Frazio Valdez Tenório Cavalcante
Título da dissertação: A “RASURA ESCRITA” EM POEMAS INVENTADOS POR ALUNOS DE 2º E 3º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: ANÁLISE DE SUAS OCORRÊNCIAS
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
A “RASURA ESCRITA” EM POEMAS INVENTADOS POR
ALUNOS DE 2º E 3º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
ANÁLISE DE SUAS OCORRÊNCIAS
Frazio Valdez Tenório Cavalcante
Maceió-AL
2010
1
FRAZIO VALDEZ TENÓRIO CAVALCANTE
A “RASURA ESCRITA” EM POEMAS INVENTADOS POR
ALUNOS DE 2º E 3º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
ANÁLISE DE SUAS OCORRÊNCIAS
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação Brasileira da
Universidade Federal de Alagoas, como
requisito para a obtenção do título de Mestre
em Educação.
Orientador: Professor Pós-doutor Eduardo Calil de Oliveira
Maceió-AL
2010
2
3
A Lara e Paorã, por serem a razão de tudo.
4
Agradecimentos
Agradeço a Deus pelos milagres que vem realizando diariamente em minha
vida e por me dar forças para cumprir mais uma etapa dessa curta e
fundamental jornada terrena.
A minha amada esposa Lara, pelo apoio incondicional, por às vezes abdicar de
seu tempo e interesses para me amparar e por saber o que realmente importa.
Agradeço pelas leituras, comentários, discussões e revisões deste texto e por
ser uma mãe e esposa maravilhosa.
Ao meu amado filho Paorã, pois cada sorriso seu é uma lembrança de que eu
tenho de ser uma pessoa sempre melhor!
Aos meus pais, por sempre acreditarem em mim, pelo incentivo e amor.
Aos meus irmãos e a Dona Neide, pela torcida.
Ao professor e orientador Eduardo Calil, pela (pa)ciência, desde os tempos de
iniciação científica, na graduação, até hoje. Pelas disciplinas, nesses três
semestres na pós-graduação, e pela orientação individual, sempre me
encaminhando para o melhor desenvolvimento desta pesquisa.
Às professoras Sônia Cristina Simões Felipeto e Anamelea de Campos Pinto,
pelas valiosas sugestões na banca de qualificação.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (FAPEAL) por
financiar esta pesquisa e possibilitar minha exclusiva dedicação a ela.
Aos professores, colegas e funcionários do Programa de Pós-Graduação em
Educação do Centro de Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas, minha gratidão.
5
“Oxe, não é todo vez que o cara acerta não, véio!”
Valdemir Gomes da Silva
Extraído do “manuscrito oral” da produção do poema “Raridade”.
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RESUMO
Esta pesquisa analisa a ocorrência das “rasuras escritas” presentes no produto
final de três poemas inventados por duplas de crianças de 2º e 3º ano do
Ensino Fundamental de uma escola filantrópica localizada na periferia de
Maceió. Surge da necessidade de se investigar o que está por trás da rasura,
seus bastidores e suas forças propulsoras, entendendo-a não como um fim em
si mesma, mas como um meio para perquirir as idas e vindas do scriptor e os
embates por ele travados com a linguagem. O processo de escritura em ato é
analisado após a transcrição pelo anotador/pesquisador da filmagem das
produções das crianças, utilizando-se dos recursos do programa ELAN (Eudico
Linguistic Annotator), um software possuidor de ferramentas profissionais para
a criação de anotações complexas de recursos de áudio e vídeo. Muito embora
abordem-se “rasuras escritas”, assim entendidas aquelas que deixam marcas
na folha de papel, a análise não se restringe ao produto final dessas práticas
de textualização, mas sim, considera todo o contexto em que a rasura foi
produzida. Assim, parte-se da perspectiva de que é imprescindível observar e
analisar o processo de escritura em ato, para se entender em que
circunstâncias e até mesmo por que certa rasura foi feita. A valorização do
processo, em detrimento de um estudo adstrito ao produto final, revela
importantes aspectos da relação entre sujeito e linguagem. Tendo a “rasura
escrita” como ponto de partida e estudando-a à luz do processo de escritura
em ato, percebe-se que o erro não é pressuposto da rasura, tampouco o
desconhecimento é pressuposto do erro. Por meio desta metodologia é
possível identificar momentos em que a linguagem opera sobre o scriptor, seja
engessando-o em estruturas preestabelecidas, conduzindo-o em direções
inesperadas e, por vezes, indesejadas, quando não simplesmente o
desampara ou o impede de continuar, momentos exteriorizados pelo silêncio
que, muitas vezes, precede o ato de rasurar.
Palavras-chave: rasura, processo de escritura em ato, produção de texto.
7
ABSTRACT
This research analyzes the occurrence of “written erasures” present in the final
product of three poems invented by couples of 2nd and 3rd grade children of a
philanthropic school situated in a Maceió suburb. It emerges from the need to
investigate what is behind the erasure, its backstage and its propulsory forces,
by understanding it not as an end in itself, but as the means to investigate the
comes and goes of the scriptor and the engagement between him and the
language. The process of scripture in act is analyzed after the transcription by
the annotator/researcher of the children´s production footage, for which the
resources of the program ELAN (Eudico Linguistic Annotator) are used, a
software holder of professional tools for the creation of complex annotations of
audio and video resources. Even though the main object are the “written
erasures”, understood as those that leave marks on the paper sheet, the
analysis made is not restricted to the final product of this textual practices, in
fact, it considers all the context in which the erasure was produced. Therefore, it
all starts with the perspective in which it is indispensable to observe and
analyze the process of scripture in act, so that the circumstances and even the
reason why certain erasure was made can be understood. The praising of the
process, in detriment of a study focused only in the final product, reveals
important aspects of the relation between subject and language. Having the
“written erasure” as a starting point and by studying it under the light of the
scripture in act process, it realizes that the error is not indispensable for the
existence of an erasure, neither ignorance is a determiner factor for error.
Through this methodology it is possible to identify moments in which the
language operates over the scriptor, whether it frozens him in pre-established
structures, conducting him to unexpected directions and, for times, undesired,
when not it simply deserts him or keeps him from going on, moments
exteriorized by silence that, many times, precedes the act of making the
erasure.
Key-words:
erasure,
scripture
in
act
process,
text
production.
8
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 10
1 BASE TEÓRICA ........................................................................................... 14
1.1 Fabre e a rasura .................................................................................... 15
1.2 Abaurre e o singular ............................................................................. 17
1.3 O produto à luz do processo................................................................ 18
1.4 Rasura escrita, rasura oral e suas forças propulsoras ..................... 20
1.5 Authier-Revuz e as não-coincidências do dizer ................................. 23
2 METODOLOGIA ........................................................................................... 27
2.1 Coleta de dados e o projeto didático................................................... 27
2.2 A pré-produção ..................................................................................... 31
2.3 A transcrição no ELAN ......................................................................... 32
2.3.1 As trilhas no ELAN .............................................................................. 33
2.3.2 Outras ferramentas do ELAN .............................................................. 34
2.3.3 A visualização da transcrição no ELAN .............................................. 42
3 RARIDADE ................................................................................................... 45
3.1 “Óia! Eita! Bonitinha não, gordinha!”: suas potencialidades ........... 62
4 O NADA E ESTRADA................................................................................... 67
4.1 As forças do “nada” ............................................................................ 69
4.2 Nasce uma flor! ..................................................................................... 72
4.3 Na escrita do verso aparece algo “sem sentido” .............................. 76
4.4 Silêncio, desamparo e a rasura ........................................................... 79
5 AS MENINAS ................................................................................................ 83
5.1 A pré-produção e as rimas ................................................................... 83
5.2 Novos nomes de meninas, novas rimas ............................................. 88
5.3 A Esmeralda trocava fralda e tocava flauta, ou melhor: “Esmeralda
tocava flauda” ............................................................................................ 90
5.4 A Geane................................................................................................ 101
5.5 “E Geane gritava: ‘olha o enxame!’” ................................................. 105
5.6 “Mundiça saiu com Geane” ............................................................... 107
5.7 “Geane não rima com enxame” ........................................................ 110
5.8 Silêncio, desamparo e a rasura (mais uma vez) ............................... 113
5.9 Transformando “O” em “A” ............................................................... 116
9
5.10 Maiúsculas, minúsculas e a rasura ................................................. 118
5.11 A rasura do verso .............................................................................. 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ 123
REFERÊNCIAS ................................................................................... 127
APÊNDICE E ANEXOS ...................................................................... 129
10
Introdução
A presente pesquisa propõe-se a analisar a ocorrência de “rasuras
escritas” que emergem em manuscritos escolares, produzidos por duplas de
alunos do 2º e 3º ano do Ensino Fundamental do Centro Educacional Miosótis,
uma escola filantrópica localizada na periferia da cidade de Maceió.
Nosso trabalho buscou revelar os bastidores da rasura, ou seja, o que
está envolvido no ato de rasurar, que aspectos e elementos do processo de
escritura criativa interferem nas in(decisões) do sujeito e, principalmente, como
a linguagem opera sobre ele.
As “rasuras escritas”, mais do que fim, são fecundos pontos de partida
para a investigação das relações e embates que o sujeito trava com a
linguagem. São marcas visíveis, concretas, deste confronto e, por isso, servem
como guia, senha, pista para o entendimento de seu funcionamento e
ocorrência.
Foram analisadas três filmagens pertencentes ao banco de dados
“Práticas de textualização na escola”, do Centro de Educação da Universidade
Federal de Alagoas. Cada vídeo consiste em todo o processo de escritura em
ato, em que duplas de alunos combinam a criação de um único texto. Neste
caso, especificamente, trata-se de poemas, uma vez que essas atividades de
textualização estavam inseridas no projeto didático “Poema de cada dia”,
oferecido à escola como suporte pedagógico.
Tem-se, também, nesses dados, toda a consigna da atividade e
discussões prévias entre alunos e condutor(a). Introduze-se o termo “préprodução” para designar os momentos que antecedem a produção do texto em
si. Tais acontecimentos ficam em evidência à medida que se identifica sua
estreita relação com as rasuras procedidas.
Em todos os três casos, o dinamizador(a) utiliza-se de um “texto
espelho”, um texto de referência, provocador de discussões e suscitador de
elementos a serem utilizados no poema próprio a ser criado. É à luz de todos
11
estes elementos que se analisa a rasura, e se defende que sem os tais não se
poderia ir muito adiante neste estudo sobre ela.
Por meio da captação de imagem e áudio do processo de escritura,
pode-se observar todo o caminho trilhado pela dupla em direção ao produto
final e assim perceber suas intenções, impasses, silêncio, e a rasura.
Utiliza-se o software ELAN (Eudico Linguistic Annotator) como
ferramenta dinamizadora da análise deste processo. Trata-se de um programa
de computador produzido especificamente para a anotação/transcrição de
arquivos de áudio e vídeo. Ele permite a visualização organizada da filmagem e
das inscrições feitas pelo anotador. Por meio de seus recursos é possivel
percorrer todo o vídeo com facilidade, identificando as circunstâncias
relevantes para o estudo proposto, propiciando a observação das discussões,
argumentos, dúvidas e retificações a que os alunos procederam durante a
produção dos poemas.
Assim, o foco de análise não será unicamente o produto escrito, mas sim
o processo de escritura em ato capturado e registrado por meio de filmagens
realizadas em contexto de sala de aula. Essa metodologia, que possibilita uma
significativa visualização das idas e vindas próprias de um processo de criação,
tem produzido o que Calil (2008, p. 47) nomeou “manuscrito oral”.
Nossa perspectiva teórica parte da premissa que compreende o sujeito e
a linguagem como sendo mutuamente constituídos. Longe de entender o
scriptor como senhor absoluto de suas intenções, texto e linguagem – em que
a rasura seria a evidência dessa relação de controle –, percebe-se que a
linguagem permeia o sujeito, refreando-lhe e modificando-lhe as intenções,
levando-o a caminhos inesperados, para depois, por vezes, abandoná-lo.
No primeiro capítulo delineia-se o panorama teórico que permeará as
análises que se seguirão. São trazidos à cena os trabalhos de Fabre,
descrevendo as quatro operações metalinguísticas por ela identificadas nas
rasuras, e de Abaurre, que privilegia o dado “singular”.
Mostra-se que essas pesquisadoras, ao elegerem a rasura como objeto
de estudo, valorizam seu estatuto no processo de criação de texto, apesar de
observadas restrições metodológicas, uma vez que seus objetos de análise
incidem exclusivamente sobre o produto final.
12
Trata-se, então, da teorização de Calil e Felipeto que incluem o processo
de escritura em ato em suas análises. Demonstra-se ser fundamental o acesso
ao processo de produção para uma análise mais completa e precisa da rasura.
Esse novo paradigma metodológico faz emergir caminhos teóricos diferentes
no que se refere ao sujeito, língua e sentido. Expõem-se as forças propulsoras
da rasura teorizadas por esses pesquisadores.
Busca-se relacionar as rasuras orais contidas na sequência de
enunciados que precedem a rasura escrita com os trabalhos de Jaqueline
Authier-Revuz sobre as não-coincidências do dizer. Enfatiza-se que essa
aproximação acontece em suas potencialidades.
No segundo capítulo, são explicitados os procedimentos metodológicos,
inclusive abordando o programa ELAN, suas ferramentas e relevância como
grande diferencial neste trabalho. Explana-se o projeto didático “Poema de
cada dia”, que resultou nas práticas de textualização filmadas.
Depois, no terceiro capítulo, analisa-se a rasura do verso “para o homem
jantá-la”, do processo de escritura que resultou no poema “Raridade”,
produzido pelos alunos Valdemir e José Antenor. Nesta análise, percebe-se
que estruturas que não aparecem no produto final podem ser determinantes
para a rasura e que esta não necessariamente pressupõe um erro.
No capítulo quatro, vê-se as “forças da linguagem” atuando sobre os
scriptores, engessando suas possibilidades – ao restringi-las a estruturas
anteriormente apresentadas –, e desamparando-os, o que se evidencia pelo
longos momentos de silêncio que precedem a rasura do verso “nasce uma flor
sem querer nascer”, do poema “O nada e estrada”, criado pela dupla Valdemir
e Wellington.
Nas análises dos capítulos três e quatro, identificam-se as nãocoincidências do dizer, por meio dos enunciados metarreflexivos dos alunos,
quando estes se relacionam com a “rasura escrita”.
Finalmente, no quinto capítulo, tem-se a produção do poema por nós
intitulado “As meninas”, em que, mais uma vez, observam-se os alunos
Valdemir e José Antenor em sua produção textual. Nesta análise, vê-se que a
linguagem impõe-se, por vezes, aos scriptores de maneiras nem sempre
percebidas por eles. Identificam-se, também, os momentos de desamparo,
representados no processo como o silêncio que antecede a rasura.
13
Assim, são observados durante todo este trabalho os embates que os
scriptores travam com a linguagem e seus momentos de tensão na
escolha/imposição de seus (des)caminhos.
14
Capítulo 1 – Base Teórica
Esta pesquisa analisa os momentos de ocorrência das rasuras
presentes em poemas escritos por duplas de alunos do Ensino Fundamental de
uma escola filantrópica localizada na periferia de Maceió. A dupla foi filmada
durante o processo de escritura em ato com a finalidade de produzir um único
texto. Essas filmagens aconteceram durante a aplicação de um projeto didático
intitulado: “Poema de cada dia”1.
Emprega-se a expressão processo de escritura em ato utilizado por Calil
(2008) para designar a análise dos processos de produção durante o momento
em que a dupla está escrevendo (CALIL 2008, p. 43). Ressalta-se que as
análises não se restringem ao produto final, ou seja, o texto acabado escrito na
folha de papel, resultado dessas práticas de textualizações na escola, porém
analisa-se todo o percurso trilhado pelos scriptores2, suas enunciações,
discussões, argumentos, dúvidas e retificações. Esses preciosos momentos
evidenciam as complexas relações existentes entre sujeito, língua e sentido.
Muitas pesquisas em aquisição e aprendizado da língua escrita que
estudam a rasura escolhem a escola como lugar privilegiado para coleta de
dados. Entre estas pesquisas destacam-se os trabalhos de Fabre (1986, 1990,
2001), Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson (1997), Calil e Felipeto (2000), Calil
(2004, 2008), Felipeto (2008), entre outros. Porém, cada estudo assume
perspectivas teóricas e procedimentos metodológicos distintos.
São apresentados a seguir os fundamentos dessas pesquisas e sua
relação com a rasura.
1
2
Detalhamos os dados referentes a este processo no item Metodologia.
Calil (2008) usa o termo “scriptor” para distingui‐lo de “escrevente”. Com esse termo ele procura, “por
um lado, evitar o sentido atestado no dicionário eletrônico Houaiss (2001): “diz‐se de ou aquele que, por
profissão, copia o que outro escreveu ou dita; escriturário, copista”; por outro, manter o termo
consagrado nos estudos sobre processos de escritura e criação, em que não se tem um escritor “senhor”
de sua escritura, mas sim um sujeito dividido, cindido, muitas vezes refém daquilo que escreve (op. cit.,
p.20).
15
1.1 Fabre e a rasura
A pesquisadora francesa Claudine Fabre, pioneira nos estudos de
rasuras produzidas por escolares nas séries iniciais do Ensino Fundamental,
busca descrever em suas pesquisas as atividades metalinguísticas por meio
das rasuras deixadas no texto dos alunos (FABRE, 1990, 2001).
Fabre defende que todas as rasuras são marcas de um “retorno sobre” o
escrito, portanto, são atividades que expressam algum grau de reflexão sobre a
linguagem.
Suas análises enfocam sobre os textos escritos por alunos com idade
entre 6 e 10 anos que frequentavam o Curso Preparatório, Curso Elementar e o
Curso Médio, conforme o sistema de ensino Francês, o que corresponde aos
cinco primeiros anos do nosso Ensino Fundamental. Ela utiliza uma
metodologia bem específica, composta de algumas etapas para esse processo
de escritura.
Primeiro, a pesquisadora solicitava aos professores que todos os seus
alunos, em situação de sala de aula, produzissem um texto. Porém, ela não
definia o tipo de texto nem suas condições de produção. Poderia ser um texto
argumentativo, descritivo, produzido na aula de língua francesa ou ciências.
Outra característica envolvida nesse processo, que persiste até os dias atuais
nas práticas de produção de textos nas escolas, é a de que esses textos não
exerciam uma função social, ou seja, o único suposto leitor era o próprio
professor, com a finalidade de “corrigi-lo”.
Sob essas condições, solicitava-se dos alunos a produção de textos,
respeitando-se prioritariamente três etapas: a primeira consistia na escrita de
rascunhos com caneta de cor azul ou preta; a segunda era a releitura desse
rascunho com a finalidade de fazer possíveis correções com uma caneta de cor
vermelha; e, por fim, a terceira etapa concluía-se com a cópia desse texto com
uma caneta de cor verde.
Fabre analisa cerca de 300 textos e afirma que essas rasuras são
“marcas da função metalinguística em atividade” (1990, p.39). Assim, a autora
expõe quatro operações metalinguísticas, a saber: supressão, substituição,
deslocamento e adição.
16
A supressão apresentou maior ocorrência nos textos analisados por
Fabre; nela, o termo escolhido é riscado, rasurado e não substituído. Essas
rasuras marcam a decisão do autor em suprimir, diante de uma dificuldade, o
que já foi escrito e descartá-lo.
Já na substituição o termo é trocado por ele mesmo, ou por outro.
Quando um termo é substituído e volta novamente à tona, para Fabre essa
hesitação mostra a dificuldade do escritor novato em “escolher” o melhor. Ela
ainda acredita que quando um termo é rasurado e substituído por outro, isso
indica um índice de “criatividade” do escritor (1986, p.78).
