Adriana da Silva Vieira
Título da dissertação: ERRO ORTOGRÁFICO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES NO FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE EDUCAÇÃO - CEDU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
ADRIANA DA SILVA VIEIRA
ERRO ORTOGRÁFICO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES
NO FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
Maceió
2011
ADRIANA DA SILVA VIEIRA
ERRO ORTOGRÁFICO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES
NO FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
Dissertação apresentada ao programa de
pós-graduação em Educação Brasileira do
Centro de Educação – CEDU - da
Universidade Federal de Alagoas como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestra em Educação.
Orientadora: Profª Drª. Adna de Almeida
Lopes
Maceió
2011
A Deus; aos meus pais, Telma e Cícero;
aos meus queridos irmãos Thiago, Alexandra
e Ana Paula; às princesinhas de Deus, minhas
sobrinhas Letícia e Lara; e a todos os meus
familiares.
AGRADECIMENTOS
_________________________________________________________
A Deus, o criador dos céus e da terra, pelo dom indescritível da vida. Obrigada por
tornar meus sonhos realidade, com este tão almejado mestrado, no melhor momento da minha
vida. Obrigada por conduzir meus passos, meus pensamentos, minha escrita. Obrigada pelo
privilégio de a cada dia desfrutar momentos especiais de adoração. Agradeço pela
participação em todos os momentos de minha existência, inclusive na elaboração desta
dissertação. Bem sei que “Os céus manifestam a glória de Deus e o firmamento anuncia a
obra das Suas mãos. Um dia faz declaração a outro dia, e uma noite mostra sabedoria a outra
noite. Sem linguagem, sem fala, ouvem-se as suas vozes (Salmo19:1-3). Sua voz ecoa no
universo, de geração a geração seu nome é exaltado. Na natureza podemos contemplar as
obras de suas mãos. Não há outro Deus, nem Senhor. Glória para todo sempre sejam dadas ao
excelso e maravilhoso Deus. A ti, ó Deus, o meu eterno agradecimento!
Aos meus pais, Telma e Cícero Vieira, por me educarem e me incentivarem nos
estudos.
As minhas irmãs e meu irmão, por sempre me apoiarem e estimularem a perseverar
pelos meus objetivos.
A minha irmã Alexandra Vieira, pelas orientações metodológicas;
A minha irmã Ana Paula Vieira, pelas intervenções ‘psicológicas’;
Ao meu irmão Thiago Vieira, pelo apoio técnico;
As minhas amadas sobrinhas Letícia e Lara Vieira, pelos alegres sorrisos trazidos a
mim nos momentos de construção desta dissertação.
Aos meus queridos amigos e irmãos da minha querida e amadíssima Igreja
Adventista do 7º dia do João Sampaio, por sempre orarem por mim.
A todos os colegas de curso pela amizade, companheirismo e incentivo.
A todos os alunos e funcionários da Escola Municipal Dom Miguel Fenelon Câmara,
na qual trabalho, pelo aprendizado constante que tem me proporcionado na tarefa de educar.
Aos funcionários do PPGE, pela presteza e atenção no atendimento.
A todo corpo docente que participou direta ou indiretamente para o meu aprendizado.
Ao Prof. Dr. Eduardo Calil de Oliveira, por me mostrar a importância de ser uma
pesquisadora.
Ao Prof. Dr. Aldir Santos de Paula, por me mostrar o mundo da fonologia.
Às Profas. Dra. Maria Inez Matoso Silveira e Dra. Sônia Cristina Felipeto, pela
maravilhosa contribuição dada a este trabalho e pelas necessárias intervenções.
À Profa. Dra. Adna de Almeida Lopes pela valiosa orientação e pela credibilidade
dada a mim no mestrado.
À Universidade Federal de Alagoas, pela oportunidade.
A todos que, de alguma forma, contribuíram com minha formação.
Ao pensar a língua como simples jogo
dentro das regras corre-se o risco de recobrir o
espaço próprio disso que regula o real da
língua, substituindo-o por regras (bio)-lógicas
de engendramento de arborescências
sintáticas, restringindas pela semântica dos
‘sistemas’ de conhecimento (discursivamente
estabilizados em relações temáticas e formas
lógicas) ou com regras dos jogos de linguagem
translingüístico a partir das quais o sujeito
social do pragmático e do enunciativo
permitiria escapar ao ‘próprio’ da língua,
desmascarando o estatuto fictício desse último
(PÊCHEUX).
RESUMO
________________________________________________________
Este trabalho tem como objetivo refletir sobre ocorrências de erros ortográficos para
interpretá-lo sob um ponto de vista linguístico-discursivo. Busca-se, assim, apresentar a
relação existente entre os erros singulares e o sujeito que os realiza numa perspectiva do
funcionamento da língua e de suas possibilidades. Os estudos descritivos excluem os erros
ortográficos singulares ou imprevisíveis por não conseguirem incluí-los em uma de suas
categorias definidas e, quando o fazem justificam quase sempre por uma relação
fonema/grafema. A visão das categorias do erro incide na chamada homogeneização,
pensamento também difundido pelos gramáticos. Contudo, nesse trabalho, a língua é vista no
campo da heterogeneidade (MILNER, 1989), que suspende a estabilização gramatical e
evidencia uma ação inconsciente do sujeito que se relaciona com a língua de forma singular,
já que dela não tem controle. Para este estudo, selecionamos de um corpus de 216
manuscritos, quatro que apresentassem dados singulares. Esses textos foram produzidos por
alunos do segundo e terceiro anos do Ensino Fundamental de escolas pública e particular de
Maceió-AL. Foram coletados no período compreendido entre 1996 e 1998 e, atualmente,
fazem parte do acervo Práticas de Textualização na Escola, do Projeto Escritura, Texto &
Criação (ET&C). Procurou-se considerar a singularidade das ocorrências na ressignificação
da fala materializada na escrita do outro (LEMOS, 1996; LOPES, 2005) como resultado de
uma mobilização interna dos processos metafóricos e metonímicos (JAKOBSON, 1995),
observando as possibilidades e impossibilidades da língua (MILNER, 1989). Distante de ser
um receituário linguístico, este trabalho não tem a pretensão de resolver os problemas do
trabalho didático com a ortografia, mas enseja ser mais um propiciador de reflexões sobre
aqueles erros que não se enquadram nas categorias já estabelecidas. Estes erros singulares
podem nos mostrar os efeitos de uma relação do sujeito com a língua. O propósito desta
investigação é contribuir para que professores / pesquisadores não descartem os erros
irregulares que não se enquadram em nenhuma categoria ou que sejam explicados
estritamente por uma teoria descritiva, mas que, a partir de suas ocorrências, possam
compreender o percurso da escrita dos alunos.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição de linguagem; Erro singular; Funcionamento linguísticodiscursivo.
RÉSUMÉ
________________________________________________________
Ce travail a comme objectif réflechir sur les faits d´erreurs orthographiques pour l´interpreter
sous un point de vue linguistique-discursif. On cherche, ainsi presenter le rapport existant
entre les erreurs singuliers et la personne qui les commet dans une perspective du
fonctionnement de la langue et de ses possibilités. Les études descriptifs exluent les erreurs
orthographiques singuliers ou imprévisibles pour ne pas les inclure dans une de ses catégories
définies et, quand ils le font sont justifiés presque toujours par une rélation phonème/
graphème. La vision des catégories de l´erreur tombe sur la surnommée homogénisation,
pensée aussi diffusé par les grammairiens. Toutefois, dans ce travail, la langue est vue dans le
champs de l´hétérogeneité (MILNER, 1989), qui coupe la stabilisation grammatical et met en
valeur une action insconsciente de la personne qui se rapporte avec la langue de manière
singulière, puisque il n´y a pas de contrôle. Pour cet étude, on a séléctionné d´un corpus de
216 manuscrits, quatre qui présentaient des donnés singuliers. Ces textes ont étés produits par
des élèves du deuxième et troisième années de l´Enseignement Fondamental des écoles
publique et privée de Maceió – AL. Ils sont étés recueillis dans la période comprise entre
1996 et 1998 et, actuellement, font partie du amas Pratiques de Textualisation à l´École, du
Projet Écriture, Texte & Création (ET&C). On a pris en considération la singularité des faits
dans la ressignification du parler matérialisé dans l´écriture de l´autre (LEMOS, 1996 ;
LOPES, 2005) comme résultats d´une mobilisation interne des processus méthaphorique et
motonimiques (JAKOBSON, 2005), en observant les possibilités et impossibilités de la
langue (MILNER, 1989). Loin d´être un
modèle
linguistique, ce travail n´a pas la
prétension de resoudre les problèmes du travail didactique avec l´orthographie, mais offre l
´opportunité d´être un chemin à des réflexions sur ceux erreurs qui ne sont pas inclus dans des
catégories déjá pré-établies. Ces erreurs singulières peuvent nous montrer les effets d´une
rélation de la personne avec la langue. Le propos de cette recherche est de contribuer pour que
les professeurs/chercheurs ne mettent pas à l´écart les erreurs irregulières qui ne sont pas
inclus en aucune catégorie ou qui soient expliqués strictement par une théorie descriptive,
mais qui, à partir de ces ocurrences, puissent comprendre le parcours de l´écriture des élèves.
Mots- clés : Acquisition du langage, Erreur singulière ; Fonctionnement linguistiquediscoursif.
LISTA DE QUADROS
Quadro 01 – Regularidade contextual e morfológico-gramatical...................................... 36
Quadro 02 - Categorias empregadas na classificação dos erros ortográficos................... 42
Quadro 03 – Possibilidades de representação múltipla.......................................................43
Quadro 04 - Amostra de erros...............................................................................................47
Quadro 05 – Exemplos de estratégias utilizadas pelas crianças na produção de um som
difícil 50
Quadro 06 – Exemplo de um processo fonológico que atua na produção de sequência de
sons
50
Quadro 07 - Relação de algumas categorias dos processos fonológicos e do sistema
ortográfico de erros.................................................................................................................54
Quadro 08 - Possibilidades de estruturação silábica...........................................................57
Quadro 09 - Possível e impossível linguístico e material.....................................................77
Quadro 10 - Transcrição normativa do manuscrito “O príncipe e o dragão da maldade”
88
Quadro 11 - Modos de marcar a nasalidade na Língua Portuguesa..................................89
Quadro 12 - Vogais tônicas nasais.........................................................................................89
Quadro 13 – Quantidade de ocorrências de erros das categorias...................................... 91
Quadro 14 - Transcrição Normativa do manuscrito “A bela Adormecida”.....................93
Quadro 15 - Uso do L / U........................................................................................................97
Quadro 16 - Transcrição normativa do texto “As treis irmães uma bruxa” .................100
Quadro 17 - Transcrição normativa do texto “A princesa do lago encantado”..............101
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Manuscritos interpretados na pesquisa.............................................................. 86
Tabela 2 – Erros registrados no texto “A bela adormecida”..............................................96
Tabela 3 - Erros registrados no texto “ As treis irmães uma bruxa”...............................104
Tabela 4 - Erros registrados no texto “A princesa do lago encantado” ..........................105
LISTA DE ANEXOS
________________________________________________.................................................115
ANEXO A: FICHA DE FILMAGEM.................................................................................115
ANEXO B: AVALIAÇÃO DA ESCRITA DAS CRIANÇAS DA 1ª. SÉRIE “C”
MATUTINO.......................................................................................................................... 116
SUMÁRIO
....................................................................................................................24
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................24
1. ESTUDOS SOBRE A TIPOLOGIA DO ERRO..............................................................32
1.1 O erro ortográfico e suas categorias..................................................................................................................33
1.2 A relação do erro ortográfico com os processos fonológicos...........................................................................49
1.3 Estudos linguísticos-discursivos sobre o erro ortográfico ...............................................................................56
2. TEÓRICOS DA LINGUAGEM........................................................................................ 61
2.1 Saussure - as relações sintagmáticas e associativas ........................................................................................61
2.2 Jakobson – as relações metafóricas e metonímicas...........................................................................................68
2.3 Milner - o equívoco do erro na língua ..............................................................................................................73
2.4 Lemos – as posições do sujeito na língua.........................................................................................................78
3. O ERRO ORTOGRÁFICO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES NO
FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO....................................................... 83
3.1 Manuscrito 1 - A aglutinação na forma gráfica “tenque”.................................................................................86
3.2 Manuscrito 2 - A troca de u por l ...................................................................................................................93
3.3 Manuscritos 3 e 4 – As formas dr / tr ..............................................................................................................99
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................. 108
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................111
ANEXOS................................................................................................................................115
INTRODUÇÃO
_____________________________________
Nosso objetivo, com a produção deste trabalho, é dar um tratamento ao erro sob o
enfoque das possibilidades e impossibilidades da língua no funcionamento linguísticodiscursivo1. As discussões que levantamos incidem na observação de marcas de erro
ortográfico presentes nas produções de crianças das séries iniciais do ensino fundamental de
escolas públicas e particulares de Maceió, Estado de Alagoas. Essas relações são
imprescindíveis para compreendermos o surgimento singular2 do erro. Destacamos as
seguintes questões norteadoras da pesquisa: como interpretar ocorrências do erro ortográfico
por um viés linguístico-discursivo? O que o erro ortográfico pode nos mostrar sobre a relação
sujeito/língua?
Para a seleção dos textos que são analisados neste trabalho, fizemos uma triagem de
216 manuscritos preliminares que pertencem ao acervo Práticas de Textualização na Escola,
do Projeto Escritura, Texto & Criação (ET&C). Dessa triagem, apenas quatro foram
escolhidos para interpretação dos erros ortográficos e singulares. O critério de seleção adotado
seguiu uma minuciosa observação das várias produções, a fim de encontrar dados em que
emergissem características singulares do erro. Um fato intrigante que nos chamou a atenção
em todos os textos analisados refere-se à questão de os alunos grafarem, em um mesmo texto,
formas consideradas erradas e estranhas e formas de acordo com a norma convencionada.
Vemos, nesses erros, revelações de singularidades que só o próprio funcionamento linguístico
é capaz de desvelar.
Encontramos suporte para a análise dos erros singulares no “paradigma indiciário de
investigação”, que também é utilizado por Abaurre (2002, p. 83), por ser considerado “um
1
Utilizamos o termo linguístico-discursivo neste trabalho porque são desenvolvidas questões não só de ordem
linguística mas também discursivas, quando são usados os discursos (textos) das crianças.
