempo.
A autora destaca que as instâncias que determinam a modulação deste ―tempo‖ é
lógica e não cronológica. Instâncias estas, que são caracterizadas por:
O instante de olhar – caracterizado pelo momento de uma exclusão lógica realizada
pelo sujeito, com base nos dados sobre um determinado problema, que são anteriores à
formulação de sua própria questão. O sujeito orienta-se em relação a uma
subjetivação do problema, que, posteriormente, pode se cristalizar em hipóteses
autênticas (grifos nossos);
Tempo para compreender: caracteriza-se como um tempo de meditação, no qual o
sujeito objetiva alguma coisa a mais do que os dados do fato. A partir do que vê de
seus semelhantes, o sujeito fez suas deduções (Grifos Nossos);
Momento de concluir: tempo no qual o sujeito conclui um movimento lógico na
decisão de um julgamento (Grifos Nossos).
Relacionando estes ―tempos lógicos‖ às posições subjetivas de Lemos (2002),
poderíamos dizer que, no instante de olhar, assim como na primeira posição, o sujeito vê,
mas não enxerga, ouve, mas não escuta; não descolando, portanto, dos significantes do outro;
já no tempo de compreender, bem com na segunda posição, há uma ―escuta‖ por vir; uma
escuta que ainda não se moveu, mas que brevemente emergirá, gerando seus significados; e,
por fim, no momento de concluir, assim como na terceira posição, a ―escuta‖ materializase fazendo com que ocorra um ―fechamento‖, a definição, a conclusão de um sentido, operado
pelo reconhecimento de uma diferença entre a instância que ―fala‖ e a instância que ―escuta‖.
Remetendo tais conceitos à análise de nossos dados, poderíamos dizer que esse
―tempo de suspensão‖ dar-se-ia entre a 1ª versão dos textos, com interferências da professora
e a reescrita dos alunos; em que, no instante de olhar, o aluno vê-se colado à fala, aos
enunciados da professora; o que faz com que, na reescrita de seus textos, muitas vezes as
modificações sejam apenas meros fragmentos da fala do outro (professora); já no tempo para
compreender, teríamos um sujeito inscrito em seu ―tempo singular‖, que se interroga a
respeito de sua escrita e da intervenção que a professora fez, ficando, desta forma, submetido
aos efeitos da língua, dividido entre o que irá emergir na cadeia manifesta na hora da
reescrita; e por fim, no momento de concluir, a partir do reconhecimento de uma diferença; da
―escuta‖ de algo que lhe provocou um ―estranhamento, o aluno poderá reformular,
ressignificar algo que, de uma forma ou de outra, interrogou-o na primeira versão de seu
45

Lacan,1945.

70

texto; interrogação esta que, enfatizamos, poderá estar relacionada ou não à interferência da
professora; mas que, certamente, será estabelecida a partir da ―escuta‖, da interpretação que
o aluno fizer de sua escrita e da escrita da professora em seus textos. ―Escuta‖ esta, portanto,
que poderá se materializar de forma ―singular‖ na versão reescrita de seus textos.
Singularidade essa sobre a qual nos deteremos a seguir.

3.3 – Reescrita e Singularidade

―Atípicos, anormais, estranhos. Tais são apenas alguns dos nomes com os quais se
costuma caracterizar os erros imprevisíveis, ou seja; aqueles erros que apontam
para a singularidade de um sujeito que fala ou escreve‖ (Felipeto, 2008 — grifos
nossos).

Iniciamos este tópico com a citação acima, para tentarmos situar em que medida se dá
a singularidade dos dados trazidos para análise nesta pesquisa; dados estes, que estamos
chamando de ―ocorrências singulares‖.
Ao se referir aos erros singulares, que denotam a relação do sujeito com a língua,
Felipeto (2008) os caracteriza como atípicos, estranhos, imprevisíveis, e, é a partir desta
caracterização, da ruptura com o previsível, com o esperado, com o coincidente, que
concebemos as ocorrências emergidas da relação escuta/escrita, que se dá no processo de
reescrita dos alunos, a partir das interferências da professora na primeira versão de seus
textos.
Optamos por denominar tais eventos de ―ocorrências‖ e não de ―erro‖ singular porque,
conforme destacado no capítulo introdutório deste trabalho, e, como veremos no capítulo
seguinte, onde analisaremos os dados, nem todas as ―ocorrências‖ analisadas constituem-se
como ―erros‖, mas como ―deslocamentos‖, ―substituições‖, ―sentidos outros‖, advindos da
―escuta‖ singular que os alunos fazem das sugestões e/ ou orientações, escritas pela professora
em seus textos.
Do ponto de vista da lexicografia, o singular é descrito como pertencente ou relativo
a um; especial, raro; contrapondo-se, desta forma, a palavras como plural, comum, genérico,
universal; ou ainda, de acordo com Leite (2000, p. 05) ―o dado singular é visto como o que
resta ou o que falta, irredutível à classificação‖. Já para Abaurre (1997) o singular é tido
como ―aquelas ocorrências únicas que, em sua singularidade, talvez não voltem a repetir-se

71

jamais‖. No entanto, independente do ponto de vista teórico, o singular é sempre concebido
como algo que foge à generalidade, ao regular, ao previsível; e é a partir desta
imprevisibilidade, que o concebemos neste trabalho.
Desta forma, procuraremos encaminhar aqui um breve percurso sobre alguns trabalhos
que têm como objeto o estudo do dado singular, e, em seguida, buscaremos situar em que
sentido estes estudos nos servirão de base para análise.
Em estudos realizados sobre a relevância teórica dos dados singulares, o grupo de
pesquisas coordenado por Abaurre (1997), ancorado no Paradigma Indiciário de Ginzburg46
traz uma importante contribuição aos estudos sobre o dado singular, uma vez que busca
compreender, ―enfrentar‖ o que até então era tomado como ―resto‖, como ―resíduo‖, sendo
por isso, excluído de análise por teorias que se detinham sobre o ―regular‖, sobre o
―homogêneo‖, o ―explicável‖. A esse respeito, a autora destaca que,

Durante um longo período, os estudos e práticas pedagógicas ignoraram o fato de
que os ―erros‖ cometidos pelos aprendizes de escrita/ leitura eram, na verdade,
preciosos indícios de um processo em curso de aquisição, de representação escrita da
linguagem, registros dos momentos em que a criança torna evidente a manipulação
que faz da própria linguagem. (ABAURRE 1997, p.16)

Assim, o grupo coordenado pela autora debruça-se a buscar compreender, a partir dos
―indícios‖, das ―pistas‖, deixadas pela criança em fase de aquisição da linguagem, os ―traços‖,
os ―vestígios‖ singulares que emergem em sua escrita. Ratificando a relevância desta análise,
Abaurre destaca:

Acreditamos que os dados da escrita inicial, por sua frequente singularidade, são
importantes indícios do processo geral através do qual se vai continuamente
constituindo e modificando a complexa relação entre o sujeito e a linguagem.
Acreditamos também que, em última análise, pelo fato de darem uma maior
visibilidade a alguns aspectos desse processo, esses dados podem contribuir de
forma significativa, para uma discussão mais profícua, da natureza, da relação
sujeito/ linguagem no âmbito da teoria lingüística‖ (ABAURRE, 1997, p. 15).

A autora

busca

evidenciar

os

―traços‖

de singularidade

deixados

pelos

alunos/escreventes em alguns episódios de refacção textual, a este respeito, Abaurre (1997)
destaca que, ―por trás do trabalho de modificação de algo anteriormente escrito sob forma
diversa, escondem-se frequentemente motivações, as mais variadas, reveladoras das
46

Conforme Abaurre (1997), o paradigma Indiciário de Ginzburg está fundado no modelo epistemológico que
tem como objeto de análise ―o episódico‖, o ―detalhe‖, o ―resíduo‖ enfim, o ―singular‖; em que os ―sinais‖, os
indícios são tomados como dados privilegiados.

72

singularidades dos sujeitos e da relação por eles estabelecidas com a linguagem‖ (Idem, p. 24
— grifos nossos).
Em sua tese de doutoramento, na qual discorre sobre o erro ortográfico singular, Lopes
(2005) questiona essa noção de motivação, exposta por Abaurre (1997), ao afirmar que tal
noção ancora-se na teoria de que a explicação dada pela autora confirma a aquisição da
linguagem como determinada por uma ordem psicológica, visando apenas atender a uma
necessidade intelectual ou afetiva e até fisiológica, de modificação do organismo; destacando
ainda, que esta ordem psicológica estabelece uma ligação entre ocorrência singular e sujeito
singular. Ligação esta, segundo Felipeto (apud Lopes, 2005) acaba por:

[...] esbarrar em um impasse insolúvel culminando por estancar a própria explicação,
de modo que todo efeito produzido sobre aquilo que foi escrito e seu apagamento,
permanece ancorado em uma esfera imaginária em que a empiria ofusca os
movimentos da própria língua e dos discursos nas suas relações constitutivas com o
sujeito (LOPES, 2005, p.80).

Podemos perceber, de fato, que, nas análises que realiza, Abaurre mesmo se propondo
a analisar os dados singulares produzidos por alunos/escreventes nos episódios de refacção
textual, nos mostra sempre uma aluno que ―manipula conscientemente‖ a linguagem,
movido por motivações diversas.
Assim, palavras como reflexão, conhecimento internalizado e manipulação, fazemse constantemente presentes nas análises realizadas pela autora; o que pode ser ratificado com
a seguinte assertiva:

A contemplação da forma escrita faz com que o sujeito passe a refletir sobre a
própria linguagem, chegando, muitas vezes, a manipulá-la conscientemente, de
uma maneira diferente da maneira pela qual manipula a própria fala. A escrita é,
assim, um espaço a mais, importantíssimo; de manifestação da singularidade dos
sujeitos (ABAURRE 1997, p. 23 — grifos nossos).

Desta forma, apesar de reconhecermos a importante contribuição que os trabalhos
desenvolvidos pelo grupo coordenado por Abaurre têm dado em tomar para análise os dados
singulares, pensamos que, nem sempre estes dados, estas ―ocorrências singulares‖ emergem
de uma reflexão, de uma manipulação consciente do sujeito sobre a linguagem; especialmente
em se tratando dos processos de reescritura de textos, nos quais não podemos perder de vista
os efeitos das relações entre aluno, professor e ensino de língua portuguesa e, por conseguinte,
a forma como o professor trabalha a relação do aluno com o texto, a forma como o professor
intervém nos textos dos alunos e a escuta que os alunos fazem da interferência do professor,

73

que poderá fazer emergir ―ocorrências‖ e/ou ―erros‖ ortográficos singulares, denotando, muito
mais uma ―escuta‖ singular da fala do ―outro‖ ou o submetimento do sujeito aos efeitos da
língua, que um sujeito que, opera, manipula e escolhe conscientemente a linguagem a ser
utilizada.
Assim sendo, corroboramos com Lopes (2005, p. 73) ao afirmar que

[...] o sujeito que produz o erro singular não o produz por determinação própria mas
pelo seu submetimento ao funcionamento da língua. É certo que, nesse processo,
estão imbricadas as subjetividades do aluno produtor e do pesquisador analista, no
entanto, o lugar onde o erro emerge é o lugar da ―brecha‖, da ―quebra‖ do todo, em
que o real da língua se mostra.

O termo real da língua, oriundo da psicanálise lacaniana, foi retomado na linguística,
sobretudo por Jean Claude Milner. Em ―O amor da Língua‖, (MILNER,1978), o autor define
este conceito como uma série de pontos do impossível, marcada pelo não-todo; por um lugar
onde se fala do que não se pode falar. Esse lugar é a alíngua, ou o real da língua, o
inconsciente.
O real, que é da ordem da língua, se opõe à realidade, que é da ordem social, prática. O
sintoma mais imediato do real é um ―impossível‖ inscrito na ordem própria da língua; língua
esta que é afetada pelo real, uma vez que, quando este aparece, provoca o equívoco, o
estranhamento. Dito de outro modo, ―as palavras faltam‖, o que remete a uma idéia de
ausência, defeito, imperfeição, falta.
Compreendemos que reconhecer na língua a existência desse lugar singular, que
admite a falta e a torna constitutiva da estrutura, é imprescindível para uma concepção de
língua afetada pelo real e concebida, conforme postula Milner ―como um modo singular de
produzir equívoco‖.47 Ou ainda, nas palavras de Lopes (2005) ―É a língua consagrada ao
equívoco pela alíngua, que desestratifica os estratos gramaticais e as descrições lingüísticas e
que confunde as sistematicidades entre som/sentido, menção/uso, escrita/representação‖,
ao que acrescentamos [escuta/escrita]. Assim, continua a autora, ―a língua seria sempre lugar
do equívoco, do singular, do heterogêneo‖ (Lopes, 2005, p.15, grifos nossos).
Partindo desta concepção de língua como lugar singular de produzir equívoco e da
assertiva postulada por Milner (1987) de que ―a palavra em si mesma não vai em todos os
sentidos‖; pois, em matéria de língua ―tudo não se diz‖, é que buscaremos no último capítulo,
compreender os equívocos produzidos entre a fala/escrita do outro (professora) e a escuta dos
alunos/escreventes, nos processos de reescrita de textos.
47

Jean Claude Milner (1987, p. 15).

74

Passemos a seguir para as análises dos dados que formam o corpus desta pesquisa.