Quando existe uma antecipação ou repetição dos grafemas, sílabas ou
da palavra, inteira ocorre o deslocamento. A autora explica que uma das
formas de “deslocamento”, por exemplo, acontece “talvez porque a motricidade
da mão vai, especialmente nos escritores novatos, menos rápido que a palavra
internalizada” (Idem, p.76).
Finalmente, sobre a adição, que representa o menor número de
ocorrências, a autora nos diz que ela é índice de um procedimento de correção
que conserta uma omissão anterior (Idem, ibidem). Essa operação efetiva-se
através de um retorno sobre o escrito, de modo que um termo aparece sem ser
substituído por nenhum elemento precedente.
Felipeto, ao comentar essa última operação defendida por Fabre,
questiona: “uma seqüência AB torna-se, por ocasião da volta ao texto, XAB,
AXB ou ABX. Mas, se a adição não apresenta nenhuma marca, como traços,
rabiscos, sinais de apagamento, etc., como tratá-la em termos de rasura?”
(FELIPETO, 2008, p.55).
Outra questão trazida à cena por Felipeto, ainda sobre o trabalho de
Fabre, são as fronteiras existentes entre as quatro operações. Ou seja, de
acordo com as definições acima propostas, pode-se considerar que na
“substituição” há uma “supressão” e “adição”, ao passo que o
“deslocamento” supõe uma “supressão” inicial seguida de uma
possível “substituição” ou “adição”. Apesar da própria autora
comentar estes pontos de inter-relação entre as operações (1987:16),
podemos perguntar quais os limites entre elas e como estabelecê-los.
Ou ainda, como uma pode estar produzindo à outra? (FELIPETO,
2008, p.57).
!
17
A metodologia que Fabre desenvolve em suas pesquisas permite que
ela possa descrever e quantificar as rasuras. No entanto, suas análises
limitam-se às folhas de papel (produto final) que apresentam as rasuras
efetivadas pelos alunos, demonstrando um movimento de supressão,
substituição, deslocamento ou adição. Portanto, essas análises não “permitem
avançar na reflexão sobre os processos criativos em curso na escritura desses
textos” (CALIL, 2008, p.41). Também, isso
(...) não ajuda muito a entender o que pode interferir em sua
produção, que tipo de problema o aluno reconhece em seu texto
quando troca uma palavra por outra ou quando e por que acrescenta
um termo ou uma expressão onde antes não existia nada (Idem,
ibidem).
1.2 Abaurre e o singular
Já em um de seus trabalhos, Abaurre, Fiad & Mayrink-Sabinson tentam
mostrar que as rasuras refletem um “trabalho de modificação de algo
anteriormente
escrito
sob
forma
diversa,
[no
qual]
escondem-se
freqüentemente limitações, as mais variadas, reveladoras das singularidades
dos sujeitos e da relação por eles estabelecida com a linguagem” (1997, p.24).
Diferenciando-se dos estudos de Fabre, que buscam uma classificação
e descrição das rasuras, essa pesquisa dedica-se a investigar a singularidade
e a heterogeneidade das reformulações que aparecem nos textos escritos por
crianças do Ensino Fundamental brasileiro.
As autoras definem o singular como “aquelas ocorrências únicas que,
em sua singularidade, talvez não voltem a repetir-se jamais” (Idem, p.23).
Para evidenciar essa singularidade, essas pesquisadoras centram suas
análises nos episódios de refacção textual sobre os textos escritos pelos
alunos. Trata, também, do termo “saliência”, ao investigar as motivações que
suscitam as rasuras, concluindo que algumas destas ocorriam em decorrência
de aspectos contextuais e “singulares” que atraíam a atenção do sujeito –
davam “saliência” – a um termo incorreto, especificamente, em detrimento de
outros (Idem, p.25).
Segundo as autoras, as operações metalinguísticas, evidenciadas pelas
rasuras, ocorrem sobre problemas ortográficos ou morfossintáticos que são
18
percebidos pelos alunos por meio das “saliências” e “motivações”, o que os
leva a refletir sobre a linguagem, podendo até manipulá-la conscientemente.
Obeserve-se o que diz Abaurre:
A contemplação de forma escrita da língua faz com que o sujeito
passe a refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas vezes, a
manipulá-la conscientemente, de uma maneira diferente da maneira
pela qual manipula a própria fala (1997, p.23).
Na segunda parte do Curso de Linguística Geral, Saussure expõe a
teoria do valor, a qual define o funcionamento da língua como fundado sobre
dois eixos, a saber, o sintagmático e o associativo, e afirma que “a língua é um
sistema que conhece somente sua ordem própria” (SAUSSURE, 1995, p.31). A
esse respeito cita-se Felipeto quando argumenta:
Gadet (1987, p.63), comentando Saussure, diz que as unidades da
língua seriam produtos de um “mecanismo inobservável”, o que diz
da impossibilidade do sujeito exercer qualquer tipo de controle sobre
este mecanismo, a não ser enquanto efeito Imaginário (Felipeto, 2008
p.69).
Longe de um “controle” ou de uma “manipulação consciente” que o
sujeito possa ter sobre a linguagem, o que se nota em nossos dados é uma
“submissão” ao funcionamento linguístico-discursivo no qual o sujeito está
imerso.
Outro aspecto que se faz necessário frisar quanto ao trabalho de
Abaurre é o fato de a autora encontrar certas dificuldades para determinar o
que foi escrito primeiro nas rasuras, recorrendo a suposições “a partir do
exame cuidadoso do traçado das letras” (ABAURRE, 1997, p.65). A própria
autora reconhece que “a partir da análise do produto final, apenas, é impossível
afirmar com segurança quando e como a criança operou as modificações
indicadas” (Idem, ibidem).
1.3 O produto à luz do processo
Apesar de distintos em relação aos procedimentos metodológicos e
perspectivas teóricas, os estudos de Abaurre e Fabre limitam-se a descrever as
19
operações metalinguísticas e “a atribuir ao escrevente uma intencionalidade,
cuja teleologia poderia ser posta em suspeita” (CALIL, 2008, p 42).
Destaca-se que as pesquisas acima citadas, ao elegerem as rasuras
como objetos de estudo, colocam-nas em um lugar de extrema importância no
processo escritural, porém essas análises se circunscrevem ao produto final
dos alunos, diferente do que se fez nesta pesquisa.
Conforme já dito anteriormente, nossas análises não contemplam
apenas o produto final dos textos produzidos pelos alunos. Reconhece-se que
o produto final exerce uma função primordial; através dele podem-se observar
as marcas deixadas pelos scriptores, a disposição espacial das letras, palavras
e frases no texto, enfim, toda a forma acabada do texto. Porém o acesso aos
diálogos de uma dupla de alunos combinando a produção desse texto é a base
de nossa pesquisa.
Nossa metodologia assemelha-se aos princípios e procedimentos
utilizados por Calil (2004, 2008) e Felipeto (2008). Através dessa metodologia
uma dupla de alunos é filmada em contexto escolar com a finalidade de
produzir um único texto.
Por intermédio das filmagens, além de se ter acesso aos enunciados
empreendidos pela dupla durante o processo de escritura em ato enquanto
combinam a produção de um único texto, tem-se também a oportunidade de
presenciar alguns aspectos que emergem durante esse processo de criação,
tais como: a expressão dos alunos, seus olhares, risos, ironias, quem está
escrevendo, o exato momento em que acontece a rasura no texto, a disposição
das carteiras e a organização da sala, as palavras que foram escritas no
quadro-negro etc. Também se tem acesso á consigna proposta pelo condutor
da atividade antes de se efetivar o processo de produção de texto pela dupla.
Essa consigna também é filmada e exerce um papel fundamental no processo
de criação. Considera-se que todo esse cenário é imprescindível para as
análises, pois o foco está no processo, mais do que no produto.
Felipeto, ao utilizar essa metodologia, demonstra um fenômeno que ela
chama de “altercação”. Esse fenômeno “marca uma polemização no diálogo
entre os alunos, devido a um fato de equivocidade, que surgiu em sua fala ou
escrita, o qual demanda dos alunos uma (re)significação” (2008, p.9).
20
É sobre esses diálogos que serão lançados os olhares para tentar
entender como aconteceu a rasura escrita3 presente nos textos dos scriptores,
que é de fato o objeto dessa análise.
Felipeto usa o termo “altercação” para assinalar as idas e vindas “que
caracterizam vários dos diálogos entre os alunos, marcados tanto por uma
sucessão quanto por uma polemização sobre um elemento que lhes é
heterogêneo, destacado no fio do seu discurso” (Idem, ibidem).
Sobre esta heterogeneidade, nossa análise se inscreve na perspectiva
teórica aberta por Jacqueline Authier-Revuz (1998, 2004), na qual assevera
que todo dizer possui uma heterogeneidade que lhe é constitutiva.
1.4 Rasura escrita, rasura oral e suas forças propulsoras
Antes de adentrar nesse campo teórico aberto por Authier-Revuz é
necessário tecer alguns comentários sobre rasura escrita e oral e suas forças
propulsoras.
Calil e Felipeto (2000) apresentam os resultados de uma investigação
que tenta mostrar o que pode levar o aluno a cometer uma rasura do ponto de
vista linguístico-discursivo. Suas considerações são fundamentais para se
entender o que está por trás deste ato, quais são as forças que o impulsionam
e como se dá o funcionamento das rasuras.
Primeiramente o sujeito rasura aquilo que “parece estar errado”, que lhe
causa um “sentimento de estranheza”. Avocamos, a partir de Freud, que “o
estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e há muito familiar” (FREUD, 1969). Quando esse familiar é quebrado
acontece o estranhamento. Esse estranhamento é “o ponto de partida para que
se produza um efeito de retorno, sem o qual não há rasura, naquilo que o
equívoco já se fez presente ou poderá, a partir da rasura, se instalar” (CALIL E
FELIPETO, 2000, p. 3).
3
O termo “rasura escrita” pode parecer uma redundância, já que quando se pensa em rasura imagina‐se
um retorno sobre o escrito, mas destaca‐se essa expressão para diferenciá‐la da noção de “rasura oral”
definida por Calil (2008).
21
Tem-se então um sujeito que é “afetado pelo seu dizer ou pela sua
escrita, o escutando como “errado” ou insatisfatório e o reformulando” (Idem,
ibidem).
A concepção de “escuta”, proposta por Lemos (1999, 2000), a partir da
psicanálise lacaniana, não é sinônimo de ouvir. Para ela escuta é a
possibilidade de a criança:
“como sujeito falante se dividir entre aquele que fala e aquele que
escuta sua própria fala, sendo capaz de retomá-la, reformulá-la e
reconhecer a diferença entre sua fala e a fala do outro, entre a
instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de um
lugar outro” (LEMOS, 2000, p.35).
Quando o sujeito “escuta” esse “erro”, que algumas vezes não é um erro
de fato, ele ocasiona um equívoco. O equívoco que é provocado e provocador
da rasura é visto por esses pesquisadores como “uma das peças que
movimentam o jogo lingüístico subjacente ao gesto de rasurar” (CALIL e
FELIPETO, 2000, p. 3). O equívoco que, segundo o linguista francês JeanClaude Milner (1987), suspende os estratos da língua, confunde os sentidos.
Assim, esses estudiosos propõem três noções para se compreender o
“jogo” que está por trás do ato de rasurar: (I) o equívoco, que pode ocasionar
um (II) estranhamento, “estranhamento este que pode levar o sujeito a uma (III)
escuta, a qual efetiva um retorno sobre o dito/escrito, condição de toda forma
de rasura, seja oral ou escrita” (CALIL e FELIPETO, 2000, p.06).
Cabe aqui pontuar o que se entende, segundo os conceitos propostos
por Calil (2008), sobre o significado da rasura escrita e das reformulações
orais, até chegar ao que ele chama de “rasura oral”.
Calil defende que quando se escreve, a rasura aparece como uma forma
de “diálogo silencioso” (CALIL, 2008, p.50):
Um “diálogo” que coloca em cena possibilidades de outros dizeres, de
outros escritos através de um movimento retroativo do scriptor sobre
a própria linguagem, sobre o próprio texto (Idem, ibidem).
Esse movimento retroativo do scriptor sobre a própria linguagem e sobre
o próprio texto é o que o autor chama de reformulações orais e rasura escrita,
respectivamente.
22
Ou seja, a rasura escrita
(...) indicia que o scriptor, em algum momento do processo de
escritura, interrompeu o percurso para voltar-se sobre o escrito, para
marcar, anotar, substituir, deslocar, acrescentar, escrever de outro
modo algo que estava efetivamente escrito (Idem, ibidem).
Funcionamento semelhante se dá com a reformulação oral, de modo
que ela
(...) também indicia que o falante, em algum momento do processo
enunciativo, interrompeu o percurso para se voltar sobre o que foi
falado, para marcar, anotar, substituir, deslocar, acrescentar, dizer de
outro modo algo que já tinha falado ou que poderia estar lá (Idem,
ibidem).
Com relação às rasuras orais, diferenciando estas das reformulações
orais, Calil explica:
As rasuras orais, conforme estou defendendo, têm uma
especificidade que as diferenciaria das reformulações orais, uma vez
que estão sendo produzidas para se fazer um texto, uma história, um
poema. Certamente, o processo dialógico entre os alunos nessa
“atividade escolar” favorece o surgimento das reformulações
marcadas pelos apagamentos, deslocamentos, acréscimos e
substituições de enunciados em via de serem escritos; todavia, em
certa medida, as rasuras orais dariam outra dimensão ao processo de
escritura em ato, na medida em que permitiriam potencializar a
tensão entre sujeito, língua e sentido que circula durante todo
processo de criação e ajudariam a revelar um pouco mais da
dimensão simbólica desses embates (Idem, ibidem).
Para evidenciar os momentos em que ocorrem as rasuras orais, efetivase a transcrição das filmagens dos processos de escritura em ato envolvidos
nessas práticas de textualização na escola. As transcrições das filmagens
criam uma espécie de “manuscrito oral” ou “memória do processo de escritura”,
como chama Calil (2008). Esse “manuscrito oral” terá grande importância em
nossas análises, pois, como já ressaltado, está-se mais focalizado no processo
do que no produto.
Através das rasuras orais procura-se mostrar, mesmo que seja em
suas potencialidades, o funcionamento das modalizações autonímicas (Authier-
23
Revuz 1995, 1998) presentes no processo de escritura em ato, quando uma
dupla está escrevendo um único texto.
1.5 Authier-Revuz e as não-coincidências do dizer
Authier-Revuz afirma que todo dizer possui uma heterogeneidade que
lhe é constitutiva, ou seja, “significa que o sujeito encontra-se destituído do
domínio de seu dizer e estruturalmente clivado pelo inconsciente (Lacan, 1966)
e pelo interdiscurso (Pêcheux, 1983)” (CALIL, 2008, p.87).
Além da heterogeneidade constitutiva, Authier-Revuz distingue outra
heterogeneidade a que chama de heterogeneidade mostrada. Essa se
manifesta através das aspas, dos parênteses, do itálico etc., mostrando
reconhecimento/denegação da heterogeneidade constitutiva. Sobre essas
heterogeneidades Felipeto comenta:
A heterogeneidade constitutiva é aquilo que escapa, ao sujeito, da
linguagem. A heterogeneidade mostrada, então, e a forma como o
sujeito representa isto que lhe escapa. Dito ainda de outro modo, a
heterogeneidade constitutiva marca-se, na fala do sujeito, pelas nãocoincidências que afetam o seu dizer: homonímia, ato falho,
ambigüidade, mal entendido... tudo o que está do lado do não - um da
comunicação. Trata-se de uma não coincidência constitutiva do
sujeito na linguagem. Entretanto, esta não coincidência - que afeta a
posição de domínio e de intencionalidade “estratégica” do sujeito –
deve ser elidida para que o sujeito se constitua como sujeito de
linguagem (2008, p.112).
A modalização autonímica é a forma que o sujeito encontra de conter
essa heterogeneidade que lhe é constituída e aparece em seus enunciados
pelas não-coincidências.
Na modalização autonímica o signo é empregado e comentado ao
mesmo tempo. O sujeito falante desdobra-se sobre sua própria enunciação e
produz um comentário metaenunciativo. Assim, o sujeito representa aquilo que
lhe escapa através das não-coincidências do discurso consigo mesmo, nãocoincidências das palavras consigo mesmas, não-coincidências entre as
palavras e as coisas, e não-coincidência interlocutiva (FELIPETO, 2008).
Será utilizada a mesma fórmula proposta pela autora que é “X” para
representar a palavra autonímica e “Y” para a que a substituiu (os
24
desdobramentos). Observem-se esses desdobramentos através das nãocoincidências:
A não-coincidência do discurso consigo mesmo tem como referência
o dialogismo bakhtiniano, que considera toda palavra como sendo habitada por
outros discursos, uma vez que elas se produzem em “meio” aos já-ditos de
outros discursos “e à teorização do interdiscurso no quadro da análise do
discurso (Pêcheux)” (Authier-Revuz, 1998, p.193). Essa não-coincidência
marca, no discurso, a presença de palavras pertencentes a outro discurso.
Para exemplificá-los citam-se formas de dizer, tais como: X, no sentido
empregado por fulano; X, como diz fulano; X, no sentido cristão; X, para
retomar, citar, tomar emprestado, plagiar, adotar, guardar... as palavras de
fulano. Essas glosas traçam no discurso uma fronteira interior/exterior.
Observa-se na não-coincidência das palavras com elas mesmas
“glosas que designam, ao modo da rejeição – por especificação de um sentido
contra outro – ou, ao contrário, da integração ao sentido” (AUTHIER-REVUZ,
2004, p.83). Nessas glosas os sujeitos tentam conter a proliferação dos
sentidos que emana das palavras e sobre a qual os sujeitos não têm controle.
A presença da homonímia nesta não-coincidência é fundante e está
relacionada à dimensão do “equívoco” (MILNER, 1987) e da “alingua” (LACAN,
1985). Daí derivam séries de atos falhos, lapsos, chistes, ambiguidades,
polissemias, trocadilhos etc. (CALIL E FELIPETO, 2008, p.141).
Nessa modalidade encontram-se expressões do tipo: “X, não! Y!”, “X, no
sentido de Y”, “X, em ambos os sentidos”, “X, em todos os sentidos da
palavra”, “X, para dizê-lo em uma palavra preciosamente ambígua”.
Já na não-coincidência entre as palavras e as coisas são utilizadas
glosas que representam as buscas, hesitações, fracassos, sucessos rumo à
“palavra exata”. O sujeito busca uma adequação, que é imaginária, entre um
nome e um objeto, um fato, um acontecimento. Nessa busca surgem
enunciados como: “X, na falta de palavra melhor”, “eu busco uma palavra...”,
“X, não há outra palavra”, “X! Essa é a palavra perfeita!”, “X, como dizer de
outra maneira?”, “X, como é mesmo a palavra?”. Calil e Felipeto afirmam a
respeito dessa não-coincidência:
25
Essas glosas marcam as tensões no “jogo inevitável da nomeação”
em que, de um lado, temos aquilo que é da ordem da “falta”, no
sentido lacaniano, e, de outro, do “caráter absoluto, inquestionado,
evidente, ‘óbvio’ vinculado ao uso-padrão das palavras”(Idem,
ibidem).
Finalmente, há a não-coincidência interlocutiva, que coloca em
funcionamento a distância entre os sujeitos falantes. Ela representa “o fato de
que um elemento não é imediatamente ou não é absolutamente compartilhado
– no sentido de comum – pelos dois protagonistas da enunciação” (AUTHIERREVUZ, 2004, p.83). Essa não-coincidência
marcar o desacordo, a não coincidência, uma diferença entre si e o
outro-interlocutor, entre o enunciador e o destinatário, através de
glosas, tais como “X, como você costuma dizer”, “X, para usar as
palavras de Y”; ou, ao contrário, para fazer-se incluir na esfera desse
outro, através de expressões, como “digamos”, “X, se me permite a
expressão”. Interessante observar que, ao tentar apagar a nãocoincidência interlocutiva, buscando incluir-se ou incluir o outro na
esfera do seu dizer, o sujeito falante acaba por atestar o fato da nãosimetrização possível entre dois sujeitos falantes (CALIL E
FELIPETO, 2008, p.142).