2
Existem dois termos referentes ao erro que são importantes para a aquisição da linguagem. Um deles é o
singular e diz respeito às marcas de erro que acontecem seguindo a ordem prevista dentro das possibilidades e do
funcionamento linguístico; o segundo refere-se ao erro imprevisível, que corresponde a um tipo de grafia que
não está prevista dentro do sistema ortográfico da língua e respectivamente de suas possibilidades, causando
estranheza por sua forma gráfica. Nesta pesquisa trabalhamos com o erro singular.
modelo epistemológico fundado no detalhe, no ‘resíduo’”, onde “os dados singulares podem
ser altamente reveladores daquilo que se busca conhecer”.
Desde 1992, Abaurre investiga a presença dos dados singulares na aquisição da
linguagem escrita. Os estudos sobre esses dados, contudo, já haviam emergido e recebido
estatuto teórico por Ginzburg (1986). Segundo Abaurre (2002, p. 14), este autor chama a
atenção para “um modelo epistemológico fundado no detalhe, no resíduo, no episódico, no
singular”. Intitula-o de paradigma indiciário, tendo como característica uma investigação que
julga ser mais qualitativa do que os modelos galileanos que adotam o experimento e se
centralizam no quantitativo e na repetição dos dados.
Abaurre (2002, p. 14) comenta que Ginzburg considera ser o indiciário melhor para
orientar “a própria relação a ser estabelecida, entre o investigador e os dados, na busca
daqueles que se podem constituir em indícios reveladores do fenômeno que se busca
compreender”.
Compreendemos, contudo, que há nesta metodologia alguns problemas que
exporemos a seguir, com fins de melhor explicitar nossa investigação:
1- No paradigma indiciário, o olhar do investigador volta-se para a singularidade
presente nos dados que serão investigados, o que, para Abaurre (2002), não seria possível tal
investigação ser realizada através de procedimentos experimentais. Romualdo (2000), porém,
questiona esse pressuposto levantado pela autora, enfatizando que os dados singulares de que
tanto fala só ganham respaldo em sua relação com o categorizável (experimental).
Comentando este autor, Lopes (2005, p. 74) nos esclarece que:
Para ele, se um determinado lugar logo evoca o seu contrário, o lugar da qualidade
somente pode ser considerado “conjuntamente” com o lugar da quantidade, ou seja,
para caracterizar a qualidade, supõe-se já a afirmação da quantidade que aparece
como “lugar do duradouro (em oposição ao precário), como lugar do provável (em
oposição ao improvável).
2 – Há, no procedimento indiciário, a concepção intrínseca de motivação do sujeito
escrevente e de uma intuição perpassada do investigador na descrição do erro. Acreditar que o
sujeito é motivado conscientemente a produzir um erro é desacreditar, segundo Lopes (2005,
p. 73) no submetimento do sujeito ao funcionamento da língua. Esse pensamento de que o
sujeito produz o erro singular por “determinação própria”, descaracterizaria, também, em
nossa visão, toda nossa pesquisa, pois trabalhamos com a concepção de um sujeito que não
tem controle sobre a língua e a ela submete-se ao produzir o erro. Ainda a esse respeito, Lopes
(2005, p. 74) declara que “é certo que, nesse processo, estão imbricadas as subjetividades do
aluno produtor e do pesquisador analista, no entanto, o lugar onde o erro emerge é o lugar da
‘brecha’, da ‘quebra’ do todo”.
Nas reflexões de Lopes (2005, p.74), a singularidade não está exclusivamente nos
“dados em si”, ou no “sujeito que ‘trabalha’ a língua, como exposto pelos estudos de Abaurre
(2002), mas de um sujeito submetido ao funcionamento da língua”. Comungamos também
deste pensamento nesta pesquisa.
Desta forma, diante dos limites que este procedimento nos impõe, trouxemos outra
metodologia, que nos ajudará suprir essa lacuna encontrada no paradigma indiciário, centrada
nos estudos de Lemos (2002) e se refere ao processo de surgimento do erro vinculado a um
submetimento do sujeito ao funcionamento da Língua.
Lemos (1999) parte do pressuposto de que as mudanças que ocorrem na fala da
criança, na qual tomamos também como referência para a escrita, não se caracterizam por
acumulação nem pela edificação de conhecimento.
Trata-se, ao contrário, de mudanças conseqüentes a captura da criança, enquanto
organismo, pelo funcionamento da língua em que é significada como sujeito falante,
captura esta que a coloca em uma estrutura a qual, enquanto estrutura é incompatível
com a interpretação de que há um desenvolvimento, isto é, mudanças de estado de
um conhecimento conceituado como individual (LEMOS, 1999, p. 2).
Neste sentido, Lemos coloca em suspensão a idéia de que a aprendizagem esteja
atrelada unicamente ao entendimento difundido pelas concepções psicológicas do
desenvolvimento. Prima pela presença do outro como referência observadora da mudança de
posição da linguagem pela criança. Segundo a autora (1999, p. 2), “a estrutura em que
comparece o outro como instância representativa da língua, a própria língua em seu
funcionamento e a criança enquanto sujeito falante, é a mesma em que se move o adulto,
enquanto sujeito falante submetido ao funcionamento da língua”. Enfatiza (op. cit. p. 2) que,
nesse sentido, “o que identifica o processo de aquisição de linguagem relativamente à posição
do adulto nessa estrutura é sua mudança de posição no decorrer do processo”. Nessa teoria, o
processo de aquisição da linguagem seria definido pela mudança de posição da criança em
relação ao outro, a língua e ao sujeito que insurge nela. O erro, assim, é visto numa
perspectiva de ressignificação “pela criança dos fragmentos incorporados da fala do outro”,
determinada como “um movimento da língua”.
Desta forma, consideramos que os estudos sobre o funcionamento linguístico
associado ao paradigma indiciário, mesmo este contendo falhas, são os procedimentos que
mais se aproximam do nosso objetivo na busca de marcas, de pistas do surgimento de erros
relacionados às possibilidades do funcionamento da língua, e que nos permitiu detectar
indícios reveladores dos erros singulares que sinalizam para a manifestação de um sujeito que
também é singular e está submetido à língua.
Observamos que estudos sobre a concepção do erro têm alcançado diferentes
proporções teóricas. Dentre as várias teorias sobre o erro, três foram destacadas para
confronto e suporte na argumentação: os estudos sobre o erro fonológico de Othero (2005);
sobre os erros ortográficos de Morais (1998, 2007) e Zorzi (1998) e os estudos que dão
suporte à área da aquisição da linguagem (JAKOBSON, 1995; MILNER, 1989; LEMOS,
1997, 2002).
Para melhor esclarecer nossa visão em relação ao erro ortográfico, separamos as três
teorias em dois tipos de estudos sobre o erro: as categorias dos erros e as interpretações do
erro sob um ponto de vista linguístico ou discursivo.
Teóricos como Othero, 2005 (processos fonológicos); Cagliari, 1989; Carraher,
1986; Morais, 1998, 2007; Zorzi, 1998 (sistema ortográfico do erro) são alguns dos autores
que apresentam categorias do erro. Eles buscaram respostas para a incidência explicável dos
diversos tipos de erros que surgem na fala ou na escrita das crianças, classificando-as em uma
definida categoria. As ocorrências, porém, que não são possíveis de classificação em uma de
suas descrições propostas são, geralmente, deixadas sem explicação.
Tradicionalmente, a Psicologia tem sido o pressuposto referencial para esse tipo de
pesquisa, através
de conceitos
como os de “representação”, “internalização” e
“comportamento”. Os dados quantificados nessas pesquisas partem de uma generalização
coletiva e atendem expectativas de projetar índices de ocorrência em um grupo maior de
pessoas. Privilegia, assim, o que é regular sobre o irregular, implicando, indescritivelmente, a
exclusão dos erros singulares (RIOLFI, 2009).
Não queremos, aqui, retirar a importância desses estudos, mas acreditamos que
somente as descrições não dão conta de interpretar e explicar os erros, por desconsiderarem o
próprio funcionamento da língua.
Riolfi (op. cit.) sustenta a idéia de que há erros que vão além das quantificações que
vários teóricos encontram para explicar a sua ocorrência. As certezas estão centradas no fato
de as crianças errarem, porém não conseguem interpretar os motivos de tal erro, por não
considerarem as possibilidades dentro do funcionamento linguístico.
Recorrendo aos estudos realizados por Perroni (1996), podemos reconhecer que o
valor dado à quantificação generalizada dos dados é devido a não existência de um consenso
entre os pesquisadores da teoria da aquisição da linguagem, que divagam para uma das
supostas ciências que a constituiu: ora oscilam para a metodologia da Psicologia, ora para a da
Linguística. Deste modo, o que acontece é que as teorias que são diferentes absorvem de
forma diferenciada o que é chamado de fato linguístico, divergindo no emprego das
metodologias e, consequentemente, na maneira de interpretar o dado.
Perroni (1996) nos mostra, ainda, que no século passado, o campo da experiência
ocupava um espaço privilegiado nas pesquisas que tinham como investigadores, em sua
maioria, os psicólogos. O enfoque da língua no campo experimental era dado à “compreensão
das estruturas lingüísticas pela criança”, sendo que o alvo a ser alcançado com a pesquisa era
a própria “competência lingüística”. Este fato fazia com que se isolassem todas e quaisquer
interferências para se chegar ao objetivo da pesquisa, como afirma a autora ao declarar que
“tais estudos agiam de forma a isolar todas as ‘interferências’, para se chegar à competência”.
(op. cit., p. 18).
Concordamos com o pensamento de Santos (2010, p. 14), quando diz que “por mais
diverso que seja o equívoco na escrita, é possível que ele não esteja relacionado à
‘competência’ do sujeito sobre a língua, conforme a visão cognitivista, mas a uma relação de
subjetividade e de submetimento aos efeitos da língua”.
Outro ponto que merece ser destacado em relação aos experimentos está no fato do
campo metodológico dar uma grande ênfase a estudos com quantidades enormes de sujeitos
para garantir uma generalização categórica com maior respaldo. Perroni (1996, p. 18) chama a
atenção para esta questão ao alegar que “o enfoque na gramática deu origem aos estudos com
grande número de sujeitos, ambiente controlado e uso de categorias definidas à priori”.
Esse procedimento metodológico é também utilizado nos atuais estudos que
categorizam o erro ortográfico. Nesse método é aplicada uma mesma descrição previamente
definida a vários sujeitos que apresentem características idênticas e compatíveis com as
definidas alterações, generalizando, para tanto, os iguais, ao mesmo tempo em que descarta os
que lhe são diferentes.
Vale acrescentar que, dentro da perspectiva metodológica apresentada, as metas e
projeções das categorias são finalistas, ou seja, projetam no resultado e não se preocupam
com o processo. Fixam tanto seu alvo na busca intermitente de enquadrar os erros nas
descrições que se esquecem de inseri-los e compreendê-los no funcionamento linguístico. Há
por trás dessa questão um aparente imediatismo objetivo em detrimento da subjetividade.
Contudo, a aquisição da linguagem, em uma de suas vertentes, tem procurado dar um
estatuto linguístico ao ‘erro’. O subjetivo tem angariado, dessa forma, maior espaço nos
estudos de teóricos que versam sobre a questão do erro singular, objeto também de nossa
investigação. Este tema tem sido um dos focos das crescentes pesquisas sobre a linguagem, o
que indicia um sutil despertamento sobre o papel da subjetividade nos estudos em torno da
singularidade do erro. Seu esboço está pautado em uma metodologia que é vinculada à
investigação do processo de submetimento do sujeito à língua.
Tomando esses aspectos como ponto de partida neste estudo, pretendemos apresentar
as incidências do erro numa visão descritiva dos erros fonológicos e ortográficos, que
fundamentam a teoria da metodologia objetiva, como também interpretar os erros que
aparecem singularmente nos textos dos alunos das séries iniciais do ensino fundamental de
instituições pública e privada, apresentando esse processo correlacionado à submissão do
sujeito às possibilidades de uso da língua.
Dessa forma, em contrapartida aos estudos que apenas categorizam o erro
ortográfico, buscamos aporte teórico em pesquisadores da linguagem (JAKOBSON, 1995;
MILNER, 1989; LEMOS, 1995, 1996, 1997, 2000) que levam em consideração um sistema
da língua marcado pela ‘falta’ e sustentado por uma ‘ordem’ materializada pelos eixos
metafóricos e metonímicos. E, também, por pesquisadores (CALIL, 2007; FELIPETO, 2007;
CALIL E FELIPETO, 2008; LOPES, 2005) que elegem os erros eliminados como objeto
investigativo, analisando-os pelo viés do funcionamento linguístico-discursivo que aponta
para um sujeito capturado pela língua. Essa nova interpretação, ainda não largamente
divulgada, garante seu espaço investigativo nas atuais pesquisas sobre os erros ortográficos.
Gostaríamos de compartilhar um pouco de como iniciamos nosso estudo com a
temática do erro. Após concluirmos o curso de Pedagogia em 2000, iniciamos nossa trajetória
docente com alunos das séries iniciais em 2001, nas redes de ensino estadual e municipal. As
maiores dificuldades dos alunos se concentravam nas questões de cunho ortográfico.
Independente da área do conhecimento, os textos produzidos continham erros que fugiam do
nosso entendimento, por serem inusitados, estranhos. Tentamos criar estratégias para ajudar
os alunos na ortografia, sendo uma delas fazer relação do som com a escrita. Em alguns casos
isso surtiu efeito. Mas, em outra parte da turma, ainda surgiam erros, mesmo que em menor
escala. Não compreendíamos, dessa forma, o porquê dos alunos não avançarem nas questões
ortográficas, mesmo tendo memorizado regras de escrita. Havia algo que não se encaixava
quanto às explicações e tratamentos dados ao erro e os alunos, mesmo conhecendo a
convenção, continuavam a errar.
Acreditávamos, assim, como as teorias descritivas afirmam, que o fato de corrigir um
tipo de erro, de usar o procedimento fonológico ou mesmo pronunciar lentamente as
letras/sílabas seria o bastante para seu avanço nas questões ortográficas. Parece ingênuo nosso
pensamento, mas confiávamos totalmente que a fono/grafia era a base para a dissolução de tal
problema.
Ultrapassando essa visão, vemos agora que a idéia corrente nas práticas pedagógicas
cria uma ilusão de apagamento do erro por não observá-lo dentro das possibilidades da
estrutura linguística. Como nos aponta Calil (2007, p. 74), os estudos vigentes sobre as
categorias do erro ortográfico trazem a mesma concepção de sujeito que “estabelece na escrita
uma relação que envolve a identificação de fonemas com determinados grafemas que possam
representá-los”. Essas relações estabelecidas por essas teorias incorrem no mesmo
pensamento de que o funcionamento da escrita atrela-se a uma representação da fala em que o
indivíduo analisa, verbaliza e memoriza as convenções e regras ortográficas para ter integral
domínio da escrita.