75

CAPITULO 04

O que pode ser visto nos os dados
“O dado singular é efêmero, furtivo, não
está autorizado a permanecer em cena.”
(Nina Virgínia de Araújo Leite)

Este capítulo será destinado às análises dos dados ―capturados‖ para esta pesquisa;
dados estes que serão analisados à luz dos pressupostos teóricos expostos no segundo e
terceiro capítulo deste trabalho.
Serão apresentados três manuscritos (dois do sexto e um do nono ano) em primeira e
segunda versão (versão reescrita), em que buscaremos compreender e/ou apreender as
mudanças ocorridas entre as duas versões, a partir da ―escuta‖ que os alunos fizeram das
interferências da professora nas primeiras versões de seus textos.
Metodologicamente cada análise será apresentada da seguinte forma:

Quadro V
1. Identificação
1.1
1.2
1.3
1.4
1.5
1.6

Título
Autor
Idade
Série
Gênero
Data da Produção

2. Descrição da
situação de produção
e reescrita dos textos
2.1- 1ª versão
2.2- versão Reescrita

3. Transcrição
do manuscrito
3.1- 1ª versão
3.2- 2ª versão

4. As interferências
da professora

5. A escuta
dos alunos
5.1- 2ª versão

Nos contatos prévios que mantivemos com a professora, explicamos os objetivos da
pesquisa e informamos que necessitaríamos acompanhar durante três meses (abril, maio e
junho) — uma vez por semana — as aulas de Língua Portuguesa, nas quais especificamente
nestes dias, deveriam ser desenvolvidas atividades de produção textual (escrita e reescrita).
Combinamos também que, em uma semana acompanharíamos o desenvolvimento das
atividades em uma turma do 6º ano e na outra em uma turma do 9º ano. Em comum acordo
com a professora, selecionamos duas turmas nas quais as aulas eram geminadas, ou seja, duas
aulas juntas — no 6º ano, das 20:40 às 22:20 e no 9° ano das 19:00 às 20:40 — o que
viabilizaria melhor o desenvolvimento das atividades, uma vez que, em uma aula de 50

76

minutos, dificilmente seria possível concluir uma atividade de produção de texto;
especialmente no turno noturno, onde nem todos os alunos conseguem chegar à escola
pontualmente às 19:00 horas; pois a maioria trabalha durante o dia e vai direto do trabalho
para a escola.
Quanto à nossa presença nas salas de aula, não tivemos nenhum problema, uma vez
que, por também trabalharmos na mesma escola — mesmo em um turno diferente — muitos
alunos já nos conheciam.48 Explicamos às turmas que estávamos ali devido a um trabalho da
universidade e que precisaríamos assistir a algumas aulas de produção de textos; dissemos
também que alguns textos poderiam ser selecionados para serem apresentados neste trabalho.
Todos ficaram muito empolgados e nos aceitaram muito bem. No entanto, nossa participação
nas aulas restringia-se apenas à observação do desenvolvimento das atividades, com registro
escrito em nosso diário de campo, para subsídio nas análises.
As propostas das atividades de produção desenvolvidas foram sugeridas pela própria
professora, uma vez que já havia trabalhado textos narrativos e descritivos nas turmas dos
sextos anos e estava desenvolvendo na escola um projeto de produção de história em
quadrinhos (HQ) do 6º ao 9º ano. Quanto ao 9º ano, além dos tipos acima citados, havia
trabalhado também o texto dissertativo.
Em vista do exposto e objetivando não interferirmos no planejamento da professora,
combinamos que no 6º ano seriam trabalhadas duas atividades de produção de histórias em
quadrinhos e um texto narrativo a partir de uma gravura; enquanto que no 9º ano seria
trabalhada uma proposta de história em quadrinhos e dois textos dissertativos. Quanto aos
textos trazidos para análise, a escolha deveu-se claro, ao caráter singular que cada um
apresenta e que muito nos surpreendeu. Enfim, fomos ―capturados‖ pela singularidade
presente em cada um.

48

Destacamos, no entanto que, mesmo trabalhando na mesma escola, não conhecíamos a professora antes de
iniciarmos a pesquisa, uma vez que trabalhávamos em turnos distintos; a sugestão para que as observações
ocorressem nas turmas desta, nos foi dada pela direção da escola; pois havíamos informado que necessitaríamos
de uma professora que já acompanhasse alguma turma há pelo menos três anos, critério este, já justificado na
introdução deste trabalho. Quanto aos alunos, conhecíamos alguns por já terem sido nossos alunos no período
diurno e outros eram pais de alguns de nossos alunos do sexto ano no período matutino.

77

4.1. Texto 01- A singularidade da escuta nas ocorrências ―mijando/migando‖

Título: O banheiro
Autores: Edmilson e Pedro49
Idades: 14 e 15 anos respectivamente
Série: 6º ano
Gênero: História em quadrinhos
Primeira versão: produzida em 12 de abril de 2007
Segunda versão: produzida em 26 de abril de 2007

4.1.1 Descrição da situação de produção e reescrita do texto (1ª versão)

A atividade proposta pela professora surgiu após algumas aulas trabalhando com a
turma o gênero histórias em quadrinhos. A professora nos informou que fora trabalhada toda a
estrutura das histórias em quadrinhos, alguns ―gibis‖ foram trazidos para a sala de aula e lidos
pelos alunos e que, por fim, no livro didático de Língua Portuguesa, adotado pela escola50 e
utilizado pelos alunos do 6º ano, havia um capítulo inteiro que tratava desse gênero. No
entanto, esta seria, segundo a professora, a primeira vez que solicitava aos alunos que
produzissem uma história em quadrinhos.
Quinta-feira, 12 de abril de 2007, ao chegar na sala de aula, a professora solicita aos
alunos que se sentem em duplas e informa-lhes que naquele dia iriam construir uma história
em quadrinhos, com temas livres para, posteriormente, serem expostas no mural da escola.
Comunica-lhes ainda que após ―corrigir‖ a primeira versão iria devolver-lhes os textos para
que fizessem as modificações necessárias, pois, como os trabalhos seriam expostos no mural,
não deveriam conter ―erros‖.
Ao enunciar suas instruções, a professora proferiu a seguinte consigna: ―vocês devem
produzir uma história em quadrinhos bem criativa. Caprichem. Ah, não esqueçam de ilustrar
suas histórias, tá?‖. Nesse dia havia na sala de aula 26 alunos, o que daria para formar 13
49

Utilizo o primeiro nome dos autores por entender que, mesmo tratando-se dos nomes originais, não implicam
em identificação das pessoas pela generalidade que expressa e por não ter identificado, da mesma forma, nem a
professora nem a instituição de ensino pesquisada.
50
Trata-se do livro ―Português Linguagens‖ de William Roberto Cereja e Tereza Cochar Magalhães.

78

duplas, no entanto, alguns alunos optaram por fazer seus textos sozinhos, a professora não se
opôs. Enquanto os alunos escreviam, a professora circulava pela turma e tirava algumas
dúvidas, quando solicitada. Por volta das 22:00 horas a atividade foi concluída e a professora
recolheu os textos.
Ao sair da sala a professora nos perguntou se havia algum aspecto em particular que
gostaríamos que ela observasse ou destacasse nos textos. Como não tínhamos nenhuma
intenção em direcionar o modo de intervenção da professora, dissemos que não; que ela
fizesse como de costume; como sempre ―corrigira‖ os outros textos produzidos pelos alunos.
Na semana seguinte, dia 19 de abril, a professora nos entrega os textos já com as
intervenções, para que pudéssemos fotocopiar e devolver-lhe para a aplicação da reescrita. A
seguir transcrevemos a primeira versão do manuscrito produzido pelos alunos Edmilson e
Pedro e trazido para análise neste trabalho.

79

4.1.2 Transcrição do manuscrito

1ª versão

O Banheiro
1. Mãe: João meu filho venha logo já tamo atrazado*
2. [Placa: ―Baheiro‖] João: já vo mãe to mijando!
3. Mãe: Meu Deus. Esse minino não tem jeito
4. [Placa: ―Baheiro‖ sem falas (no desenho vemos a figura de João tentando
abrir a porta do banheiro)]
5. [Placa: ―Baheiro‖ sem falas]
6. meia hora depois...
Mãe: João isso não é pusivel vo embora, você ta mijando a mais de uma
hora e não sai daí.
7. João: Oh, mãe to trancado no banheiro e não consigo sai.
Fim
* Cada número à esquerda indica um quadrinho da história.

Segundo Felipeto (2008: p. 89), ―nas séries iniciais do processo de escolarização
formal, o ensino da escrita assenta-se formalmente sobre aspectos gráficos, fônicos e
convenções ortográficas‖. A autora destaca ainda que o modo como o professor trabalha a
relação do aluno com o texto, irá refletir-se na forma como este mesmo aluno trabalhará com
a escrita nos momentos de produzir seus textos.
Diante de um texto como este, o que dizer aos alunos? Que tipo de sugestões e/ou
orientações a professora poderia dar-lhes objetivando levá-los a melhorar seu texto? Que
postura assumirá a professora no momento de intervir neste texto? Que aspectos deveriam ser
priorizados: os formais (ligados à ortografia, pontuação, acentuação) ou os lingüísticos
discursivos (relacionados à produção de efeitos de sentido)?
Calil (2000, p. 32), destaca que, na realização da intervenção (que é necessariamente
uma interpretação), optar por um aspecto ou outro irá depender tanto de um imaginário
constituído em torno do que ―faz texto‖ para o professor, quanto da ―escuta‖ deste professor
diante do texto do aluno.
Vejamos então como a professora ―escutou‖ este texto.

80

4.1.3 As interferências da professora

A seguir apresentamos as intervenções feitas por escrito pela professora neste texto.
Tais intervenções foram feitas diretamente no corpo do texto, no qual a professora ―puxava‖
setas, dando sugestões, instruções e/ou orientações. Vejamos:
Quadrinho nº 1

Quadrinho nº 2

No Quadrinho nº 1, destaque para as palavras Tamo (estamos) e atrazado (atrasados).
Orientação: ―olha a ortografia‖.
No quadrinho nº 2, destaque para as palavras Tó (estou) — apenas sublinhada; sem
sugestão; e para a palavra mijando, esta circulada e com a seguinte inscrição: ―cuidado com o
emprego de certas palavras [grifo nosso]‖.
Quadrinho nº 3

Destaque para as palavras minino (menino), sublinhada — sem sugestões e/ou
orientações.

81

Quadrinhos nº 4 e 5

Nos dois quadrinhos acima destaque para a palavra baheiro (banheiro) — circulada e
com uma seta para cima com a inscrição ―atenção‖.

Quadrinhos nº 6

No quadrinho nº 6, destaque para as palavras baheiro (banheiro), pusível (possível) —
sublinhadas e, mais uma vez, mijando — circulada. Todas sem qualquer tipo de orientação.
Quadrinhos nº 7

82

E por fim o último quadrinho aparece apenas com a palavra sai (sair) — sublinhada,
mas também sem apresentar nenhuma sugestão e, no canto direito da folha, a última
orientação da professora ―Meninos, procurem usar corretamente a pontuação estudada
[grifo nosso]‖.
Apesar do foco de análise neste trabalho ser a ―escuta‖ que os alunos fizeram das
interferências da professora, tecemos aqui algumas considerações a respeito da ―escuta‖ que a
professora fez deste texto.
Como podemos perceber, a professora centra suas intervenções levando em
consideração apenas o caráter normativo da língua, destacando todas as palavras que, segundo
sua ―escuta‖, apresentam algum tipo de ―problema‖. Conforme vimos no capítulo anterior,
Serafini (1989) denomina este tipo de correção de indicativa, na qual todos os ―erros‖ são
destacados, ficando o aluno com a difícil tarefa de ―adivinhar‖ o que errou, para refazer,
reorganizar seu texto.
Segundo Calil (s/d, p.02), estas formas de interferência ―evocam no professor a crença
de que sua intervenção no texto do aluno irá atuar de modo direto sobre a melhoria ou
qualidade do próprio texto, apagando ou minimizando os efeitos da relação do sujeito com
aquilo que escreveu‖. O autor destaca ainda que esta forma de ―ler‖ o texto indica uma
posição imaginária que está significando o que faz texto para o professor. Desta forma,
podemos inferir que ―fazer texto‖ para esta professora constitui-se muito mais em seguir à
risca às normas da língua — tais como acentuação, pontuação e ortografia — que em
desenvolver os aspectos linguísticosdiscursivos. Ou, nas palavras de Góes (1992), as
intervenções limitam-se aos aspectos de superfície, não afetando aspectos de base.
Não queremos defender que buscar levar o aluno a refletir sobre aspectos normativos
da língua escrita, como ortografia, pontuação e acentuação, dentre outros, não seja necessário;
entretanto, compreendemos que ―fazer texto‖ constitui-se muito mais que um conjunto de
enunciados escritos de forma ―correta‖. Destacamos que aspectos como coesão, coerência,
completude dos enunciados e adequação ao gênero proposto, são aspectos que não podem, em
hipótese alguma, ser desconsiderados na constituição de um texto.
No entanto, conforme percebemos pelas interferências feitas no texto dos alunos, estes
aspectos não foram destacados como positivos, mesmo que se tenham feito presentes; uma
vez que, como podemos perceber no manuscrito, a história narrada pela dupla de alunos,
mesmo apresentando problemas de ortografia, pontuação e acentuação, não deixa de atender
ao solicitado, pois segue uma sequência lógica e apresenta uma linguagem que se adéqua ao
gênero proposto; uma vez que, nas histórias em quadrinhos é comum o uso de uma linguagem

83

mais coloquial, e, muitas vezes, termos mais comuns na linguagem oral acabam migrando
para este tipo de gênero. O que acabou ocorrendo no texto da dupla de alunos, em expressões
como vo (linhas 2 e 6), to (linhas 2 e 7), ta (linha 6) e tamo (linha 1).
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (Brasil, 1998, p.
77), ―o olhar do educador para o texto do aluno precisa deslocar-se da correção para a
interpretação; do levantamento das faltas cometidas para a apreciação dos recursos que o
aluno já consegue manobrar‖. Neste sentido pensamos que seria necessário, além do destaque
dos aspectos que deveriam ser modificados, por apresentarem algum ―problema‖, que também
tivessem sido destacados os aspectos positivos que os alunos conseguiram externar em seu
texto.
No entanto, conforme já destacamos, enfatizar estes aspectos ou não, irá depender
daquilo que ―faz texto‖ para a professora. E intervenções como: ―olha a ortografia‖, ―cuidado
com o uso de certas palavras‖ e ―procurem usar corretamente a pontuação estudada‖, nos
mostram o que é ―fazer texto‖ para esta professora. E será a partir de agora que buscaremos
compreender a ―escuta‖ que os alunos fizeram destas intervenções e os efeitos que tais
intervenções causaram na reescrita do texto destes alunos.