Far-se-á uma aproximação das não-coincidências proposta por AuthierRevuz com os dados presentes em nosso objeto de análise. A metodologia que
se utiliza para coletar os dados potencializa as não-coincidências do dizer
nesse processo enunciativo. Serão analisadas as rasuras orais, considerandose as modalizações autonímicas em potencial, efetivadas pelos alunos quando
estas resultam em uma rasura escrita.
Portanto, analisar-se-á a rasura escrita que ficou marcada no produto
final dos alunos, assim como o que aconteceu antes dessa rasura escrita, ou
seja, os diálogos empreendidos pela dupla até chegarem de fato à rasura
escrita. É nesses diálogos que as rasuras orais se manifestam, e nelas
aparecem as dobras que os sujeitos fazem sobre sua própria enunciação.
Ao desdobrar-se sobre sua fala, enquanto criam um poema inventado,
os scriptores produzem comentários metarreflexivos que têm o potencial das
não-coincidências do dizer propostas por Authier-Revuz. Entretanto, os
26
scriptores não estruturam seus enunciados como visto na classificação dessa
pesquisadora, mas defende-se que essas estruturas estão presentes em seus
enunciados em um estado potencial. Como diz Calil (2008), são modalizações
autonímicas em potencial.
27
Capítulo 2 – Metodologia
Conforme já observados, nossas análises estão centradas na rasura
escrita, enquanto inserida em um processo de produção de texto. Para acesso
a esse processo utilizou-se uma metodologia que vem sendo desenvolvida por
Calil desde 19914. Em poucas palavras, essa metodologia favorece a
visualização de todo o processo de escritura em ato, além de permitir uma
apreensão do que está acontecendo durante o momento em que o scriptor
escreve seu texto.
Assim, uma dupla de alunos é filmada em contexto escolar para a
produção de um único texto. Porém, antes da entrada dos pesquisadores na
escola e na sala de aula, alguns procedimentos são efetivados para a coleta
desses dados.
2.1 Coleta de dados e projeto didático
Primeiramente é oferecido à escola um projeto didático em Língua
Portuguesa que favoreça a produção de textos e a leitura em sala de aula,
assim como é desenvolvido “um trabalho de formação continuada e
acompanhamento pedagógico que envolva os professores e a coordenação
pedagógica” (CALIL, 2008, p.44).
Nesse processo prima-se pela criação de um ambiente letrado em sala
de aula, no qual possa existir uma grande circulação de textos que são
investigados no projeto didático. Por exemplo, se é oferecido para a escola um
projeto didático sobre gibis, é necessária a intensa circulação desse gênero
entre os alunos para que eles sejam imersos nesse tipo de texto.
Em nosso caso, o projeto didático oferecido à escola foi o “Poema de
cada dia5”. Este projeto tem um grande número de poesias de diversos autores
para que os alunos possam debruçar-se sobre esse gênero estudado.
4
Trata-se de sua dissertação de mestrado, intitulada A construção de zonas de
desenvolvimento potencial em um contexto pedagógico.
5
Esse projeto está disponível em: <http://manuscritosescolares.ufal.br>.
28
Encontram-se neste projeto propostas de atividades de leitura,
interpretação e produção de textos, com os procedimentos metodológicos
específicos para o professor e para os alunos.
Por meio do desenvolvimento de atividades de produção de textos
contidas neste projeto é que foram realizadas as filmagens que serão
analisadas.
Vale ressaltar que essas práticas de filmagens são um procedimento
habitual durante a aplicação do projeto, de modo que os alunos já estavam
acostumados com a presença da câmera na sala de aula.
O equipamento utilizado se resume a uma câmera de mão operada por
uma única pessoa. Durante o período que antecede o início da produção de
texto em si, a câmera se move um pouco horizontalmente a partir de, na maior
parte do tempo, um ponto fixo da sala de aula. Nesse momento o foco é o(a)
professor(a) que se posiciona à frente do quadro-negro, como se pode ver na
figura abaixo:
Figura 1. Câmera focando o professor e o quadro.
Eventualmente a câmera é movida horizontalmente para capturar a
imagem de alguns alunos que estiverem interagindo, como na imagem a
seguir:
29
Figura 2. Câmera focando o professor e os alunos.
Já durante o processo de escritura em ato, a câmera fecha na dupla,
restringindo a captação das imagens aos dois alunos que produzirão o texto a
ser posteriormente analisado. Tem-se como exemplo a imagem abaixo, que
representa o perfil principal da posição da câmera durante a produção:
Figura 3. Câmera focando a dupla.
Em alguns momentos, a câmera é movida com o intuito de captar as
imagens da folha de papel e o que os alunos estão escrevendo, do seguinte
modo:
30
Figura 4. Câmera focando a escrita.
Após o início da produção, a participação do(a) professor(a) é
extremamente reduzida, restringindo-se principalmente aos momentos em que
a própria dupla pede uma opinião ou ajuda, ocasiões raras em que o(a)
condutor(a) teve em mente não intervir no texto, deixando que os scriptores
tomassem suas próprias decisões.
Toda a prática de textualização, desde a consigna da atividade, feita
pelo(a) professor(a), até o momento da produção do texto, foi filmada. Essas
filmagens foram realizadas durante os anos de 2000 e 2001, quando os alunos
estavam cursando a 1ª e 2ª série, respectivamente, do Ensino Fundamental,
que atualmente correspondem ao 2º e 3º ano dessa modalidade de ensino.
Esses dados foram coletados no Centro Educacional Miosótis, uma
escola filantrópica localizada na periferia de Maceió/AL.
Os sujeitos envolvidos nessas práticas de textualização são alunos que
repetiram várias vezes a primeira série do Ensino Fundamental (atual segundo
ano) na escola pública, deixando-a e ingressando nesse Centro Educacional.
Portanto, os alunos tinham uma faixa etária avançada para esse nível de
escolaridade.
Em nossa pesquisa, foram analisadas três filmagens, as quais têm em
comum a participação do aluno Valdemir. Na filmagem realizada no dia 14 de
setembro de 2000, Valdemir, que estava com 11 anos e 8 meses, formava
dupla com José Antenor, que contava 12 anos e 6 meses de idade. Dessa
atividade resultou o poema intitulado pela dupla de “Raridade”.
31
A produção do poema “O nada e estrada” foi registrada no dia 5 de
outubro de 2001. Nessa ocasião Valdemir fazia dupla com outro colega,
Wellington.
Já a terceira análise refere-se a um poema que ficou sem título, mas que
foi nomeado “As meninas”6, produzido por Valdemir e novamente José
Antenor, em 30 de novembro de 2000.
É importante esclarecer que todas essas filmagens foram feitas com a
autorização por escrito dos responsáveis dos menores, que permitiram a
utilização da imagem e áudio.
Os vídeos analisados são parte do banco de dados do projeto “Práticas
de textualização na escola”, coordenado pelo professor Eduardo Calil, e não
foram, portanto, por mim realizados. Apenas utilizei-me do acervo do banco de
dados préexistente. Esse banco de dados encontra-se no Centro de Educação
da Universidade Federal de Alagoas e está disponível para diversas pesquisas.
A escolha de quais filmagens utilizar partiu da busca por produções cujo
texto final e processo de escritura em ato indicassem um campo fértil para a
análise dos bastidores da rasura, aqui empreendida.
2.2 A pré-produção
Um aspecto de tremenda importância na coleta e análise de dados é o
que se chama de pré-produção. Este conceito abrange tudo que antecede o
início da produção do texto escrito por parte da dupla. Ou seja, a fala e a
consigna do(a) professor(a), os possíveis esclarecimentos ou debates que
ele(a) estabelece com os alunos, a exposição do texto espelho, aquele com o
qual se trabalhará e servirá de referência para a atividade de produção de
texto, e toda e qualquer circunstância, mesmo que aparentemente irrelevante
ao que se vai empreender.
Cabe esclarecer que a pré-produção abrange somente o momento
imediato que antecede o início do trabalho propriamente dito por parte dos
alunos. Não há, no entanto, um limite de tempo que represente essa
6
Este título se justifica pelo fato de o poema ter sido produzido a partir do poema homônimo de Cecília
Meireles.
32
imediatieidade; ela abrange toda a atividade contígua que se refere à e objetiva
a produção daquele texto pelos alunos, ou seja, o procedimento específico
para a realização daquela atividade.
O período de pré-produção representa uma parcela significativa das
filmagens analisadas, tanto do ponto de vista temporal (tempo cronometrado)
como de seu conteúdo, que muitas vezes influencia ou até mesmo é
determinante na criação feita pelos scriptores na fase de produção.
No trabalho de entender uma rasura, o porquê e o como, a pré-produção
se faz muitas vezes imprescindível, uma vez que a rasura nem sempre advém
da tentativa de correção de um erro, mas por vezes representa a frustração do
scriptor que falha em alcançar o que pretendia inicialmente. Não é incomum em
nossas análises identificar a influência da pré-produção no que foi escrito ou no
que se pretendia escrever. O aluno se vê engessado pelo que ouvira ou fora
construído com o professor na pré-produção, deixando algumas vezes de lado
uma boa sugestão ou ideia de seu companheiro de criação.
Por vezes, os scriptores encontram certa continuidade, mas presos ao
que fora explicado ou discutido na pré-produção, descartam por meio da rasura
o que já haviam acertadamente implementado.
2.3 Transcrição no ELAN
Essas filmagens foram transcritas com o auxílio do programa Eudico
Linguistic Annotator (ELAN). Esse programa é desenvolvido pelo Max Planck
Institute for Psycholinguistics e pode ser obtido gratuitamente em www.latmpi.eu.
Esse software oferece ferramentas interativas para se trabalhar a
complexidade de dados registrados em sistema audiovisual, incorporando à
transcrição, de forma fidedigna, simultânea e precisa, distintos aspectos
presentes na situação filmada, como, por exemplo, gestos, expressões faciais,
direção do olhar, falas, rasuras orais e escritas, entre outros aspectos
semióticos que possam ser definidos e organizados em trilhas separadas,
permitindo uma maior sincronia com o momento exato em que se deu uma
e/ou outra ação.
33
É importante esclarecer que esse programa não efetua a transcrição
automaticamente. Isso é feito pelo próprio pesquisador que utiliza o software
como uma ferramenta tecnológica de trabalho. Todas as inscrições e
contribuições textuais são efetuadas pelo anotador/pesquisador que, de posse
do vídeo e de um bom sistema de áudio, identifica as falas, os escritos, as
expressões e até mesmo a disposição de ânimo dos personagens.
Primeiramente, insere-se um arquivo de vídeo no programa ELAN, que
reconhece o comando e passa a exibir o vídeo no canto superior esquerdo de
sua área de trabalho. Tem-se, assim, a possibilidade de visualização
simultânea das imagens e das anotações que serão efetuadas, além de ter-se
à mão todas as ferramentas do programa.
Após a inserção do vídeo, o passo seguinte é começar a assisti a ele,
dentro do programa. À medida que os fatos acontecem, o pesquisador cria
trilhas nas quais irá inserir as anotações relativas ao que se passa na tela.
2.3.1 As trilhas do ELAN
Essas trilhas são um recurso oferecido pelo programa, no qual se pode
conter todo o texto inscrito pelo anotador. Em nossas transcrições, criaram-se
trilhas individuais para cada participante e suas ações, a saber: fala, texto
escrito, rasura escrita e rubrica.
Na trilha fala encontra-se tudo que foi possível identificar das falas dos
envolvidos na filmagem. Há uma trilha para a fala do professor Calil, outra para
a professora Maria José, outra para Valdemir e mais uma para o seu
companheiro, Wellington ou José Antenor, de acordo com cada transcrição.
Também há uma trilha para a fala do cameraman e outra denominada aluno,
que representa a fala de outros alunos nem sempre identificados. A trilha turma
refere-se aos momentos em que os alunos falam em uníssono. Usa-se a sigla
S.I. (sem identificação) para denominar momentos em que a qualidade do
áudio ou o volume da voz dos alunos não permitiu compreender a fala dos
participantes.
Tem-se, também, a trilha texto escrito, na qual está contido o que foi
produzido textualmente pelos participantes envolvidos nessa ação. Valdemir
34
atua como escriba nas três filmagens, logo, tudo o que ele escreveu encontrase na trilha Valdemir Escreve. Também há o registro escrito dos professores
Calil e Maria José enquanto escrevem no quadro expondo a consigna da
atividade em Calil Escreve e M.ª José Escreve.
A trilha rasura escrita está intimamente ligada à trilha texto escrito, uma
vez que nela se encontram as rasuras procedidas por Valdemir ou seu
companheiro na folha de papel.
A trilha rubrica representa a descrição do que acontece na filmagem.
Trata-se de uma narração do que se passa e que não poderia ser apreendido
unicamente por meio da fala e da escrita dos participantes. Para isso descreve
movimentos, como também o humor dos sujeitos. Uma vez que se trata de um
conteúdo descritivo de autoria do anotador/observador, o conteúdo desta trilha
é expresso em letras maiúsculas para diferenciá-la de todas as outras trilhas.
Além disso, o programa permite a realização de um trabalho sistemático
e rigoroso ao proporcionar uma visão ampla do que se passa a cada segundo
do vídeo. Seus recursos acarretam uma melhor visualização do momento a ser
analisado.
Assim, tem-se acesso a todo o processo de escritura em ato e se podem
observar nessas práticas de textualização os percursos trilhados pela dupla
para a criação do texto e, portanto, das rasuras.
2.3.2 Outras ferramentas do ELAN
O ELAN possui muitas ferramentas úteis que facilitam o trabalho do
anotador, muito embora o simples ato de transcrever em trilhas demanda muito
tempo, atenção e disposição para que se faça um trabalho bem-feito e com a
potencialidade para erros mitigada. A média de tempo para efetuar uma
transcrição detalhada e rigorosa, como possibilita o ELAN, é efetuada na razão
de uma hora/um minuto, ou seja, uma hora de trabalho de transcrição para um
minuto de trabalho transcrito.
As ferramentas do programa potencializam a precisão e rapidez desse
trabalho árduo. Veja a seguir a janela do ELAN e suas principais ferramentas:
35
1- Barra de menu
2- Campo de visualização do vídeo
10- Controlador de media
9- Visores específicos
das anotações
6- Modo seleção
5- Controladores de anotação
4- Controladores de seleção
.
3- Controladores principais
7- Trilhas
8- Linha do tempo
Figura 5. Área de trabalho do programa ELAN.
Foram inseridos balões, setas e chaves na imagem para facilitar a
visualização e explicação das ferramentas do ELAN. Cada item será explicado
de acordo com o seu número e suas principais funções.
No item nº 1, tem-se a barra de menu do programa, onde se encontram
os seguintes botões: arquivo, editar, anotações, trilha, tipo, buscar, visualizar,
opções, janela e ajuda.
Esse é o menu principal do programa, onde se podem criar, salvar, abrir
e exportar arquivos. A exportação da transcrição, nos diversos formatos que o
programa possibilita, permite a geração de um arquivo no qual se pode
visualizar, em diversas páginas, todas as anotações que são feitas nas trilhas.
Por meio desse recurso, é possível transportar os dados para a folha de papel
e efetuar as análises. Nesta pesquisa, toda a transcrição é exportada no
36
formato HTML (HyperText Markup Language), um tipo de linguagem utilizada
para produção de páginas na internet, gerando um extenso arquivo com todas
as anotações feitas nas trilhas.
Com esse novo arquivo gerado em HTML, depois de feita toda a
transcrição no programa, executa-se o comando de copiar (ctrl +c) as partes
que serão analisadas e depois coladas (ctrl +v) nesse texto. Assim, pode-se
remeter a determinados momentos com a finalidade de fundamentar os
argumentos apresentados. Na sessão 2.3.3 (Visualização da transcrição no
ELAN), mostra-se um fragmento desse arquivo exportado por meio do ELAN e
explicam-se os detalhes.
Além disso, o menu principal permite a criação de novas trilhas, a
modificação das anotações nas trilhas e a possibilidade de consulta de
diversos tópicos para auxiliar o usuário no botão “ajuda”.
O item nº 2 refere-se ao local do campo de visualização do vídeo. Ao
criar um novo arquivo no ELAN, é solicitada a inserção de um arquivo de vídeo
já existente. O software reconhece esse arquivo de vídeo, colocando-o em sua
área de trabalho, conforme expõe o item nº 2.
Os controladores principais do programa, item nº 3, tornam possíveis as
funções de “tocar” (play) e “parar” (stop) a reprodução do vídeo. Há também
outros botões que permitem avançar e retroceder o vídeo com grandíssima
precisão. Abaixo tem-se uma tabela que explana as principais funções de cada
botão do controlador principal:
Botão
Função
Vai para o início do vídeo
Retrocede aproximadamente 10 segundos
Retrocede 1 segundo
Retrocede 40 milésimos de segundo
Retrocede 10 milésimos de segundo
Inicia e para a reprodução do vídeo
37
Avança 10 milésimos de segundo
Avança 40 milésimos de segundo
Avança 1 segundo
Avança aproximadamente 10 segundos
Vai para o fim do vídeo
Tabela 1. Botões do controlador principal do programa ELAN.
Por meio dos botões do controlador principal é possível percorrer toda a
filmagem com muita facilidade e exatidão; isso possibilita uma análise mais
cuidadosa das filmagens e traz celeridade ao trabalho do anotador.
No item nº 4, encontra-se um ótimo recurso desse software, os
controladores de seleção. Com eles pode-se selecionar um intervalo de tempo
na filmagem e reproduzi-lo isoladamente. Isso é muito útil quando, por
exemplo, em alguns trechos, o áudio da filmagem não permite um
entendimento claro da fala dos participantes; então seleciona-se esse trecho,
que pode ser repetido diversas vezes até se entender o que fora dito pelos
participantes. Abaixo, têm-se os botões com as funções dos controladores de
seleção.
Botão
Função
Reproduz a área selecionada
Limpa a área selecionada
Move a linha do tempo para o início e
final da seleção
Tabela 2. Botões do controlador de seleção do programa ELAN.
Os controladores de anotação, item nº 5, permitem uma navegação
entre as anotações das trilhas. Esses botões possibilitam o adiantamento ou o
retrocesso da linha do tempo para as anotações imediatamente anteriores e
posteriores de uma determinada trilha, facilitando a busca de uma anotação
38
específica na filmagem, ou para adiantar o conteúdo de uma trilha, suprimindo
os momentos desprovidos de anotações. Abaixo, os quatros botões
responsáveis por essas ações:
Botão
Função
Vai para a anotação anterior da trilha
ativa
Vai para a anotação seguinte da trilha
ativa
Vai para a anotação acima
Vai para a anotação abaixo
Tabela 3. Botões do controlador de anotação do programa ELAN.
O item nº 6 é o chamado modo de seleção, no qual estão contidas duas
ferramentas de grande utilidade para o trabalho de identificação do conteúdo
do vídeo. A primeira caixa, denominada “modo de seleção”, quando acionada,
efetua a seleção de um intervalo do vídeo em curso até sua pausa. A caixa
vizinha, “modo de repetição (loop)”, quando marcada ocasiona a repetição
ininterrupta e automática do trecho selecionado. Assim, com a repetição do
intervalo, é possível, de forma mais eficiente, identificar alguma fala ou
circunstância da filmagem.