Antes, porém, de compreendermos o erro sob o fundamento estrutural da língua, este
se encontrava, para nós, num campo misterioso e instigador. Foi então que em 2006 surgiu
uma oportunidade para sermos tutora do Pró Letramento, um programa institucional de
formação de professores. Os cursos de formação para os tutores do Pró Letramento foram
clareadores de vários pontos obscuros que até aquele momento tínhamos sobre a questão do
erro. O entendimento do sociointeracionismo e das variações linguísticas foram minimizando
a angústia que nutríamos a respeito do procedimento adotado em sala de aula em relação a
esse tema. Contudo, ainda faltava algo que complementasse ou avançasse nesses estudos. Ao
ingressarmos no mestrado em educação, no ano de 2009, nos deparamos com o outro lado do
erro ortográfico: sua possibilidade no funcionamento linguístico. Esse entendimento
demandou estudos minuciosos sobre esta temática, uma vez que tínhamos tido pouco acesso a
tais conhecimentos, devido, também, não sermos da área de Letras. Mas foi e está sendo
gratificante conhecermos e aprofundarmos as faces da língua, sobre suas possibilidades e
impossibilidades linguísticas, sobre o sujeito que erra por estar submetido ao seu
funcionamento.
Percebemos, assim, que as categorias discorrem sobre o que está atravessado pelo
previsível, mas não incorporam em seus estudos os erros da ordem do singular, que
ultrapassam as regras memorizáveis da ortografia e que sinalizam um sujeito no
funcionamento da língua. Esclarecemos que, com tudo que foi dito, não é nosso intuito
descartar os estudos vigentes das categorias do erro, mas refletir sobre a explicação dos erros
singulares que não se enquadram nas categorias descritivas e por elas são descartadas ou, que,
são explicadas dissociadamente da estrutura linguística.
Diante disto, ressaltamos que o ponto norteador deste trabalho se concentra
justamente no entendimento de que a incidência do erro revela a imbricada relação do sujeito
com as possibilidades e funcionamento da estrutura da língua, indiciando uma singularidade
presente não só nos erros, mas também no sujeito que erra.
Desse modo, os erros singulares ou irregulares nos revelam uma relação estritamente
ligada entre o sujeito e a língua e, embora, sua grafia fuja do que é proposto no padrão
ortográfico ou gramatical e de seus usos, seguem-se num contínuo das probabilidades
permissivas dentro de suas próprias regras. Esses pontos darão pressupostos teóricos para a
análise dos manuscritos, neste trabalho.
O primeiro manuscrito a ser analisado foi produzido por alunos de uma instituição
particular e sua interpretação se concentra num estranhamento da aglutinação dos
significantes tem que substituído pela dupla escritora pelo termo tenque. A segunda
interpretação corresponde a uma reafirmação da singularidade existente nas trocas de u por l
nas diversas palavras que foram utilizadas pela dupla de alunos da escola pública em sua
produção textual; a terceira e última análise mostra as possibilidades e impossibilidades das
formas dr e tr presentes em duas produções textuais de duas duplas de alunos de uma
instituição particular e de uma pública. O observável nas composições foi o erro singular,
aparentemente inexistente de explicação pelas categorias do erro ou apenas explicado por uma
relação fono/grafia, a fim de desvendar a singularidade de um sujeito-autor imerso no
funcionamento linguístico, diante das probabilidades que a língua oferece.
Este trabalho visa, assim, a ser mais uma semente plantada sobre essa temática,
esperando que haja uma acessibilidade desse conhecimento, desde o meio acadêmico até a sua
ponta — a escola e os professores que nela exercem sua função educativa. Nosso desejo com
esta pesquisa é que haja a correta compreensão da singularidade do erro como um
acontecimento de um sujeito singular que erra em uma tentativa, ainda que inconsciente, de se
aproximar da norma apresentada pela estrutura da língua, para ser por ela completamente
submetido.
Passemos, então, para o primeiro capítulo.
CAPÍTULO 1
________________________________________________
1. ESTUDOS SOBRE A TIPOLOGIA DO ERRO
O erro ortográfico3 tem-se constituído em uma das grandes inquietações que permeia
o cenário escolar, sendo motivo de discussões sobre sua incidência nas diversas composições.
O incômodo causado pelo erro tem atingido não só ao errante, mas principalmente ao
professor que atribui, muitas vezes, sua ocorrência a uma falta de saber do aluno que, se não
for imediatamente corrigido, representaria também uma ameaça a sua capacidade de ensinar.
Isso, porque o professor ocupa uma posição interventiva social e quando deixa de agir como o
esperado pela sociedade, acredita que falhou em sua tarefa educativa.
Em meio a essa turbulência de idéias de interferência didática, a forma encontrada
por muitos professores para tentar ‘domar’ essa falta que permeia as produções textuais de
seus alunos se dá através de aplicação dos estudos tipológicos e descritivos do erro.
Dessa forma, a incidência do erro é comumente vinculada às teorias descritivas do
erro ortográfico que procuram destacar uma indicação prioritariamente voltada para o valor
relacional entre som/letra, excluindo consequentemente os erros que não se enquadram em
nenhuma das categorias previamente definidas.
Estudos classificatórios do erro vêm sendo analisados por vários teóricos que
acreditam ser o erro algo inevitável que acomete todo sujeito, sendo possível explicá-lo e
prevê-lo em uma das categorizações existentes em que serão encaixados.
Os teóricos que elencaram algumas categorias explicativas para o aparecimento do
erro ortográfico e serão abordados nessa sessão são Carraher (1986), Cagliari (1989), Zorzi
(1998) e Morais (1998, 2007), sendo dada ênfase aos estudos destes dois últimos.
3
Decidimos aqui pela utilização do termo ‘erro ortográfico’ denominação dada comumente ao erro de grafia e já
adotada em trabalhos de outros autores (LOPES, 2005; CALIL & FELIPETO, 2008) mesmo sabendo que pela
origem da palavra essa expressão poderia ser considerada contraditória, uma vez que a palavra ‘ortografia’
significa ‘escrita correta’ (orto=correto e grafia=escrita).
1.1 O erro ortográfico e suas categorias
a) Morais e a correspondência regular e irregular do som
Morais (1998, 2007), tem debruçado seu olhar investigativo para questões oriundas
as incidências de erros constituintes nas produções textuais de alunos de escolas públicas e
privadas, buscando uma inovação do ensino ortográfico através de uma proposta de condução
didática. Morais (1998), defende a idéia de que se o professor compreender as razões de
existência do erro poderá dar conta de sua tarefa em ajudar ao aluno a escrever corretamente.
Morais (op. cit.), fez sua pesquisa com a participação de 116 alunos brasileiros,
metade da escola pública e metade da particular do 2º ao 5º ano da cidade do Recife, a fim de
verificar que tipos de erros eram mais comuns nas produções desses discentes de meios
sociais distintos. Inspirou-se na proposta do molde psicológico de Annette Karmiloff-Smith,
que acredita que os avanços proveitosos angariados pelo aprendiz em algum campo do saber
estariam ligados a uma condição de explicitação, do qual tenha elaborado sua informação
mais específica de tal domínio. O objetivo de Morais foi então o de procurar verificar se o
rendimento ortográfico dos alunos envolvidos na pesquisa tinha relação com o plano de
conhecimento interno elaborado por eles sobre a norma ortográfica. O resultado evidenciado
pelo autor foi de que alunos de ambas as instituições cometeram erros, mudando apenas o
grau de incidência de casos, sendo os de regularidade cometidos pelos de escola pública e os
de irregularidade, pelos da particular. Segundo Morais (1998), este fato ocorreu porque os
alunos desfavorecidos, da escola pública, não têm acesso a materiais escritos em suas casas,
somente na escola passariam a ter esse contato; já os da particular têm um maior acesso e, por
isso, teriam angariado maior êxito nas questões regulares.
Segundo Morais (1998, p. 61), “[...] para apropriar-se da ‘linguagem que se escreve’,
o aluno precisa conviver com bons modelos de textos”. Isto implicaria dizer que o contato
com material textual de boa qualidade é uma condição fundamental para o aluno internalizar
as características dos textos e produzi-los com maior eficácia. Do mesmo modo, Morais
(1998) acredita que para as normas ortográficas serem internalizadas é preciso que o aluno
tenha contato com modelos gráficos corretos que o permita refletir sobre o que escreve.
Morais (2007, p. 11), a partir da leitura de Benveniste & Chervel (1974), relata que a
ortografia fora criada com uma intencionalidade de atender um padrão de escrita que
acoplasse “o ideal fonográfico (uma escrita que refletisse regularmente uma forma idealizada
de pronunciar) e o princípio ideográfico (que opta por manter a etimologia, a notação das
palavras em sua língua original)”.
Morais (1998, p. 19), ainda que conceba que as soluções encontradas para
estabelecer a norma ortográfica é uma arbitrariedade convencional, já que é fruto de uma
convenção da sociedade, vê na norma ortográfica uma convenção necessária, “um recurso
capaz de ‘cristalizar’ na escrita as diferentes maneiras de falar dos usuários de uma mesma
língua. Escrevendo de forma unificada, podemos nos comunicar mais facilmente”, diz o autor.
Para ele, a possibilidade de prever questões ortográficas que podem ser resolvidas por uma
regra gerativa não significa que não seja arbitrária a norma ortográfica.
Morais (1998, p. 20) acredita que, sendo a ortografia uma norma de convenção
social, seu conhecimento não pode ser incorporado aleatoriamente pela criança, mas
necessitará da ajuda do outro. O autor salienta que “quando compreende a escrita alfabética e
consegue ler e escrever seus primeiros textos, a criança já apreendeu o funcionamento do
sistema de escrita alfabética, mas ainda desconhece a norma ortográfica”. Este fato, segundo o
autor é um importante distintivo para compreendermos “porque os alunos cometem tantos
erros ao escrever seus textos e porque temos que ajudá-los na tarefa de a ‘escrever segundo a
norma’”.
Segundo Morais (2007, p. 10), a diversidade de formas de notar uma palavra é
reflexa da dominação, convivência e conveniência estabelecida em cada país, de cada povo,
uma vez que um mesmo som é transcrito por diferentes povos de maneiras multiformes
devido à tradição que está presente nas línguas. Assim, para o autor o não seguimento da
norma gera um risco de “sermos discriminados – e penalizados – caso não ponhamos no papel
as palavras como devem ser”, uma vez que o método tradicional e o progressista são duas
fortes idéias que tem arraigado as práticas de ensino do sistema ortográfico no nosso país.
Morais (2007) acredita que por vezes o professor é conduzido em sua prática,
conforme o método tradicional, a perseguir e reprovar o aluno por causa dos vários erros
ortográficos que cometeu em seu texto; ou, mediante os progressistas, a deixar de ensinar a
ortografia, confiando que é uma tolice tal questão. Segundo Morais, é essa falta de clareza e
firmeza de idéias referentes ao erro que tem gerado confusão no verdadeiro entendimento dos
encaminhamentos didáticos que a ele devem ser dados.
Morais (1998) sustenta a idéia de que é preciso que o educador se inteire do real
problema ortográfico do aluno, verificando se a dificuldade apresentada é de correlação
regular ou irregular, a fim de serem encaminhadas as atividades didáticas direcionadas a
solucionar a real necessidade ortográfica. Enfatiza ainda que o ensino ortográfico tenha que
pressupor uma internalização reflexiva desse objeto de conhecimento por quem a aprende,
não sendo utilizadas atividades mecânicas, como uma mera cópia sem sentido, para se
alcançar a almejada grafia correta.
Assim, no intuito de contribuir para que alunos e professores reflitam sobre a norma
ortográfica, Morais (1998) divide o ensino da ortografia em duas correspondências:
REGULAR
COMPREENDIDAS
IRREGULAR
MEMORIZADAS
Para Morais (1998), aprender ortografia não é uma questão simplesmente de
memorizar ou decorar regras, como muitos supõem, pois a organização da norma4 ortográfica
da Língua Portuguesa permite distinguir entre duas correspondências: letra-som (regulares),
que são facilmente compreendidas, e as irregulares, que exigem uma memorização das
palavras por quem aprende. Para o autor a distinção entre essas duas correspondências são
fundamentais no ensino da ortografia.
Essa distinção nos permite compreender que os erros ortográficos não são ‘coisas
idênticas’, pois erros semelhantes em sua aparência – porque envolvem a ‘troca de
uma letra por outra’ – têm naturezas diferentes [...] o entendimento do que é regular
e irregular em nossa ortografia me parece fundamental para o professor organizar o
ensino. (MORAIS, 1998, p.27 e 28).
Percebemos que perpassa em Morais, ao estabelecer essa distinção entre esses dois
tipos de correspondências letra som regulares e irregulares, a antiga proposição de que há uma
interferência da fala na escrita, sendo o surgimento do erro relacionado a estreita ligação de
que ainda se faz da transposição do som para a grafia.
Antunes (2003, p. 60), contrariando essa interferência declara que “em alguns
contextos, é possível estabelecer uma série de regras que determinam o emprego de certos
grafemas, os quais, como se sabe, não correspondem univocamente aos sons dos fonemas”.
De acordo com os estudos de Morais (1998), é possível estabelecer que as distintas
relações entre letra-som estão elencadas em três tipos de correspondência fonográfica regular:
4
Ling. Conjunto de regras que determinam o uso de uma língua -http://dic.busca.uol.com.br/result.html?
t=10&ref=homeuol&ad=on&q=norma&group=0 – acessado em 02-09-2010
diretas, contextuais e morfológico-gramatical. Vejamos um quadro, com alguns casos dessas
Casos de regularidades contextuais
Os principais casos de
correspondências regulares
contextuais em
nossa ortografia são:
• uso de R ou RR em palavras como
“rato”, “porta”, “honra”,
“prato”, “barata” e “guerra”;
• uso de G ou GU em palavras como
“garoto” e “guerra”;
• o uso de C ou QU, notando o
som /k/ em palavras como
“capeta” e “quilo”;
• o uso do J formando sílabas com A,
O e U em palavras como
“jabuti”, “jogada” ou “cajuína”;
• o uso do Z em palavras que
começam “com o som de Z” (por
exemplo, “zabumba”, “zinco”, etc.);
• o uso do S no início das palavras,
formando sílabas com A, O e U,
como em “sapinho”, “sorte” e
“sucesso”;
• o uso de O ou de U no final de
palavras que terminam “com o
som de U” (por exemplo, “bambo”,
“bambu”);
• o uso de E ou I no final de palavras
que terminam “com o som de I” (por
exemplo, “perde”, “perdi”);
• o uso de M, N, NH ou ~ para grafar
todas as formas de
nasalização de nossa língua (em
palavras como “campo”,
“conto”, “minha”, “pão”, “maçã”,
etc.).