4.1.4- A ―escuta‖ dos alunos (2ª versão)

Quinta-feira, 26 de abril de 2007. Ao entrar na sala de aula a professora solicita que os
alunos se sentem com o mesmo parceiro com quem produziram a história em quadrinhos na
aula anterior, distribui a primeira versão dos textos para as duplas (alguns alunos
reescreveram sozinhos, pois alguns parceiros faltaram nesse dia) e escreve no quadro a
seguinte instrução: ―Reescreva sua história, observando as sugestões dadas. Leia todas as
orientações com atenção e capriche!‖ Após distribuir os textos, a professora faz uma última
recomendação: É para vocês reescreverem o texto consertando o que foi marcado, não é
pra inventar outra história não, tá?‖

84

Eis a segunda versão do texto de Edmilson e Pedro

Transcrição do manuscrito - 2ª versão

O Sanitario
1.
2.
3.
4.

Mãe: João meu filho venha logo já tô atrasada
[Placa: ―Sanitario‖] João: já vô mãe tô migando!
Mãe: Meu Deus. Esse minino não tem jeito
[Placa: ―Sanitario‖ sem falas (no desenho vemos a figura de João tentando
abrir a porta do banheiro)]
5. [Placa: ―Sanitario‖ sem falas]
6. meia hora depois...
Mãe: João isso já é de mais vo embora, você ta migando a mais de 1 hora e
não sai daí.
7. João: Oh, mãe tô trancado no sanitario e não consigo abri a porta.
Fim

85

Ao analisarmos esta segunda versão do texto, podemos observar que as intervenções
da professora, acostadas ao texto dos alunos, apesar de terem provocado uma ―escuta‖ em
Edmilson e Pedro, pouco contribuíram para a melhoria dos aspectos formais ―esperados‖ pela
professora, uma vez que, na reescrita, a ―escuta‖ dos meninos, acabou deslocando as
mudanças, as ressignificações para outros lugares, ou seja, houve escuta, mas uma escuta
não-coincidente (LEMOS, 2002). Conforme podemos ver no quadro a seguir:

Quadro VI
1ª versão

Intervenção da professora

2ª versão

tamo (linha 1)

Olha a ortografia

tô (linha 1)

vo (linha 2)

Atenção

vô (linha 2)

Baheiro (linha 2)

Atenção

Sanitario (linha 2)

mijando (linha 2)
...isso não é pusivel (linha 6)

Cuidado com o uso de certas
palavras
Sublinha a palavra pusivel

migando (linha 2)
...isso já é de mais (linha 6)

Concordamos com Calil (s/d), quando afirma que ―os modos de interferência do
professor depende não só daquilo que efetivamente está escrito no texto do aluno e de suas
condições de produção, mas também daquilo que o professor e o aluno ‗escutam‘ como
problema, o que raramente coincide‖, (CALIL, s/d, p.03).
Assim, onde a professora ―escuta‖ problemas ortográficos — tamo (estamos) e vo
(vou) — marcando a emergência da oralidade na escrita, os alunos ―escutam‖ problemas de
ordem fonológica, acrescentando, em vista desta escuta, o acento circunflexo à forma vo (vô)
e substituindo tamo por tô. Em outro momento do texto, no qual a professora destaca a
palavra baheiro, esperando provavelmente que houvesse uma mudança ortográfica
(banheiro); os alunos ―escutam‖ um problema de ordem lexical, emergindo daí a palavra
sanitario. Tais eventos nos mostram um aluno — conforme preconiza Lemos (2002) —
―dividido entre a instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de um lugar
outro‖. Dito de outro modo, um aluno dividido entre o que ouve — o dizer do
outro/professora — e o que ―escuta‖, ou ainda, como interpreta tal dizer. O que acaba por
levar ambos os sujeitos, conforme vimos, a escutas não- coincidentes.
Em outros trechos do texto reescrito, temos o que Lemos denomina de
impermeabilidade da escuta, ou seja, não há nenhuma escuta por parte dos alunos do que a
professora destaca como possíveis ―erros‖; não ocorrendo desta forma, nenhuma

86

ressignificação destas palavras no processo de reescritura; conforme nos mostra o quadro a
seguir:

Quadro VII
1ª versão

Intervenção da professora

2ª versão

tô (linha 2)

Olha a ortografia

tô (linha 2)

minino (linha 3)

Sublinha a palavra

minino (linha 3)

vo (linha 6)

Sublinha a palavra

vo (linha 6)

Conforme discorremos no terceiro capítulo deste trabalho, Lemos (2002) inscreveria
esta dupla de alunos, neste momento da não-escuta, à primeira posição, na qual a criança não
escuta o estranhamento vindo do outro no momento inicial de sua fala. Ou ainda, segundo
Felipeto (2008, p. 23) ―a criança não escuta, permanecendo impermeável e não identifica
qual enunciado seu provocou estranhamento ao outro‖.
Ainda segundo Felipeto (2008) é o sentimento de estranhamento que provoca a
―escuta‖, em uma relação entre sujeito, língua e sentido. Dito de outra forma, o
estranhamento é concebido como algo que interroga o aluno, colocando-o em um ―tempo
de suspensão‖ entre o erro e sua escuta. No entanto, este estranhamento ―demanda um
retorno sobre o dito‖ (FELIPETO, 2008), quando algo se produz como diferença na língua já
estabilizada.
Em assim sendo, podemos inferir porque as intervenções da professora nas palavras to
(estou), minino (menino) vo (vou) não causaram nenhuma escuta por parte dos alunos, uma
vez que tais palavras revelam a interface entre o oral e o escrito, ou ainda, segundo Calil (s/d)
―aquilo que enunciam tem como potencialidade a possibilidade de ser escrito‖. Desta forma,
nos parece claro porque não houve ―estranhamento‖ de Edmilson e Pedro perante aquelas
palavras; mesmo que tenham sido destacadas pela professora; pois, tais palavras, para dois
alunos adolescentes — que vivem na periferia e convivem, na maior parte de seu tempo, com
uma linguagem informal, coloquial — já se encontram estabilizadas, não lhes causando
portanto, nenhuma diferença, nenhum estranhamento; daí a impermeabilidade à correção dos
―erros‖ destacados pela professora.
No entanto, como nosso foco neste trabalho é a escuta que singulariza o processo de
reescritura, buscaremos a seguir tecer alguns comentários e empreender uma análise de uma
ocorrência na versão reescrita do texto de Edmilson e Pedro que, do nosso ponto de vista,

87

tomou uma direção pouco previsível; ou seja, ―ocorrências singulares‖ que dificilmente se
repetirão.

A singularidade da escuta nas ocorrências mijando x migando

Ao nos depararmos com a primeira versão desse manuscrito, chamou a atenção o
destaque da professora para a palavra mijando (linha 2), uma das poucas palavras
ortograficamente grafadas dentro das ―normas‖ gramaticais, conforme pode ser ratificado a
partir do seu significado pela lexicografia (FERREIRA, 1997): 1- mijar — verbo intransitivo,
urinar; mijada — ação de mijar. 2- a porção de urina de uma micção. Em não havendo
nenhum erro com a palavra acima destacada, o que teria levado a professora a, em sua
interferência alertar os alunos para o ―cuidado com o uso de certas palavras‖?
Em pesquisas realizadas a respeito da interferência didática em manuscritos escolares,
Calil (s/d) destaca que ―a escuta da professora está submetida a um conjunto de valores
que legitima um texto escrito por um aluno‖. Valores estes, podemos afirmar, que estão muito
mais ligados a questões sociais, históricas e/ou culturais (mais uma vez ratificando o ―que faz
Texto‖ para a professora), que a questões educativas e/ou grafológicas, uma vez que,
conforme já destacamos em momento anterior, a palavra mijando não foge do contexto do
texto produzido pelos alunos, pois de acordo com o gênero solicitado, com o tema livre e um
certo tom de comicidade dado pelos alunos à história, a referida palavra, em nenhum
momento quebra com o enredo da trama, nem tampouco infringe as normas da língua escrita.
Temos desta forma, uma professora também submetida a um funcionamento
linguísticodiscursivo — guiado por crenças e valores que legitimam o discurso pedagógico —
o que a leva a ―escutar‖ no texto do aluno um problema que, de fato, não existe. No entanto,
conforme vimos na segunda versão do texto, a ―escuta‖ que Edmilson e Pedro fizeram do
dizer da professora, levou-os, de fato, à emergência de um erro ortográfico, ou conforme
denominamos neste trabalho, à emergência de uma ocorrência singular.
Tentemos, a partir de agora, compreender a ―escuta‖ que a dupla de alunos fez do
seguinte enunciado: ―cuidado com o uso de certas palavras‖.
Conforme visto no segundo capítulo deste trabalho, para Saussure ―tudo num estado
de língua se baseia em relações‖. Relações estas, que o linguista genebrino denomina de
Sintagmáticas e Associativas.

88

As relações sintagmáticas baseiam-se no caráter linear da língua, que exclui a
possibilidade de se pronunciar dois elementos ao mesmo tempo; desta forma, um termo fixase pela exclusão do que o antecede ou do que o precede. Estas relações ocorrem, segundo
Saussure ―in praesentia‖, e manifesta-se em termos igualmente presentes numa série efetiva.
Outra característica deste tipo de relação é a limitação imposta pelo significado da mensagem
e, acrescentamos, pela própria possibilidade de combinação do sistema linguístico. Como
exemplo de tal característica, poderíamos supor, no nível lexical, o verbo Pensar, no qual a
capacidade de combinação de um sujeito para tal, no campo sintático é restrita; uma vez que,
a capacidade de pensar é inerente apenas ao ser humano. Desta forma, jamais poderíamos
supor uma construção sintática do tipo ―o livro pensa‖ ou o ―gato pensa‖. Da mesma maneira,
no campo dos morfemas, por exemplo, se pensarmos na construção Pr/ /to, a primeira
possibilidade de combinação que emergirá será uma vogal, uma vez que, em nosso sistema
lingüístico (língua portuguesa) não temos construções do tipo C+C+C (consoante +
consoante + consoante).
Quanto às Relações Associativas ou Paradigmáticas, Saussure destaca que as
mesmas, ao contrário das Sintagmáticas, não têm por base a extensão, a contiguidade, mas, a
similitude, e sua sede está no cérebro do falante; por isso o linguista afirma que as mesmas
ocorrem ―in absentia‖, fazendo parte, segundo o autor ―desse tesouro interior que constitui a
língua de cada indivíduo‖ (CLG, p.143). São elementos que se encontram na nossa memória
de falante, numa série que Saussure batizou de ―mnemônica virtual‖.
Este ―banco de reservas da língua‖, segundo Borba apud Carvalho (2004) pode vir à
tona sempre que se busque selecionar um termo que mantenha com o termo manifesto
qualquer associação, pois, segundo Saussure (CLG, p.146) ―uma palavra qualquer pode
sempre evocar tudo quanto seja susceptível de ser-lhe associado de uma maneira ou de outra‖.
O autor destaca desta forma, a característica indeterminada de seleção de elementos de uma
série associativa; pois conforme afirma ―um termo dado é como o centro de uma construção,
o ponto para onde convergem outros termos coordenados cuja soma é indefinida‖. Dito de
outro modo, é impossível precisar a quantidade de termos latentes, ―in absentia”, que podem
emergir na cadeia manifesta de cada falante.
São estes conceitos saussureanos, reelaborados por Jakobson (1975) à luz da metáfora
e da metonímia, que irão nos ajudar a compreender a escuta que os alunos fizeram da
intervenção da professora.
Segundo Jakobson (1975) todos os atos linguísticos se baseiam na capacidade de
combinação e seleção.

89

Ao se depararem, na primeira versão de seu texto, com a palavra mijando, destacada
pela professora e com uma inscrição que sugeria ―erro‖, uso inadequado de tal palavra, os
alunos ao invés de ―escutarem‖ um problema de ordem lexical, o que talvez os levaria a
selecionarem (como fizeram com ―baheiro‖ e ―pusivel‖) uma palavra similar — processo
metafórico — o que provavelmente faria com que emergissem palavras ou expressões como
―urinar‖ou ―fazer xixi‖ e assim ―satisfazer‖ a ―escuta‖ da professora, Edmilson e Pedro
deslocam sua ―escuta‖ para outro lugar — escuta não-coincidente — e, submetidos ao
funcionamento da língua (inscritos segundo Lemos (2002) na segunda posição, na qual a
língua age sobre o sujeito), deixam emergir a cadeia sintagmática — processo metonímico
— recorrendo às informações que possuem quanto à grafia de palavras com o grupo de
morfemas J/G (opções disponíveis naquele episódio) e, como a grafia com J (mijando) já
havia sido destacada negativamente pela professora, a única forma de combinação possível
naquele momento — dada, conforme vimos, a limitação de combinações da cadeia
sintagmática — seria a forma com G (migando) que, embasada numa relação de
contiguidade, faz vir à tona possíveis combinações de letras outrora estudadas pelos dois
alunos.
No entanto, nesta relação/combinação (j/g) sabemos que não há nenhuma relação
fonética quando acostadas à vogal (a). E que, apesar da previsibilidade de sua emergência,
devido inclusive a outras formas de combinações semelhantes, presentes em nosso sistema
linguístico (x/ch; s/z; ç/c/ss) que na maioria dos casos possuem semelhanças fonéticas
acostadas a todas as vogais, a exemplo de xale / chuva; limpeza / mesa; carroço / passo; as
letras J/G apresentam semelhanças fonéticas apenas quando acostadas às vogais e e i, a
exemplo de jerimum / gelado; jiló / gigante, dentre outros; com as demais vogais no entanto,
estas letras não apresentam qualquer relação fonológica.
No entanto, como no caso do texto escrito pelos alunos, a mudança ocorrida não é da
ordem da fala (pois supomos que em nenhum momento, os alunos conscientemente acharam
que poderiam falar ―migando‖) mas sim da escrita, a emergência de g na cadeia manifesta é
legitimada pela concorrência de outras cadeias latentes, conforme vimos no parágrafo
anterior.
Pelo exposto, percebemos que a ―escuta‖ que a professora fez da palavra mijando e a
referência relacionada a ela ―cuidado com o uso de certas palavras‖, acabou por produzir
um equivoco na escuta/interpretação de Edmilson e Pedro. Desta forma, o que, na perspectiva
da professora era previsível — substituição metafórica/similaridade semântica — acabou

90

deslocando-se para a cadeia sintagmática, gerando uma forma irregular, imprevisível; não
utilizada em conformidade com as normas ortográficas da língua portuguesa.
Diríamos, portanto, que a interferência da professora fez efeito onde não se esperava51,
marcando, desta forma, a relação imprevisível, ―tensa‖, entre aquele que fala (professora) e
aquele que escuta (alunos), ―de um lugar outro‖ (LEMOS, 2002). Lugar este, segundo Calil
(s/d) que ―pode trazer à tona elementos insuspeitados na relação sujeito-língua-sentido‖.