Alcança-se a maior eficiência desses dois recursos quando eles são
combinados às ferramentas de controladores de media (item nº10). Com o
controlador de media pode-se aumentar e diminuir o volume e a velocidade da
media. Aumentar e diminuir o volume são recursos comuns, porém interferir na
velocidade de uma media é um recurso de grande valia. Quando se diminui a
velocidade normal de um vídeo, todos os sons, inclusive a voz dos
participantes, tornam-se mais graves, possibilitando uma maior compreensão.
Por outro, lado quando se aumenta a velocidade do vídeo os sons ficam mais
agudos. Como cada pessoa tem um timbre de voz diferente, uns mais graves,
outros mais agudos, podem-se adaptar esses recursos para cada situação,
com a finalidade de atingir uma melhor compreensão do trecho selecionado.
39
Com relação à posição das trilhas, elas ficam dispostas uma sobre a
outra, formando uma coluna, no canto inferior esquerdo da janela do programa
ELAN, como mostra a chave do item nº 7. Como já explicado anteriormente no
tópico 2.3.1 (As trilhas do ELAN), essas trilhas são criadas e nomeadas pelo
usuário de acordo com a necessidade de sua análise. Antes de fazer qualquer
anotação é preciso ativar a trilha, clicando duas vezes com o mouse na trilha
desejada para inserir as anotações. Ao executar esse comando a trilha ficará
em destaque na cor vermelha.
As trilhas ficam dispostas verticalmente, conforme explicado, e as
anotações correspondentes a cada trilha na horizontal. Na imagem abaixo se
tem um recorte da janela do programa ELAN, onde podem ser vistas as trilhas
na vertical, com suas anotações no sentido horizontal.
Trilha ativa
Trilhas
Anotações das trilhas
Figura 6. Trilhas do programa ELAN.
A linha do tempo (item nº 8) indica com exatidão que parte da filmagem
está sendo reproduzido no momento. Ela pode se movimentar em tempo real
ou pode ter sua velocidade reduzida ou aumentada por meio do controlador de
media. Também é possível arrastá-la para selecionar um trecho ou até
posicioná-la em um lugar específico, avançando ou retrocedendo o vídeo.
O item nº 9 corresponde aos “visores específicos das anotações”. Como
se pode ver na imagem seguinte, o campo de visualização do vídeo encontrase no canto superior esquerdo e os “visores específicos das anotações”,
paralelos no lado direito. Nele temos cinco botões, denominados pelo programa
40
como: grade, texto, legenda, metadados e controles. Os três primeiros botões
são exclusivos dos “visores específicos das anotações”. O dispositivo
“metadados”, que não foi necessário no desenvolvimento do nosso trabalho, é
utilizado na importação de dados externos. Já o recurso “controles” é usado
para alterar os fatores volume e velocidade do vídeo, conforme anteriormente
explicado.
Figura 7. Visores específicos das anotações (lado direito).
Voltando aos recursos dos “visores específicos das anotações”, tem-se o
botão “grade”. Neste é possível selecionar uma trilha e visualizá-la por inteiro,
observando-se todas as anotações nela feitas, estando visível o tempo inicial, o
final e a duração de cada seção. Abaixo há uma figura que ilustra o recurso.
Especificamente, tem-se a trilha “Profª. M.ª José Fala”, com todos os
enunciados feitos por esta participante.
Figura 8. Botão Grade.
41
Por meio do botão “Texto”, visualizam-se todas as anotações de uma
determinada trilha dispostas no sentido horizontal, em forma de um único texto.
Assim como acontece com o dispositivo “Grade”, no botão “Texto” pode-se
selecionar uma seção e ser remetido a ela pelo programa, visualizando-se,
assim, o momento do vídeo em que aquilo se deu.
Ambos os recursos são importantes para o anotador, quando se quer
localizar uma passagem específica; assim, não é preciso assistir todo o vídeo
ou buscar cegamente pelo que se deseja. Essas ferramentas foram de grande
valia neste trabalho, uma vez que foram estudados os bastidores da rasura.
Muitas vezes, o aluno enuncia ou escreve algo que chama a atenção do
anotador, pois este percebe que aquela palavra ou temática já fora mencionada
anteriormente. Assim, busca-se pelo que se deseja em “Texto” ou “Grade” de
uma determinada trilha, o que facilita o trabalho.
Figura 9. Botão Texto.
O botão “Legenda” possibilita a eleição de uma combinação de trilhas
que se intenta observar juntamente. À medida que a linha do tempo vai
passando, o que é dito nas trilhas escolhidas vai aparecendo em “Legenda”. A
seguir, por exemplo, tem-se a captação de um momento em que todas as
trilhas selecionadas estavam ativas, ou seja, todas as trilhas, naquele momento
continham inscrições do anotador.
42
Figura 10. Botão Legenda.
2.3.3 A visualização da transcrição no ELAN
Um recurso útil que o programa possibilita é a geração de uma página
de forma organizada, na qual as trilhas ficam dispostas coordenadas umas com
as outras, sob o fator tempo. Para isso, findo o trabalho de transcrição, é
preciso que se exporte o arquivo para o formato HTML.
Feito isso, gera-se um novo arquivo (em HTML) contendo toda a
transcrição efetuada, a exemplo do fragmento abaixo:
43
Na extremidade esquerda deste fragmento, têm as trilhas dispostas
verticalmente umas sobre as outras, e o programa disponibiliza a opção de
serem representadas apenas as trilhas utilizadas pelo anotador naquele
intervalo de tempo. No fragmento exposto acima, por exemplo, apenas
aparecem as trilhas Valdemir fala, Wellington fala e rubrica. Muito embora haja
outras trilhas nesta transcrição, no intervalo de tempo 00:22:18.299 a
00:22:52.209, apenas as trilhas mencionadas acima se fizeram revelar.
Nessa transcrição é possível acompanhar o tempo cronometrado (TC),
linha diferenciada com a cor da fonte vermelho-escuro. O tempo cronometrado
retrata o momento exato dos eventos ocorridos na filmagem. Ou seja, entre o
intervalo de tempo mostrado, tem-se o evento no tempo em que está
acontecendo.
O formato do tempo cronometrado é o seguinte: hora, minuto, segundo e
milésimo de segundo (hh:mm:ss.ms, respectivamente). Como o tempo total de
todas as filmagens foi inferior a uma hora, os dígitos que correspondem à hora
sempre se apresentarão como 00 (zero, zero). Os demais marcarão os
minutos, segundos e milésimos de segundos, conforme explicado.
É importante que se faça uma leitura desses quadros da esquerda para
a direita, quadro a quadro, desconsiderando a verticalidade das falas de um
mesmo quadro.
Numeraram-se os tempos cronometrados (TCs) para facilitar a
referência individualizada de cada um deles nas análises. Perceba-se que a
ordem crescente dos TCs não necessariamente determina a ordem dos
acontecimentos. Deve-se sempre observar o tempo cronometrado na forma
hh:mm:ss.ms para entender a sequência dos fatos.
A título de exemplo, observe o fragmento anteriormente exposto. O texto
referente ao TC 5 (Welligton fala) é “se ainda resta vida... pode viver” e ocorre
no intervalo de tempo 00:22:28.054 – 00:22:31.014. No entanto, o TC 4
(Valdemir fala) está localizado entre 00:22:31.714 e 00:22:33.954, ou seja,
após o intervalo de tempo do TC 5, pelo que se conclui que a numeração dos
TCs apenas serve para referenciar o que foi analisado e não para esclarecer a
sequência fática.
Junto a este trabalho disponibiliza-se em DVD a transcrição das
filmagens analisadas. Esses anexos contêm toda as anotações referentes às
44
filmagens, desde a consigna feita pelo condutor(a) da atividade até o fim da
criação do poema pela dupla.
Em nossas análises, atenta-se para os momentos anteriores e
posteriores às rasuras que ficaram marcadas no produto final. Ademais,
reporta-se a qualquer outro acontecimento, inclusive da pré-produção, para
tentar explicar o surgimento de uma ideia, palavra ou outra circunstância ligada
à rasura. As ferramentas do programa ELAN possibilitam o trânsito ágil por
toda a filmagem e transcrição, facilitando a busca e localização de determinado
trecho.
Não se analisou, portanto, toda a filmagem, muito embora sua totalidade
tenha sido fundamental para o entendimento de todo o processo de criação do
texto, conforme já defendido anteriormente. Assim, essa ferramenta é uma
grande aliada dos nossos estudos, a partir da qual se lança mão da maior parte
dos recursos tecnológicos que ela oferece.
45
Capítulo 3 – Raridade
Será analisada, neste capítulo, a rasura “para o hmem jantala”, presente
no produto final do poema inventado pela dupla Valdemir e José Antenor, como
também os comentários metaenunciativos envolvidos nessa prática7. Abaixo
tem-se o recorte da rasura empreendida pela dupla:
Figura 11. Detalhe da rasura no poema "Raridade".
Antes da criação desse poema, o condutor da atividade leu e discutiu
com a turma o poema “A traça8” de Guto Lins (1999). Nessa ocasião foram
enfatizadas as homofonias e as aliterações existentes no poema. Em seguida,
o professor escreveu no quadro os quatro primeiros versos do poema
“Raridade9” de José Paulo Paes (2000), chamando mais uma vez a atenção
dos alunos para as homofonias e aliterações.
Depois que os alunos copiaram os quatros primeiros versos do poema
“Raridade”, foi proposto que eles criassem a continuação do poema. Assim,
chegaram ao seguinte texto:
7
Este dado foi analisado e utilizado por CALIL (2008), e vem sendo por mim estudado desde o ano de
2006, quando fui bolsista do programa de iniciação científica (PIBIC/CNPQ/UFAL) no projeto de pesquisa
intitulado “Manuscritos Escolares e Processo de Escritura: histórias, fábulas e poemas no Ensino
Fundamental”. Também fiz uso desse dado no meu Trabalho de Conclusão de Curso para a graduação
em Pedagogia na Universidade Federal de Alagoas (TENÓRIO, 2008). No entanto, frise‐se que cada
pesquisa lança um novo olhar sobre os dados, alcançando discussões e conclusões distintas e
complementares.
8
“A traça / traça tudo / o que na frente encontrar / sua calça de veludo / seu casaco sobretudo / e o que
tiver para traçar / só não traça sua meia suja / aquele troço esquisito / que você esqueceu de lavar”.
9
“A arara é uma ave rara / pois o homem não pára / de ir ao mato caçá‐la / para pôr na sala / em cima
de um poleiro / onde ela fica o dia inteiro / fazendo escarcéu / porque já não pode / voar pelo céu. / E
se o homem não pára / de caçar arara, / hoje uma ave rara, / ou a arara some / ou então muda seu
nome / para arrara”. Os quatro primeiros versos foram escritos no quadro.
46
Figura 12. Produto final do poema "Raridade", com destaque para a rasura.
Tem-se, a seguir, a transcrição diplomática do texto acima.
Figura 13. Transcrição diplomática do poema "Raridade".
47
A análise incidirá sobre o trecho destacado, mas antes será apresentada
a transcrição que mostra o processo de escritura em ato da dupla, desde que
copiaram os quatros primeiros versos do poema “Raridade” até a criação dos
outros três versos, terminando no trecho que será rasurado. Nesse momento, a
dupla estava acabando de copiar os versos que estavam escritos no quadro.
Fragmento 1
48
Após escrever o último dos quatro versos que estavam no quadro (TC 2,
4, e 11), a dupla combina a continuação do poema.
Enquanto Valdemir escrevia a sugestão dada com entusiasmo por José
Antenor no TC 9 – “prá ficar bonitinha para depois assá-la” –, que foi
reformulada por Valdemir no TC 17 – “prá ficar gordinha” –, estabelece-se uma
nova unidade estrutural para o poema. Apesar de “bonitinha” não aparecer no
produto final, seus vestígios são percebidos pela terminação INHA em
“gordinha”. Essa estrutura de rima – INHA – assim como a estrutura sintática
“para + verbo” permanecem no verso e persistem em todo o poema. Essa
eleição feita pelos scriptores está intimamente ligada à rasura do trecho “para o
hmem jantá-la” (verso 6, figura 12), que representa a incapacidade dos alunos
em dar continuidade ao poema, uma vez que a estrutura de rima “ALA” havia
sido retomada.
Observe, na sequência, como aconteceu a escrita do trecho “para ficar
gordinha”:
Continuação fragmento 1
49
Após escrever “pra ficar gordinha”, Valdemir se espanta com o resultado
visual da palavra “gordinha” (TCs 46 e 47), e na sucessão dos fatos ele repara
a escrita da letra “G” e “A” dessa palavra (TC 48). Na sequência, a dupla
empreende a continuação do verso conforme combinado nos TCs 18 e 19, ou
seja: “para depois assá-la”. Observe como isso se deu:
50
Continuação fragmento 1
51
Com o término da escrita desse verso, a dupla tem, até então, o
seguinte poema grafado na sua folha de papel: A arara é uma ave rara / pois o
homem não pára / de ir ao mato caçá-la / para pôr na sala (quatro primeiros
versos do poema original)/ para fica gordinha para depois açá la10 (verso
inventado pelos alunos).
Assim que termina de escrever esse verso, Valdemir o lê e
imediatamente já sugere a continuação do poema. A dupla combina o verso
seguinte e chega então ao resultado “para o homem jantá-la”. E assim nasceu
o verso que, depois, foi rasurado:
Continuação fragmento 1
10
Obedecendo à forma com que foi grafada pela dupla.
52
53
Após ler o verso que acabara de ser escrito, Valdemir sugere a
continuação do poema com o trecho “para jantá-la” (TC 84), que é prontamente
rejeitado por José Antenor, no TC 86, ao dizer “não”. No entanto, Valdemir
argumenta (TC 88) na tentativa de convencer seu companheiro, que com muita
facilidade acaba cedendo (TC 90).
Na sequência, ao repetir o que intencionava escrever, ou seja, “para
jantá-la” (TC 89), Valdemir é imediatamente interrompido por seu colega, que
fala o seguinte enunciado com muito entusiasmo, como se tivesse acabado de
ter uma grande ideia: “para o... eita... para o homem jantar” (TCs 92 e 96).
Na continuação, Valdemir começa a escrever o verso “para o homem
jantar” (TC 94), e ao terminar de escrever a palavra “homem” (TC 106) repete-a
e enuncia “assa” (TC 108). Logo após, ele reformula o que acabara de dizer no
54
TC 108 e fala “jantá-la” (TC 110), deixando o verso da seguinte maneira: “para
o homem jantá-la”.
Na sucessão dos acontecimentos, ele escreve o verso e o poema fica da
seguinte maneira: A arara é uma ave rara / pois o homem não pára / de ir ao
mato caçá-la / para pôr na sala (quatro primeiros verso do poema original) /
para fica gordinha para depois açá la/ para o hmem janta la11 (versos
inventados pelos alunos).
Os primeiros quatro versos originais copiados do quadro apresentam as
aliterações “ARA” e “ALA”. Os scriptores inovam com a escrita do verso “para
ficar gordinha”, estabelecendo não só uma nova estrutura de sentido12, como
será analisado mais adiante, mas também um nova proposta de rima (INHA).
Porém, no verso seguinte, retomam a estrutura original e escrevem o verso
“para o homem jantá-la”.
Esse verso provocou nos scriptores uma impressão de completude,
finalização, desfecho do poema. Talvez por terem percebido o esgotamento da
narrativa: 1) O homem vai ao mato; 2) caça a arara; 3) coloca-a na sala; 4)
para engordá-la; 5) depois ele a assa; e, finalmente, 6) a come no jantar.
Acabou-se a história da arara, o que mais poderia ser dito? O scriptor fecha o
ciclo de sua narrativa e se vê incapaz de prosseguir.
Pode-se verificar esse sentimento de finalização quando José Antenor
diz (TC 122): “tá bom, tá bom”, sugerindo o encerramento do processo de
criação. Mas Valdemir, não resignado, enuncia: “tá pequena pô” (TC 123),
demonstrando interesse em dar continuidade ao poema.
Buscando um juízo de aprovação, os alunos chamam o professor
condutor da atividade. Ele pede que eles leiam o poema em voz alta. Ao
adentrar em sua leitura, na parte do poema criada por eles, Valdemir lê o
primeiro verso, mas logo interrompe a leitura, como se censurasse o verso
seguinte. Observe:
11
12
Obedecendo à mesma forma com que a dupla escreveu.
Até então, nos primeiros quatro versos originais, a arara assumia um papel decorativo. Faz‐se a
imagem de uma bela e colorida ave que é caçada com o intuito de servir como animal de estimação e
elemento decorativo de uma casa. “Bonitinha” mantinha relação com essa concepção, porém, com a
inserção de “gostosinha”, percebe‐se, daí em diante, um novo paradigma: a ave como alimento, a
exemplo da galinha. A arara deve então ser engordada e depois assada.
55
Continuação fragmento 1
56
Valdemir parece preso à nova estrutura de rima, “INHA”, introduzida no
verso anterior: “para ficar gordinha”. Parece-lhe mais adequado, portanto, dar
continuidade com essa rima.
No TC 150, Valdemir olha para José Antenor e diz: “era para colocar na
cozinha”, ou seja, “devíamos ter continuado com a rima INHA”. “Na cozinha”
surge também pela metonímia que existe entre “assá-la” (modo de preparar o
alimento) e “cozinha” (local da casa em que os alimentos são preparados). A
rima INHA tem mais “força” do que a terminação “ALA” de “jantá-la”. Ou seja,
os scriptores, ao introduzirem a nova rima, romperam com a estrutura preestabelecida, sentindo-se como se houvessem transgredido o texto já
produzido. Desse confronto entre “INHA e “ALA” a primeira torna-se a rima que
passa a estruturar o poema.
Percebendo que Valdemir não terminara de ler o que escrevera, o
professor o provoca a fazê-lo (TC 151):
Continuação fragmento 1
57
Valdemir fica confuso entre o que de fato escrevera e o que gostaria de
ter escrito ou pretendia escrever. Termina por ler o que escrevera: “para dipois
assá-la, para o homem jantá-la” (TCs 162 e 164).
O professor, então, incentiva os alunos a escreveram mais (TCs 165 e
167):
Continuação fragmento 1
58
Não se pode deixar de notar a diferente construção de Valdemir ao
enunciar “e ela é o gosto de galinha” (TC 175) e a imediata estranheza de José
Antenor ao falar, rindo: “eitcha rema13 não essa... rema não...” (TCs 176, 177 e
178). Nesta ocasião ele ri da formulação de Valdemir, argumentando que tal
verso não rimaria com o que até então fora produzido.
O que parece é que o verso proposto por Valdemir causa um
estranhamento em José Antenor, que, estando tão preocupado com a
sequência de rimas, especialmente as de sufixo INHA, talvez acreditando que
este elemento – tão preponderante na sua concepção de poesia – fosse o
causador de tal estranhamento.
No entanto, como o próprio Valdemir expressa em seguida, pode-se
perceber rima no verso, estando ele inserido no modelo de rimas que estrutura
todo o poema: “rima sim... óia aqui... óia aqui... (INDICANDO AS LINHAS
ESCRITAS)... gordinha... galinha”... (TCs 180 e 181).
Após a defesa de Valdemir, José Antenor, percebendo a existência da
rima, busca o que de fato estaria “faltando” no verso. Sua exclamação “eitcha...
13
O aluno, ao enunciar a palavra “rema”, na verdade quer dizer “rima”.
59
rema não essa... rema não” (TCs 176, 177 e 178) demonstra seu
estranhamento. O que se infere dessa fala seria aproximadamente o seguinte:
“Não está bom, tem algo estranho com esse verso, não combina.”
Ao se dar conta que o deslize cometido por Valdemir não se encontra na
ausência de rima, José Antenor passa a tentar reformular o enunciado do
colega buscando, em um discurso que ele não domina, uma forma de
expressar o que acredita ter Valdemir querido dizer.