Casos de regularidades
morfológico-gramaticais presentes
em substantivos e adjetivos
Casos de regularidades
morfológico-gramaticais
presentes nas flexões verbais
Exemplos de regularidade
morfológico-gramatical observados
na formação de palavras por
derivação:
As regras morfológicogramaticais se aplicam ainda a
vários casos de flexões dos
verbos que causam dificuldades
para os aprendizes. Eis alguns
exemplos:
• “portuguesa”, “francesa” e
demais adjetivos que indicam
o lugar de origem se
escrevem com ESA no final;
• “beleza”, “pobreza” e demais
substantivos derivados de
adjetivos e que terminam com
o segmento sonoro /eza/ se
escrevem com EZA;
• “português”, “francês” e
demais adjetivos que indicam
o lugar de origem se
escrevem com ÊS no final;
• “milharal”,
“canavial”,
“cafezal” e outros coletivos
semelhantes terminam com
L;
• “famoso”,
“carinhoso”,
“gostoso” e outros adjetivos
semelhantes se escrevem
sempre com S;
• “doidice”,
“chatice”,
“meninice”
e
outros
substantivos terminados com
o sufixo ICE se escrevem
sempre com C;
• Substantivos derivados que
terminam com os sufixos
ÊNCIA, ANÇA E ÂNCIA
também se escrevem com C
ou Ç ao final (por exemplo,
“ciência”, “esperança” e “
importância”).
•
“cantou”,
“bebeu”,
“partiu” e todas as outras
formas da terceira pessoa
do singular do passado
(perfeito do indicativo)
se escrevem com U no
final;
•
“cantarão”, “beberão”,
“partirão” e todas as
formas da terceira pessoa
do plural no futuro se
escrevem
com
ÃO,
enquanto todas as outras
formas da terceira pessoa
do plural de todos os
tempos
verbais
se
escrevem com M no final
(por exemplo, “cantam”,
“cantavam”,
“bebam”,
“beberam”);
•
“cantasse”, “bebesse”,
“dormisse” e todas as
flexões do imperfeito do
subjuntivo terminam com
SS;
•
todos os infinitivos
terminam
com
R
(“cantar”,
“beber”,
“partir”), embora esse R
não seja pronunciado em
muitas regiões de nosso
país.
duas últimas regularidades, exposto por Morais (op. cit.) em seu trabalho e, logo após,
faremos uma breve explicação das três.
Quadro 01 – Regularidade contextual e morfológico-gramatical
Fonte: MORAIS, 1998, p. 31, 33 e 34
•
Diretas - grafias de p, b, t, d, f, v - não há muita dificuldade para se usar essas
letras ao aprender a convenção alfabética;
•
Contextuais - o contexto da palavra que vai definir qual letra (ou dígrafo) que
vai ser usada. Ex.: r forte e r brando, rr;
•
Morfológico-Gramaticais - aspectos ligados a categoria gramatical da palavra
que estabelece a regra. Ex.: portuguesa e francesa e demais adjetivos que indicam lugar de
origem escrevem-se com - esa no final.
Lopes (2005, p. 55), acredita haver uma necessidade de melhor explicar as regras
regulares contextuais, pois segundo a autora:
Se atentarmos para o que está classificado como “regularidades contextuais”,
podemos ver que elas perdem sua força explicativa quando se observa o que está
definido como “contexto”. Por exemplo, há um “contexto” semântico entre “bambu”
e “bambo”, mas há um “contexto” gramatical entre “(eu) perdi” e “(ele) perde”.
Como estabelecer uma diferenciação? Haveria aí um equívoco na classificação?
Talvez estas formas verbais “perdi/perde” devessem estar no caso das regularidades
morfológico-gramaticais, por estarem relacionadas à flexão verbal.
Esse ponto assinalado por Lopes (2005) traz à tona uma falta de relação no que
Morais (1998) chama de contexto, já que não é bem definido esse termo e a ligação entre uma
palavra e outra pode estar atrelada tanto a uma característica semântica quanto a uma
gramatical. Assim, segundo a classificação proposta por Morais, os verbos perdi/perde
estariam encaixados na regularidade contextual por causa do som do i prevalecer na pronúncia
destas palavras. Porém, quanto à flexão verbal poderiam ser encaixadas na regularidade
mofológico-gramatical, dando margem nessa questão para uma oscilação despontada na
disposição da categoria atribuída por Morais.
As correspondências irregulares, por sua vez, se concentram na escrita, pois não há
regra que ajude o aprendiz a refletir sobre a língua, sendo preciso, na dúvida, consultar
modelos (como o dicionário) ou então memorizar as palavras. Na percepção de Morais (1998)
as formas irregulares acompanham os seres humanos até o fim da vida, pois sempre haverá
palavras raras que nunca tivemos oportunidade de ler ou escrever, ou cuja grafia não é
possível recordar. Assim, para o referido autor é necessária a exposição a textos e a prática de
leituras constantes para internalização da grafia das diversas palavras que se encaixam nesse
grupo categórico.
Vejamos abaixo alguns exemplos da correspondência irregular definidas por Morais:
•
Som do s (cidade, auxílio, seguro, assistir)
•
Som do g (girafa, jiló)
•
Som do z (zebra, casa, exame)
•
Som do x (enxada, enchente)
Expressando seu pensamento sobre a questão da irregularidade estudada por Morais
(1998), Lopes (2005, p. 56) declara que:
Quanto às irregularidades, podemos observar algo que resvala, que é deixado de
fora. Os erros ortográficos classificados como irregulares carecem de uma melhor
fundamentação, uma vez que são apenas exemplificados com algumas ocorrências
da língua e encaminhados didaticamente à memorização, faltando, desse modo,
uma interpretação que avance nas justificativas centralizadas na “tradição de uso”
ou na “origem da palavra”.
Há outra questão que nos chamou a atenção nas pesquisas de Morais (1998), que é o
fato de as crianças favorecidas e desfavorecidas participantes da investigação ter índices de
erros. Mesmo os favorecidos erraram. Isso mostra que somente ter bons hábitos de leitura e
ser pertencente a uma camada rica da sociedade não dissolve o erro regular ou irregular. Pelo
contrário, o erro é evidenciado, ainda que em menor grau. Se esses alunos favorecidos já
tivessem ‘internalizado’ a forma correta de grafar por demonstrarem conhecimento das regras
ortográficas, por que incidiram no erro? Como explicar os erros ortográficos expressos em
produções em que a criança já tem estabilizada a grafia correta? Como justificar o erro que
foge às categorias ortográficas? Esperamos que as respostas a essas questões sejam
contempladas no decorrer deste trabalho.
Ainda que não concorde com alguns dos posicionamentos de Morais, Lopes (2005,
p.56) não descarta os estudos do referido autor e considera que “o mérito do trabalho consiste
na reflexão sobre o ensino da ortografia: a análise crítica das práticas usuais e a definição de
estratégias metodológicas para o trabalho de intervenção em sala de aula”.
Diante disso, percebemos que esses estudos sobre a regularidade e irregularidade da
língua não dão conta em responder as questões impostas pelo erro, deixando margem para
algumas dúvidas quanto à ordem de sua classificação dentro da categorização. Isto se deve,
talvez, pela postura cognitivista assumida por Morais diante do erro, acreditando que o aluno
seja capaz de controlar a língua e, consequentemente, possa conter sua emergência por
simplesmente terem aprendido as regras do sistema ortográfico. Este fato é discordado por
nós, pois a língua não dá para ser controlada pelo sujeito, sendo este que se submete a suas
regras, devendo o erro, em nossa visão, ser interpretado dentro do funcionamento linguístico.
b) Zorzi e as categorias de erros
O autor sobre o qual nos debruçaremos nessa seção é Zorzi (1998). Os estudos deste
autor se voltam para as questões relacionadas às dificuldades de escrita presentes nas
composições infantis. Duas situações vivenciadas por Zorzi o influenciaram na decisão em
tornar a escrita mais acessível às crianças. Uma delas está na infância, em que duas pessoas
com as quais ele convivia nesse período apresentaram grandes dificuldades com a escrita, o
que acabou por levá-los a não concluir nem sequer o primeiro grau, atual nível fundamental; a
segunda, já na fase adulta, foi vivenciada no seu trabalho em fonoaudiologia clínica com
pacientes que apresentavam dificuldades com a aquisição da linguagem escrita.
Essas circunstâncias vivenciadas por Zorzi (op. cit.) o colocaram num papel
desafiador: tentar compreender o processo de apropriação da escrita pelas crianças e torná-la
mais acessível aos alunos que apresentam grandes dificuldades na aquisição da mesma, a fim
de mudar essa relação conflituosa entre o aprendiz e a língua escrita. Pensando nisso, o
referido autor se empenhou em mergulhar num estudo da diversidade existente no
desenvolvimento da língua escrita.
Zorzi, que é graduado em fonoaudiologia, tinha herdado de seu curso a noção de que
os problemas encontrados na escrita tinham sua premissa ou explicação em alterações nas
funções psiconeurológicas (sistema funcional da linguagem), relacionando-os a questões
motoras e perceptuais. Zorzi (1998, p. 14) sustentava, no entanto, a idéia de que as fórmulas
‘milagrosas’ que tudo explicavam e resolviam estavam longe do que na realidade se
processava na relação entre o aluno e a escrita. Para ele, treinar simplesmente as habilidades
para enfrentar os problemas funcionais da linguagem, por falhas no processo, se constituía em
uma “grande fórmula, grande esperança”, mas no final de tudo seria também “um grande
fracasso”, já que no trabalho com a escrita “não há receitas tão simplistas que possam dar
conta de fatos tão complexos como os envolvidos na aprendizagem em geral e,
particularmente, da escrita”.
Em função do seu trabalho clínico, Zorzi (1998) tem se deparado com vários casos
de crianças que lhe são encaminhadas com distintos graus de problemas na alfabetização, com
índices de troca ou alteração de letras, seja na leitura ou na escrita, sendo que em várias
construções de palavras na escrita, a repetição do erro é constante. Para o autor, esse não é o
maior problema das crianças, porém ainda é o mais observável e mais fácil de ser constatado
por ser mais bem visualizado. Tendo em vista que as dificuldades de construção textual, de
elaboração narrativa são mais difíceis de avaliar, pois estão numa ordem subjetiva, o que fica
mais evidente na escrita das crianças é se “escreve de modo ortograficamente correto ou não”,
já que “escrever errado chama a atenção da escola e da família” (ZORZI, 1998, p. 14).
Segundo Zorzi, ainda não foi encontrada uma resposta satisfatória que responda de
forma ampla a todas as questões impostas pela escrita, contudo novos estudos procuram
mostrar novas formas de se analisar e compreender as alterações de escrita. Assim, o autor
aproveita para utilizar-se de seu contato com a psicolinguística, teoria piagetiana e
descobertas de Ferreiro e Teberosky (1979), para pensar numa aprendizagem de escrita que se
afastasse dos modelos apenas psiconeurológicos que havia convivido e aprendido até o
momento. Outro fator que Zorzi eleva como crucial para avançar nas questões sobre a escrita
foi a oportunidade que teve de trabalhar em um local em que pode desenvolver trabalhos
clínicos com crianças da rede pública e, no qual, existia uma equipe multidisciplinar
envolvidas no acompanhamento a essas crianças que apresentavam um quadro de distúrbio de
aprendizagem. Nesse trabalho, Zorzi verificou que os encaminhamentos dessas crianças pela
escola pública com a alegação de tal “distúrbio” eram improcedentes.
Para Zorzi (1998, p. 15), em relação a esses casos, o termo mais apropriado para o
problema de aprendizagem estaria na verdade ligada a forma de ensinar do professor, no qual
as crianças não possuíam distúrbio de aprendizagem, mas eram “vítimas de distúrbios de
‘ensinagem’”. Por outro lado, no entanto, Zorzi constatou que realmente existiam alguns
problemas que afetavam a aprendizagem das crianças, que podem ser características de
dificuldade neurológicos desencadeadores de vários transtornos.
Por isso que Zorzi (op. cit., p. 15) admite que “há, de fato, problemas que podem
estar centrados na criança”, no entanto, ele acredita que estes “seguramente, devem existir em
número muito inferior àquele que comumente imaginado no meio educacional quando se
pensa em justificar o chamado ‘fracasso escolar’”.
Para Zorzi (1998, p. 17), os métodos que são comumente empregados para a
concretização da alfabetização, trazem como pressuposto de que “escrever bem é escrever
ortograficamente certo”. Devido a isso, os métodos desenvolvidos na escola visam
basicamente conter os erros que possam surgir nas escritas das crianças. Assim como
Carraher (1986), Zorzi (1998, p. 22) comunga da idéia de que “dominar a escrita não se limita
a saber escrever palavras corretamente”. Para este autor, em concordância com o pensamento
de Varlota (1990), a ortografia se constitui em um dos vários elementos que compõem um
texto, não sendo o mais importante a ser observado.
Zorzi (1998, p. 23) considera que “aprender a escrever implica compreender os
diferentes usos que as pessoas fazem da escrita, que não se reduzem aos usos que a escola faz
ao solicitar cópias, ditados, completar frases, redações, leitura de textos em voz alta e assim
por diante”.
O que acontece na escola, de acordo com Zorzi (1998, p. 22) é que “simula-se o uso
da escrita com o objetivo de exercitá-la para que seja usada um dia, no futuro” e, com isso, “o
ensino da escrita acaba se transformando em uma repetição sem fim de atividades com
fragmentos de linguagem que não levam em consideração a condição de falante que o aluno já
possui”.
Zorzi (op.cit., p. 24) assegura que não se dá para resolver os erros ortográficos de
forma isolada, mas é necessário que a criança “os compreenda no contexto social da escrita”,
e, embora a aprendizagem não esteja reduzida ao domínio da ortografia, o autor compreende a
importância existente no entendimento da apreensão da escrita para a alfabetização. Por isso,
seu estudo procura visualizar as trajetórias dos erros produzidos pelas crianças, analisando sua
apropriação do sistema ortográfico para melhor criar situações de facilitação da
aprendizagem.
Para isto, Zorzi (1998), fez sua investigação com composições textuais de 514
estudantes e encontrou 21.196 formas de escrever que divergiram da norma ortográfica
vigente. Classificou esses erros ou alterações ortográficas em uma das dez novas categorias
propostas por ele a partir de um estudo comparativo dos erros propostos por Cagliari (1989) e
Carraher (1986). Ambos, entretanto, condescendem com a mesma linha de pensamento e
consideram que os erros tenham como uma de suas causas a interferência da fala. Este
discurso está também presente nas falas de professores que tem essa mesma concepção
alojada em suas mentes e focalizam os erros num processo de oral = escrito, ou seja, explicam
os erros a partir da concepção de interferência da fala na composição escrita.