4.2- Texto 02- O deslizamento semântico discursivo e a emergência da singularidade

Apresentaremos agora o segundo manuscrito trazido para análise nesta pesquisa, no
qual buscaremos compreender as mudanças ocorridas entre a 1ª e a 2ª versão; mudanças estas,
marcadas tanto pelos efeitos da fala do outro (professor) — metonimicamente caracterizado
por cenas/informações recorrentes — quanto pela singularidade que marca a relação do
sujeito com a língua.
O manuscrito apresentado a seguir foi produzido na mesma série, turma e data do
manuscrito anterior, portanto pensamos ser desnecessário descrevermos a situação de
produção, uma vez que fora a mesma. No entanto, salientamos que, por tratar-se de textos
produzidos por sujeitos/alunos distintos, um mesmo contexto de produção pode ter diferentes
efeitos, sentidos diversos, produzindo assim, diferentes ―interpretações‖, de quem o percebe
e/ou o escuta. Uma destas peculiaridades será descrita nas duas versões do manuscrito a
seguir, onde, as consignas proferidas pela professora (tanto na primeira quanto na segunda
versão do manuscrito), parecem não ter sido ―escutadas‖ pelo aluno.

51

Destacamos que, conforme já enfatizado em diversos momentos deste trabalho, nosso foco de análise recai
sobre a escuta que os alunos fazem das interferências da professora, no entanto, especificamente em relação a
esse manuscrito, ao devolvermos o original para a professora, após providenciarmos nossa cópia, ela, ao depararse com a escuta dos alunos para a palavra mijando, supôs que os mesmos estivessem escrito migando de
propósito, visando chateá-la; o comentário da professora a respeito desse episódio encontra-se exposto no
primeiro capítulo desta pesquisa.

91

4.2.1 – Apresentação do Manuscrito

Título: o Duelo dos Gigantes
Autor: Diogo52
Idade: 14 anos
Série: 6° ano
Gênero: História em quadrinhos
Primeira Versão – Produzida em 22 de abril de 2007
Segunda Versão – Produzida em 22 de maio de 2007

52

Conforme informamos na descrição da situação de produção do primeiro manuscrito (primeira análise)
analisado, a solicitação da professora foi que os textos fossem produzidos em dupla. Entretanto alguns alunos
optaram por produzirem suas histórias sozinhas. O aluno Diogo foi um dos que fez esta opção.

92

Transcrição do Manuscrito

O duelo dos gigantes

-

Primeira versão

1 – Era uma vez um menino muito bom e obidiente chamado Davi.
2 - Todo mundo gostava muito dele.
3 - Davi era pequeno mais todo mundo achava ele um gigante por causa da sua corajem.
4 – Um dia um gigante enorme e muito mal chamado gulias envadiu a cidade onde
5 – Davi e seus amigos moravam.
6 – Todo mundo ficou apavorado e com muito medo que gulias destruísse toda cidade.
7 – Ninguém tinha corajem de enfrentalo
8 – O gigante começou a derruba as casas bate nos velho e nas criancinha e nas
9 – mulheres e a mata todos os homens que aparecia na sua frente.
10 – Derrepente Davi chegou e viu aquela sena orrivel. Ele disse – meu deus me ajude

93

11 – a vencê esse gingante mau antes que ele destrua nossa cidade toda.
12 – Davi então pegou sua peteca e foi atráz do gigante. Quando avistou gulias ele
13 – disse venha ca seu gigante desgraçado agora você vai ver o que vou faze com você
14 – Quando viu Davi daquele tamainho o gigante começou a da risada e disse
15 – o que é isso? Esse piralho pensa que vai me derrota?
16 – O gigante começou a anda para perto do Davi e todos que viam aquela cena
17 – ficaram apavorado e gritando – meu deus ele vai matar nosso pequeno Davi.
18 – Nesse momento Davi tirou sua peteca do bolso colocou uma pedra enorme e
19 – atirou acertando bem no meio da testa do gigante que caiu mortinho no chão.
20 – Daquele dia em diante todos viveram felizes e Davi passou a ser conhecido como
21 – o pequeno gigante que com sua fé em deus sauvou a cidade das garras
22 – do grande gigante do mal.
Diogo 6º ano

Este foi o manuscrito produzido em primeira versão, após a professora, conforme já
informamos na primeira análise deste capítulo, solicitar à turma que, em duplas, produzissem
uma história em quadrinhos com tema livre.
Antes de buscarmos compreender as mudanças ocorridas entre esta versão e a versão
reescrita, após a intervenção da professora, gostaríamos de destacar aqui dois pontos
interessantes — e não menos singulares — que nos chamaram a atenção nesta primeira
produção do aluno; nos mostrando, conforme já destacamos, que uma mesma situação de
produção pode produzir diferentes efeitos em diferentes sujeitos.
O primeiro deles refere-se a consigna da professora ao enunciar a atividade ―vocês
devem produzir uma história em quadrinhos‖. O verbo produzir, proferido pela professora,
remete, segundo a lexicografia (FERREIRA, 1977, P.285) a: 1 – Dar nascimento ou origem
a‖; 2 – fazer aparecer, originar; 3 – criar; 4 – fabricar. Conforme percebemos, o aluno Diogo
não produz, mas sim reproduz nos mínimos detalhes, a história bíblica da batalha entre o
jovem Davi e o gigante Golias.
A este respeito, os PCN para o ensino de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª série (BRASIL,
1998, p. 76) destacam as categorias didáticas de práticas de produção de textos que podem
ser desenvolvidas na escola, objetivando reduzir a ―complexa tarefa no que se refere tanto ao
processo de redação quanto ao de refacção‖. São elas:

94

1-

Transcrição - que, segundo o documento acima citado, exige do aluno que a realiza
atenção para garantir a fidelidade do registro e do domínio das convenções gráficas da
escrita em, o que dizer e como dizer já estão determinados pelo texto original;

2-

Reprodução - que, envolvendo atividades como resumos e paráfrases permitem que o
aluno, em parte, fique ―liberado‖ da tarefa de pensar sobre o que escrever, uma vez que o
plano de conteúdo já está definido pelo texto modelo;

3-

Decalque - que funcionam como modelos lacunados, onde as questões formais já estão
definidas pelo caráter convencionalizado dos gêneros; e, por fim,

4-

Autoria – em que a tarefa do sujeito torna-se mais difícil, uma vez que necessita
articular tanto o plano dos conteúdos (o que dizer), quanto o plano da expressão (como
dizer).
Segundo os PCN (BRASIL,1998, p. 77) estas categorias irão permitir que os alunos

possam construir os padrões da escrita, apropriando-se das estruturas composicionais; pois, ―é
por meio da escrita do outro que, durante a práticas de produção, cada aluno vai desenvolver
seu estilo, suas preferências, tornando suas as palavras do outro‖.
Desta forma, podemos afirmar que nesta primeira versão do manuscrito o aluno
desenvolve a reprodução, uma vez que há o reconto de uma narrativa bíblica, na qual os
principais episódios são literalmente reproduzidos.
Em estudos desenvolvidos sobre a escrita e reescrita de textos na escola, Calil (2000),
nos chama a atenção para a distinção entre ―scriptor‖ e ―narrador‖, em que o primeiro
estaria ligado à questão da autoria, enquanto que o segundo representaria a categoria da
reprodução, materializada nas paráfrases, nos dizeres do ―outro‖. Entretanto, este mesmo
autor destaca que, mesmo quando reproduz, o sujeito ―narrador‖ mantém uma relação
singular com seus significantes, deixando emergir ―pontos de unidade e de dispersão de um
texto em relação ao outro‖. Tal fato foi ratificado tanto na primeira quanto na segunda versão
do manuscrito ora analisado, conforme veremos no decorrer desta análise.
Justificando tal assertiva destacamos que, mesmo que metonimicamente, um a um os
elementos da história bíblica tenham emergido na cadeia manifesta — a exemplo de Davi
(linha 1); gigante (linha 3); gulias (sic) (linha 4) e peteca (linha 18), Diogo também traz para a
história ―reproduzida‖, fragmentos típicos dos contos de fadas, como em ―era uma vez‖ (linha
1) e ―todos viveram felizes‖ (linha 20); o que nos mostra um aluno dividido, capturado pelas

95

diversas ―vozes‖53 que ―falam‖ no processo escritural; ou ainda um aluno transitando entre o
―scriptor‖ e o ―narrador‖.
Outro ponto que julgamos merecer destaque foi quanto à estrutura como Diogo
organizou seu texto54, pois, conforme descrito na situação de produção dos manuscritos, no
início deste capítulo, a professora trabalhara com a turma durante algumas semanas toda a
estrutura do gênero histórias em quadrinhos, trabalhara também uma unidade inteira do livro
didático de língua portuguesa que tinha como foco as referidas histórias e, por fim, levara para
a sala de aula, diversos ―gibis‖ para que fossem observados e lidos pelos alunos.
Portanto, mesmo que aquela tenha sido a primeira vez que fora solicitado aos alunos
que produzissem uma história em quadrinhos naquele ano, o material exposto durante as
aulas, supõe-se, poderia servir de ―modelo textual‖ para os alunos escreverem seus próprios
textos.
No entanto, a maneira como o aluno organiza seu texto (sem ilustrações, ausência dos
balões e outras características típicos das histórias em quadrinhos), nos mostra que não houve
―escuta‖ do mesmo para a estrutura das HQs55 trabalhada pela professora durante as aulas. Tal
fato acaba por esbarrar na concepção dialógica bakthiniana de que a criação de textos se faz
através de outros textos – que servirão como modelos e/ ou referências – e contraria também
teorias interacionistas que defendem que, ―o professor com suas intervenções e/ou orientações
―molda‖ o texto do aluno‖, Grilo (1995).
Desta forma, compreendemos interação aqui — conforme já destacamos no terceiro
capítulo deste trabalho — não como um rebatimento, um ato recíproco, um processo que
ocorre de forma direta; mas como uma interpretação, uma ―escuta‖ que o aluno fará daquilo
que o ―outro‖ proferir; escuta esta, que poderá não ―moldar‖ e sim singularizar todo um
processo de escritura. Assim sendo, corroboramos com Calil (2004, p. 12) quando afirma que
―se as atividades sugeridas pelo LDP56 [...] e as questões e discussões em sala podem
mobilizar uma gama de dizeres, discursos e disposições gráficas configurando parte do
processo escritural, é uma dimensão significante que interfere de modo mais contundente e
imprevisível sobre seu estabelecimento e a produção de efeito de sentido‖.

53

Dufour 2000.
Ver ―arrumação‖, estrutura como o aluno organizou o manuscrito no tópico 4.2.1 deste capítulo. Destacamos
ainda que esse fora o único aluno que ―não escutou‖ a orientação da professora para a estrutura que deveria ter
uma história em quadrinhos; o que ratifica mais uma vez que uma mesma situação de produção poderá produzir
diferentes efeitos em diferentes sujeitos, daí a impossibilidade, conforme já destacamos, de se homogeneizar as
formas de intervenção didática na sala de aula.
55
Histórias em quadrinhos.
56
Livro Didático de Português
54

96

E foi a partir desta dimensão e da escuta singular da orientação da professora:
―produzam uma história em quadrinhos‖, que Diogo fez não uma história em quadrinhos, mas
uma história, o reconto de uma narrativa, ―dentro‖ de quadrinhos.
Bem, vejamos como a professora ―leu‖ esta história.

4.2.2 – As interferências da professora

As intervenções da professora para a primeira versão do texto foram as seguintes;
1- Você não está usando os sinais de pontuação estudados;
2- Atenção com a ortografia;
3- Veja o que está faltando no final dos verbos destacados e;
4- O NOME DO PERSONAGEM É GULIAS MESMO?
Gostaríamos de destacar que na primeira versão do texto todas as palavras com
problemas foram apenas sublinhadas pela professora; as intervenções por escrito estão no
final do manuscrito.
Para as reflexões que realizamos nesta análise, destacaremos, inicialmente, as
indicações da professora para a revisão ortográfica e a atenção aos verbos que ela destacou e,
em seguida, comentaremos a ―escuta‖ de Diogo à pergunta que a professora escreveu no final
da primeira versão do texto ―o nome do personagem é gulias mesmo‖?
Antes, porém, de buscarmos analisar as mudanças ocorridas entre as versões do texto,
empreenderemos algumas reflexões que nos ajudarão a compreender melhor este percurso.
Numa discussão sobre o sistema de valores apresentado por Saussure no CLG,
Normand (1990) em La quadrature du sens refere-se a uma ordem de relação que implica
qualquer tipo de unidade lexical ou fato gramatical. A autora exemplifica com a formação do
neologismo ‗repressionário‘, a partir de ‗reação/reacionário‘ (reação, reacionário, repressão,
repressionário), explicando que ele está ao mesmo tempo ―de acordo com a língua e

97

imediatamente significante‖. Isso mostra como o funcionamento lingüístico passa por relações
formais de substituição e de combinação num jogo de ―formas significantes‖ que é preciso
descrever:

Uma diferença formal possui um valor lingüístico à medida que está ligada a uma
diferença de sentido; o mecanismo lingüístico faz os dois jogarem ao mesmo tempo.
Por essa razão, Saussure disse da língua que ela é ‗uma forma‘, ou seja, não a
encarnação de conceitos preexistentes em formas materiais, mas jogo de relações.
Quer se trate do fato gramatical ‗Nacht/Nächte‘, da diferenciação lexical
‗chaise/chaire‘ ou do deslizamento de ‗décrépi‘ (oriundo de ‗crispus‘) a ‗décrépit‘
(oriundo de decrepitus). (NORMAND, 1990, P.07).57

Vê-se, pelos exemplos citados, a diversidade desse jogo de relações que podem estar
ligados tanto à gramática, ao léxico ou a um deslizamento de sentido (uma marca de
singular/plural, uma mesma pronúncia para termos com sentidos diferentes ou com origens
diferentes) que somente significam nas suas relações com os outros elementos do sistema.
No entanto, Normand (1990) questiona se esse conjunto indefinido de associações
seria analisável pelo método proposto por Saussure, sem deixar um ―resto‖, e nos mostra que
nem todos os dados podem ser encaixados numa ―constelação‖. Ela afirma que ―[...] Saussure
faz o ‗eixo associativo‘ desempenhar um papel muito maior; as associações que podem ser
ligadas a uma palavra qualquer são bem diversas e constituem um conjunto de ‗formas‘ em
número indefinido, que ‗flutuam em torno‘ dele‖ (op.cit, p. 11). Assim:

de enseignement


pode vir: changement, jugement (que podem ocupar o mesmo lugar numa frase)



pode vir: clément, justement (que podem ser associados de acordo com variações

pessoais ou da língua)

E assim por diante, muitos outros termos poderiam associar-se, uma vez que são
―igualmente heterogêneos‖; quer dizer, há algo na forma significante que os identificam e que
os tornam analisáveis.