São recorrentes no discurso gastronômico expressões que indicam o
modo de preparo de certos pratos: à moda da casa, à brasileira, ao alho e
óleo... Percebe-se na reformulação que José Antenor faz com o enunciado de
Valdemir (“e ela é o gosto de galinha” [TC 175]) a tentativa de aproximar-se
desse discurso. Observe o que ele diz nos TCs 182 e 184: “e para ficar um
gosto de galinha... e para ficar um gosto de galinha... e bonitinha...”
Esse enunciado aproxima-se da não-coincidência do discurso
consigo mesmo, teorizada por Authier-Revuz, uma vez que José Antenor
busca palavras que são marcadas como pertencentes a outro discurso. Suas
reformulações tendem ao seguinte dizer: “para ficar à moda de galinha, para
ficar ao sabor de galinha”, porém ele não consegue estruturar seu enunciado
dessa maneira, ainda mais porque galinha não representa um tempero ou
mesmo a forma de preparo de um prato, mas sim o prato em si.
Assim, Valdemir ao ouvir tais reformulações, pergunta ao professor:
“para ficar com gosto de galinha, pode ser?” (TC 187).
Valdemir reformula sua primeira ideia e alcança a coerência certamente
desejada por José Antenor.
Continuação fragmento 1
60
Após o incentivo do professor (TC 192), a dupla passa a buscar uma
forma de prosseguir o poema. Porém, não conseguem continuá-lo com este
verso “para o homem jantá-la” (TC 193), tendo de rasurá-lo. Veja a seguir:
Continuação fragmento 1
61
A rasura aconteceu no TC 209. Porém, antes se percebe uma pequena
pausa (TC 203), e a angústia de José Antenor exteriorizada pelo ato de bater a
mão na carteira durante 4 segundos (TC 203).
O que indica essa rasura? Um controle do sujeito sobre a linguagem?
Onde este pode olhá-la do alto como se estivesse fora dela? Ou estaria a
linguagem com suas “forças” agindo sobre o sujeito?
62
No TC 150 Valdemir diz: “era pra colocar na cozinha”, quando começa a
ler o poema para o professor. A palavra cozINHA aparece como se fosse
“puxada” pela terminação INHA de gordINHA.
A entrada de “bonitinha”, no TC 9, por sugestão de José Antenor, vai
modificar todo o percurso do poema. O sufixo “INHA” irá reverberar durante
todo o poema, tanto no que está escrito no papel, quanto no manuscrito oral:
“gordinha” (TC 17); “cozinha” (TC 150); “Galinha” (TC 175); “moreninha” (TC
199) e “gostosinha” (TC 204). Assim o “INHA” ganha força e envolve os
scriptores.
Os alunos, movidos pela força preponderante da rima “INHA”, são
impelidos a mantê-la e a descartar o que já fora escrito. Essa rima, esse sufixo,
foi determinante para a rasura do verso “para o homem jantá-la”. A linguagem,
com suas forças e seu funcionamento próprio, age sobre os scriptores.
3.1 Óia! Eita! Bonitinha não, gordinha!: suas potencialidades
Voltando ao início da transcrição, quando se tem a entrada de
“bunitinha”, após enunciar “prá ficar bunitinha pa depois assá-la”, José Antenor
admira-se, mostrando satisfação pelo verso por ele criado, e exclama: “Óia!”
(TC 9). Observe novamente com um olhar mais apurado:
63
Essa exclamação retrata, ainda que em seu estado latente, como
defendem Calil e Felipeto (2008, p. 148), um retorno e um comentário de José
Antenor sobre seu próprio dizer. Verifica-se então uma “modalização
autonímica em potencial”, segundo preceituam esses pesquisadores.
Na fala de José Antenor não estão manifestas explicitamente as glosas
de não-coincidências do dizer, mas elas estão presentes como virtualidades
(Calil, 2008, p.91). Os alunos envolvidos nessas práticas de textualização não
conseguem estruturar os seus enunciados morfossintaticamente, como
proposto por Jaqueline Authier-Revuz (1998, 2004).
Ao enunciar “Óia”, José Antenor desdobra-se sobre seu dizer,
aproximando-se da não-coincidência entre as palavras e as coisas, na
medida em que ele encontra sucesso no verso inventado. Esse enunciado
traja-se de desdobramento como: “Olha, esse é o verso perfeito!”.
Evento semelhante acontece nos TCs 92 e 95, quando José Antenor
começa a enunciar o verso “para o homem jantá-la”, e no meio de sua
enunciação diz “eita14”, admirando-se com o verso que acabou de inventar.
Interessante é que José Antenor, antes de terminar o verso, desdobra-se sobre
o seu dizer com essa exclamação. O sentido desse comentário aproxima-se do
seguinte desdobramento: “Nossa, que verso legal eu vou dizer agora”. Que se
testemunhe mais uma vez esse momento:
14
Interjeição brasileira típica da região Nordeste, que exprime alegria, incitamento, surpresa, espanto.
(Dicionário Aurélio Século XXI – Eletrônico).
64
Agora retornando o nosso olhar para o início da transcrição:
65
66
No TC 17, ao substituir “bunitinha” por “gordinha”, Valdemir tenta
adequar o sentido que “gordinha” mantém com “assá-la”. O aspecto decorativo
da ave foi deixado para trás, à medida que a dupla decide incluir em seu
poema a realidade em que estão inseridos. Sabe-se que é hábito de muitos
garotos de periferia caçar passarinhos, muitas vezes não para criá-los ou para
que eles “enfeitem a sala”, mas para, de fato, assá-los e comê-los.
José Antenor propõe: “prá ficá bunitinha, pa depois assá-la” (TC 9 ).
Valdemir ajusta a proposição, dando-lhe maior coerência: “para ficar gordinha”
(TC 17). E finalmente ambos completam: “prá depois assá-la” (TCs18 e 19).
Qual seria a finalidade de colocar a arara na sala para embelezá-la, se ao final
ela seria devorada? Mas a ação de deixá-la na sala, para que pudesse ser
alimentada e assim engordasse, guarda uma relação bem mais estreita com a
finalidade pretendida: assá-la e jantá-la.
Metonimicamente
essa
reformulação
vem
pela
contiguidade,
“produzindo como efeito a ressignificação do que vem antes e a simultânea
restrição e ampliação do que virá depois” (CALIL, 2008, p. 113). Essa
ressignificação estabelece relação com a não-coincidência das palavras e as
coisas, uma vez que ela guarda um desdobramento do tipo: “bonitinha, não!
Gordinha! Gordinha é mais adequado!”.
67
Capítulo 4 – O nada e estrada
Será analisado agora outra rasura escrita presente no produto final do
poema “O nada e Estrada”, feito por Valdemir e Wellington em 5/10/2001,
quando estes cursavam a 2ª série do Ensino Fundamental, atual 3º ano. O
poema “O nada e o coisa nenhuma” de Sergio Caparelli15 foi explorado com a
turma durante a semana que antecedeu essa prática de textualização. Nesses
momentos a professora lia e comentava com os alunos alguns aspectos do
poema, tentando interpretá-lo.
Para essa atividade a professora propôs a criação de uma poesia a
partir de algumas palavras extraídas do poema “O nada e o coisa nenhuma”.
Essas palavras foram selecionadas pela professora e escritas no quadro. São
elas: tudo, muita coisa, demais, toda parte e alguém.
Em seguida a professora perguntou se os alunos gostariam de
acrescentar outras palavras para ajudá-los a criar seu poema. E as palavras
que os alunos sugeriram foram: nada, pode, faltar, falar, alegria, todo dia, todo
mundo.
Essas foram as palavras que ficaram escritas no quadro para que os
alunos pudessem utilizar na produção de seus poemas. Em seguida, foram
distribuídas canetas e papéis com pauta para cada dupla. Valdemir e
Wellington, depois de combinarem, chegaram ao seguinte texto, que será
mostrado abaixo. Destaca-se do texto dos alunos, com um círculo vermelho, a
rasura que será analisada. Logo em seguida, tem-se a transcrição diplomática
do texto com a finalidade de facilitar a leitura. Mostra-se primeiro o produto
(texto finalizado), e em seguida se analisa o processo de criação trilhado pelos
alunos até chegarem a esse produto com essa rasura.
15
O Nada e o Coisa Nenhuma/ saíram a parte alguma. / Dentro de um embornal / o Nada pôs
coisa nenhuma / num embrulho de jornal / Coisa Nenhuma levou nada. / Quando chegaram à
estrada / que leva a parte alguma / o Nada disse a Coisa Nenhuma: / ‐ este passeio vai dar em
nada ! / E ao tomarem a trilha / encontraram com Ninguém / que vinha de mãos vazias / sem
dúvidas e sem vintém. / ‐ Por favor, como é seu nome? / Perguntou‐lhe Coisa Nenhuma. / Sou o
de nome nenhum / Ninguém ou qualquer uma. / ‐ Entendi nada, ninguém, / Adeus e passar
bem! / De volta a lugar nenhum / o Coisa Nenhuma e o Nada / repartiram um menos um / e
correram, às gargalhadas, / virando sombra de sombra, / virando poeira de estrada.
68
Figura 14. Produto final do poema “O nada e estrada”, inventado pela dupla
Valdemir e Wellington, com destaque para a rasura.
Figura 15. Transcrição diplomática do poema “O nada e estrada”.
69
Depois de criar os três primeiros versos do poema (Na estrada
enpuerada / Quase niquem ve nada / Como uma flor envenenada), a dupla
coloca um asterisco (*) na linha de baixo para dividir as estrofes. Então eles
combinam a criação do verso seguinte que dá início à segunda estrofe: “Nasce
uma flor sem querer nascer”.
Analisar-se-á agora a entrada e a saída (resultante da rasura) desse
verso. Quando serão observados os momentos de “tensão” entre os sujeitos e
a linguagem.
4.1 As forças do “Nada”
O último verso do poema de Sergio Caparelli, “virando poeira de
estrada”, vem à tona, ressignificado pela dupla no primeiro verso de seu
poema: “na estrada empoeirada”. Ao darem continuidade a essa estrofe, vê-se
a aparição de dois dos três personagens do poema de Caparelli. São eles:
ninguém e nada. Porém, estes personagens/palavras estão exercendo funções
sintáticas e semânticas diferentes em cada poema.
Ao utilizar “nada”, “coisa nenhuma” e “ninguém” tanto como substantivo
próprio como pronome indefinido, Caparelli cria certa confusão que dá humor
ao poema. Já no poema da dupla, “ninguém” e “nada” aparecem estabilizados,
exercendo função de pronome indefinido, aproximando os termos ao seu uso
mais comum.
Finalizando a estrofe, tem-se a entrada da palavra “envenenada”, na
qual se percebe que a palavra “nada” está contida: enveneNADA. A primeira
estrofe do poema inventado ficou assim (atente para a terminação ADA no fim
de cada verso):
Na estrada empoeirada
Quase Ninguém vê nada
Com uma flor envenenada.16
16
A ortografia de algumas palavras foi corrigida assim como a disposição dos versos para que
visualizem melhor as terminações dos versos.
70
Na tentativa de dar continuidade ao poema, Valdemir lê a primeira
estrofe com o intento de criar outra estrofe. A seguir:
Fragmento 1
71
72
Depois de ler a primeira estrofe, Valdemir faz uma pausa e fica
pensando em uma possível continuação, quando enuncia: “nada menos, nada
mais” (TC 5).
A partir daí eles ficam “presos” nessa estrutura e tentam criar um verso
com ela. Segue-se, então, como se pode notar em todo manuscrito oral, várias
experimentações sem sucesso de versos com “nada menos, nada mais”.
Primeiro Valdemir tenta quatro vezes (TCs 6, 8 e 10), em seguida é a vez de
Wellington (TC 13). Novamente, há duas tentativas de Valdemir (TCs 17 e 23)
e, posteriormente, mais duas no TC 28. Na continuação, depois de alguns
instantes de silêncio (TC 29), Valdemir ainda insiste (TC 33). Wellington
persevera com essa estrutura (TC 35) e, finalmente, a última tentativa de
Valdemir acontece no TC 34. Totalizaram-se doze tentativas empreendidas
pela dupla para criar um verso com essa estrutura.
Com essas tentativas, percebe-se a força que o “nada” exerce sobre a
dupla, ou seja, o termo se tornou preponderante nas escolhas dos scriptores,
mantendo-os presos, desamparados, incapazes de concluir o verso ou de
abandoná-lo. Talvez isso possa ser explicado pela confusão intencional que
Caparelli fez em seu poema utilizando a palavra “nada” ora como personagem
(substantivo próprio), ora como pronome indefinido. Também há o titulo do
poema de Caparelli, “O nada e o coisa nenhuma”, estudado durante toda a
semana que antecedeu essa prática de textualização, como um fator que
poderia contribuir para esse evento.
Na sequência, ao perguntar para Valdemir: “Isso não é do “nada” não?”
(TC 38), Wellington evoca o poema de Caparelli, dando-se conta de que seus
enunciados, tanto os dele quanto os de seu companheiro, foram influenciados
por esse poema, ou, em outras palavras, influenciados por “nada”. Valdemir
assente balançando a cabeça afirmativamente (TC 37), reconhecendo a
procedência de suas ideias.
4.2 Nasce uma flor!
No mesmo TC 38, Wellington continua com a criação do poema.
Observe o que acontece:
73
Continuação Fragmento 1
74
Ao continuar com a criação do poema, Wellington fala: “Nada menos
nada mais como uma flor... Não”! (TC 38). Ele começa com a mesma estrutura
que vinha tentando anteriormente (“nada menos, nada mais”); em seguida ele
diz: ”Não!”. Esse “não” funciona como um rompimento dessa estrutura.
75
Wellington, por um momento, desprende-se das “forças do nada”, dizendo:
“Não”! Por um momento ele percebe o engessamento causado por esta
referência e tenta abandoná-la. Por meio da filmagem, é possível identificar
que esta interjeição “não!” surge abruptamente no fio do discurso, quase que
inesperada para o próprio falante, que se insurge contra a força que o prendia
e limitava.
Na sequência, Valdemir pede para ele falar mais alto (TC 40); ele para
um pouco, percebem-se alguns instantes de silêncio (TC 42) e em seguida
Wellington enuncia: “Nasce uma flor... nasce uma flor...” (TCs 43 e 46). Efetivase nesse momento o rompimento da estrutura “nada menos, nada mais”. Pela
primeira vez, desde a criação da segunda estrofe, surge um verso sem essa
estrutura.
Valdemir completa o verso, dizendo: “sem querer nascer” (TC 45), que
depois de alguns ajustes é finalizado por Wellington: “Não tem vida nem hora
para morrer!” (TC 51). Até então, com as sugestões da dupla, tem-se o
seguinte verso: “Nasce uma flor sem querer nascer, não tem vida nem hora
para morrer”.
Valdemir, satisfeito, fala com alívio: “pronto, num é?”, e pede para
Wellington repetir o verso do começo, para que possa escrevê-lo (TC 53). Ao
tentar lembrar o verso, Valdemir adianta-se a Wellington e diz: “nada menos”
(TC 56), e Wellington completa: “nada mais” (TC 58).
Claramente vê-se aí mais uma manifestação do termo “nada” sobre a
dupla. Esse é um momento precioso. Percebe-se que eles conscientemente
decidiram abandonar a estrutura e até conseguiram sucesso em continuar a
poesia com um novo verso, mas para sua própria surpresa, ao tentarem
lembrar o que acabaram de criar, lá está o “nada mais, nada menos”. Vê-se,
então, neste momento, o sujeitamento dos scriptores à própria linguagem e o
distanciamento entre o que eles querem produzir e o que de fato produzem.
Percebendo o deslize, Valdemir resiste e diz: “Não! Nasce uma flor” (TC
60). Esse “não” de Valdemir tem a mesma função do “não” dito por Wellington
no TC 38, ou seja, de rompimento da estrutura “nada menos, nada mais”. Na
sequência Wellington tenta recordar o verso e, por fim, Valdemir, já com o
verso relembrado, pergunta a seu companheiro se está bom (TC 72).
76
4.3 Na escrita do verso aparece algo “sem sentido”
Antes de escrever o verso na folha de papel, Valdemir chama a
professora e explica suas intenções. Ela aprova, deixando a dupla à vontade
para a criação e, finalmente, Valdemir escreve o verso. Observe como isso
ocorreu:
Continuação Fragmento 1
77
78
79
Ao escrever o verso, Valdemir incomoda-se com algo que lhe parece
estranho. O verso provoca-lhe estranhamento apenas no momento de sua
escrita. Valdemir escreve “nasce uma flor sem querer n” e, antes de terminar a
palavra “nascer”, para e diz: “tá sem sentido”, argumentando: “porque nasce
uma flor... Ela não quer nascer” (TC 127). Por fim, sem conseguir manifestar o
que de fato quer dizer, ele pergunta a Wellington, em resignação: “Tá bom,
né?” (TC 129).
Com esse estranhamento, Valdemir desdobra-se sobre seu próprio
dizer, enunciando: “tá sem sentido”. Como pode uma flor nascer sem querer,
de fato nascer? É um equívoco (MILNER, 1987) que no paradigma de poesia
desses alunos não pode acontecer, pois deixa o verso “sem sentido”.
Pode-se dizer que esse desdobramento de Valdemir aproxima-se das
não-coincidências das palavras consigo mesmas, uma vez que essa glosa,
“tá sem sentido”, mostra o encontro de Valdemir com o equívoco.
O mesmo acontece com Wellington (TC 136), que ainda tenta reformular
o verso, porém chega à mesma conclusão de seu companheiro: “tá sem
sentido”.
4.4 Silêncio, desamparo e a rasura
Apesar desse estranhamento, a dupla não rasura o verso e continua a
combinação da estrofe. Nesse momento temos o verso escrito (Nasce uma flor
sem quere nascer), e o diálogo que se estabelece é uma tentativa de continuálo. Porém o que acontece é a sua rasura. A seguir:
Continuação Fragmento 1
80
81
Na primeira tentativa de continuar a estrofe, Valdemir parece querer
justificar a aparente “incoerência” de a flor nascer sem querer nascer, dizendo:
“como ainda tem vida pode morrer” (TC 138 e 140). A morte surge
metonimicamente pelo fato de a flor “nascer sem querer nascer”, exercendo
uma relação de causa e efeito.
Nos Tempos Cronometrados (TCs) 149 e 156, nota-se um grande
silêncio no processo de escritura em ato, totalizando 32 segundos. É nesses
momentos que se revela o “desamparo”, para usar a expressão de Willemart
(1993), a que os scriptores estão submetidos.
Nesses TCs, evidencia-se o embate que os scriptores travam com a
linguagem pelos longos momentos de silêncio. No TC 149, houve 14 segundos
de silêncio, percebendo-se mais 18 segundos no TC 156. Esses momentos
talvez possam parecer insignificantes em outras situações, mas no processo de
escritura em ato eles são longos, angustiantes, e expõem os scriptores aos
“espaços de tensões”. Sobre esses momentos, Felipeto fala do embate travado
pelos scriptores com a linguagem:
Diante da folha em branco – espaço de tensões – o escritor, mesmo
prevenido com seus planos, esboços, informações anotadas, entra
num embate com a linguagem: umas palavras lhe faltam, outras
forçam passagem, falam nele (FELIPETO, 2008, p.35).
82
Depois do primeiro momento de silêncio (TC 149), Wellington pede para
Valdemir escrever (TC 150) e depois fica repetindo o verso (TCs 152 e 154).
Valdemir tenta completá-lo (TC 155), porém sem sucesso.
Vem, então, o segundo momento de silêncio (TC 156), após o qual
Valdemir e Wellington continuam com suas tentativas (TCs 158 e 160). Mais
uma vez acuado, Valdemir diz: “porque já tá dizendo... aqui a gente já tá
dizendo... nasce uma flor... ela... ela não quer nascer...” (TC 161). Esse
enunciado exerce a mesma função de estranhamento daquele a que Valdemir
se refere no TC 127: “tá sem sentido”, conforme discutido anteriormente.