Acreditamos, assim como Calil et al (2006, p. 74 ), que a despeito de haver distinta
maneira de análise e classificação “de tais erros, estes trabalhos têm um mesmo denominador
comum: assumem que o sujeito estabelece na escrita uma relação que envolve a identificação
de fonemas com determinados grafemas que possam representá-los”. Em relação a esse fato
recorremos também a Perroni (1996, p.23) quando afirma que “as categorias que emergem
post-priori dos dados de um determinado investigador podem ser as mesmas, talvez nomeadas
diferentemente por outro investigador”.
Zorzi, assim como Carraher e Cagliari, aponta categorias de erros que apresentam
uma estrita relação com som/grafema, nomeando-as com nomes diferentes, mas no final tem
semelhanças contundentes. Observemos o quadro a seguir:
Quadro 02 - Categorias empregadas na classificação dos erros ortográficos
Categorias empregadas na classificação dos erros ortográficos
Cagliari – 1989
Carraher – 1986
Zorzi (1997)
Transcrição fonética
Uso indevido de letras
Transcrição da fala
Erros ligados à origem das
Apoio na oralidade
Representações múltiplas
Hipercorreção
Modificação da estrutura
palavras
Supercorreção
Erros nas sílabas de estruturas
Generalização de regras
Omissão de letras
segmental: trocas, supressão,
complexas
acréscimo e inversão
Juntura intervocabular e
Ausência de segmentação e
Junção/separação não
segmentação
Forma morfológica diferente
segmentação indevida
Erros por considerar as regras
convencional de palavras
Confusão entre as terminações
Forma estranha de traçar as
contextuais
Erros por ausência de
am x ao
Trocas surdas/sonoras
letras
Uso indevido de maiúsculas e
nasalização
Erros por trocas de letras
Acréscimo de letras
minúsculas
Acentos gráficos
Sinais de pontuação
Problemas sintáticos
Letras parecidas
Inversão de letras
Outras trocas
Fonte: ZORZI, 1998, p. 41
Neste quadro é possível identificar 11 categorias propostas por Cagliari e Zorzi, ao
passo que Carraher propôs 7, ausentando totalmente a aparição dos erros inexplicáveis ou
singulares em suas pesquisas. Cagliari (1986) chama os erros inexplicáveis como de
problemas sintáticos; Zorzi (1998) considera como outras trocas. A palavra outras, porém,
não define que erros são esses, mas passa a idéia dos mesmos serem irrelevantes na
investigação realizada pelo autor.
Vejamos então um breve resumo das categorias apresentadas por Zorzi (1998)
discorridas abaixo:
1.
Possibilidade de representações múltiplas – este se dá porque um mesmo som pode
ser representado por várias letras ou, então, vários sons podem representar uma mesma letra;
segundo Zorzi (1998) isto gera uma confusão para a criança na hora de grafar uma palavra
que esteja nessa categoria por não ter uma forma fixa que a referende. Para entendê-la melhor,
observemos o esboço abaixo que foi organizado a partir do estudo deste autor:
Quadro 03 – Possibilidades de representação múltipla5
Fonemas
/s/
Letras que podem ser usadas na escrita
s – pasta, sentindo; ss – travesseiro;
sc – descer; sç – cresceu;
c – cimento; xc – caçador ;
x – explicação; z – nariz.
Possíveis erros envolvidos
na grafia do fonema
paxta; centindo; traveseiro ;
deser;
creseu;
simento;casador; esplicação;
naris
/z/
z – zero; s – presente;
x – exemplo
sero ; prezente ; esemplo
/∫/
x – bruxa ; ch – manchar
brucha; manxar
/ʒ/
J – tijolo ; g – gelatina
tigolo; jelatina
/k/
q – quarto; c - caçador;
k – Kátia
cuarto; qasador; Cátia
parede; churrasco
parrede; churasco
/ χ / - usado em posição
inicial de sílaba e
/ ɾ / - usado no interior e
entre vogais ou final de
sílaba.
g / j - já; jornal; sangue
/ʒ/
/g/
Obs.: quando a letra g é acompanhada de e e i o
som utilizado é / ʒ /;
Quando a letra g vem antecedida por vogais
(a,o,u) ou nas sílabas gue, gui, o som que
prevalece é de / g /.
gá
gornal
sange
c / qu – quero
/k/
cero
Ob.: a letra c pode representar o fonema / k / e o
fonema / s /, o que segundo Zorzi (1998)
condiciona a criança a usar o c no lugar de k e
qu;
som nasal
vogal + m
combinar
conbinar
vogal + n
Conselho
Comselho
Fonte: ZORZI, 1998, p.34, 35 e 36
2.
Apoio na oralidade - existe uma relação entre letras e sons, no qual várias palavras
da Língua Portuguesa são escritas da mesma forma que são pronunciadas. Para Zorzi (1998,
p. 37), “o padrão acústico-articulatório não coincide com o padrão visual ou ortográfico, ou
5
Para a organização desse quadro foram as informações e exemplos contidos no livro referendado .
seja, nem sempre se escreve da maneira como se fala”. Suas observações foram feitas nos
usos das letras l e u na posição de semivogal /w/, aparecendo em maior escala o uso do u em
substituição ao l na escrita. Este fato acarreta nas crianças, segundo Zorzi (1998, p. 37 – grifos
do autor), o emprego da “letra u para escrever a semivogal, tomando como possível referência
suas características fonéticas que a aproximam da vogal /u/”. Exemplos deste tipo de erro são:
cauçada em vez de calçada; anzou em vez de anzol. O autor identificou ainda que em séries
mais avançadas aconteça o contrário, o uso do l no lugar do u, como no caso da palavra falou
ser escrita como falou.
3.
Omissões de letras – esta acontece quando a escrita de uma palavra vem omitindo
uma ou mais letras, sendo grafada de maneira incompleta. Exemplos: cheiro – chero; tanque –
taque; compra – compa.
4.
Junção-separação não convencional – a não clareza do limite entre uma palavra e
outra quando são enunciadas propiciam a não segmentação e alterações na maneira de
escrevê-las pelas crianças, o que resulta numa união de palavras ou um fracionamento do
quantitativo de sílabas. Exemplos: às pressas – aspressas; daquele – da quele.
5.
Confusão am x ão – a pronúncia dessas duas terminações são foneticamente
parecidas, sendo a representação desse ditongo nasal / ãw /. Segundo Zorzi (1998, p. 38), “a
diferença não é fonética, mas, sim, em relação à posição da sílaba dentro da palavra –
falaram é uma palavra paroxítona enquanto falarão é oxítona”. Dessa forma, a criança
quando toma como base a pronúncia para a escrita poderão surgir erros onde o am poder ser
trocado por ão. Exemplos: falaram – falarão; cairão – caíram.
6.
Generalização – princípios apreendidos da escrita convencional pela criança
passam a ser estendidos a outras palavras que não se encaixam na regra. A palavra menino é
escrita com a letra e na primeira sílaba e com o na última sílaba, porém na pronúncia ouve-se
o som do i e u, respectivamente (mininu). Assim, palavras em que não ocorre esse fato como
em fugiu em que as letras u e i são pronunciadas, escreve-se fugio, por generalizar a
convenção.
7.
Trocas surdas / sonoras – nesse caso ocorre uma substituição de um conjunto de
palavras por outros que tenham em comum a representação fonêmica distintiva pelo traço
sonoro. Segundo Zorzi (1998, p. 40) “Os traços de sonoridade corresponde à única distinção
entre os pares destes dois conjuntos de fonemas /p / x / b / ; /t / x /d /; / k / x / g / ; /f/ x /
v / ; / s/ x /z / e /∫/ x / ʒ /.” Como exemplo dessa categoria se teria a palavra vome no lugar
de fome.
8.
Acréscimo de letras – nesta categoria a criança acrescenta uma ou mais letras a
palavras que convencionalmente não a possuem em sua escrita. Exemplo disto é manchugar,
no lugar de machucar.
9.
Letras parecidas – são incluídos nessa categoria os casos em que as crianças usam
letras incorretas de forma errônea para escrever as palavras, embora as letras por elas
utilizadas tenham alguma semelhança com a que deveria ser usada. É o caso de caminho em
que a criança escreveu caminlo.
10.
Inversões – nesse caso, as letras nas palavras escritas pelas crianças aparecem em
posição diferente da que deveria ocupar na sílaba, como no exemplo da palavra pobre que a
criança escreveu pober.
11.
Outras alterações – se encaixam aqui os erros que ocorreram de forma particular a
uma determinada criança e que não foram vistas nas demais escritas infantis e nem
partilhavam semelhanças com as categorias anteriormente expostas, sendo assim classificados
como outras. Exemplo dado por Zorzi (1998) é a palavra sangue, em que a criança escreveu
jangue.
Observemos, então, o quadro expositivo por este autor com as outras alterações
encontradas na sua pesquisa.
Jornal
Ninguém
Cresceu
Mangueira
Ninguém
Contrário
Tempo
Labirintos
Fraquinho
Rodolfo
Rodolfo
Cachorro
Sangue
Feitiço
Viajarão
Bruxa
Palpite
Selva
Emagreceu
Sornão
Cebola
Ninhem
Sozinho
Dreceu
Macarrão
Mahera
Trabalhar
Ninhe
Bolo
com tranho
Cheinha
Pempo
Já
Britos
Sardento
Naaquinho
Triste
Rodouso
Combinar
Rodanrio
Vez
Chachorro
Fraquinho
Jangue
Aprendeu
Feiticho
Bochechuda
Viasrarro
Vezes
Gurcha
Preciso
Pampite
Correndo
Seiva
Estava
Ematreceu
Meu
Quadro 04 - Amostra de erros
Fonte: ZORZI, 1998, p. 41
Cemola
Sovinho
Macacão
Tramalha
Molo
Seinha
Va
Chargento
Cristi
Conrrinar
Zez
Frazinho
Aprendão
Buchesuda
Vevis
Parcicho
Coresdo
Estado
Mehor
Zorzi (1998, p. 82) chamou de outras alterações os erros que não se encaixaram em
nenhuma das dez categorias por ele propostas, pois como ele mesmo salienta, esses erros
escaparam “da possibilidade de compreensão do pesquisador”, não ocupando, dessa forma,
um papel relevante em sua pesquisa, por considerar também que “o baixo número de alunos
produzindo alterações deste tipo, assim, como a baixa média de erros para cada um dos
alunos, revela que poucos foram os erros que não puderam ser compreendidos, ou seja,
classificados dentro da categoria já analisada”. Seguindo seu pensamento, não haveria assim
necessidade de avançar nesses erros “incompreensíveis”, já que a maior parte dos erros se
agrupou em algumas de suas categorias, sendo irrelevantes para a pesquisa.
A décima primeira categoria foi utilizada por Zorzi (1998) numa busca de tentar
explicar o descarte de erros que atingiam um quantitativo minoritário na escrita de algumas
crianças, e, que para ele não eram passíveis de explicação, pois fugiam dos padrões que
estabelecera nas dez categorias que propôs e que foram encontradas na maioria dos
participantes de sua investigação. Para procurar explicar esse fato Zorzi (op. cit., p.82),
declara:
O baixo número de alunos produzindo alterações deste tipo, assim, como a baixa
média de erros para cada um dos alunos, revela que poucos foram os erros que não
puderam ser mais adequadamente compreendidos, ou seja, classificados dentro das
categorias já analisadas. Tais alterações corresponderam a ocorrências pouco
comuns, às vezes revelando algum engano momentâneo, ou má compreensão de
alguma palavra ditada e, outras vezes, provavelmente, alguma forma de a criança
estar hipotetizando a ortografia, mas que escapou da possibilidade de compreensão
do pesquisador.
Percebemos, assim, que os tipos de erros, aparentemente inexplicáveis, não puderam
ser compreendidos pela teoria descritiva, sendo deixados sem explicação, como os intitulados
de outros por Zorzi (1998). Mas será que esses outros ‘erros’ não podem ser realmente
compreendidos e não tem nenhum lugar em uma pesquisa de aquisição da linguagem escrita?
Que erro é esse tão infrequente que não se encaixa em nenhuma categoria?
De acordo com Lopes (2005, p. 45),
Um amplo conjunto de dados (formas escritas incorretas), coletados em situações
reais de produção de texto, é obtido por esses pesquisadores que adotam como
procedimento metodológico de seleção basicamente três critérios: a) regularidade:
erros que sistematicamente são produzidos pelos alunos; b) freqüência: erros que
tenham um alto índice de manifestação; e c) previsibilidade: erros que
provavelmente os alunos produzem naquela fase de desenvolvimento. As teorias
sobre os processos de aquisição ortográfica elaboradas por esses critérios de seleção
de dados têm por base a quantificação e excluem aqueles erros que estatisticamente
não são relevantes, isto é, aqueles erros produzidos pelos alunos que escapam às
possibilidades de categorização, quais sejam, aqueles erros que não são regulares,
nem sistemáticos.
A coleta dos dados realizada pelos autores filiados a essa concepção é feita,
geralmente, em situações experimentais, adotando como metodologia de seleção os critérios
de regularidade, frequência e previsibilidade. Nessa forma, há uma exclusão daqueles erros,
que de acordo com os dados estatísticos, não são tão relevantes para suas análises por não se
enquadrarem nesses critérios, apresentando, portanto, baixa frequência, não serem regulares e
nem possíveis de categorização. Isto vem revelar que o erro acaba por ser descartado por não
preencher a esses critérios, sendo excluído por escapar a possibilidade do pesquisador em
explicá-lo por outro viés que não o categórico e homogeinizador em que se encontram a
maioria dos sujeitos envolvidos em sua pesquisa.
O próprio autor descaracteriza as categorias como fonte de explicação à medida que
declara que os outros erros não podem ser categorizados; e, realmente, a pura descrição
acarreta a exclusão dos erros, justamente por não serem vistos sob o olhar do funcionamento
da língua e de suas possibilidades.
O que vemos nas investigações descritivas é uma delimitação corroborada por esse
procedimento metodológico ao usarem como base fundamental a quantificação associada a
uma procura pelo regular. Esse tipo de pesquisa é muito importante, porém emergem questões
que a própria categorização não tem como dar conta, por se tratar de uma singularidade, de
uma idiossincrasia que deve ser vista numa perspectiva do funcionamento linguístico.
Desta forma, a teoria postulada por Zorzi (1998) contribui nesta pesquisa,
principalmente no que diz respeito à descrição explicativa dos erros do sistema ortográfico,
porém, não responde às questões finais propostas por esta investigação.