57

―Nacht/Nächte‖ – formas variantes do termo ―noite‖, em alemão; ―chaise/chaire‖ – formas para ―cadeira‖ e
―púlpito‖, em francês; ―décrépi/decrepit‖ – formas para ―descascado‖, ―sem reboco‖, e ―decrépito‖,
―caduco‖, desgastado fisicamente‖,, em francês.

98

A autora acrescenta um outro exemplo possível de ser inserido nesse jogo: châtiment
ou en s’aimant, mas que o seu sistema de associações não está ligado à gramática. É a esse
tipo de dado que ela chama de ―resto‖:

Compreender-se-á que esse resto, eminentemente variável e aliás indefinido, escapa
a uma análise rigorosa. Porém, que esse resto existe e intervém em graus diversos
na significação da palavra que está sendo empregada [...]
[...] o que o exemplo sugere é que não pode haver domínio completo e formalizado
do sentido, ou, dito de outra forma, análise lingüística sem resto (NORMAND,
1990, p. 11,12 - grifos nossos).

Assim, a significação sugerida por Saussure não é aquela que liga o signo com o
referente, indicada na concepção clássica de representação, mas sim, segundo a autora, a
significação ―como produção de sentido‖, num jogo de associações do qual a análise
linguistica pode captar a parte que diz respeito ao funcionamento do sistema.
No funcionamento simultâneo das relações associativas e sintagmáticas, os termos da
língua, não importa a sua dimensão, obedecem a uma ordem estrutural de possibilidades de
ocorrências. É por isso que, para o Saussure, até um só fonema desempenha um papel no
sistema da língua: ―Se, por exemplo, em grego, m, p, t, etc., não podem nunca figurar no fim
de uma palavra, isso equivale a dizer que sua presença ou sua ausência em tal lugar conta na
estrutura da palavra e na da frase.‖ (SAUSSURE, 1989, p. 151).
O jogo do significante constrói os efeitos de sentido do texto provocados pelo que
Orlandi (1998) chama de deslizamentos ou pontos de deriva como ―lugares em que os
sentidos podem ser outros‖, ou mesmo lugares de interpretação que ―separam fortemente a
escrita da oralidade‖, ou, ainda, ―pontos onde gestos de interpretação trabalham a deriva, o
deslocamento, o equívoco, constitutivo dos (outros) sentidos e dos (outros) sujeitos‖
(ORLANDI, 1998, p. 125-9). Para essa autora:

Um sujeito pode não estar incisivamente inscrito em uma ordem determinada de
língua e nem por isso deixa de ter sua identidade configurada, justamente por essa
mobilidade, essa plasticidade que o faz passageiro de várias ordens do símbolo. Esse
é o próprio do sujeito (a sua itinerância), o próprio do sentido (o trabalho do
equívoco), no próprio da língua, que é capaz de jogo (ORLANDI, l998, p. 130).

O conceito trazido por Pêcheux (1969) e retomado pela autora pode ser útil para se
entender o que acontece: um ―efeito metafórico‖ que é tido como ―base da constituição do
significar‖, constituindo o funcionamento da relação entre sujeito, língua e sentido:

99

M. Pêcheux (1969) vai chamar de efeito metafórico o fenômeno semântico
produzido por uma substituição contextual, lembrando que esse ―deslizamento de
sentido‖ entre x e y é constitutivo do sentido designado por x e y. Como esse efeito é
característico das línguas naturais, por oposição aos códigos e às línguas artificiais,
podemos considerar que não há sentido sem essa possibilidade de deslize, e, pois,
sem interpretação. O que nos leva a colocar a interpretação como constitutiva da
própria língua (natural) (ORLANDI, 1998, p. 80).

Admitimos aqui, que, nessa relação triática entre sujeito, língua e sentido, o aluno
sofre os efeitos da interpretação, mas os deslizes que aí se operam trazem, também, além da
historicidade que os conformam, um movimento do significante, conforme perceberemos na
segunda versão do manuscrito ora analisado.
Se, como diz a autora, a interpretação é o lugar de se observar a relação histórica do
sujeito com os sentidos e, se essa interpretação se dá com base na ―materialidade lingüística‖,
nesta está também o significante, mostrando pelo seu movimento a relação de mútua
constituição sujeito/língua/sentido. Será, portanto, a partir desta relação que analisaremos a
segunda versão do texto de Diogo.

100

4.2.3 – A escuta do aluno – segunda versão

101

O duelo dos gigantes

-

Segunda versão

1 – Era uma vez um menino muito bom e obdiente chamado Davi.
2 – Todo mundo gostava muito dele
3 – Davi era pequeno mais todo mundo achava ele um gigante por causa da sua coragem
4 – Um dia um gigante enorme e muito mau chamado sansão invadiu a cidade que
5 - Davi e seus amigos viviam.
6 – Todo mundo ficou apavorado e com muito medo que sansão destruísse toda cidade
7 – ninguém tinha coragem de enfrentalo. a força do sansão vinha do seu cabelo enorme
8 – que ele não deixava ninguém toca. sansão também tinha uma namorada mal e
9 – amostrada chamada Dalila.
10 – sansão começou a derruba as casas bate nos velhos e nas criancinha e nas mulheres
11 – e a mata todos os homens que aparecia na sua frente
12 – De rrepente Davi chegou e viu aquela cena triste ele disse meu deus me ajude a
13 - vencê esse gigante mau antes que ele destrua nossa cidade

102

14 – Sabendo do segredo do gigante Davi pegou uma tesoura bem amolada e foi atrais
15 - do gigante. quando avistou sansão ele disse vou mostra o que vou fazer com você
16 - seu desgraçado.
17 – o gigante e sua namorada começaro a dar risada e a anda pra perto de Davi. Todo
18 - mundo ficaram apavorado e gritando meu deus ele vai mata nosso pequeno Davi
19 – quando o gigante estava bem pertinho Davi pulou do telhado em cima do pescoço
20 - dele e rapidamente pegou a tesoura e cortou seu enorme cabelo. Nesse momento
21 - sansão caiu sem força no chão e os outros homens junto com Davi acabaro de
22 - matálo.
23 – A polícia prendeu a namorada dele e daquele dia em diante todos viveram felizes e
24 - Davi passou a ser o pequeno gigante que sauvol a cidade das garra do grande
25 - gigante do mal
Diogo 6° ano ―C‖

Relacionando o que foi apontado pela professora na versão 1 com o resultado
apresentado pelo aluno na versão 2 do texto, observaremos, inicialmente, os tipos e formas de
alteração:

a)

Quanto à ortografia

Quanto ao que foi apontado sobre o cuidado com a ortografia, o aluno parece ter
observado uma a uma as palavras sublinhadas pela professora, a exemplo das alterações
destacadas no quadro a seguir:

Quadro VIII
1ª VERSÃO

2ª VERSÃO

OBIDIENTE (L. 1)

OBDIENTE (L. 1)

CORAJEM (L. 3)

CORAGEM (L. 3)

MAL (L. 4)

MAU (L 4)

ENVADIU (L. 4)

INVADIU (L. 4)

DERREPENTE (L. 10)

DE REPENTE (L. 10)

SENA (L. 10)

CENA (L. 10)

ATRÁZ (L. 12)

ATRAIS (L. 14)

SAUVOU (L. 21)

SAUVOL (L. 24

103

Pode-se observar no quadro acima que algumas palavras foram reescritas dentro do
―esperado‖ pela professora, nos fazendo acreditar desta forma, que algumas ―regras‖
ortográficas já encontram-se estabilizadas para o aluno; como por exemplo nas mudanças
ocorridas em: corajem/coragem; mal/mau; envadiu/invadiu e sena/cena.
No entanto, nos parece mais coerente pensar que, ao invés de uma reflexão
metalingüística na realização, na ressignificação destas palavras, de um aluno/ sujeito que
refletiu conscientemente antes de efetivar cada mudança, temos sim, um sujeito que, mais
uma vez, submetido aos efeitos da língua e imerso nos processos metafóricos e metonímicos é
conduzido a efetuar a ressignificação de seu dizer, de sua escrita, a partir da ―escuta‖ que faz
da intervenção da professora, afetado pelas formas significantes mobilizadas ao longo das
aulas e dentro das possibilidades de combinação da cadeia sintagmática que, metaforicamente,
concorrem na cadeia latente; ou seja, em corajem, se J é descartado, convoca, emerge g; em
mal, com a possibilidade de erro com l, emergirá u (devido à própria homofonia destas letras
no final de palavras); e assim ocorre com as demais palavras ressignificadas(invadiu e cena).
Dito de outra forma, mesmo quando ―acerta‖, temos muito mais um aluno conduzido pelos
processos que estruturam a linguagem — metafóricos e metonímicos — que um aluno que
reflete consciente e metalinguisticamente sobre sua escrita.
Em outras ocorrências ―escutadas‖ nesta segunda versão, temos o que chamamos,
conforme Lemos (2002) de ―escuta não-coincidente‖, na qual, conforme já visto, a
professora ―escuta‖ um problema e o aluno escuta outro, deslocando desta maneira sua escuta
para outro ponto da cadeia sintagmática; como podemos perceber em: sauvou (1ª versão)
sauvol (2ª versão); obidiente (1ª versão) obdiente (2ª versão); atraz (1ª versão) e atrais (2ª
versão) e em derrepente (1ª versão) de rrepente (2ª versão).

b)

Quanto aos verbos destacados

Presume-se, pelos termos sublinhados e pela observação registrada pela professora no
final do texto (―veja o que falta no final dos verbos destacados‖), que a expectativa da
professora para a revisão dos verbos diz respeito ao acréscimo do R indicador do infinitivo.
No entanto, de todas as formas verbais sem o R que foram destacadas, apenas duas delas
foram corrigidas na versão 2 do texto: faze/fazer (l. 13, 15); da/dar (l. 14, 17). As outras

104

ocorrências se mantiveram inalteradas: derruba, bate, toca (l. 8); (mata (l. 10, 18); mostra (l.
15); anda (l. 17); toca. Ou seja, não houve escuta de Diogo para estas outras formas verbais.

O deslizamento semântico-discursivo e a emergência da singularidade

Além das alterações no nível grafemáfico, o aluno faz algumas mudanças no
nível lexical da segunda versão do texto, vejamos:

Quadro IX
―Onde [...] moravam‖ (versão 1, l. 4)

para

―que [...] viviam‖ (versão 2, l. 5);

―sena orrive‖l (versão 1, l. 10)

para

―cena triste‖ (versão 2, l. 12);

―gulias‖ (versão 1, l. 4)

para

―sansão‖ (versão 2, l. 4); e

―sua peteca‖ (versão 1, l. 12)

para

―sua tesoura‖ (versão 2, l. 14).

Como podemos perceber, nestas mudanças realizadas por Diogo no léxico de algumas
palavras, há um estranhamento na mudança de ―sena orrivel (versão 1. L.10) para cena triste
(versão 2. L.12), uma vez que em ―sena orrível‖ (1ª versão) há uma coerência entre a cena
descrita e a palavra horrível — horrenda, péssima — nos remetendo à destruição e ao estado
de aterrorização descrito. Já com a substituição para cena triste (2ª versão) mesmo havendo a
solução para o problema ortográfico, há uma ruptura semântica que, no contexto narrado,
rompe com a coerência presente na primeira versão pois, triste, semanticamente corresponde
a ―que tem mágoa‖; infeliz; ―cheio de melancolia‖; ―abatido‖ (Ferreira, 1997, p. 481) e por
acreditarmos que o aluno não tinha a intenção de dizer que a cena descrita era abatida,
melancólica ou cheia de mágoa, defendemos que esta ruptura semântica , emergida da
substituição de orrivel (horrível) por triste revela os efeitos da sinonímia que, a todo instante
―pode ameaçar a cadeia significante na qual se inscreve o sujeito‖, Calil, (2004, p. 01)
No entanto, na versão reescrita do manuscrito ora analisado, a ocorrência que mais nos
surpreendeu foi a ―escuta‖ singular e insuspeitável que o aluno fez da indicação/intervenção
da professora para a palavra ―gulias‖ — chamando a atenção para a escrita de ―gulias‖ com u
— sugerindo, certamente, uma mudança para ―Golias‖ (com G maiúsculo e um o após o g). E

105

foi a partir desta ―escuta‖ que a segunda versão do texto percorreu outro caminho, tomou
sentidos outros.
Entretanto, não podemos desconsiderar que fora a escrita ambígua e vaga

da

professora (―o nome do personagem é gulias mesmo?‖) que provocou a ―escuta‖, a
interpretação ―singular‖ do aluno. Um vez que, ao questionar se o nome do personagem era
―gulias‖ mesmo, a professora acaba colocando em xeque, não a grafia do nome do
personagens (gulias com u), mas o próprio nome do personagem da história bíblica; o que
acaba por fazer emergir o nome de um outro personagem bíblico na cadeia manifesta —
Sansão — que, no entanto, ao ―entrar‖ na história, metaforicamente convocado em
substituição a ―gulias‖, ocupa uma outra posição, que foge à caracterização do Sansão da
tradicional narrativa bíblica; ou seja, deste jogo entre significantes – gulias/ ―Sansão‖ surge
um ―terceiro‖ personagem. Desta forma, Lemos (1998) reportando-se a Milner (1989), afirma
que,

metáfora e metonímia dão às relações paradigmáticas e sintagmáticas um papel de
leis de composição interna da linguagem, na medida em que trazem à luz o efeito
dessas relações, ou seja, da composição de dois termos se produz um terceiro. Na
base dessa afirmação parece estar o conceito de metáfora como figura em que a
relação entre o termo manifesto e o termo latente (ou substituído) produz um
sentido que não coincide com nenhum dos dois e os ultrapassa (LEMOS, 1998,
p. 159-grifos nossos).