Valdemir ainda persiste em completar o verso (TC 163). Nota-se outra
vez, no TC 162, quase 7 segundos de silêncio antes do ato de rasurar. Assim,
sucumbido, Valdemir enuncia: “bora riscar e bora pensar em outro?” (TC 165).
Seu companheiro, também sem escolha, concorda (TC 166).
Finalmente, a rasura acontece (TC 167). Willemart argumenta que a
rasura:
[...] gera uma depressão mais ou menos acentuada decorrente da
incerteza do que vai acontecer. Porém, o achado acrescido vence a
incerteza, diminui a angústia do parágrafo seguinte e libera o autor da
tendência depressiva. É como se o escritor devesse cada vez pular
do trampolim sem saber ao certo se há água ou não. A escritura
consiste portanto em uma série de mortes ou lutos sucessivos
(WILLEMART,1993, p.72).
Vê-se, ainda no TC 168, depois da rasura, o cameramam falando “tudo
bem” na tentativa de confortar, consolar, aliviar a dupla dos efeitos causados
pela rasura.
Com isso, são notados claramente os embates e os momentos em que o
sujeito não se apresenta como o “senhor” da linguagem, como se costuma
entender. Aqui, a linguagem age sobre o sujeito, que se vê, por vezes,
indefeso, incapaz de retomar uma posição “ativa” a que notoriamente está
associado, restando-lhe como saída a rasura e um recomeço.
83
Capítulo 5 – As meninas
Agora, analisa-se o processo de criação de um poema feito pela dupla
Valdemir e José Antenor no dia 30 de novembro de 2000. A dupla criadora do
poema não atribuiu um título a ele, mas, durante o processo de análise passouse a identificá-lo como “As Meninas”, uma vez que foi produzido após uma
discussão sobre o poema homônimo de Cecília Meireles.
Antes do início da criação, estendeu-se uma longa e proveitosa
discussão entre o professor e a turma, com a finalidade de dar as diretrizes
para essa atividade de produção textual. O acesso a esse debate foi de
extrema relevância para se perceber as interferências causadas no trabalho da
dupla. Identificou-se que alguns itens trazidos à baila pelo professor e pelos
alunos, no momento da pré-produção, apareceram explícita ou implicitamente
no produto final.
5.1 A pré-produção e as rimas
Passa-se a analisar o período de pré-produção do poema, ou seja,
todos os acontecimentos que antecederam a prática de produção de texto
efetivado pela dupla.
O professor inicia a atividade falando sobre as declamações de poesias
que seriam feitas em um recital. A turma estava se preparando para um recital
de poesias, que provavelmente aconteceu nos últimos dias letivos daquele ano.
O professor pergunta se algum aluno gostaria de declamar uma poesia como
ensaio para o referido recital. O aluno Valdemir se prontifica e começa a recitar
a poesia “A traça” 17 de Guto Lins (1999). Valdemir sabia o poema decorado e
o declamou com ótima fluência.
Na sequência, o professor faz elogios ao aluno e dá algumas dicas à
turma de como recitar melhor um poema como, por exemplo, “falar alto”, “com
a voz impostada”, “olhar para as pessoas enquanto estiver falando” etc.
17
“A traça / traça tudo / o que na frente encontrar / sua calça de veludo / seu casaco sobretudo / e o
que tiver para traçar / só não traça sua meia suja / aquele troço esquisito / que você esqueceu de lavar”.
84
Após esse pequeno ensaio, o professor Calil, condutor da atividade,
começa a trabalhar com o poema “As meninas”, que já estava escrito
previamente no quadro. O professor fala brevemente sobre a poetisa Cecília
Meireles, que é a autora desse poema.
A seguir está transcrito o poema.
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!"
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina
a mais sábia menina.
E Maria
Apenas sorria:
“Bom dia!"
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!"
85
O professor Calil passa a fazer uma primeira leitura do poema a partir de
um papel que está em sua mão. O professor declama a poesia de forma teatral
e, em seguida, lê a poesia a partir do quadro, apontando para as palavras à
medida que as pronuncia.
Após esse primeiro contato com o texto, o professor chama a atenção
dos alunos para os nomes próprios contidos no poema e como a autora
“brinca” com estes, produzindo rimas: Arabela/janela e Carolina/cortina.
Incentivando o envolvimento da turma, o professor pergunta aos alunos
por que tais nomes rimam uns com os outros. A resposta dos alunos é de que
os pares de rima terminam com a mesma letra. O professor concorda, mas
acrescenta que as palavras também terminam com o mesmo som (7´ 20´´)18.
Mais adiante, o professor frisa que o mesmo som no final de uma palavra pode
fazer a rima, não sendo imprescindível a finalização com a mesma letra. Essa
informação se mostrou importante quando foram analisadas as discussões
entre Valdemir e José Antenor, no momento em que José Antenor propõe uma
rima com as palavras “Jeane” e “enxame”, sugestão reiteradas vezes rejeitada
por Valdemir por não se tratar de palavras que terminam com as mesmas letras
(Jeane termina com “NE” e enxame com “ME”), e, portanto, em desacordo com
seu entendimento de rima. Mais adiante, retoma-se esta discussão.
Continuando a correspondência dos nomes das personagens com as
rimas que eles formam, um dos alunos conclui que o nome “Maria” rima com a
palavra “sorria” (7´46´´). Professor Calil elogia a constatação do aluno e mostra
que as três últimas letras dos dois nomes são iguais (r, i, a) (7´51´´- 7´58´´).
Em seguida, o professor abre uma breve discussão para explicar sobre
as aspas, mostrando a função que ela exerce na poesia: indicar para o leitor
que o trecho que está entre aspas (“bom dia!”) é uma fala da personagem
Maria.
Um aluno encontra outra palavra que rima com a personagem Arabela, a
palavra “bela”. O professor Calil, na sua explicação, vai além da rima e diz que
no nome Arabela tem-se a palavra “bela”. Depois, ele procura outros exemplos
para dar sobre esse caso. É quando um dos alunos se antecipa e diz,
18
Disponibiliza‐se o tempo das ações em minutos e segundos para facilitar a localização nas filmagens
em anexo. Apenas serão identificadas as ações por meio de Tempos Cronometrados (TCs) quando a
transcrição exportada do programa ELAN estiver inserida no corpo do texto.
86
apontando para o quadro: “Olha aí: janela, janela. Janela tem ‘nela’”. Ou seja, a
palavra “janela” contém a palavra “nela” (9´51´´- 9´57´´) em sua grafia.
Outras rimas do poema são encontradas pela turma, e o professor, no
momento da identificação, destaca as finalizações das palavras para marcar as
rimas. E assim, ele foi sublinhando no quadro algumas rimas, até que decidiu
perguntar à turma por que a autora, Cecília Meireles, escreveu o verso
“Carolina, a mais sábia menina” dessa maneira e não da seguinte forma:
“Carolina a menina mais sábia”. Valdemir responde que é por causa da rima, e
o professor Calil mais uma vez debate sobre as rimas, explicando que se o
verso ficasse invertido, como ele tinha proposto antes, impossibilitaria a rima
(10´´20´´ - 11´15´´).
Na sequência, o professor marca as rimas dos últimos versos da 2ª
estrofe: “E Maria apenas sorria: ‘bom dia!’”. Em seguida, nas últimas duas
estrofes do poema, Calil solicita de alguns alunos que se dirijam ao quadro e
destaquem as rimas existentes nessas estrofes. Os alunos, depois da ajuda do
professor e de outros colegas, marcam as palavras “menina”, presente no
primeiro verso da terceira estrofe, e “Carolina”, no último verso. Da seguinte
forma:
Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
Marcadas as finalizações das palavras, Calil, mais uma vez, pergunta
por que a palavra menina rima com Carolina. Talvez agora com a esperança de
que os alunos respondessem que além de as palavras terminarem com as
mesmas letras, elas rimavam porque finalizavam com o mesmo som. Porém,
ao perguntar, um dos alunos responde que elas rimam porque “termina com a
mesma letra” (15´16´´). Complementando a explicação, Calil diz que elas
rimam entre si também porque ambas “terminam com o mesmo som e não
necessariamente com a mesma letra” (15´20 ´´ - 15´28´´). Essa foi mais uma
tentativa
do
professor
de
desestabilizar
o
conceito
que
os
alunos
87
predominantemente tinham de que as rimas só aconteciam entre palavras que
terminassem com as mesmas letras.
Parece que a maioria dos alunos comungava desse conceito concreto e
visual. Porém, percebe-se com facilidade que a intenção de Calil era que os
alunos enxergassem o cerne da rima: a sonoridade das palavras. Algumas
palavras terminam com a mesma letra e não rimam entre si, e o inverso
também acontece. Ou seja, palavras que rimam, pois compartilham de uma
sonoridade semelhante, mas não terminam com as mesmas letras. A questão
da sonoridade para formar rimas entre as palavras é um conceito mais
abstrato, saindo do campo visual (terminações com as mesmas letras) e indo
para a percepção auditiva (terminações com os mesmos sons).
Mais adiante, vem à cena o exato momento de discussão entre
Valdemir e José Antenor sobre esse assunto. É sob essas circunstâncias que
acontece a primeira rasura do poema.
Continuando, os alunos marcam as rimas do segundo e terceiro versos
da referida estrofe (Janela / Arabela). E, para sustentar seu argumento anterior,
Calil explica que, apesar de “Arabela” e “Carolina” terminarem com a mesma
letra, são duas palavras que não rimam, porque não terminam com o mesmo
som.
Em seguida, o professor Calil declama mais uma vez a poesia, usando
como referência o papel em sua mão. Depois, ele propõe uma nova leitura do
texto. Desta vez, ele lerá toda a poesia, deixando as palavras “bom dia” para a
turma ler em voz alta, em uníssono. A turma demonstra bastante entusiasmo
com a dinâmica e acompanha a leitura ansiosamente até chegar aos versos
que foram por eles declamados bem alto e com muita energia. O professor,
então, inverte a proposta: a turma lê toda a poesia juntos e em voz alta,
enquanto Calil lê sozinho as passagens que contêm “bom dia!”.
Depois dessas leituras, o condutor da atividade passa a especular com
os alunos sobre alguns elementos da possível estória por trás do poema: qual
o relacionamento existente entre as meninas, o grau de parentesco entre elas
etc.
Buscando a familiaridade dos alunos com o texto, o professor propõe
uma nova leitura. Dessa vez, a turma leu o nome das meninas, ficando a cargo
de Calil a leitura do restante do poema.
88
5.2 Novos nomes de meninas, novas rimas
Finalizada esta leitura, o condutor inicia a explicação da atividade de
produção de texto, que se seguirá. É explicado aos alunos que eles irão criar
uma poesia com nomes de outras pessoas. Por isso, o professor solicita à
turma que diga os nomes de outras meninas para que ele possa escrevê-los no
quadro. Os nomes que a turma sugeriu e que ficaram escritos no quadro foram
os seguintes: Isabela, Maria Cícera, Daniela, Gabriela, Wiris, Geane, Graça,
Dora, Iarli, Luana, Roberta, Damiana, Regina, Maria das Graças, Fabiana,
Jádina, Denise, Graziela, Esmeralda, Cláudia.
No afã de participar, os alunos contribuíram dizendo vários nomes ao
mesmo tempo, porém alguns não foram escritos pelo professor no quadro, pois
não foi possível fazer a escrita no quadro acompanhar a grande demanda de
nomes sendo enunciados pelos alunos.
Vale, também, esclarecer que a grafia muitas vezes incomum de alguns
desses nomes próprios foram indicadas pelos alunos, muito provavelmente por
se tratar de nomes de familiares ou até colegas de classe. À medida que o
professor ia escrevendo alguns desses nomes, os alunos iam indicando a
grafia desejada de uma ou outra letra. Como, por exemplo, em “Wiris”, que
Calil escrevera inicialmente com a letra “U”, sendo corrigido por um dos alunos,
que enunciou: “É com ‘W’”.
Após escrever no quadro os nomes acima discriminados, o professor
solicita aos alunos que, além de dizer nomes de meninas, precisam também
falar uma rima com o nome proposto. Um dos alunos fala o nome “Esmeralda”,
e o professor Calil escreve esse nome no quadro. Mais será detalhado como a
presença desse nome no período de pré-produção se fez relevante no produto
final.
O professor incentiva a turma a contribuir com outros nomes de meninas
para que possa escrevê-los no quadro. Um aluno sugere “Cláudia”. Após essa
sugestão, o professor Calil apaga o nome “Arabela” da poesia “As Meninas”,
que está escrita no quadro, e escreve em seu lugar o nome “Cláudia”. Em
seguida, ele tenta criar novas rimas após trocar os nomes da poesia original.
Um dos versos inventados é com o nome “Luana”. Calil sugere: “Luana
comia banana”. Os alunos concordam, e ele escreve esse verso no quadro.
89
Outro nome que Calil elege para formar rima é “Geane”, e espera que os
alunos sugiram uma rima com o nome “Geane”. Até que um aluno propõe
“enxame”. O professor, aproveitando a ideia do aluno, diz o verso: Geane
gritava: “olha o enxame”, porém não escreve esse verso no quadro (32´34´´).
Depois das várias e diferentes formas de leituras do poema “As
Meninas”, conforme relatado acima, e dos nomes que foram sugeridos pelos
alunos e escritos no quadro pelo professor, iniciou-se efetivamente a atividade
de produção de texto. Foram formadas as duplas e entregues papel e caneta
para elas com a finalidade de que criassem seus poemas.
Antes de começar a produção do texto, o professor Calil deixa claro que
os alunos precisam criar um novo poema com nomes femininos, e não
simplesmente copiar o que está no quadro. Entretanto, os nomes que estavam
escritos permaneceram ali para servir de referência aos alunos na criação de
seu novo poema. Ou seja, eles poderiam utilizá-los nas poesias que seriam
criadas.
A filmagem passa a focalizar a dupla Valdemir e José Antenor, que
começa o processo de escritura do texto. Valdemir, como nas outras produções
textuais, ficou encarregado de escrever, enquanto Antenor contribuiu com
valiosas sugestões para a criação do poema. Depois de todo o processo de
escritura em ato, os alunos chegam ao seguinte produto final:
Figura 16. Produto final do poema "As meninas".
90
A seguir, expõe-se a transcrição diplomática com a finalidade de melhor
compreensão o texto:
Figura 17. Transcrição diplomática do poema "As meninas".
5.3 A Esmeralda trocava fralda e tocava flauta, ou melhor: “Esmeralda
trocava flauda”
A primeira estrofe do poema, apesar de não apresentar rasuras, merece
alguns comentários. Os alunos escreveram: “A Esmeralda trocava flauda”. É
importante lembrar que o nome “Esmeralda” foi um nome sugerido por um dos
alunos da turma e que, por conseguinte, fora escrito no quadro. Observe-se,
agora, por meio da transcrição do programa ELAN, como aconteceu a entrada
do nome “Esmeralda” no processo de pré-produção. Esse é o momento em
que o professor pedia sugestões de nomes femininos e os escrevia no quadro.
Eis o diálogo que segue entre a turma e o professor:
91
Fragmento 1:
O professor Calil aponta para um aluno específico e pede para ele falar
um nome de menina e uma rima com esse nome (TC 3). Enquanto o aluno
pensa, outro aluno se antecipa e diz “Janaína” (TC 4). Antes que o aluno
escolhido pelo professor pudesse falar, outro aprendiz se adianta e enuncia o
nome “Esmeralda” (TC 6). Na sequência, o aluno escolhido finalmente se
pronuncia, e a sugestão dada por ele é o nome “pâncrea” (TC 5). Tal nome
inusitado parece fazer referência ao órgão do sistema digestivo, “pâncreas”.
Porém, o professor Calil dá ouvidos ao nome Esmeralda e pergunta sobre
possíveis rimas para esse nome (TC 7). Na sequência, ele escreve o nome
Esmeralda no quadro (TC 8).
É nesse cenário que surge “Esmeralda”. Na sequência, os alunos
mencionam vários nomes, na tentativa de formar rimas com “Esmeralda”. Estes
nomes foram: “Gabriela” (TCs 10 e 11), “Daniela” (TCs 14 e 15), “panela” (TC
17), “Cráudia” (TC 17), “Renata” (TC 19), “Daiane” (TC 20), “Marta” (TC 20) e
“Daiana” (TC 22). Observe a na transcrição:
92
Continuação fragmento 1:
Veem-se nesse fragmento os diversos nomes que a turma sugeriu na
tentativa de formar uma rima com o nome Esmeralda, entretanto o professor
Calil explica que esses nomes não rimam com Esmeralda e que, na verdade,
buscava uma outra palavra que não fosse nome próprio (TCs 9, 16 e 18).
Enquanto Calil explicava o tipo de palavra que buscava, o aluno
Valdemir fala finalmente uma palavra que rima com Esmeralda: “fralda”. A
seguir:
93
Continuação fragmento 1:
Depois que Valdemir fala “fralda”, (TC 23) alguns alunos continuam
sugerindo outros nomes (TCs 24 e 25). O professor faz novamente a mesma
pergunta, na tentativa de confirmar a rima entre as palavras Esmeralda e
fralda, rima sugerida por Valdemir segundos antes (TC 26). Respondendo à
pergunta do professor, Valdemir agora fala “farda” (TC 27), deixando Calil
provavelmente em dúvida quanto à sugestão do aluno. Então, ele confirma,
dizendo: “Fralda?” (TC 26). Um aluno da turma se antecipa, dado que ouvira a
proposta de Valdemir, e responde: “Fralda” (TC 28).
Neste fragmento, percebe-se a entrada do nome “Esmeralda” e a sofrida
procura de uma palavra que fizesse rima com ela. A busca é finalizada pela
sugestão de Valdemir no TC 23 ao dizer a palavra “fralda”, encontrando-se
assim uma rima compatível com “Esmeralda”.
Na sequência dos acontecimentos, o professor Calil confirma a rima
entre as palavras “Esmeralda” e “fralda”. Imediatamente, Valdemir sugere um
verso com essas palavras, sugestão que é motivo de risos para todos. Os
risos, porém, não são resultado de uma ridicularizarão do verso que Valdemir
propôs, e sim de seu teor cômico. Como segue:
Continuação fragmento 1:
94
Percebe-se que no TC 31, em resposta à pergunta do professor Calil,
ainda no TC 26, um dos alunos da turma fala “flauta”. Porém, Calil prossegue e
confirma a rima entre as palavras “Esmeralda” e “fralda”, proposta por Valdemir
(TC 29). Após esse momento, Valdemir cria um verso com essas palavras (TC
34), que é logo ratificado pelo professor e causa muitos risos (TCs 32 e 33).
No TC 31, nota-se timidamente a entrada da palavra “flauta”, que, a
princípio, aparenta não ser percebida pelo professor, mas constata-se que, no
desenrolar da atividade, o aluno que propôs a palavra “flauta” insiste para que
sua sugestão seja percebida. Isso acontece quando o professor, ainda não
satisfeito, pede aos alunos mais palavras que rimem com o nome “Esmeralda”.
Mais uma vez surgem muitas palavras que não formam a rima, e o
professor tenta explicar a razão disso. Uma dessas palavras sugeridas pelos
alunos é o nome “Cláudia”. Enquanto o professor dá suas explicações, o aluno
fala repetidas vezes a palavra “flauta”, reiterando seu pedido. Até que o
professor percebe sua insistência e confirma a rima entre as palavras
“Esmeralda” e “flauta”. Esse acontecimento acha-se no fragmento 2:
Fragmento 2:
95
Por quatro vezes o aluno insiste falando “flauta” (TCs 2, 4 e 8); assim, o
professor, finalmente, ratifica a rima existente entre as palavras “Esmeralda” e
“flauta”, enfatizando o som das últimas sílabas (TC 9).