1.2 A relação do erro ortográfico com os processos fonológicos
Questões relacionadas à escrita e a oralidade tem ocupado lugar de destaque nas
discussões de estudos relacionados à aquisição da linguagem. Dentro do universo docente
ainda há uma grande quantidade de professores que referenda os erros ortográficos como
sendo causados por uma interferência da fala na escrita.
Pensando nessa questão resolvemos trazer para a discussão os processos fonológicos,
a fim de evidenciar que seus estudos contemplam marcas semelhantes às concebidas pelas
categorias dos erros ortográficos, uma vez que destacam uma ordem gerativa a uma classe de
pessoas com idênticos problemas na produção de sons. Isso implica dizer que os erros que não
se identificam com a coletividade são por esses estudos descartados e reduzidos a apenas mais
uma quantificação sem explicação.
Assim como as descrições categorizam o erro, os processos fonológicos também o
fazem, só que dentro de classificações comuns a questões fonológicas. Assim, atribuem que a
criança ou indivíduo substitui um som ou sequência do mesmo por outro alternativo que
apresenta uma menor dificuldade para sua produção, o que permite uma facilitação na
produção de sons pelas crianças, que ao se verem em ‘apuros’ na produção de um som difícil
criam estratégias para sua produção; estratégias essas que incluem o apagamento ou troca de
um som (letra) por outro. Dessa forma, de acordo com Othero (2005), o pequeno falante não
deixa de produzir uma palavra que contenha um som difícil, mas cria estratégias alternativas
para expressá-la. Segundo o referido autor, as tentativas de produção de palavras pelas
crianças começam por volta de um ano de idade, quando tentam reproduzir as palavras que
ouvem do adulto, procurando adaptá-las para aproximar-se da fala adulta. Nessas tentativas
produz erros, pois está criando estratégias para produzir alguns tipos de sons, evidenciando,
assim, sua consciência fonológica.
De acordo com o Othero (2005), os números de processos fonológicos podem variar
entre 8 e 42. Na Língua Portuguesa, o total de 13 processos foi detectado como mais comuns
pelo autor. Vejamos alguns desses processos que também se assemelham as descrições das
categorias do erro ortográfico:
Processos fonológicos mais comuns em aquisição (sem desvios):
Vejamos6 alguns exemplos de estratégias utilizadas pelas crianças para produzirem
um som difícil:
Quadro 05 – Exemplos de estratégias utilizadas pelas crianças na produção de um som difícil
A- simples apagamento da líquida não-lateral
B – semivocalização
cabrita – [ka.'pi.ta]
agora – [a.'kɔ.ya] -
C – substituição dessa líquida pela líquida lateral
horas – ['ɔ. las] Fonte: OTHERO, 2005
[r] > ø
[r] > [y]
[r] > [l]
Agora observemos alguns exemplos de um processo fonológico que atua na produção
de uma sequência de sons:
Encontro Consonantal – representa uma dificuldade grande para as crianças que se
encontram no início de estágio da fala. Dessa forma, os pequeninos, na produção da fala,
tendem a reduzir o encontro consonantal.
Quadro 06 – Exemplo de um processo fonológico que atua na produção de sequência de sons
cobra – ['kɔ.ba]
placa – ['pa.ka]
[ra] > [ba]
apaga o r (líquida não-lateral)
[pla] > [pa]
apaga o l (líquida lateral)
Fonte: OTHERO, 2005
De acordo com Othero (2005), as tentativas de produção das crianças em trocar uma
letra por outra caracteriza que há um sistema fonológico que está subjacente ao seu
entendimento, seguindo uma coerência sistemática que foi formulada na mente de cada
falante. Este pensamento margeia grande parte dos teóricos descritivos do erro, seja em
relação à fala ou a escrita.
Tipos de processos fonológicos
Processos7 fonológicos mais comuns em aquisição sem desvios:
A - Processos de estruturação silábica
6
Salientamos que os exemplos citados sobre os processos fonológicos foram retirados de OTHERO, Gabriel de
Ávila. Processos fonológicos na aquisição da linguagem pela criança. ReVEL, v.3, n. 5, 2005. Também pode
ser encontrado no site (www.revel.inf.br).
7
Salientamos que os exemplos citados sobre os processos fonológicos foram retirados de OTHERO, Gabriel de
Ávila. Processos fonológicos na aquisição da linguagem pela criança. ReVEL, v.3, n. 5, 2005. Também pode
ser encontrado no site (www.revel.inf.br).
A) Redução de encontro consonantal
cobra – ['kɔ.ba] - [br] > [b]
Fruta – ['fu.ta] – [fr] > [f]
B)Apagamento de sílaba átona
bicicleta – [bi.'kε.ta] – apagamento de sílaba pré-tônica – [si] > ø
fósforo – ['fɔs.u] – apagamento de sílaba pós-tônica – [Fo] > ø
C) Apagamento de fricativa final - /s/ no final de sílaba dentro da palavra (fsdp) ou
no final de sílaba fora da palavra (fsfp).
Estrela – [i. 'te.la] - [s] > ø
Floresta – [Fo. 'rε. ta] - [s] > ø
D) Apagamento de líquida final – lateral ou não-lateral em posição final de sílaba
dentro da palavra ou em final de palavra
Martelo – [ma. 'tε.lu] –
[r] > ø
porta – [pɔ'.ta] [r] > ø
E) Apagamento de líquida intervocálica – consoante líquida- lateral ou não-lateral –
ocorrendo entre 2 vogais.
Borboleta – [bo. 'e.ta] - [l] > ø
Velinha – [vε. 'i.րa] – [l] > ø
F) Apagamento de líquida inicial – consoante líquida – lateral ou não lateral.
rabo – ['a.bu] – [r] > ø
livro – ['i.vu] - [r] > ø
G) Metátese – reordenação numa mesma palavra dos sons, onde o fone troca de lugar.
trator – [tay. 'toy] [tra] > [tar] / [r] > [y]
H) Epêntese (suarabácti)– introdução de uma vogal entre duas consoantes.
brabo –[ba. 'ra.bu] – [bra] >[ba.ra]
gruda – [gu. 'ru.da] – [gru] > [gu.ru]
B - Processos de substituição
A) Desonorização da obstruinte – produção das oclusivas, fricativas ou africada
sonoras ou surdas.
zebra – ['se.pa] [z] > [s] / [b] > [p]
gato – ['ka.tu] – [g] > [k]
B)Anteriorização – troca de uma consoante palatal ou velar por uma alveolar ou labial
cachorro – [ka.'so.ru] - [∫] > [s]
Chinelo – [si.'nε.lu] – [∫] > [s]
C) Substituição de líquida- troca de uma consoante líquida (lateral ou não) por outra
líquida.
Armário – [a.'ma.lyu] - [r] > [l]
dirigindo – [dʒi.li.'ʓin.du] - [r] > [l]
D) Semivocalização de líquida – troca de uma consoante líquida (lateral ou não) por
uma semivogal.
[r] > [y] comer – [ko.'mey]
[r] >[y] pular – [pu.'lay]
E) Plosivização – é a troca de uma consoante africada ou fricativa por uma plosiva
(oclusiva).
vaca – ['ba.ka]
[v] > [b]
saia – ['taya]
[s ] > [t]
F) Posteriorização – troca de uma consoante labiodental, dental ou alveolar por uma
palato-alveolar ou velar.
sol ['∫ כw]
[s] – [∫]
Tesoura
[t∫i.'ʒo.ra]
[z] > [ʒ]
Othero (2005) acredita que a criança ao pronunciar uma letra que não consegue falar,
incorre em tentativas constantes de construção de palavras que acabam produzindo um erro,
por não se adequar a norma estabelecida fonologicamente. A ocorrência dos processos
fonológicos, segundo o autor, costuma acontecer entre os 12 meses e 48 meses, podendo,
contudo, haver seu prolongamento até os 4 anos. Nisto vemos traços da psicologia cognitiva
que delimita estágios de ocorrência dos fatos e não vê, como postula Lemos (1997), a fala da
criança dentro de um funcionamento linguístico e de suas possibilidades de enunciação.
Os estudiosos Ferrante, Borsel e Pereira 8 (2009) fizeram uma pesquisa com a
participação de 240 crianças com faixa etária de três a oito anos, sendo do sexo feminino e
masculino, a fim de verificar a relação dos processos fonológicos em crianças com
desenvolvimento fonológico normal presentes em cada uma dessas etapas etárias. Concluíram
que foi evidenciada maior dificuldade por essas crianças nas estruturas silábicas mais
complexas e nas produções das líquidas, como o r e l presentes nos encontros consonantais.
Constataram que dos três aos cinco anos as estratégias mais utilizadas por essas crianças
foram a de redução do encontro consonantal, apagamento de consoante que aparece no final
de uma sílaba e lateralização; dos seis aos sete anos o que ficou mais evidenciado foi a
metátese, sendo que na faixa dos seis anos houve também a aparição da redução de encontro
consonantal e, na de sete anos, houve a presença da epêntese em maior grau, e, em menor
grau o que já havia sido evidenciado na faixa dos seis anos. Contudo, os pesquisadores
perceberam que houve uma diminuição no uso dos processos fonológicos à medida que as
crianças iam crescendo, não sendo constatadas também na pesquisa incidências significativas
de diferenciações quanto à produção de processo fonológico em relação aos sexos dos
envolvidos.
Com isso, queremos apenas mostrar que esses estudos acabam por estabelecer
estágios de aparecimento de processos fonológicos em idades previamente estabelecidas, e
assim, como as descritivas categorias dos erros ortográficos, classificam os erros produzidos
na fala da criança, sem situá-los dentro do funcionamento linguístico-discursivo.
Vale salientar que alguns erros fonológicos apresentados da teoria de Othero (2005)
são facilmente identificados em algumas das dez categorias de alterações de erros de Zorzi
(1998), apenas recebendo outra nomenclatura, no qual algumas serão expostas em um quadro
comparativo a seguir:
8
O artigo na íntegra pode ser visto pelo site: http://www.scielo.br/pdf/rsbf/v14n1/08.pdf - acessado em 15-092010.
Quadro 07 - Relação de algumas categorias dos processos fonológicos e do sistema ortográfico de erros
Othero (2005)
Morais (1998)
Zorzi (1998)
Redução de encontro
consonantal – ex.: coba ['kɔ.ba]
Não define uma categorização
para esse tipo de erro.
Omissões de letras – ex.: compa
A categoria de erros ortográficos que mais se aproximou da categoria citada de erros fonológicos foi a de
omissões de letras. Pode ser observado que em ambas as palavras o r do encontro consonantal foi
suprimido. Embora as omissões de letras abranjam não só os encontros consonantais, é possível aferir
que em ambas ocorre um processo parecido de supressão da líquida não-lateral r.
Metátese – ex.: tartor (trator) Não define uma categorização
Inversões – ex.: pober (pobre)
para esse tipo de erro.
[tay. 'toy]
Em ambas as categorias há uma inversão da posição da letra r. É curioso notar que tanto no exemplo
dado por Othero quanto em um dos exemplos apresentados por Zorzi as palavras possuem encontro
consonantal e há uma troca da posição da vogal com a posição da consoante que produz o encontro
consonantal, indo este posicionar-se no final da sílaba em que ocorre essa metátese ou inversão.
Desonorização da obstruinte –
Não define uma categorização
Trocas de surdas / sonoras – Ex.:
para esse tipo de erro.
Ex.: sepa (zebra) – [se’.pa]
vome (fome)
Plosiva
-
Ex.:
baca
(vaca)
['ba.ka]
taia ( vaia) –
[ta’.ya]
As duas categorias fonológicas têm semelhança com a categoria de alterações dos erros pelo fato de
apresentarem a troca de letras cujos sons são surdos por sonoros ou o seu contrário. Vale lembrar que o
b, o z e o v são consoantes vozeadas, enquanto que o s, o f e o t são desvozeadas. A proximidade
articulatória existente entre os pares fonêmicos é um propiciador para que essas substituições na fala e na
escrita das letras ocorram.
Fonte: dados da pesquisa
Fontella (2001) em seus estudos procurou diferenciar erros fonológicos e
ortográficos destacados na escrita. Notamos que, ao fazer essa diferenciação, a referida autora
considera os erros fonológicos como os desvios na escrita que resultam em apagamento 9,
aumento ou troca de grafemas que altera o valor dos signos linguísticos. Ao comparar essa
definição com os ditos acima sobre os processos fonológicos, percebemos que estabelecem na
escrita uma relação com a fala, ao ser dado o mesmo tratamento explicativo que compromete
e altera o valor do signo da língua por apagar, aumentar ou trocar uma letra. Os erros
ortográficos, segundo Fontella (op. cit.), por conseguinte, são os desvios da escrita que
versam no uso não adequado de um grafema que rompe com a convenção gráfica constituída
oficialmente. Isto porque existem fonemas que são representados por mais de um grafema na
escrita e ainda existe um grafema que pode representar mais de um fonema. Seriam exemplos
desse caso a representação dos fonemas /s/, /z/, /x/, /sh/, /j/, /k/, /ks/. Nesta questão há
9
Interessante que Fabre (1987) usa termos semelhantes para classificar os tipos de rasura existentes nas
composições textuais.
problemas que são identificados graficamente nas realizações de produção, devido à estrutura
da língua abrir brechas para o uso de letras que podem representar mais de um fonema ou
ainda um grafema representar mais de um fonema na escrita. Este fato gera um rompimento
com a estrutura convencional oficial que referenda a ortografia, uma vez que permite esses
usos, mas desconsidera sua aparição material que difere da exigida convencionalmente para
os fatos ortográficos. Vejamos um organograma para melhor explicitar essa questão:
FONTELLA
DESVIOS
ERROS
FONOLÓGICOS NA ESCRITA
ERROS
ORTOGRÁFICOS
- DA ESCRITA
apagamento-troca- aumento de
letras
inadequação do uso da letra
convencionada
OTHERO
PROCESSOS FONOLÓGICOS
SEM DESVIOS
Apagamentos ou
trocas de som
ESTRATÉGIAS
Não desconsideramos de forma alguma a contribuição dos estudos dos processos
fonológicos de Othero (2005) e do sistema ortográfico propostos por Morais (1998) e Zorzi
(1998) para o entendimento do erro e a intervenção do professor nas dificuldades fonológicas
e/ou ortográficas em textos de alunos em que sejam deflagradas ocorrências possíveis de uma
interferência coletiva. Contudo, sua parcela de apoio a este trabalho foi o de categorizar os
erros ortográficos presentes nas produções textuais, pois seus estudos não respondem as
questões impostas por esta pesquisa, que irá além da simples categorização do que podem ser
previsível, frequente e regularizável. Nosso estudo aporta, justamente, o que é singular na
língua, visível dentro do próprio funcionamento linguístico e evidenciando, ainda, rastros de
uma singularidade do sujeito compositor.