E foi a partir desta relação — ―gulias/Sansão‖---que emergiu ―sansão58‖, numa relação
de associação ao personagem bíblico (característica comum aos dois termos ―gulias‖/Sansão)
e posto na cadeia manifesta, uma vez que, ―há algo na forma significante que os identifica e
que os torna analisáveis (NORMAND, 1990, p.11), porém metaforicamente materializado por
uma série de ―semelhanças ao contrário‖, ou seja, ―sansão‖ vilão, que mata, destrói,
afronta as forças do bem, não segue os ensinamentos divinos. Dito de outro modo, emerge
desta relação um ―terceiro termo‖, um ―outro59‖ que não é nem Golias nem Sansão, mas
―sansão‖ que, ―metaforonimicamente‖ transita entre as duas histórias, caracterizado, tanto por
uma relação de semelhança entre os dois termos Golias-Sansão (personagens de histórias
bíblicas, Fortes, grandes), quanto por uma ―oposição contrastiva‖ entre os mesmos (Golias —
vilão, homem sem fé, lutou com Davi —; Sansão — herói, homem de fé, não enfrentou Davi).
São, portanto, estas relações de semelhanças e diferenças – concebidas neste trabalho como
58

Uso aqui o termo ―sansão‖ (com inicial minúscula) para distingui-lo do personagem da narrativa bíblica
Sansão.
59
- Lemos,1998.

106

processos, relações metafóricas e metonímicas – que caracterizam o ―sansão‖ que emerge na
segunda versão do manuscrito do aluno. E é a partir desta emersão – com a substituição de
―gulias‖ para sansão- que ocorre no texto a entrada de enunciados relacionados à nova
história. Dito de outro modo, é a partir desta substituição (―gulias‖/―sansão‖) que emergem no
texto novos significantes, conforme podemos ver no quadro abaixo:

Quadro X
1- A força do sansão vinha do seu cabelo (L.7)
2- Sansão tinha uma namorada chamada Dalila (L. 9)
3- Tesoura (L 14)
4- Polícia (L. 23)

Segundo Calil (2007, p. 126) ―as cadeias latentes ameaçam qualquer cadeia
sintagmática, e foi, portanto, com a emersão de ―sansão‖ na cadeia sintagmática/ manifesta,
que o manuscrito tomou outro caminho e novos significantes foram convocados, significantes
estes que, mesmo pertencentes a outra história, a outro contexto, não romperam com a
produção de sentidos da segunda versão do texto, uma vez que, conforme percebemos, há
uma amarração, uma coerência semântica e sintática do início ao fim desta ―nova‖ história.
Desta forma, mesmo com a ambigüidade do questionamento da professora — ―o nome
do personagem é gulias mesmo?‖ — provocando um ―estranhamento na cadeia sintagmática,
o que abriu outras possibilidades de interpretação, de ―escuta‖; o aluno, ainda assim,
conseguiu manter uma tessitura no texto, onde, as semelhanças e diferenças entre as duas
histórias que serviram de referência ao aluno (Davi e Golias e Sansão e Dalila), marcando,
segundo Calil (2007, p. 128) ―os discursos que habitam o canto do imaginário — os ―já ditos‖
— neste caso as narrativas bíblicas, não romperam com a unidade, com o efeito de sentido da
segunda versão do manuscrito.
Temos desta forma, um texto tecido sobre um movimento duplo, no qual a relação de
semelhanças e diferenças abre possibilidades múltiplas de construção de sentidos e, em que a
―escuta‖ singular, mas significante que o aluno fez da interferência da professora gerou um
caminho, um desfecho insuspeitado, singular, para a segunda versão do manuscrito;
insuspeitado, porém significante e surpreendente, mostrando-nos mais um vez, o
distanciamento, a tensão, os deslocamentos da ―escuta‖ entre aquele que fala (professora) e
aquele que escreve e ou reescreve (aluno) e é esta ―escuta‖ que faz, segundo Calil ―a diferença
subjetiva de um sujeito em relação a outro‖; ou ainda acrescentamos, é esta ―escuta‖ que gera

107

o que estamos denominando neste trabalho de ―ocorrências singulares‖; o aparecimento, a
emersão de Sansão, o surgimento de um ―terceiro termo — sansão e o percurso/o sentido
insólito que a segunda versão do texto de Diogo tomou, foi mais uma destas ocorrências; nos
mostrando mais uma vez aqui, sujeitos — aluno e professora — submetidos aos ―efeitos da
língua‖ e à concorrência das forças significantes‖ na cadeia latente.
Passemos agora à última análise deste percurso.

4.3- Texto 03 – Da ambiguidade da escrita à singularidade da escuta

Apresentação do manuscrito

Título: Timidez
Autor: Maria Gilvanete
Idade: 19 anos
Série: 9º ano
Gênero: texto de opinião
Primeira versão: produzida em 11 de abril de 2007
Segunda Versão: produzida em 05 de julho de 200760

4.3.1- Descrição da situação de produção (primeira versão)

Conforme informamos no capítulo que traz o percurso metodológico desta pesquisa, a
necessidade ― segundo relatos da professora ― de escrever sobre a questão da timidez surgiu
após uma aluna não ter conseguido apresentar um trabalho na sala de aula por ser muito
tímida.
Quarta-feira, 11 de abril de 2007. A professora chega à sala de aula, cumprimenta a
turma e diz que nesse dia irão fazer uma ―redação‖ sobre um assunto que já haviam debatido
60

A distância de tempo entre a 1ª e a 2ª versão foi de 45 dias devido à suspensão das aulas para conserto da
instalação hidráulica da escola.

108

na sala de aula há duas semanas. Pergunta aos alunos se estão lembrados quando a aluna ―X‖
deixou de apresentar o trabalho porque estava muito nervosa e por ser bastante tímida;
pergunta se isso já aconteceu com algum outro aluno; o que eles acham disso e se há alguma
maneira de se superar a timidez. Ocorre um breve debate de uns dez minutos, no qual a
maioria dos alunos presentes emite sua opinião e, em seguida, a professora diz: ―agora chegou
a hora de vocês botarem a mão na massa‖. A consigna da professora para a turma foi a
seguinte ―Escrevam um texto de opinião, dizendo de que forma a timidez pode atrapalhar a
nossa vida‖.
Nesse momento, os alunos arrumaram-se nas carteiras e, individualmente, começaram
a escrever. Durante esse processo ― em que os alunos escreviam seus textos ― a professora
circulava pela sala e apenas observava o desenvolvimento da atividade.
Ao final da segunda aula (a atividade foi desenvolvida em duas aulas sequenciadas)
todos os alunos já haviam concluído seus textos e os devolvido à professora para a correção.
Segundo os PCNs de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p.51-52) no processo de
produção de textos escritos, espera-se que o aluno:
Redija diferentes tipos de textos, estruturando-o de maneira a garantir:
- a relevância das partes e dos propósitos do texto;
- a continuidade temática;
- a explicitação de informações contextuais ou de premissas indispensáveis à
interpretação.
Realize escolhas de elementos lexicais, sintáticos, figurativos e ilustrativos, ajustandoos às circunstâncias, formalidade e propósitos da interação;
Utilize com propriedade e desenvoltura os padrões da escrita em função das exigências
do gênero e das condições de produção.
Vejamos a seguir, quais destes critérios foram atendidos por Gilvanete na produção de seu
texto e quais foram ―escutados‖ pela professora no momento da intervenção.

109

110

Transcrição do manuscrito- primeira versão

Timidez
0102030405060708091011121314151617181929212223-

A timidez atrapalha a nossa
vida de muitas maneras. O tímido
tem dificuldade para arranjar
imprego, se relacionar com out
ras pessoas apresentar trabalhos
na escola e até para arranja
uma namorada. as pessoas per
de muitas oportunidade na vida
por ser tímido eu mesmo ja dexei
de ir a intrevista de um imprego
por que no dia fiquei muito ner
vosa e nem consegui sai de casa.
Pra vencer a timidez a gente pre
cisa se esforsar ir se soutando
aos pouco e quem sabe um dia
perda esse medo. para puder
aproveitar melhor as oportunidade
que a vida oferece e não ter
que deixá de fazer o que gosta
por medo ou por vergonha, por
ser tímido. Porque timidez demais
só atrapalha a vida de qualquer
pessoa

Ao analisarmos este texto, alguns questionamentos são inevitáveis: quais as
implicações didáticas, quanto ao acompanhamento e avaliação das aprendizagens dos
alunos,61 durante nove anos de escolaridade? Sem nenhum propósito de apontar ‗culpados‘
num sistema educacional excludente, perguntaríamos também: Que ―olhar‖ a professora
lançaria sobre este texto? Que aspectos destacaria como positivos e que aspectos negativos
seriam enfatizados? Que postura assumiria diante de um texto como este? E mais, de que
forma poderia intervir para que, no processo de reescritura, o texto de Maria Gilvanete
melhorasse?
Dentre os problemas encontrados nessa primeira versão do texto da aluna, podemos
destacar:
61

Destacamos que, conforme informamos nos procedimentos metodológicos, a aluna Gilvanete ― autora do
texto ― estuda com a mesma professora de Língua Portuguesa desde o 6º ano.

111

Quadro XI
Marcas da interface entre a oralidade
e a escrita

Ausência do s marcador do plural

Ausência dos sinais de pontuação,
particularmente da vírgula.

―maneras‖ (linha - 01);
―imprego‖ (linhas - 02 e 05);
―dexei‖ (linha - 05);
―intrevista‖ (linha - 05);
―deixá‖ (linha - 10);
―muitas oportunidade‖ (linha - 04);
―aos pouco‖ (linha - 07);
―as oportunidade‖ (linha - 09);
[...] se relacionar com outras pessoas apresentar trabalhos [...] (linha –
02 e 03);
[...] as pessoas perde (sic) muitas oportunidade na vida [...] (linha – 04);
[...] a gente precisa se esforsar ir se soutando [...] (linha – 07);

Entretanto, apesar de identificarmos diversos problemas que infringem a norma escrita
da língua padrão ― especificamente em um texto produzido por uma aluna que já se encontra
no último ano do ensino fundamental ― não podemos desconsiderar que, do ponto de vista
discursivo, alguns critérios ― prescritos pelos PCN ― foram atendidos por Maria Gilvanete
nessa primeira versão de seu texto.
Dentre as quais destacamos:

Quadro XII
O que prescrevem os PCNs de Língua Portuguesa
(BRASIL, 1998, p. 51 e 52)
Relevância dos tópicos em relação ao tema e
propósito do texto (destacamos que a solicitação da
professora fora: dizer de que forma a timidez pode
atrapalhar a nossa vida)
Explicitação das informações contextuais.

A continuidade temática.

Explicitação das relações entre expressões
mediante recursos linguísticos apropriados
(retomadas, anáforas, conectivos).

O texto da aluna Maria Gilvanete
―O tímido tem dificuldade para arranjar imprego [sic]‖
(linha – 02);
―se relacionar com outras pessoas‖ (linha – 02);
―apresentar trabalhos na escola‖ (linha – 03);
―e até para arranja uma namorada.‖ (linha – 03);
―eu mesmo ja dexei (sic) de ir a intrevista (sic) de um
imprego (sic) por que no dia fiquei muito nervosa‖
(linha – 05);
―Pra vencer a timidez a gente precisa se esforsar (sic)‖
(linha – 07);
―ir se soutando (sic) aos pouco‖ (linha – 07);
―e quem sabe um dia perda esse medo.‖ (linha – 08);
―para puder aproveitar melhor as oportunidade que a
vida oferece‖ (linha – 09);
―Porque timidez demais só atrapalha a vida de
qualquer pessoa‖ (linha – 11);

Destacamos que, no questionário62 que aplicamos com a professora, na questão de
número 23 constava uma lista com as principais propriedades da textualidade, na qual ela
62

Anexado ao final do trabalho, sob o título anexo 04.

112

deveria enumerar, por ordem de importância, aquelas que julgasse mais relevantes em uma
produção textual; questões como coesão, coerência e intertextualidade foram consideradas
prioritárias. Conforme nos mostra o quadro anterior, a aluna Maria Gilvanete atendeu à
maioria desses critérios. Vejamos então como a professora ―escutou‖ esse texto; que aspectos
foram priorizados.