Observam-se, no primeiro verso do poema criado pela dupla Valdemir e
José Antenor, as marcas deixadas pela entrada da palavra “flauta” no momento
da pré-produção, como se testemunhou acima. Não aconteceram rasuras
nesse verso, entretanto, salta aos olhos a palavra que Valdemir escreve no
último verso dessa estrofe: “FLAUDA”.
Figura 18. Primeiro verso do poema "As meninas".
Parece que a intenção de Valdemir, haja vista sua contribuição na préprodução, era escrever o verso “A Esmeralda troca fralda” (TC 34, fragmento
1). Essa intenção fica ainda mais evidente antes de ele escrever esse verso,
como se pode observar no Fragmento 3. Esse fragmento retrata os primeiros
momentos anteriores à produção do texto:
96
Fragmento 3:
A primeira palavra enunciada por Valdemir, na tentativa de criar o novo
poema, é: “A Esmeralda” (TC 2). Logo em seguida, ele fala que esqueceu o
verso (TC 5), fazendo referência ao verso: “A Esmeralda troca fralda” (TC 34
fragmento 1), por ele criado anteriormente. José Antenor, por um instante, quer
desistir desse verso (TC 6), mas logo em seguida muda de ideia e relembra o
97
verso que Valdemir esquecera (TC 8). Em seguida, Valdemir começa a
escrever o verso (TCs 11, 14, 16,19).
Nota-se no TCs 16 e 19 que Valdemir escreve o verbo “trocava” na
terceira pessoa do pretérito imperfeito do modo indicativo. Porém, como visto
acima e no período de pré-produção, o desejo/ideia da dupla era escrever o
verso “A Esmeralda troca fralda” (TC 34, Fragmento 1), verso esse que foi
oportunamente relembrado por José Antenor no TC 8 deste fragmento,
demonstrando o acordo da dupla em relação a ele.
Qual teria sido, então, o motivo que levou Valdemir a escrever o verbo
“trocar” no pretérito imperfeito do modo indicativo (‘trocava”) e não no presente
do indicativo, como tinha conjecturado anteriormente, ou seja, “troca”? E por
que ele escreveu a inusitada palavra “flauda”?
Não se tem a pretensão de responder aos questionamentos acima
propostos de forma categórica, decisiva e finalista. O que se pode fazer é
observar e demonstrar todos os caminhos percorridos pela dupla em direção
ao texto que ficou grafado na folha de papel. Só à luz da metodologia aplicada,
tendo acesso às filmagens que retratam todo o processo de criação do texto
pela dupla, inclusive o período de pré-produção, é que se pode tentar
fundamentar/entender as respostas daquelas perguntas. Uma análise feita
apenas com o produto final tornaria inviáveis quaisquer possíveis conclusões;
dessa forma o acesso a todo o processo mostra-se fundamental para a
presente proposta.
Pois bem, observe-se que os verbos da primeira estrofe da poesia “As
Meninas” de Cecília Meireles estão todos no pretérito imperfeito. Eis os verbos
destacados no verso: Arabela abria a janela/ Carolina erguia a cortina/ E Maria
olhava e sorria: “Bom dia!”. Esse poema, como evidencia o período de préprodução, foi exaustivamente lido pelo professor e pela turma, a fim de que os
alunos se familiarizassem com ele.
Assim, acredita-se que o fato de os verbos da primeira estrofe do poema
“As Meninas” de Cecília Meireles estarem em sua totalidade conjugados no
pretérito imperfeito do modo indicativo talvez possa ter conduzido Valdemir a
escrever “trocava” também no pretérito imperfeito (TCs 16 e 19), em detrimento
de “troca” no presente, como desejava inicialmente a dupla (TC 34, Fragmento
1 e TC 8, Fragmento 3).
98
Ou seja, a ênfase dada ao texto de referência produziu o engessamento
das
possibilidades
acessíveis
aos
scriptores.
Por
mais
que
se
intentasse/planejasse escrever “troca”, único tempo verbal sugerido e discutido
entre a dupla, a estrutura estabilizada pelo poema de Cecília Meirelles interveio
no resultado final.
O modelo “nome feminino + verbo no pretérito imperfeito + objeto direto”
fez com que a frase originalmente eleita fosse transformada para se adaptar à
estrutura fixada. Perceba-se que a sentença que foi escrita apareceu sem aviso
no exato momento da grafia, não tendo sido combinada ou sequer percebida
no momento após a escrita. A marcante estrutura sintática do poema
trabalhado impôs-se no texto inédito sem ser identificada pelos scriptores.
Agora, perceba-se o que se seguiu. No fragmento 1, no TC 31,
testemunha-se pela primeira vez a entrada da palavra “flauta” dita por um dos
alunos em resposta à pergunta do professor, que queria uma palavra que
rimasse com o nome “Esmeralda” (Fragmento 1, TCs 7, 9, 12, 16 e 26). Em
seguida, viu-se a insistência desse aluno para que o professor percebesse sua
sugestão e reconhecesse a palavra “flauta” como uma rima idônea para a
palavra Esmeralda (Fragmento 2, TCs 2,4 e 8).
Percebe-se uma relação entre a palavra “flauta”, que entrou em cena
nessas circunstâncias acima relatados no período de pré-produção, e a escrita
da palavra “flauda”, feita por Valdemir no último verso da primeira estrofe de
seu poema inventado.
Passa-se a expor agora a continuação da escrita desse primeiro verso.
Até o momento, Valdemir havia escrito as palavras “Esmeralda trocava”. Na
transcrição abaixo, encontra-se o diálogo da dupla e suas dúvidas relacionadas
à grafia da palavra “fralda”, resultando na escrita de “flauda”.
Continuação Fragmento 3
99
No TC 21, vê-se que, após escrever a palavra “trocava”, Valdemir fala a
última sílaba dessa palavra (“VA”). Logo na sequência, já inicia a escrita da
palavra “fralda” (TC 22). Entretanto, na tentativa de escrever “fralda”, Valdemir
escreve a sílaba “FLA”, como se pode observar no TC 22. Assim que termina
de escrever essas letras, ele fala “flauuu...”, alongando o tempo de emissão do
som da letra “U” no fim da sílaba. Imediatamente em seguida, ele enuncia a
palavra “fralda”, reafirmando sua intenção original de escrever tal palavra (TC
24).
Na sequência, Valdemir lê o que até então tinha escrito (TC 24) e
rapidamente escreve a letra “U” depois das letras “F-L-A”, já grafadas no papel
(TC 26). Tem-se, até então, o seguinte:
100
Esmeralda trocava flau
Em seguida, José Antenor lê as primeiras duas sílabas da palavra
“trocava” (“TRO-CA”, TC 27). Valdemir pergunta a José Antenor se a palavra
“fralda” se escreve com a letra “U” (TC 29), mesmo já tendo grafado a palavra
com tal letra. Na verdade, ele procura confirmar se sua escolha fora acertada.
Ele faz essa pergunta prolongando o som da letra “U” no meio da palavra,
apesar de a palavra “fralda” ser escrita com a letra “L”. Porém, como na língua
portuguesa a letra “L” e “U” muitas vezes possuem o mesmo som, instaurou-se
a dúvida na dupla.
José Antenor responde que acha que “fralda” se escreve com a letra “L”
(TC 30). Valdemir argumenta contra a opinião de seu colega e tenta
fundamentar sua posição mais uma vez prolongando o som da letra “U” para
convencer José Antenor de que a palavra “fralda” era escrita com a letra “U”
(TC 32). A impressão que se tem, dado que Valdemir já escrevera “FLAU”, é
que, apesar da insegurança com sua escolha, Valdemir apenas desejava que
seu companheiro confirmasse que não havia erro algum, do contrário ele seria
forçado a rasurar o que já estava escrito no papel.
Depois da defesa de Valdemir, José Antenor se resigna e concorda que
fralda se escreve com a letra “U” (TC 34), mesmo porque Valdemir, ao
pronunciar a palavra, dá uma ênfase exagerada ao som desta letra.
Possivelmente ele reconhece que algo estava potencialmente errado, mas
prefere se convencer e convencer seu colega de que escrevera corretamente,
não precisando, portanto, rasurar/“sujar” o texto.
Em seguida, Valdemir termina a escrita da palavra colocando as letras
“D” e “A” (TC 33). Foi assim que nasceu a palavra “FLAUDA”. Terminada a
estrofe, Valdemir lê os versos finais, e José Antenor já propõe a continuação da
poesia (TCs 36 e 37).
Há algumas considerações importantes a serem feitas quanto ao verso
“Esmeralda trocava flauda”. Percebe-se a influência da grafia de uma outra
palavra na escrita de “fralda”, aqui escrita como “flauda”. Esta palavra, como foi
grafada, representa a junção quase isonômica das palavras “fralda” e “flauta”.
Lembre-se que a influência do vocábulo “flauta” não é identificável de plano ao
lançar-se um olhar para o produto final, mas ao se acompanhar toda a préprodução e o processo de escritura em ato, identifica-se a presença desta
101
palavra, sugerida insistentemente por um aluno nos TCs 2, 4 e 8 do fragmento
2.
Apesar de “flauta” não receber qualquer destaque substancial durante a
pré-produção, Valdemir a percebeu e quando foi escrever “fralda”, devido à
semelhança dos dois vocábulos, uniu elementos das duas palavras,
escrevendo “flauda”.
Outro elemento que pode ter sido decisivo para este equívoco foi o
verbo que antecedeu “flauda”. Trata-se de “trocava”, que também guarda
semelhança gráfica e fonética com o verbo “tocava”, que, por sua vez,
estabelece uma perfeita relação semântica com “flauta”:
Têm-se, portanto, as seguintes possibilidades referentes às palavras
aqui suscitadas:
1) Esmeralda trocava fralda
2) Esmeralda tocava flauta
3) Esmeralda trocava flauda
A primeira sentença, pelo que se constatou durante o processo de
escritura em ato, representa a intenção primordial da dupla, ou seja, o que
Valdemir pretendia grafar na folha de papel, com a ressalva do tempo verbal,
conforme já explicado. A seu tempo, no número 2, tem-se a estrutura que
influenciou o que de fato foi escrito, resultado esse que se encontra identificado
na sentença 3.
Conclui-se, então, que o erro de grafia na palavra “fralda” não pode ser
atribuído unicamente ao possível desconhecimento do scriptor no que
concerne à escrita da palavra pretendida. Vê-se que outros elementos da
língua a que o autor fora exposto fixaram-se em seu subconsciente,
irrompendo quando da criação, exatamente no momento em que o vácuo do
não-domínio da grafia daquela palavra se fez presente.
5.4 A Geane
A primeira rasura do poema inventado pela dupla Valdemir e José
Antenor acontece logo após a conclusão do verso inicial, como se constata no
destaque do texto abaixo:
102
Figura 19. Rasura do trecho "A
Geane" do poema "As meninas".
A dupla segue discutindo a continuação do poema, e na sequência
Valdemir escreve “A Geane”. Pouco tempo depois, esse trecho é rasurado,
como se vê abaixo na imagem ampliada:
Figura 20. Destaque da rasura do trecho "A Geane".
A seguir, tem-se a imagem do que aproximadamente fora escrito antes
da rasura, ou seja, o que está por trás dos riscos efetuados:
Figura 21. Trecho "A Geane", escrito antes da rasura.
Será evidenciado como aconteceu essa rasura e os motivos que
levaram a dupla a efetuarem-na. Para tal, no entanto, faz-se imprescindível
103
trazer à cena como se deu a entrada do nome “Geane” no período de préprodução.
Nessa ocasião, o professor estava pedindo que a turma lhe sugerisse
nomes femininos para escrevê-los no quadro. Um dos alunos sugere o nome
“Geane”, escrito em seguida pelo professor. Eis a transcrição:
Fragmento 4
Nota-se no TC 6 o exato momento em que o aluno enuncia o nome
“Geane”. O professor concorda e escreve o nome no quadro (TCs 4 e 5). Na
sequência, ele continua pedindo sugestões de nomes (TC 4).
Passados quase sete minutos deste evento (fragmento 5), o professor
utiliza os nomes sugeridos pelos alunos, que estavam escritos no quadro, para
substituir os nomes femininos da poesia original (Arabela/ Carolina/ Maria).
Após a substituição, passou a intentar-se a formação de novas rimas
adequadas às modificações efetuadas. Ao chegar à última estrofe, Calil busca
com os alunos um nome para substituir por Maria, elegendo arbitrariamente o
nome “Geane” para fazer a troca. Como segue:
Fragmento 5
104
No TC 1, desse fragmento, observa-se a intenção do professor Calil em
trocar o nome “Maria”, localizado na primeira estrofe do poema de Cecília
Meireles, por outro nome que está escrito no quadro. Enquanto ele procura um
105
nome, um dos alunos se adianta e sugere “Regina” (TC 4). No entanto, o
professor Calil escolhe o nome “Geane” (TC 3), escrevendo-o em seguida no
local onde estava o nome “Maria” (TC6), deixando o poema dessa maneira:
E Geane
olhava e sorria
“Bom dia!”
Ao perceber que, mesmo com a mudança do nome, o verso ainda
continuava com rima, uma vez que as palavras “sorria” e “dia” também
rimavam entre si, o professor Calil indica que se poderia mudar o verso “olhava
e sorria” (TC 11). A troca desse verso forçaria a busca por uma palavra que
rimasse com o nome “Geane”. E esse era o desejo inicial do professor.
Vê-se no TC 17 o professor perguntando aos alunos por algumas
palavras que rimassem com o nome “Geane”. Um dos alunos da turma propõe
a palavra “janela” (TC 18). Na sequência, o professor explica que “janela” não
rima com “Geane”; ele faz isso dando ênfase à última sílaba de cada uma
dessas palavras (TCs 19 e 20).
5.5 “E Geane gritava: ‘Olha o enxame!’”
A busca por uma palavra que rimasse com “Geane” cessa quando um
dos alunos enuncia “enxame”. O professor confirma a rima entre “Geane” e
“enxame” e tenta fazer um verso com essas palavras. Como na sequência:
Continuação Fragmento 5:
106
No TC 24, observa-se pela primeira vez a entrada da palavra “enxame”
no processo de pré-produção. O professor enfatiza as terminações das
palavras “Geane e “enxame” para confirmar a rima (TC 26); em seguida ele
pergunta aos alunos o significado da palavra “enxame” (TC 26). José Antenor
responde que é “um monte de gente” (TC 32), e Valdemir ao definir “enxame”
abre os braços para indicar um grande aglomerado de pessoas (TC 31).
Em seguida, o professor Calil tenta formular um verso com “Geane” e
“enxame” (TC 33). No TC 35 ele sugere com muito entusiasmo o verso “E
Geane gritava: Olha o enxame!”. Na sequência, ele pede a aprovação desse
verso aos alunos, que terminam por concordar (TCs 37,38 e 39), porém o
professor escreve apenas o nome “Geane” no quadro, como mostrado acima.
107
5.6 “Mundiça saiu com Geane”
Logo após esse evento, inicia-se o processo de produção de texto.
Depois de escrever o verso “A Esmeralda trocava flauda”, a dupla prossegue
com a criação do poema. José Antenor sugere o seguinte verso: “Luana come
banana” (TC 2, Fragmento 6), que não é aceito por Valdemir, alegando que o
verso já estava escrito no quadro (TC 1, Fragmento 6). A dupla para por alguns
segundos, pensando na possível continuação do poema, e José Antenor
começa a ler os nomes que estão escritos no quadro (TC 6, Fragmento 6). Ele
lê o nome “Geane”, e logo em seguida Valdemir propõe um verso: “Mundiça
saiu com Geane” (TCs 8,9 e 11, Fragmento 6), verso esse que foi rejeitado por
José Antenor, pela ausência da rima.
A seguir a transcrição desse fato:
Fragmento 6:
108
Depois que José Antenor leu o nome “Geane”, que estava escrito no
quadro, imediatamente Valdemir relembra outra palavra que apareceu no
momento da pré-produção, que pode ter uma relação com “mundiça”. Essa
palavra é “enxame”, que foi relacionada ao nome “Geane”, lá no fragmento 5,
quando o professor estava buscando nomes no feminino e uma palavra que
rimasse com esse nome (TC 24, Fragmento 5).
Ao enunciar mundiça (TC 11, Fragmento 6), Valdemir tenta relembrar a
palavra “enxame” que ele mesmo definiu como “um bocado de gente, assim”,
abrindo os braços e gesticulando enquanto explicava (TC 31, Fragmento 5).
Essa intenção fica ainda mais clara quando, no TC 13 do Fragmento 6,
Valdemir fala: “Olhava a mundiça”. Esse enunciado tem relação direta com o
verso proposto pelo professor Calil (TC 35 do Fragmento 5), quando ele diz: “E
Geane gritava: ‘Olha o enxame’”.
Interessante notar a troca da palavra “enxame” por “mundiça”. A palavra
“mundiça” é tipicamente nordestina e está presente no discurso cotidiano
desses alunos, diferentemente de “enxame”. “Mundiça” pode significar “ralé19”,
“gente pobre”, "povão", por exemplo: "Na praia, no feriado, só tinha mundiça".
Também pode ser usada para indicar um aglomerado de pessoas, uma
multidão, ou seja, “um monte de gente”, “um bocado de gente” (TCs 31 e 32,
Fragmento 5).
Por sua vez, “enxame” tem como significado20: 1 - Conjunto das abelhas
duma colméia; 2 - Multidão de gente ou de animais. Na tentativa de relembrar a
palavra “enxame” entra em cena uma palavra presente no discurso desses
alunos, que mantém uma relação semântica com “enxame”, ou seja: “mundiça”.
É interessante perceber que no período de pré-produção, quando o
professor Calil se refere a “enxame” (TC 35, Fragmento 5), possivelmente se
19
Conforme definição do Dicionário Aurélio Século XXI, edição eletrônica.
20
Dicionário Aurélio Século XXI, edição eletrônica.
109
referia a um enxame de abelhas, enquanto os alunos Valdemir e José Antenor
se referiam a uma multidão de pessoas, ou “mundiça”, como eles declararam.
Vê-se, na sequência, o momento em que a dupla consegue lembrar da
palavra “enxame”:
Continuação Fragmento 6:
Querendo dar continuidade ao poema, Valdemir pergunta a José
Antenor: “Geane é o que?” (TC 15, Fragmento 6), na tentativa de relembrar o
verso proposto originalmente pelo professor Calil, no TC 35 do Fragmento 5.
Naquela ocasião, ele disse: “E Geane gritava: ‘Olha o enxame’”. Mais uma vez
Valdemir volta-se para seu colega, buscando a continuação do verso, conforme
a proposta da pré-produção (TC 17, Fragmento 6). José Antenor, então,
responde: “Geane, óia a mundiça” (TC 18, Fragmento 6), confirmando mais
uma vez o que já foi indicado anteriormente sobre a relação entre as palavras
“enxame” e “mundiça”.
Ou seja, José Antenor, incapaz de conseguir se lembrar da palavra
“enxame” (significante), recordando apenas do significado (multidão, povão),
propõe o que acredita ser um sinônimo de “enxame”, a saber, “mundiça”.
110
Não satisfeito, Valdemir continua tentando lembrar-se da palavra
“enxame”; ele diz ainda no TC 17: “Geane... óia o avante lá”. E no TC 20, José
Antenor fala mais uma vez a palavra “mundiça”. No entanto, assim que Antenor
termina de falar, Valdemir relembra a palavra que procurava, dizendo “o
enxame” (TC 19), olhando para o colega entusiasmado por ter, enfim,
encontrado a palavra suscitada na pré-produção. Nesse momento, a
passagem/relação entre a palavra “mundiça” e “enxame” foi desobstruída e
finalmente é encontrada a palavra desejada: “enxame”.
Na sucessão dos fatos, José Antenor confirma o que eles realmente
procuravam, dizendo: “É o enxame”, e logo em seguida já enuncia o verso:
“Geane olha o enxame” (TC 20).