Assim, o erro singular constitui-se para nós como uma oportunidade ímpar de
investigação que, na verdade, manifesta e revela uma singularidade do sujeito que está
inserindo-se à estrutura e possibilidades pela língua exigida.
1.3 Estudos linguísticos-discursivos sobre o erro ortográfico
Queremos destacar aqui alguns estudos que têm se debruçado atualmente na
compreensão do erro ortográfico, tendo em vista a inserção do sujeito no funcionamento da
língua. Dentre eles, podemos citar Carvalho (1995), Calil (2006, 2007, 2008), Lopes e Calil
(2002), Lopes (2005) e Felipeto (2007). Em suas pesquisas, desenvolvidas a partir dos
pressupostos de Lemos (1995, 1996, 1997, 2000, 2002), esses autores enfocam a
singularidade do sujeito e a imprevisibilidade do erro, situando a criança como autora de suas
produções.
Seus estudos têm contribuído para o entendimento de que, ao errar, o falante/escritor
está submetido ao funcionamento linguístico-gramatical e ortográfico da língua e, por isto,
nem sempre consciente desse controle.
Podemos visualizar este fato na estrutura silábica da Língua Portuguesa. Segundo
Faraco (2005) a sílaba possui nove possibilidades de estruturação, que serão expostas no
quadro10 a seguir:
Quadro 08 - Possibilidades de estruturação silábica
1.
CV
Padrões Silábicos
pa – to
2.
V
u- va
3.
CCV
gru – ta
4.
VC
as– tro
5.
CVC
pas – ta
6.
VCC
aus - tral
7.
CCVC
brus - co
8.
CVCC
bens
9.
CCVCC
trens
Fonte: FARACO, 2005, p. 61
As possibilidades apresentadas são as estruturas adequadas para a escrita. Quando a
criança escreve uma palavra dentro desses padrões, ainda que produza formas inabituais que
são consideradas como erros, isto significa que ela não foge às regras estabelecidas pelo
próprio sistema, mas, inconscientemente, procura submeter-se a ela.
10
Para a organização desse quadro foram utilizadas informações contidas no livro referendado. A sílaba em
negrito corresponde ao padrão silábico evidenciado.
Faraco (2005, p. 61) salienta que “na descrição dos padrões silábicos, as semivogais são representadas como
consoantes”. Por isto que austral se encontra no padrão silábico VCC (aus-tral).
Segundo Lopes e Calil (2002, p. 876), “isto indica que, de algum modo, o aluno está
dentro das possibilidades do sistema ortográfico da língua portuguesa, não produzindo formas
absolutamente aleatórias, mas, dentro deste sistema”. Erros realizados que seguem essa
estrutura estão dentro de um possível material e linguístico, levando-se em consideração as
probabilidades existentes e pertinentes ao normatizado. O que foge a estrutura estabelecida e
sua permissividade se consubstanciará em uma impossibilidade linguística, visto sua
inexistência linguística.
Em nossa visão, esse fator gera erros diferenciados e singulares que não podem ser
perdidos de vista pela busca das formas corretas. Descartar esse tipo de erro é desvincular a
relação entre o sujeito errante com o próprio funcionamento da língua. Analisados, os erros
singulares podem evidenciar que o escrevente não foge a estrutura promulgada pela norma
gramatical/ortográfica e linguística, como foi mostrado. Por isso, acreditamos que seu
descarte é uma expressão nítida da falta de informação sobre os processos de adequação do
aprendiz ao sistema linguístico.
Para Calil (2007, p. 74) os estudos vigentes sobre as categorias do erro ortográfico
trazem a concepção de sujeito que “estabelece na escrita uma relação que envolve a
identificação de fonemas com determinados grafemas que possam representá-los”. Essas
relações estabelecidas por essas teorias incorrem no mesmo pensamento de que o
funcionamento da escrita atrela-se a uma representação da fala em que o indivíduo analisa,
verbaliza e memoriza as convenções e regras ortográficas para ter integral domínio da escrita.
Mas como explicar o erro que torna a aparecer nos textos de alunos que “dominam” a regra?
Se erra, será que é ele quem domina a língua ou é ela que os captura para dentro de sua
estrutura? Por que o aluno continua a errar, se parece ter todas as ferramentas de regras
arquivadas na sua memória? São indagações que pretendemos responder ao longo deste
trabalho.
Segundo Carvalho (1995, p. 7 – grifos da autora) não importa o nome que se defina o
erro e o acerto, mas ambos
tem a ver com um juízo de conformidade a um determinado sistema linguístico, ou
mais especificamente, a um sistema de regras gramaticais enquanto que a verdade
VS falsidade tem a ver com um juízo de correspondência lógica, o qual engloba
noções como as de consistência, completude e decidibilidade.
Carvalho (1995, p. 11), afirma que “a totalidade é necessária para a apreensão do não
todo e, ao mesmo tempo, é negada por este”. De acordo ainda com a referida autora,
o não todo é condição do próprio todo. Neste sentido, esse outro lugar que é o lugar
de restrição do todo, não está fora do sistema, mas sim em seu interior, mesmo
configurando-se como aquilo que, não cabendo em seus moldes é condenado ao
estatuto de restos, ou resíduos e, portanto, submetido a um apagamento, a um
esquecimento (op. cit., p. 14).
Só é possível identificarmos o que a criança não sabe (falta de saber) pelo que já é do
seu conhecimento. Só é possível falar em erro, porque existe o acerto. Quando o erro aparece,
o saber fica pendurado, ou seja, por um instante é como se o correto não existisse. Há assim,
um encontro do saber e da falta (CARVALHO, 1995).
O erro está, assim, relacionado à concepção que se tem do sujeito 11. Ao acreditarmos
que detém a língua, como poderíamos explicar o erro preso num sujeito que deve saber ou que
sabe, mas que falha no seu alvo? Carvalho (1995) enfoca que, para Lacan, o que não se sabe é
onde tem base para residir o que se sabe. Assim, seria nas relações entre os significantes que
se constituiriam como o “lugar de não saber”. (op. cit., p. 2).
Todo saber traz um não saber, não havendo possibilidade de totalização em nenhuma
área. Para Carvalho (1995, p. 6 – grifos da autora) pode-se estender “a nossa clássica de
verdade para o problema do erro, pois ambos encontram no saber o mesmo fundamento
idealista”. As dicotomias existentes entre verdade x falsidade, acerto x erro estão ligadas a
questões que “mantêm entre si estreita relação”. No exemplo dado por Carvalho em “não veio
ninguém”, esta mensagem contém duas negações que preludem uma afirmação, uma verdade
dos dados, tratando-se, então, “de um exemplo dentre tantos outros em que a possibilidade
linguística suspende a inconsistência lógica”. (op. cit., p. 7).
Acreditamos que os vários conceitos de erro foram enraizados em concepções da
lógica, em que não poderia existir permissão para a entrada do erro, devendo-se sempre ter
uma resposta exata para as questões. Carvalho (1995, p.15) chama a essa verdade de uma
“ilusão da verdade implicada na totalidade”. Haveria, nesse sentido, apenas uma busca pelo
ideal da verdade, ainda que este não seja de todo alcançado. Essa totalidade se constitui no
que é regular da língua.
Segundo Felipeto (2007, p. 101), o conhecimento é projetado sobre o aluno pelo
investigador que privilegia uma escrita de acordo com essa regularidade, por este indicar uma
unidade. Dessa forma, “o erro regular seria, pois, o erro produtivo, na medida em que mostra
11
Neste trabalho assumimos o conceito de sujeito como aquele que não tem controle sobre a língua.
o conhecimento (a apreensão) de uma regra através da ultrageneralização, ou seja, a criança
estenderia este conhecimento para outros domínios lingüísticos”.
Há, assim, um efeito imaginário relacional entre o todo e o não todo, situando-o entre
sujeito e falante e entre o falante e o investigador. Segundo Lemos (1991), essa relação está
atrelada ao saber sobre a língua, abrangendo o saber total. Caso a criança não saiba, chegará
ao saber, estando neste ponto o implícito que de alguma forma aprenderá.
Baseada na teoria do valor de Saussure, de que o funcionamento da língua estaria
pautado sobre os eixos associativo e sintagmático e, por conseguinte, segue uma ordem
própria, Felipeto (2007, p. 102) enfatiza que o funcionamento “sendo alheio à vontade ou à
consciência individual, manifesta um saber que é próprio da língua”.
Nesse sentido não seria possível definir o funcionamento da língua “em termos de
conhecimento comum a todos os indivíduos” (FELIPETO, 2007, p. 102), não tendo
possibilidade de estes exercerem controle sobre a unidade da língua, já que esta, segundo
Saussure (2006), é fruto de um mecanismo não observável. Emerge, nesse aspecto, um sujeito
singular que produz um erro singular devido à possibilidade esquecida12 da língua.
De acordo com Lopes (2005), os erros que apresentam um caráter singular e que são
considerados irrelevantes pela categoria dos erros ortográficos por não se encaixarem em
nenhuma das explicações existentes, escapam do modo estabilizado e revelam, para a autora,
um sujeito que está inscrito num funcionamento próprio da ortografia e sob o resultado de
uma ordem linguística.
Vejamos no próximo capítulo estudos de alguns dos vários teóricos precursores dos
estudos linguísticos.
CAPÍTULO 2
________________________________________________
12
Possibilidade esquecida da língua é um termo da Psicanálise e significa estruturas subjacentes que estão
esquecidas, apagadas da consciência e que retornam em uma determinada situação.
2. TEÓRICOS DA LINGUAGEM
Vários investigadores de diferentes áreas do saber têm debruçado seu olhar de
pesquisador em um foco de estudo: a linguagem. Esta passa a ter destaque investigativo por
psicólogos, fonoaudiólogos, médicos, educadores e linguistas.
Diversos linguistas, com diferentes vertentes metodológicas, têm focalizado na
linguagem sua fonte de estudos. Dentre estes, destacamos Saussure (2006), Jakobson (1995),
Milner (1989) e Lemos (1997). Os estudos realizados sobre a linguagem sob o enfoque
desses quatro autores nos darão uma visão ampliada a respeito dos eixos desta área do saber
que facilitarão a compreensão das possibilidades dos erros singulares, abordados nesta
pesquisa, sob o olhar do funcionamento linguístico, cujas reflexões são significativas para o
entendimento da incursão do sujeito13 na língua14 e no seu funcionamento, os quais serão
expostos a seguir.
2.1 Saussure - as relações sintagmáticas e associativas
Saussure (2006), que é considerado o pai da linguística, postulou conceitos
metodológicos que alcançaram diferentes áreas do conhecimento, entusiasmando desde
linguistas a estudiosos e especialistas da área fonológica.
O ponto que eleva os estudos de Saussure remete-se a três cursos, por ele
ministrados, em três fases específicas de estudo, tendo sido iniciado em 1906, com término
em 1911, contendo, claro, intervalos intermitentes durante esse período. A partir desses
cursos, foi possível aos seus alunos selecionarem fragmentos de seus manuscritos 15, uma vez
que o referido autor guardava tudo que escrevia. Assim, organizaram os escritos de Saussure,
13
O entendimento de sujeito nesse trabalho é daquele que não tem controle sobre a língua e, assim como Calil e
Del Ré (2009, p. 1), “nossa reflexão filia-se a uma concepção de sujeito inscrito no funcionamento linguísticodiscursivo”.
14
A concepção de língua nessa pesquisa é por nós compreendida como heterogênea, visão esta adotada também
por Milner (1987).
15
Etimologicamente, manuscrito significava apenas algo escrito à mão. Após o século XVIII, essa conceituação
se estendeu para a primeira versão de um texto, a versão original de um escritor, não importando se foi
datilografado ou digitado e nem o objeto que foi utilizado para sua escrita, como caneta ou lápis ou outro
instrumento. O estatuto de manuscrito é dado pelo fato dele não ter sido ainda publicado (CALIL, 2008).
sendo estes lançados no livro intitulado ‘Curso de Linguística Geral’, que foi publicado em
1916, três anos após seu falecimento, que se deu em 1913.
Nesse livro, é possível visualizar a trajetória dos estudos de Saussure sobre as
relações linguísticas. Suas pesquisas nele contidas têm servido como relíquia para os
linguistas que estimam o trabalho desse renomado autor. Sua influência fora fortalecida e
contagiada no meio acadêmico após a Primeira Guerra Mundial, o que galgou a Paris, capital
da França, ser “reconhecida como um dos maiores centros da lingüística mundial” (MILNER,
2002, p.15). Não é de admirar que, no atual século, os estudos sobre as questões direcionadas
à linguagem tenham concentração nesse país, sendo vários os autores que se dispuseram em
aprofundar os estudos de Saussure, no qual destacamos Pétroff (2004), cujas pesquisas
também nos ajudarão à melhor entender a questão do sujeito social.
Há várias questões que subsidiam o pensamento saussuriano em relação à língua e o
sujeito. Dentre estes, assume um grau elevado de importância o valor linguístico. De acordo
com Pétroff16 (op. cit., p. 36), na concepção saussuriana “la langue est um systèma de
valeurs”17.
Neste ponto se encontram entrelaçadas questões importantíssimas para se entender as
variadas relações do sujeito com a língua dentro do funcionamento linguístico. Uma dessas
questões refere-se ao conceito de pensamento e som sustentado por Saussure (2006, p.130).
Este autor salienta que esses dois dados são vistos e trabalhados na Línguística num “terreno
limítrofe onde os elementos das duas ordens se combinam; esta combinação produz uma
forma, não uma substância”.
Dessa forma, Saussure (2006) nos passa justamente a idéia de que um elemento
reclama o outro, estando intrinsecamente unidos, sendo a língua vista como pensamento
organizado na parte fônica. Saussure (op. cit. p. 80) declara, assim, que “o signo lingüístico
une não uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”.
Contudo, o autor acredita numa arbitrariedade existente no “laço que une o
significante ao significado” (op. cit. p. 81), ou seja, o significante (imagem, som acústico) e o
significado (conceito, idéia) estariam, segundo esse princípio, em uma dessimetria, uma vez
que não existe relação entre o objeto e a palavra que a representa.
Um dos focos das pesquisas de Saussure se voltou, então, para saber como se faz
esse cruzamento entre o significado e o significante, pois esquadrinhava entender por que se
16
As traduções do francês no presente trabalho são de: GOMES, Diva Maria Moreira, professora de Língua
Francesa da Aliança Francesa de Maceió.