4.3.2 As interferências da professora

As interferências da professora63 para a primeira versão do texto de Maria Gilvanete
foram as seguintes:
Destaque para as palavras ―manera‖; ―imprego‖; ―outras‖ (separada no texto de forma
errada); ―perde‖; ―oportunidade‖; ―ja‖; ―dexei‖; ―intrevista‖; ―imprego‖; ―por que‖; ―sai‖;
―esforsar‖; ―soutando‖; ―pouco‖; ―perda‖; ―para‖ (com inicial minúscula após ponto final);
―puder‖; ―oportunidade‖ e ―deixá‖. Todas estas palavras foram apenas sublinhadas com
caneta na cor vermelha.
Objetivando chamar a atenção da aluna para a ausência do uso de alguns sinais de
pontuação ― vírgulas e ponto final ― a professora põe pontos de interrogação após as
palavras ―pessoas‖ (linha – 02), ―tímido‖ (linha – 04), ―esforsar‖ (linha – 07) e pessoa‖ (linha
– 11).
Quanto às intervenções da professora, feitas por escrito no texto da aluna, foram as
seguintes:
Frente da folha, ao alto, lado direito:
―Tenha mais atenção com a escrita das palavras‖.
No verso da folha, a professora finaliza suas intervenções com as seguintes inscrições:
―reescreva seu texto substituindo as palavras grifadas pela forma correta‖.
―Veja os sinais de pontuação que você deixou de usar‖ e
―tenha mais atenção!‖
Conforme percebemos, a professora centra suas intervenções apenas nos aspectos de
superfície textual, tais como ortografia, pontuação e acentuação; e, mesmo que em sua fala ―

63

A primeira versão do texto (frente e verso), com as interferências da professora, encontra-se anexada ao final
deste trabalho

113

expressa no questionário aplicado ― aspectos de base (como coesão, coerência e
intertextualidade) tenham sido destacados como os mais relevantes em uma produção textual,
a professora em nenhum momento, destaca estes aspectos como positivos no texto da aluna.
Identificamos mais uma vez, conforme já destacado nas intervenções feitas nos textos
anteriores (análise 01 e análise 02) uma prática de correção indicativa (SERAFINI, 1989), na
qual as palavras que apresentam qualquer tipo de problema são destacadas, cabendo ao aluno
a tarefa de ―adivinhar‖, o que necessita ser ―corrigido‖, modificado.
Temos, desse modo, um distanciamento, uma contradição, entre a fala e a prática da
professora.
Ou seja, há toda uma configuração imaginária em torno do que ―faz texto‖ para esta
professora (CALIL, s/d), legitimada pelo discurso do ―Outro‖64 ― PCNs, Formação
continuada, livros e/ou revistas destinados à prática do ensino de Língua Portuguesa ― que,
no entanto, não se materializa em sua ação didática; uma vez que, sua ―escuta‖ diante do texto
do aluno, recai sempre em função daquilo que ela elege como valor de verdade; ou seja,
priorizar os aspectos de superfície, em detrimento dos aspectos de base.
Ao solicitar à turma que escrevesse sobre um assunto já discutido na sala de aula,
supomos que a professora esperasse que isso pudesse ―garantir‖ que os alunos não sentissem
tanta dificuldade na hora de produzirem seus textos; pois ―pensar em atividades para ensinar a
escrever é, inicialmente, identificar os múltiplos aspectos envolvidos na produção de textos,
para propor atividades sequenciadas, que reduzam parte da complexidade da tarefa no que se
refere tanto ao processo de redação quanto ao de refacção‖ (BRASIL, 2008, p. 76).
Percebemos, desse modo, conforme já enfatizamos, que, tanto o discurso, quanto a
intenção inicial da professora, estão fortemente ―carregados‖, legitimados, pelo que prescreve
o documento oficial acima mencionado, entretanto, a impressão que se tem ― observando-se
a forma como a professora atua no texto da aluna ― é que esses documentos não estão
relacionados com o que é realmente desenvolvido em sala de aula; pois, enquanto o governo
se preocupa em elaborar guias, parâmetros e propostas curriculares, os professores acabam se
valendo mesmo é de seus conhecimentos práticos, seus juízos de valores, suas ―escutas‖
diante daquilo que lhes causa ―estranhamento‖, que julgam como problemas; para então,
decidirem o que fazer nas salas de aula de Língua Portuguesa, e, sobretudo, o que fazer, que
―decisão‖ tomar, diante de um texto como esse ora analisado.

64

DUFOUR, 2000.

114

As reflexões expostas até o momento acabam convergindo para a questão inicial que
buscamos afirmar neste trabalho, quer seja: a interação, o dialogismo ― em que os
documentos norteadores estão ancorados ― nem sempre se dá de forma direta, recíproca,
como esperamos; mas como ―não-socius‖ (LEMOS, 1992), como uma interpretação singular,
subjetiva, que cada sujeito irá fazer do que ouve ― na modalidade falada ou escrita ― .
escrita essa, que emergirá tanto nas ações didáticas do professor (a partir da interpretação que
fará das diversas ―vozes‖65 que permeiam seu imaginário, seu universo simbólico; quanto na
escrita do aluno, a partir da ―escuta‖ que fará daquilo que a professora efetuar na primeira
versão de seu texto.
Vejamos então como a aluna Maria Gilvanete ―escutou‖ as interferências da
professora em seu texto.

4.3.3 – A escuta da aluna

Quinta-feira, 05 de julho de 2007. Ao iniciar a aula, a professora solicita que os alunos
se arrumem em seus lugares e pergunta-lhes se estão preparados para reescreveram seus
textos,66 após a resposta positiva da turma, começa a entregar a primeira versão do texto com
suas intervenções. Após a distribuição dos textos a professora profere a seguinte consigna:
―Prestem atenção: vocês agora vão escrever de novo o texto, fazendo a correção de tudo que
estava errado; É só prestar bastante atenção às orientações que eu escrevi no texto de cada um.
Caprichem tá. Essa é a hora de melhorar os textos de vocês‖. Nesse momento os alunos
iniciam a reescrita de seus textos.
Eis a segunda versão do texto de Gilvanete

65

DUFOUR, 2000.
Na aula anterior a professora avisara à turma que neste dia fariam a reescrita e solicitou aos alunos que
procurassem não faltar à aula, pois a atividade já havia sido adiada por três vezes devido à pouca quantidade de
alunos na sala de aula.
66

115

Transcrição do manuscrito — 2ª versão

01020304050607080910111213-

Timidez
A timidez atrapalha a nossa
vida.
O tímido tem dificuldade
para arranjar um profissão
se relacionar com outras
pessoas ?
as pessoas perde muitas
oportunidade na vida por
ser tímido ?
Pra vencer a timidez a
gente precisa se esforçar ?
Timidez demais só atrapalha
a vida de qualquer pessoa ?
— Fim —

116

Inicialmente gostaríamos de destacar que, as reflexões que empreendemos na análise
desta segunda versão recairão mais especificamente sobre a ―escuta‖ da aluna para as
seguintes interferências da professora:
Destaque (sublinhado) na primeira versão para a palavra ―imprego‖ (linha – 02); e,
―veja os sinais de pontuação que você deixou de usar‖.
No entanto, o primeiro fato que nos surpreendeu nesta segunda versão do texto foi a
supressão, o ―apagamento‖ de alguns dizeres da aluna, dizeres esses que enriqueciam,
contextualizavam, tornavam mais coerentes seus argumentos na versão anterior. Vejamos
alguns desses dizeres que foram ―apagados‖ na segunda versão do texto de Maria Givanete:
— ―apresentar trabalhos na escola‖;
— eu mesmo já dexei de ir a intrevista de um imprego por que no dia fiquei muito nervosa e
nem consegui sai de casa‖;
— ―ir se soutando aos pouco e quem sabe um dia perda esse medo‖;
— ―para puder aproveitar melhor as oportunidade que a vida oferece‖ e,
— ―não ter que deixá de fazer o que gosta por medo ou por vergonha, por ser tímido‖.
Diante de tal episódio poderíamos perguntar: ―o que teria levado a aluna a ‗apagar‘,
suprimir, metade de seu texto? Que reflexões metalinguísticas teria feito Maria Gilvanete para
efetuar tal ressignificação?
Felipeto (2008, p. 117), reportando-se a Lier-de Vito e Fonseca,67 afirma que, ―a
metalinguagem introduz um sujeito que escolhe, abstrai e infere propriedades da língua, ou
seja, que a examina e a controla‖.
Isso não parece ser, a nosso ver, o que ocorreu, pois não acreditamos que a aluna tenha
efetuado conscientemente qualquer reflexão metalinguística, objetivando dar conta dos
―problemas apontados pela professora na primeira versão de seu texto.
Diríamos sim, que temos aqui, um sujeito/aluna, às voltas com a ―tensão‖ que envolve
o processo de escritura, dividido entre o dizer do ―outro‖ — dizer indeterminado, destacamos
,— ―acoplado‖ a seu dizer e à escuta, à interpretação subjetiva que fará de sua própria fala e
da fala do outro. E nesta busca incessante por uma ―saída‖, acaba submetido ao imprevisível
processo de escritura.
Desta forma, corroboramos com Filipeto (2008) ao constatarmos que, ao contrário de
reflexões metalinguísticas, o que esse manuscrito nos deixa entrever são ―situações sitiadas de

67

Lier de Vito, Maria Francisca F. & Fonseca, Suzana C. da, 1995.

117

angústia vivenciadas pelo escritor [...] que, ao entrar no labirinto inantecipado da criação não
pode prever o que fará, por onde irá‖, (FELIPETO, 2008,P.125).
Essa mesma autora, em estudos desenvolvidos sobre a rasura nos manuscritos
escolares, afirma que: ―a rasura pode, portanto, provocar o silêncio, abrir um buraco,
instaurar um vazio, um nada, deixando o autor como que desabrigado‖ (grifos nossos)
Felipeto (2008, p. 125). Diríamos aqui que, no episódio do manuscrito ora analisado, fora a
interferência indeterminada da professora — apenas sublinhando as palavras com problemas
de grafia — que provocou esse ―silêncio‖, esse ―apagamento‖ do dizer da aluna, na segunda
versão de seu texto.
Tentemos compreender agora as duas ocorrências que, em nossa opinião, singularizam
esse processo de escritura. Para dar conta de tal feito, buscaremos depreender as mudanças
ocorridas entre a primeira e a segunda versão a partir das posições subjetivas do sujeito na
língua, preconizadas por Lemos (2002) e dos marcadores fundamentais da linguagem:
processos metafóricos e metonímicos, que acabam por trazer à tona um sujeito submetido aos
efeitos da língua.
Na mudança ocorrida entre as palavras ―imprego‖ (sic) (linha – 02, primeira versão) e
profissão (linha – 02, segunda versão) o que mais nos chamou a atenção foi a emergência do
artigo indefinido ―um‖ (linha – 02, segunda versão) uma vez que, o significante que emergiu
na cadeia manifesta nessa segunda versão do texto é um substantivo feminino (profissão), o
que, do ponto de vista das combinações sintagmáticas presentes em nosso sistema linguístico,
seria totalmente ―impensável‖ de acontecer.
O que teria levado então, uma aluna com 19 anos de idade, na última série do ensino
fundamental a efetuar tal ―operação‖, na reescritura de seu texto?
Em estudos desenvolvidos sobre o processo de reescritura de textos na escola, Fiad
(1997, p. 17), afirma que, ―estudantes que já dominam a língua escrita, se colocam como
leitores de seus próprios textos reelaborando-os, refazendo-os a partir dos conhecimentos
sobre a escrita de que já dispõem‖ (grifos nossos). Em assim sendo, teria então a aluna,
conscientemente,―escolhido‖ substituir ―imprego‖ por ―um profissão‖, baseada nos
conhecimentos linguísticos de que dispõe?
Diferentemente do propõe Fiad e, ancorados na perspectiva teórica que defendemos
neste trabalho, quer seja, a de um sujeito efeito da língua, é que afirmamos que, nesta
―operação‖, nesta ―troca‖ ocorrida na cadeia sintagmática entre ―O tímido tem dificuldades
para arranjar imprego‖(sic), para ―o tímido tem dificuldade para arranjar um
profissão‖, ao contrário de um sujeito/aluna que se coloca conscientemente diante do objeto

118

linguagem e faz suas ―escolhas‖ a partir do conhecimento lingüístico que possui, temos sim,
um sujeito alienado a um funcionamento linguístico discursivo e aos efeitos que tal alienação,
que tal submissão produz em seu dizer, materializado, nesse evento, em sua escrita.
Busquemos tentar compreender então essa ressignificação que a aluna deu a seu dizer,
―na mudança de arranjar imprego‖ para ―arranjar um profissão‖, não enquanto uma
habilidade cognitiva ou perceptual (FELIPETO, 2008, p.123), mas enquanto uma mudança de
posição do sujeito na língua (LEMOS, 2002), efetivada a partir dos pólos fundamentais da
linguagem: processos metafóricos e metonímicos.
Conforme já visto no capítulo anterior deste trabalho, Lemos (2002) utiliza-se das
mudanças subjetivas de posição do sujeito na língua para buscar compreender a aquisição da
língua falada por crianças.
A autora destaca ainda que, essas posições estão diretamente ligadas à escuta que a
criança fará de sua fala e da fala do outro (interlocutor/ adulto).
Vejamos então, o que pode ter ocorrido, que ―escuta‖ terá feito

a

aluna

Maria

Gilvanete, na primeira versão de seu texto, para a emergência de ―um profissão‖, na segunda
versão.
Apesar de indeterminada, a intervenção que a professora fez na primeira versão do
texto de Gilvanete, provocou uma ―escuta‖ na aluna, uma vez que houve uma ressignificação
do que havia sido escrito.
No entanto, essa escuta não coincidiu com a escuta da professora – escuta nãocoincidente); uma vez que, onde a professora escutou em problema ortográfico – imprego, no
lugar de emprego, a aluna escuta um problema lexical, fazendo emergir na cadeia
sintagmática a palavra profissão; o que pode ser compreendido pelas relações estabelecidas
pelo funcionamento da língua, que abrem um eixo metafórico, assentado por uma possível
semelhança semântica entre ―imprego‖ (sic) e profissão.
Quanto à emergência do artigo indefinido um, precedendo o substantivo feminino
profissão, acreditamos ter sido inconsciente e metonimicamente ―convocado‖ pelo
significante anterior ―imprego‖ – substantivo masculino), mostrando mais uma vez, um
sujeito que não detém total controle sobre sua escrita, que muitas vezes, sequer ―escuta‖ o
―estranhamento‖ que essa mesma escrita produz, como ocorreu em ―arranjar um profissão‖.
Desse modo, mais uma vez corroboramos com Lopes (2005, p.73) quando afirma que ―o
sujeito que produz o erro singular não o produz por determinação própria mas pelo seu
submetimento ao funcionamento da língua, no qual o lugar onde o erro emerge é o lugar da
―brecha‖, da quebra do todo, em que o real da língua se mostra‖.