5.7 “Geane não rima com enxame”
Depois de ter encontrado o verso desejado, “A Geane olha o enxame”,
Valdemir começa a escrevê-lo (TC 21, Fragmento 6). Porém, antes disso, lê o
verso anterior, “Esmeralda trocava flauda”, e percebe que falta a letra “A” no
início deste verso. Aí se buscou a uniformização do texto, usando os artigos
antes dos substantivos próprios femininos. A proposta fora “A Geane...”, e
Valdemir parece se incomodar com a ausência de artigo no primeiro verso:
“Esmeralda...”. Vê-se como isso se deu, abaixo:
Continuação Fragmento 6:
111
É nesse momento (TC 32) que ele escreve a letra “A” no início do
primeiro verso, justificando a disposição fora da margem dessa letra no poema,
como se vê no destaque abaixo:
Figura 22. Destaque da letra "A" escrito
antes do nome "Esmeralda".
Depois de escrever a letra “A” no início do primeiro verso, Valdemir parte
para a escrita do verso seguinte: “A Geane olha o enxame”. Entretanto, antes
de terminar a escrita do verso, ele se depara com um problema. A partir daí
começa uma discussão entre a dupla para tentar solucionar esse impasse.
Como se pode ver na continuação do Fragmento 6, abaixo, depois de
escrever “A Geane”, Valdemir para e parece relutante em continuar o verso
conforme combinado (TCs 39 e 40). José Antenor tenta fazer com que seu
companheiro continue a escrita do verso combinado falando o verso
novamente (TC 43). Porém Valdemir observa para seu colega que “Geane” não
rima com “enxame”, enfatizando a última sílaba de “Geane” (TC 42). Logo em
seguida, Valdemir busca outra finalização para a frase. Chega, inclusive, a
enunciar “cumia” (A Geane comia), mas tampouco tem sucesso com esta
hipótese (TC 45).
Na sequência, observam-se alguns segundos de silêncio por parte da
dupla (TC 44). Têm-se então os primeiros momentos de desamparo dos
scriptores em relação à continuação desse verso. Em seguida, José Antenor
insiste na existência de rima no verso “A Geane olhava o enxame”. Ele enuncia
as palavras, dando ênfase em suas últimas sílabas, assim como o professor
Calil fez durante a pré-produção. Porém, na busca de provar seu argumento,
acaba pronunciando “Geame” e não “Geane” (TC 47).
112
Continuação Fragmento 6:
Valdemir protesta, esclarecendo que não se trata de “GeaME”, mas de
GeaNE”, e que, por conseguinte, não estaria estabelecida a rima com
113
“EnxaME” (TCs 52 e 53), visto que o conceito estabilizado de rima da dupla
está rigidamente ligado à grafia e não ao som, apesar da tentativa do professor
Calil em mostrar à turma, na fase de pré-produção, que a rima não depende
unicamente da grafia, como já frisado anteriormente.
José Antenor acaba concordando com Valdemir, e ambos concluem pela
impossibilidade de rima entre “Geane” e “enxame” (TC 58). A seguir, tem-se a
transcrição desse trecho:
Continuação Fragmento 6:
5.8 Silêncio, desamparo e a rasura (mais uma vez)
A partir daí, descartada a finalização “olhava o enxame”, a dupla deve
buscar uma nova continuação para o verso. Porém, o que se percebe são os
momentos de silêncio e o desamparo que antecedem a rasura. A dupla nem
sequer chega a discutir outras opções, apenas permanece em silêncio.
114
Valdemir chega a bater ritmicamente a caneta na folha de papel (TC 61),
enquanto José Antenor olha para os lados com aparente desinteresse, que na
verdade representa um sentimento de impotência, uma vez que não sabe
continuar a produção, isso após tamanho investimento no que se havia
proposto a escrever.
Perceba-se que, do momento em que eles elegem o nome Geane para
iniciar o verso até eles finalmente encontrarem a palavra “enxame”, isso após
passarem por “mundiça”, tem-se um pouco mais do que 30 segundos (TC 9 do
Fragmento 6 até o TC 19). Do acordo acerca da palavra “enxame” e sua
inserção no verso na forma “A Geane olhava o enxame” até a percepção,
embora equivocada, da dupla de que não haveria rima, transcorreu um pouco
mais do que 12 segundos (TC 20 ao TC 59). Somando esses dois intervalos de
tempo, ou seja, 30 segundos mais os 12 segundos, tem-se 42 segundos, que a
princípio pode parecer um intervalo rápido, porém como mostrado, todos esses
eventos aconteceram durante esse tempo.
Vê-se então que o processo de escritura em ato é extremamente
dinâmico e muitos eventos acontecem no fio do discurso. Esses eventos
interferem diretamente no processo de criação do poema e também nas
rasuras, como se tenta demonstrar.
Portanto, se tantos acontecimentos ocorreram em 42 segundos,
percebe-se com as análises das filmagens e de todo o processo de escritura
em ato que quatro ou cinco segundos de silêncio representam um tempo
significativo. E, geralmente, esses momentos de silêncios, em que a dupla não
estabelece uma comunicação verbal, são os que antecedem a rasura.
Explicitam-se abaixo os momentos de silêncio antecessores da rasura
do trecho “A Geane”.
Continuação Fragmento 6:
115
No TC 60, Valdemir repete o nome “Geane”, na tentativa de continuar o
verso. Em seguida, ele fica 5 segundos em silêncio, batendo a caneta na
carteira (TC 61). José Antenor enuncia o nome “Geane”, insistindo na
continuação do verso. Na sequência, ocorre a proposta de Valdemir de rasurar
o trecho em questão, “A Geane” (TC 63). Porém, mais uma vez, José Antenor
mostra-se resistente e fica pensando em uma possível continuação. No TC 67
ele fala novamente o nome “Geane”.
Antes de José Antenor concordar com a rasura, proposta momentos
antes por seu companheiro, quatro longos segundos de silêncio são
registrados ( TC 66).
Finalmente, no TC 67, José Antenor concorda com a rasura e diz:
“risca”. Porém, antes do ato de rasurar, a dupla fica sete segundos em silêncio,
até efetivamente riscar o trecho “A Geane” (TC 68).
Verifica-se a entrada do nome “Geane” no período de pré-produção (TC
6, Fragmento 1). Em seguida, a sugestão de um verso com esse nome
feminino feita pelo professor Calil: “E Geane gritava: olha o enxame!” (TC 35,
Fragmento 2). Posteriormente, tem-se a escolha do nome “Geane” pela dupla
(TC 9, Fragmento 3). Em seguida, a discussão dos dois alunos na busca de
lembrar-se da palavra “enxame”, dita pelo professor Calil na pré-produção,
palavra esta que se encontrava engessada por outra que fazia parte do
discurso cotidiano desses alunos, ou seja, a palavra “mundiça”.
Após o consenso sobre o verso “A Geane olhava o enxame”, Valdemir
escreve “A Geane” na folha de papel, e na continuação da escrita do verso
116
encontra, segundo ele, um problema com a rima entre as palavras “Geane” e
“enxame”. Valdemir argumenta com seu companheiro que não existe rima
entre essas palavras. Logo a dupla descarta a finalização do verso: “olhava o
enxame”, e assim, sem conseguir a continuação do verso em razão do nome
escolhido (“Geane”), decidem, por fim, rasurá-lo.
Entretanto, antes da rasura observa-se momentos de silêncio,
desamparo e impotência dos scriptores diante de seu texto, restando-lhes
como saída a rasura do trecho “A Geane”. Caso se tivesse somente o acesso
ao produto final jamais se poderia entender o que estava por trás, ou nos
bastidores da rasura em questão.
Na verdade, olhando a rasura de “A Geane”, muito possivelmente,
apenas tendo acesso ao produto final, não se poderia sequer identificar de que
palavras se tratava, muito menos se vislumbraria a luta que os scriptores
travaram na busca de manter o que se projetara. Aquela pequena rasura
passaria despercebida, sem que se pudesse saber do desconforto que a dupla
suportou até decidir e conseguir se desfazer do que intentava.
5.9 Transformando “O” em “A”
Já cansada, transcorridos mais de 37 minutos desde o início da
atividade, a dupla produz os versos seguintes muito mais rapidamente,
escolhendo inclusive frases completas sugeridas pelo professor Calil e os
alunos durante a fase de pré-produção.
Após desistirem de “A Geane”, os alunos continuam a produção. Na
estrofe seguinte, vê-se uma pequena rasura que, na verdade, poderia nem ter
sido identificada, uma vez que poderia ser confundida com uma simples falta
de atenção do scriptor em relação à linha da folha de caderno. Após
terminarem as primeiras três estrofes, Valdemir propõe a José Antenor a
releitura do que já fora produzido (TC 2, Fragmento 7). Ao fazê-lo, percebe um
erro que fora cometido anteriormente (TCs 3 e 4) . Ele escrevera “Daniela
comia no panela”. Depois de ler o verso, Valdemir percebe o equívoco e faz
dois pequenos traços na letra “O”, transformando-a na letra “A” (TC 7).
117
Fragmento 7:
Após a transformar a letra “O” em “A” tem-se o seguinte resultado:
Figura 23. Resultado da transformação da letra "O" em "A".
118
5.10 Maiúsculas, minúsculas e a rasura
A rasura seguinte encontra-se na estrofe “Isabela abria a janela”,
especificamente na palavra “abria”. Vê-se no TC 2 do Fragmento 5 que tal se
deu unicamente pela intercalação de letras maiúsculas e minúsculas. Valdemir
escrevera “AbR”. Incomodado pela falta de estética da escrita, resolve rasurar
o que fora escrito, enunciando no TC 4: “Vou fazer em letra maiúscula”.
Fragmento 8:
Após a rasura (TC 3), ele reescreve a palavra “abria” com as letras todas
maiúsculas (TC 5) e continua a escrita do verso. Eis o resultado dessa rasura
no produto final:
Figura 24. Rasura das letras "AbR".
119
5.11 A rasura do verso
Mais adiante, tem-se a rasura de todo um verso. Os alunos já estão
impacientes, buscando unicamente terminar a atividade, chegando até mesmo,
a discutir quantas estrofes mais seriam necessárias para a finalização do texto
Eles buscam rapidamente nomes femininos para fazer uma última
estrofe, passando pelos nomes Wiris, Maria, Quitéria, Juliana, Maria Cícera,
Gabriela, Isabela e Fabiana. Até que finalmente, enquanto José Antenor está
distraído e desanimado, Valdemir enuncia em baixo volume “Ledinha dava
farinha” (TC 2 Fragmento 8) e começa a escrever sem consultar José Antenor
(TC 4). Porém, acaba escrevendo “Ledinha dava verinha” (TCs 11 e 14) e
ainda lê o que escreveu para José Antenor, dizendo: “Ledinha dava feirinha”
(TC 19).
José Antenor protesta com surpresa pela falta de sentido do que
Valdemir lera (TC 20). Observe este fragmento:
Fragmento 8:
120
Vê-se, no TC 19, que Valdemir, embora transpareça entender o
questionamento do colega, procura resguardar o que fora produzido,
respondendo que “sim”, como se defendesse a coerência de sua criação. No
entanto, ele acaba por reconhecer a procedência do espanto de José Antenor e
rasura toda a estrofe (TCs 24 e 27).
A dupla, então, decide por uma adaptação do verso inicialmente
pretendido (“Ledinha dava farinha”, TC 2), terminando a produção com a
estrofe “Ledinha comia farinha”. A seguir:
Continuação Fragmento 8:
121
Depois da rasura e escrita da estrofe, a dupla conta a quantidade de
estrofes e decide terminar o seu texto (TC 40).
Expõe-se o resultado dessa rasura no produto final:
122
Figura 25. Resultado da rasura do
verso “Ledinha dava Verinha”.
Logo em seguida a este evento, a dupla escreve seu nome completo no
texto e assim se encerra a filmagem.
123
Considerações finais
As práticas de produção de textos realizadas na escola muitas vezes
são mobilizadas por motivos artificiais. Os alunos produzem textos para um
quase único possível destinatário: o professor. Este assume a postura de
corretor, avaliador do certo e do errado.
Nesse contexto, a rasura se encontra marginalizada e revestida de um
teor negativo. Deve, portanto, ser evitada a todo custo, sendo os alunos,
inclusive, incentivados a “passar a limpo” o texto e descartar a folha
“manchada”.
Olvida-se, no entanto, que essas “marcas”, as rasuras, são ricos indícios
de uma relação entre sujeito e língua. Acompanhar o processo em que são
produzidas dá ainda maior visibilidade às forças que as circundam.
Foi isto que se objetivou neste trabalho, remir a “rasura escrita” de seu
estado marginal, estudando seus bastidores, e, por conseguinte, suas forças
propulsoras e as (des)intencionalidades do sujeito. Nesse processo, eleva-se a
“rasura escrita” à posição privilegiada de referencial para o estudo dos embates
travados pelo sujeito com a linguagem.
Tenta-se mostrar que o acesso ao processo de escritura em ato é
fundamental para a natureza das análises que se estabeleceram nesta
pesquisa. Por intermédio desse processo constata-se a tensão que o ele
carrega, como também todas as idas e vindas do scriptor diante do texto que
estava produzindo.
A ampliação do estudo para além do produto final comprova que
estruturas que não aparecem na folha de papel, ou que não parecem manter
correspondência com o termo rasurado, mostram-se determinantes para o ato
de rasurar.
No poema “Raridade”, vê-se que depois de os alunos copiarem os
quatro primeiros versos do poema original de José Paulo Paes (2000), tem-se
a entrada da palavra “bonitinha”, que passou a referenciar as escolhas
posteriores dos scriptores, como “gostosinha”, “gordinha”, “cozinha” e “galinha”.
O sufixo “INHA” provocou o engessamento das possibilidades criativas dos
124
alunos que, ao perceberem que o verso “para o homem jantá-la” não
correspondia a essa estrutura, decidiram rasurá-lo, muito embora tivessem
logrado êxito em estabelecer uma estrofe com rima.
Em um momento diverso, no poema inventado “As meninas”, tem-se,
ainda na fase de pré-produção, a entrada da palavra “enxame”, que durante o
processo de escritura aparece nas discussões dos participantes como
“mundiça”, devido à relação semântica estabelecida pelos alunos entre os dois
termos. Após um longo investimento em lembrar a palavra proposta na préprodução (“enxame”), a partir da palavra presente em seu discurso cotidiano
(“mundiça”), os scriptores grafam “A Geane”. Pretendiam escrever o verso “A
Geane olhava o enxame”, mas percebem, mesmo que equivocadamente, que
não haveria rima entre os termos “Geane” e “enxame”, razão pela qual o nome
próprio foi rasurado.
Assim, vê-se que há termos que não se fazem graficamente presentes
no produto final, mas que estão estreitamente relacionados à rasura procedida.
O acesso ao processo de escritura em ato alarga a visão e, por conseguinte, o
entendimento das circunstâncias, assim como, por vezes, o porquê da
ocorrência de certa rasura.
As estruturas estabilizadas da linguagem impõem-se à intenção dos
scriptores muitas vezes nem sendo percebidas por estes. Destarte, erros e
rasuras não se devem única e necessariamente ao desconhecimento daquele
que escreve, mas também a estruturas e elementos a que o autor é exposto
antes e durante a produção.
A exemplo disso, tem-se o verso “A Esmeralda trocava flauda”, criado
por Valdemir e José Antenor no poema “As meninas”, em que a intenção
declarada dos autores era escrever “fralda” e não “flauda”. No entanto, durante
a pré-produção outro aluno insistentemente repetiu a palavra “flauta”, indicando
ao condutor da atividade que este termo também rimava com o nome
“Esmeralda”. Ademais, tem-se a semelhança gráfica e fonética dos verbos
“trocava” e “tocava”, e este último estabelece uma perfeita relação semântica
com a palavra “flauta”. Discutiu-se, também, a escolha do tempo verbal do
verso que se deu pela referência predominante da estrutura do poema original
de Cecília Meireles na fase de pré-produção.
125
Observou-se, também, que a rasura não pressupõe um erro, podendo os
scriptores “corrigir” algo que não necessariamente era reprovável, desde que
lhes cause censura, estranheza, desconforto, muitas vezes por estarem presos
a uma estrutura previamente suscitada.
O sujeito e a linguagem constituem-se mutuamente, não se podendo
concebê-los em dois planos distintos e isolados. O sujeito não “se afasta” da
linguagem olhando-a por cima, com ares de superioridade, de maneira que
pode monitorá-la ou manipulá-la conscientemente.
As rasuras são marcas visíveis dessa tensão deixadas pelo scriptor no
embate travado com a linguagem. Elas não são necessariamente uma
manifestação de controle que o sujeito exerce sobre a língua, como defendem
alguns estudos aqui debatidos.
Observa-se que durante o processo de escritura em ato as rasuras
podem mostrar um não-controle, uma imprevisibilidade, um desconhecimento
do scriptor sobre o que vai acontecer, mesmo quando este está provido de
planos, ideias, projetos.
A linguagem opera sobre o sujeito e, muitas vezes, indica se eles podem
ou não continuar uma narrativa, apontando direções para a produção, que por
vezes divergem diametralmente do que pretendiam.
Por vezes, a rasura é precedida por silêncio, que representa o
desamparo, o abandono, a perda do fio do discurso e da intenção. Representa,
também, o engessamento de uma estrutura ou termo sem os quais não se
consegue prosseguir.
Foram identificados dois momentos significantes de silêncio no processo
de escritura em ato dos três poemas analisados. O primeiro foi em “O nada e
estrada”, em que os alunos se encontravam extremamente atrelados ao verso
“Nada menos, nada mais”, que não chegou a ser escrito. Após se
desvencilharem dessa estrutura, o que não se deu com pouco esforço, os
scriptores escreveram o verso “Nasce uma flor sem querer nascer”. No entanto,
o sentido de tal verso causou desconforto à dupla que, durante todas as
tentativas de continuar o poema se viam-se incomodados com tal sentido.
Antes da rasura, percebeu-se o desamparo dos sujeitos, representado por um
longo momento de silêncio.
126
Já no poema inventado “As meninas”, antes da rasura do trecho “A
Geane”, observou-se, também, o silêncio da dupla, frustrada pelo investimento
despendido no verso, vendo-se incapaz de dar continuidade à produção.
Percebe-se que os manuscritos orais, constituídos pelos diálogos das
duplas, carregam em si modalizações autonímicas em potencial, que indicam o
desdobramento das crianças sobre os seus dizeres.
Embora os enunciados dos alunos, diante de uma surpresa, se
apresentem sob uma estrutura simples, restrita, como em “tá sem sentido”,
“eita”, “óia”, ou até mesmo equivocada, como em “rema não essa, rema não”,
representam modalizações autonímicas em potencial, evidenciando o retorno
do sujeito sobre seu próprio dizer.
As análises aqui procedidas demonstraram, em muitos momentos, que
os scriptores, muito menos do que senhores, se apresentaram submetidos ao
funcionamento
linguístico-discursivo
familiar,
conhecido,
próximo.
Há
momentos nesta relação entre sujeito e linguagem em que o scriptor se
encontra engessado ou impedido de continuar, isso quando não é levado por
des(caminhos) inesperados e por vezes indesejados. Ou pior, o sujeito resta
desamparado entre o que já foi escrito ou decidido e o desconhecido que está
por vir.
127
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129
Apêndices e Anexos
Os anexos e apêndices desta pesquisa encontram-se em um DVD.
Neste DVD tem-se o seguinte conteúdo: As três filmagens utilizadas nesta
dissertação, das práticas de produção de textos poéticos, desde a consigna
feita pelo condutor(a) da atividade até o fim da criação do poema pela dupla; as
transcrições destas filmagens no software ELAN; os três poemas criados pelas
duplas, resultantes dessas práticas de textualizações e o software ELAN na
sua versão mais recente.