119

Quanto à emergência dos pontos de interrogação no final dos quatro últimos
parágrafos na segunda versão do texto, gostaríamos de destacar primeiramente a intervenção
que a professora fez para ―cobrar‖ da aluna a ausência de alguns sinais de pontuação na
primeira versão de seu texto. Vejamos:
―Veja os sinais de pontuação que você deixou de usar‖
Que ―escuta‖ faríamos deste enunciado? Especialmente se, nas ―brechas‖, nas lacunas
em que os sinais deveriam estar, fosse colocado qualquer sinal de pontuação?
Desse modo, não podemos desconsiderar aqui, a ―ambigüidade‖ da intervenção da
professora, uma vez que, ao mesmo tempo em que objetiva chamar a atenção da aluna para a
ausência dos sinais de pontuação, remete também, e principalmente, à idéia de que a mesma
―veja‖, ―olhe‖, aqui estão os sinais que você deveria ter usado e não usou. Acreditamos que a
professora registra o sinal de interrogação no texto da aluna como um procedimento corrente
de correção, utilizado por muitos professores, para indicar algo que falta no texto que está
sendo corrigido. Mas, diante do que foi solicitado à aluna (―Veja os sinais de pontuação que
você deixou de usar‖), o enunciado aponta, então para dois caminhos: indicar a falta de
alguma coisa, ou mostrar o sinal de pontuação que deveria estar ali, naquele lugar no texto.
Daí a ambiguidade do enunciado indicativo para correção, e a escuta da aluna para uma das
possibilidades da interferência, adotando a pontuação sugerida na escrita da segunda versão
do seu texto. A esse respeito Ferreira (2000), afirma:
―Os enunciados ambíguos, como ocorre com os demais enunciados, ―reclamam
interpretação. O que talvez os distinga é que eles vão convocar uma atuação mais
efetiva e atenta dos interpretantes que, eventualmente, poderão ―tropeçar‖ em
certas construções‖, (FERREIRA, 2000, P.60, grifos nossos).

Esta mesma autora, reportando-se a Freud (1967), destaca que, ―o problema da
interpretação é colocado no emissor, o qual não sabe conscientemente o que quis dizer
inconscientemente‖, (FERREIRA, 2000, p.61 – Grifos Nossos)
Corroboramos com a assertiva acima, ao acreditarmos que, talvez ao deparar-se
novamente com o que enunciou na intervenção que fez, a própria professora ―escute‖,
concorde, com a ambigüidade de seu dizer.
Por outro lado, Milner (1987) afirma que em matéria de língua ―tudo não se diz‖, e,
em assim sendo, será sempre impossível que, tanto a professora, como a aluna ou qualquer
outro sujeito, diga tudo; pois, em qualquer ato interlocutivo – oral ou escrito – para o que se

120

apresenta; para o que emerge na cadeia manifesta, ―há uma série que permanece latente, que
não se diz‖ (ASSIS, 2009, p.80)
Do mesmo modo que na ocorrência anterior ―imprego‖ x ―um profissão‖, não
acreditamos que nesse outro episódio a aluna tenha efetuado qualquer reflexão metalinguística
para adotar em seu texto os pontos de interrogação – colocados pela professora na primeira
versão, como indicação de que faltava algo ali.
Defendemos, desse modo, conforme postula Lemos (2002) que nesse momento a
aluna encontra-se ―afetada‖ pela primeira posição, na qual, o sujeito, ―alienado‖ à fala do
outro, não ―descola‖ do dizer deste; dito de outro modo, a aluna vê, mas não enxerga, ouve,
mas não escuta, não descola dos significantes do outro, neste caso, o dizer da professora;
―veja os sinais de pontuação que você deixou de usar‖.
E foi assim que, imersa nesse jogo de significantes – sinais de pontuação (latentes) e
pontos de interrogação (manifestos na escrita da professora) – que, metonimicamente, um a
um os pontos de interrogação inscritos pela professora na primeira versão do texto de
Gilvanete, emergem em seu processo de reescrita; deixando amostra também de um ―já dito‖
que permeia o universo simbólico da maioria dos alunos, qual seja: a professora detém o
saber; portanto, sem sequer refletir, a aluna ―reproduz‖ o que ela sugere, gerando dessa forma,
mais uma ―ocorrência singular no processo de reescritura, marcada pela ―escuta‖ – não menos
singular – de uma interferência, de uma escrita, de um dizer, ambíguo e indeterminado. Dizer
esse, salientamos, produzido por um sujeito – professora – também ―submetida‖ aos efeitos da
língua.
Encerramos este percurso destacando que, tanto as interferências feitas pela professora
nos textos dos alunos, quanto a escuta que estes fizeram de tais interferências, nos revelaram
que, nessa relação singular que se estabelece entre escrita e escuta, ambos os sujeitos
envolvidos no processo de produção textual, (professora e alunos), sofrem os efeitos da
interpretação; interpretação esta que, muitas vezes, revela os efeitos de uma língua em
funcionamento, a que, inconscientemente, estamos o tempo todo submetidos.
Asssim, ao intervir nos textos dos alunos, o professor não pode, nem deve, se valer de
práticas homogeneizadoras, ambíguas, e/ou generalizadas, partindo do pressuposto de que
todos os alunos ―escutarão‖ suas intervenções da mesma forma, de que seu dizer terá para
todos o mesmo efeito de sentido, desconsiderando que, antes de mais nada, existe ali um
sujeito que sofre, o tempo todo, os efeitos de uma língua em funcionamento.
Percebemos, nas análises que aqui empreendemos, que as intervenções feitas pela
professora, não garantiram a melhoria dos textos dos alunos, mas, pelo contrário, tivemos

121

intervenções que pioraram o texto, pois produziram nos alunos um movimento restritivo, em
que termos e/ou períodos significativos, presentes na primeira versão, foram ―apagados‖,
―silenciados‖, suprimidos na versão reescrita. Fato esse, em decorrência da tensão provocada
entre o que a professora escreveu e o que o aluno escutou, escuta essa que, como vimos, em
alguns momentos levou o aluno a dar à sua escrita um caminho imprevisível, insuspeitado,
singular.
Assim, destacamos que, ao pensar na didática do trabalho com produção de textos,
especificamente nas aulas de Língua Portuguesa, os professores deverão de fato, conceber
essa atividade como um processo que não se dará de uma hora para outra e reservarem, em
suas aulas, um espaço de escritura para que o aluno possa se voltar sobre o seu texto, ―escutálo‖, sofrer os efeitos de sua escuta e de sua escrita, e que, as heterogeneidades das
intervenções didáticas sobre os textos dos alunos, não incidam apenas sobre os aspectos
formais, e que, a emergência de algumas ―ocorrências singulares‖, não sejam vistas como
falta de atenção, brincadeiras do aluno ou mesmo como indícios de um não-saber, mas, como
―pontos heterogêneos em que o sujeito se mostra pela dominância da língua e pelos deslizes
dos sentidos‖, (CALIL, s/d, p.20).

122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

―O trem que chega é o mesmo trem da partida.‖
Milton Nascimento e Fernando Brant

As considerações aqui postas encerrarão um percurso, todavia não cessarão os
questionamentos; pois, se é verdade, conforme postula Milner (1987) que, ―tudo não se diz‖, muito
haverá ainda a se dizer das parcas palavras que aqui foram expostas e, de alguma forma, as
inquietações esboçadas no início deste trabalho acabam retornando de um ―lugar outro‖ (CALIL, s/d).
Assim, os questionamentos anteriormente postos ― traduzidos nos objetivos deste trabalho ―
acabaram por nos levar a outras inquietações, a outros questionamentos; quais sejam: ―que escuta faria
a professora da escuta que os alunos fizeram de suas intervenções? Que escuta, que interpretação faria
de sua própria escrita? E mais,que efeitos teria sua escrita sobre sua escuta? Deixemos porém, estas
inconclusões para outro percurso, para outras ―partidas‖.
Neste trabalho ― ao partirmos da hipótese de que de as intervenções feitas por uma professora
em produções escritas (por três alunos do segundo ciclo do Ensino Fundamental), por si só não
garantiriam a melhoria dos textos no processo de reescritura; mas pelo contrário poderia levá-los a
caminhos imprevisíveis ― tratamos especificamente de escrita e de escuta. Não de uma escrita
padronizada, homogeneizada, ―regular‖, que nunca nos ―escapa‖; mas de uma escrita ― emergida
nesta pesquisa, a partir das interferências da professora e dos manuscritos dos alunos ― ―atrelada‖ a
uma escuta, enquanto ―instância subjetiva‖, conforme postula Lemos (2002), que permitiu que ambos
os sujeitos (professora e alunos), atuassem sobre o texto a partir da posição que ocupavam ―
enquanto ―outro‖, professora, que lia procurando os ―erros‖, corrigindo, escutando problemas nos
textos a partir do que ―constituía texto‖ (CALIL, 2000) para ela; e enquanto ―scriptor‖, aluno, que,
imerso no que é próprio do processo escritural, voltou-se para sua escrita, a partir de uma ―escuta
singular‖, provocada por algo que o inquietou, que causou-lhe ―estranhamento‖ (FELIPETO, 2008) e
cujo funcionamento simbólico estava ―muito além das intenções e objetivos da professora‖ (CALIL,
s/d).
Foi uma dessas ―escutas singulares‖, provocada por uma escrita não menos singular, que
trouxe para a cadeia manifesta ―sansão‖ ― ocorrência singular que nos interrogou no último capítulo
deste trabalho ― nosso ―outro‖, nosso ―terceiro termo‖ (LEMOS, 2002), metaforicamente convocado
a partir do entrelaçamento entre ―gulias‖ (sic), (primeira versão) e ―Sansão‖, (termo latente); termo
este que emergiu da escuta que o aluno fez da seguinte intervenção da professora: ―o nome do
personagem é gulias mesmo‖? Interferência esta que, se à professora pareceu óbvia, clara, coincidente;

123

para o aluno tornou-se um ponto de‖ tensão‖ (CALIL, s/d), deixando-o, desse modo, dividido entre ―o
olhar que relê e a mão que escreve‖ (FELIPETO, 2008, p.67).
Assim, como este trabalho tratou também de educação, de ensino de Língua Portuguesa, ao
trazer à tona os efeitos que as intervenções de uma professora podem provocar no processo de
reescritura dos alunos, julgamos necessário tecer aqui algumas considerações; a saber: ao intervir no
texto do aluno, não podemos e nem devemos nos valer de práticas homogeneizadoras e padronizadas,
uma vez que, na sala de aula, nas carteiras escolares, não existem seres pares, homogêneos, estáticos,
―regulares‖, ―padronizados‖; mas, pelo contrário ― e especificamente neste trabalho ― estamos
falando de sujeitos (alunos e professores) singulares em suas especificidades, em suas ―escutas‖ em
seu ―fazer texto‖; sujeitos estes que estão em constante movimento e que não cabem unicamente
naquilo que sabem (ou julgam saber), não cabem na escrita ―bem acabada‖ da escola; estes sujeitos a
ultrapassam, vão além do esperado, do previsível, do regularmente ―aceitável‖ e/ou explicável pelas
vias da regularidade, da previsibilidade de nosso sistema linguístico.
Outrossim, destacamos que, a ―ajuda do professor‖― autorizada pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (BRASIL, 1998) ―, no processo de refacção textual dos
alunos, por si só não garante o retorno do aluno sobre sua escrita, uma vez que se parte de um
imaginário de que, a interferência do professor irá colocar a escrita dos alunos dentro dos limites e
normas da língua padrão. No entanto, costuma-se ―esquecer‖ e/ou mesmo desconhecer que, no
processo escritural há todo um jogo de significantes, de ―outras vozes‖,68 de ―diálogos entre textos‖
(CALIL, s/d, p.18), significando o confronto e a ―tensão‖ a que está submetido o sujeito escrevente.
Nesse sentido, a ―ajuda‖ do professor no processo de ―aquisição‖ da escrita formal por alunos
dos anos finais do ensino fundamental ― bem como em qualquer outra fase ― deve estar pautada por
um trabalho didático que reserve, nas aulas de produção de textos, um espaço de escritura, para que o
sujeito/aluno se volte sobre seu próprio texto e, desse retorno, sofra seus efeitos, como nos revelaram
as ocorrências singulares emergidas no processo de reescritura dos manuscritos trazidos para analise
neste trabalho.
De outro modo, se continuarmos homogeneizando as práticas de produção textual e partindo
do pressuposto de que basta intervir no texto do aluno para que ele o ressignifique dentro da
―previsibilidade‖ esperada, desconsiderando a relação entre ―sujeito, língua e sentido, incorremos no
risco‖ de termos ― parafraseando Milton Nascimento e Fernando Brant ― ―os alunos que chegam (no
último ano do ensino fundamental) apresentando as mesmas dificuldades da ―partida‖.
Desse modo, longe de almejarmos aqui apontar caminhos, soluções e/ou encontrar ―culpados‖
pelas escutas não-coincidentes, buscamos neste trabalho, tentar compreender o que envolve o processo
de escritura na escola ― escrita e reescrita ― não a partir de uma interação entre interlocutores
(alunos e professora) que controlam o tempo todo seus dizeres, que agem conscientemente com e

68

Dufour, 2000.

124

sobre a linguagem, em uma relação recíproca e linear; mas tratamos de uma interação entre sujeitos
que estão continuamente submetidos ao funcionamento linguísticodiscursivo que pode, a qualquer
momento, levá-los a equívocos, a deslizes, a ―erros‖ imprevisíveis; enfim, à emergência de escutas e
escritos singulares.

125

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130

ANEXOS

131

TEXTO 01
PRIMEIRA VERSÃO

132

133

TEXTO 01
SEGUNDA VERSÃO

134

135

TEXTO 02
PRIMEIRA VERSÃO

136

137

138

TEXTO 02
SEGUNDA VERSÃO

139

140

141

TEXTO 03
PRIMEIRA VERSÃO

142

143

144

TEXTO 03
SEGUNDA VERSÃO

145

146

QUESTIONÁRIO
ENTREVISTA CO A PROFESSORA

147

148

149