17
“A língua é um sistema de valores”.
usa uma palavra representativa de um objeto e não outra. Um exemplo utilizado por ele é a
forma significante árvore, em que a palavra em si não mantém nenhuma relação direta entre o
objeto e sua forma gráfica, sendo, até, escrita de forma diferente em outras línguas,
conservando apenas semelhança na significação. Vejamos o exemplo dado pelo próprio autor
(2006, p. 81):
“árvore”
arbor
arbor
Para Saussure (op. cit.) a relação entre significado e significante se constitui em um
arbítrio por serem utilizadas formas representativas gráficas em que seu uso já se cristalizou e,
por conseguinte, não há possibilidade de mudá-las, por estarem numa ordem estabelecida pelo
sistema. Essa arbitrariedade, de acordo com Saussure, é a ausência de qualquer relação
existente entre o significado e o significante, sendo, portanto, imotivado por não conter
nenhuma ligação estrutural entre ambos.
Na visão saussuriana, aceita também por nós, não é possível tratar significante e
significado separadamente, pois separados não há como se constituírem em signo linguístico.
Este é definido na relação entre um (significante) com o outro (significado) dentro de um
contexto linguístico. Para Saussure, o que definirá o signo linguístico é a articulação entre as
diferentes formas de escrever e não sua separação.
Pétroff (2004, p. 157) em relação à arbitrariedade nos apresenta que, embora, “le
signe est arbitraire, mais c’est précisément la limitation de l’arbitraire qui constitue la raison
même de l’exitence de tout système”18. Acrescenta ainda que “tout événement en modifiant
une valeur déclenche une autre façon de limiter l’arbitraire, c’est-à-dire provoque l’apparition
d’um autre systeme”19. Para este autor, esses pontos que vão reger a evolução do sistema.
Assim, a modificação do valor atua como uma forma de limitar a arbitrariedade, e
essa modificação se dá pelo próprio ser social que é quem coloca a língua para funcionar.
Nessa perspectiva, a ordem própria do sistema não existe em sua totalidade, já que por trás do
18
“O sinal é arbitrário, mas é precisamente a limitação do arbitrário que constitui a razão em si mesma da
existência de todo o sistema”.
19
“Todo acontecimento modificando um valor deslancha (provoca) uma outra maneira de limitar o arbitrário,
quer dizer provoca o aparecimento de um outro sistema”.
sistema estão os sujeitos (grupo linguístico) que organizam o enquadramento vocabular de
uma palavra, que ao ser interiorizada pelo indivíduo, expressará também um ato pessoal
vinculado a uma demanda social de uso. Dessa maneira, há uma correspondência entre o
social e o individual, esquematizado por Pétroff (2004, p. 138) da seguinte forma: “langue
sociale” y “individuelle”20. Assim, além de ato social, a língua corresponde também a um ato
individual. Sobre este ponto, o autor afirma que:
La langue est évidemment sociale, mais elle est nécessairement intériorisée par
chaque individu, et donc focément individuelle, (toute ce qui entre dans la langue,
c’est-à-dire dans la tetê). À l’inverse, la parole qui est l’acte personnel de chaque
individu est nécessairement um acte social puisqu’il répond à une damande sociale,
u besoin collectif. Le jeu de ce ui est social et individuel dans le langage est um fait
extrêmement complexe, puisque chaque entité est simultanément et
contradictoirement individuelle et sociale. (PÉTROFF, 2004, p. 138)21.
Saussure (2006, p. 83) declara que arbitrário “não deve dar a idéia de que o significado
depende da livre escolha do que fala”, pois “não está ao alcance do indivíduo trocar coisa
alguma num signo, uma vez que esteja ele estabelecido num grupo lingüístico”:
Não só os dois domínios ligados pelo fato lingüístico são confusos e amorfos como a
escolha que se decide por tal porção acústica para tal idéia é perfeitamente arbitrária.
[...] a arbitrariedade do signo nos faz compreender melhor por que o fato social
pode, por si só, criar um sistema lingüístico. A coletividade é necessária para
estabelecer os valores cuja única razão de ser está no uso e no consenso geral: o
indivíduo, por si só, é incapaz de fixar um que seja. [...] a idéia de valor, assim,
determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo
simplesmente como a união de certo som com um certo conceito. Defini-lo assim
seria isolá-lo do sistema do qual faz parte; seria acreditar que é possível começar
pelos termos e construir o sistema fazendo a soma deles, quando, pelo contrário,
cumpre partir da totalidade solidária para obter, por análise, os elementos que
encerra. (SAUSSURE, 2006, p. 132).
Saussure (2006) argumenta que o sujeito está assujeitado à língua, uma vez que
pertencente a massa social, não é consultado quanto à escolha do significante escolhido para
representar um conceito linguístico. É na verdade imposto, como diz Saussure, a receber uma
que seria “carta forçada” (2006, p. 85).
Assim, o significante varia de acordo com as várias línguas existentes, que são
determinadas pelas pessoas que compõem esse sistema, não sendo possibilitado ao indivíduo
20
“Língua social e (?) individual”
“A língua é evidentemente social, mas ela é necessariamente interiorizada por cada indivíduo, e, portanto
forçosamente individual, (tudo o que entra na língua, quer dizer na cabeça), inversamente, a palavra que é o ato
pessoal de cada indivíduo é necessariamente um ato social porque ele corresponde a uma demanda social ou uma
necessidade coletiva. O jogo do que é social e individual na língua é um fato extremamente complexo, porque
cada entidade é simultaneamente e contraditoriamente individual e social”.
21
alterar qualquer ponto do que já fora estabelecido; não é capaz ainda de a massa social
desempenhar qualquer soberania na modificação de uma palavra. Nisso se referenda o que o
autor chamou de imutabilidade da língua. Nessa perspectiva, a língua é produto de uma
herança de gerações que nos antecederam. Porém, segundo Saussure (2006, p. 91), “o tempo
altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal”.
Toute langue est le résultat d’une histoire, d’une aussi longue histoire que’on peut
l’imaginer em remontant le temps, mais c’est aussi ce qui se parle là, maintenant, et
lês sujets parlants sont em totale ignorance que tel ou tel mot pourrait être du latin deforme - (PÉTROFF, 2004, p. 74)22.
Saussure (2006, p. 92) acentua que a língua não pode ser modificada “como uma
simples convenção modificável conforme o arbítrio dos interessados, é a ação do tempo que
se combina com a da força social; fora do tempo, a realidade lingüística não é completa e
nenhuma conclusão se faz possível”. Nesse sentido, para Saussure, há a perda da liberdade da
língua.
A língua já não é agora livre, porque o tempo permitirá às formas sociais que atuam
sobre ela desenvolver seus efeitos, e chegar-se assim, ao princípio de continuidade,
que anula a liberdade. A continuidade, porém, implica necessariamente a alteração,
o deslocamento mais ou menos considerável das relações (SAUSSURE, 2006, p.
93).
Pétroff (2004, p. 27 e 30) acredita que “ll s’ agit d’une constante interaction dans lLe
Temps et à cause du Temps, entre um ordre existant et lês désordres qui spontanéament se
produisent”23. O tempo atua, assim, para o referido autor como “découvert dês processus
d’auto-organisation dês systêmes24”, no qual “le désordre est génêrateur d’um ordre”25.
Em relação à teoria do valor, Saussure (2006) advoga que existem dois princípios
paradoxais que a regem: dessemelhança e semelhança. Seria basicamente o que chamamos de
antônimos e sinônimos, que nesse caso, aparecem na língua justamente para limitar, como a
presença de sua própria arbitrariedade.
22
“Toda língua é o resultado de uma história, de uma tão longa história que se pode imaginá-la reportando o
tempo, mas é também o que se fala ali agora, e os sujeitos falantes estão em total ignorância que tal ou tal
palavra poderia ser latim deformado”.
23
“trata-se de uma constante interação no tempo e por causa do Tempo, entre uma ordem existente e as
desordens que espontaneamente se produzem”.
24
“descoberta dos processos de auto-organização dos sistemas”.
25
“ a desordem é geradora de uma ordem”.
Esses dois fatores são necessários para a existência de um valor. Destarte, para
determinar o que vale a moeda de cinco francos, cumpre saber: 1º que se pode trocála por uma quantidade determinada de uma coisa diferente, por exemplo, pão; 2º que
se pode compará-la com um valor semelhante do mesmo sistema, por exemplo uma
moeda de um franco, ou uma moeda de algum outro sistema (um dólar etc.). Do
mesmo modo, uma palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: uma idéia;
além disso, pode ser comprada com algo da mesma natureza: uma outra palavra. Seu
valor não estará então fixado, enquanto nos limitarmos a comprovar que pode ser
‘trocada’ por este ou aquele conceito, isto é, que tem esta ou aquela significação;
falta ainda compará-la com os valores semelhantes, com as palavras que se lhe
podem opor. Seu conteúdo só e verdadeiramente determinado pelo concurso do que
existe fora dela. Fazendo parte de um sistema, está revestida não só de uma
significação como também e, sobretudo, de um valor, e isso é coisa muito diferente.
(SAUSSURE, 2006, p. 134)
Saussure, dessa forma, em sua teoria do valor, ultrapassa a idéia inserida na
significação obtida de maneira isolada. Está nesse ponto concentradas as relações
estabelecidas na língua e que propiciam ao sujeito utilizar um universo de palavras em sua
escrita. Para Saussure (2006), o funcionamento da língua está assim pautado sobre dois eixos,
o qual nomeou de eixos da linguagem, associativo e sintagmático, utilizando-os para explicar
os processos mobilizatórios efetivados pelos sujeitos em suas composições. Esses dois eixos
são os que constituem de fato a teoria do valor postulado pelo referido autor. Para melhor
discernimento dessa questão, vejamos o esboço a seguir:
sintagmático
eixo associativo
(vertical)
eixo
(horizontal)
No associativo emergem formas significantes que são suscetíveis de associação. É
onde o estado latente está escondido, ausente, mas pode ser substituído nas séries associativas,
manifestando-se.
Nas relações sintagmáticas há uma relação com o que está na frente e o que está
atrás, determinando, assim, o sentido. Por exemplo, o sentido de manga vai depender do que
vem depois. A manga (pode ser a fruta ou uma parte de uma camisa ou blusa). O sentido para
esta palavra será resgatado em sua sequenciação. Vejamos um exemplo frasal de seus dois
tipos de uso:
Ex.: a) A manga caiu no chão. (Nesse caso, manga é a fruta).
b) A manga rasgou. (Refere-se à blusa).
No eixo horizontal, a frase, o texto tem um fim, um determinado número de palavras.
No vertical há uma infinidade de associações, pois formas significantes várias poderão ocupar
a posição espacial. Um exemplo dessa afirmativa é a palavra mato. Vejamos o esboço:
relação
associativa
M ATO
T OMA
M OTA
O TAM
relação sintagmática
M, A, T, e O não podem ocupar a mesma posição nas diferentes relações de
formação de palavras. A forma significante, dependendo da relação e associação do mesmo,
mudará o significado.
As relações estabelecidas nas formas significantes podem ter variadas semelhanças.
A palavra humana, por exemplo, pode ser estabelecida numa frase por relações distintas. Pode
estar ligada pelo radical (humana, humanidade), pelo sufixo (humana, bacana), nas
características da palavra (caridoso, bondoso, amoroso), entre outras.
Vejamos outro exemplo a partir do significante JORNAL, em que o l tem som de u;
já na forma JORNALISTA, o l tem o seu som original. Dependendo dessa relação entre os
eixos da linguagem (associativos e sintagmáticos) é que será possível determinar as diferentes
construções linguísticas.
Está nessa relação entre o todo conjectural o poder definir o
significante e o significado, como no caso das palavras exemplificadas acima. A significação
é refletida a cada vez que dizemos alguma coisa nessa articulação entre o fluxo do
pensamento e o fluxo dos sons, constituindo-se nesse entrelace os signos da língua, sendo as
semelhanças relacionais entre as formas significantes que compõem os textos, diversas.
O mérito das pesquisas de Saussure é enorme, pois foi a partir de seus estudos que
outros pesquisadores, como Jakobson e Lemos, puderam avançar nas questões linguísticas.
Saussure, ainda na presente atualidade tem suas pesquisas como alvo de estudo.
Jakobson, por exemplo, a partir do esboço sobre os eixos da linguagem propostos por
Saussure, propôs um estudo voltado para as relações existentes na fala dos afásicos,
afastando-se do estruturalismo e adentrando em aspectos oriundos do funcionamento da
linguagem, que será exposto no próximo tópico.
2.2 Jakobson – as relações metafóricas e metonímicas
Em seu livro intitulado “Linguística e Comunicação”, Jakobson (1995) faz um
apanhado de seus estudos sobre afasia26 e relaciona-os dentro do funcionamento da língua. É
um dos grandes investigadores desta questão e o primeiro a observá-la dentro da perspectiva
linguística (LANDI, 1997).
Para Jakobson, a afasia é um problema linguístico e como tal necessita de um
trabalho que envolva a participação de linguistas que conheçam o funcionamento e estrutura
da linguagem, a fim de melhor precisarem quais aspectos da linguagem são afetados.
Landi (1997, p. 93) ressalta que Jakobson interpreta a afasia de um ângulo singular,
fundamentando-a em dois pontos: paradigmático e sintagmático. Estes atingem “a
identificação de constituintes no que diz respeito às suas possibilidades substitutivas”.
Segundo Jakobson, a afasia é resultante da relação preeminente entre dois eixos, que
são o metafórico (seleção) e o metonímico (combinação). Nestes dois pontos é que queremos
enfocar o surgimento do erro singular, que é o foco de nosso trabalho.
As duas operações linguísticas, a seleção e a combinação, são fornecedoras aos
signos linguísticos de duas fontes condicionantes de possibilidades de interpretação, que seria
uma seleção relacionada ao código e uma combinação relacionada ao contexto. Vejamos o
esboço a seguir:
CÓDIGO
(PARADIGMÁTICO)
Relação interna
In absentia
26
CONTEXTO
(SINTAGMÁTICO)
Relação externa
In praesentia
Segundo o dicionário Aurélio (2004, p.26) afasia é a impossibilidade, por lesão cerebral, de expressão pela
escrita ou por sinais, ou de compreensão da fala ou da escrita.
Metáfora
Metonímia
Para Jakobson, o que compõe a mensagem está diretamente relacionado ao código,
por uma ligação interna, que ele chama de in absentia e relacionada ao contexto, ligação
externa, que ele nomeia de in praesentia. Vale salientar que esses termos já eram utilizados
por Saussure, sendo que ao eixo associativo Jakobson chama de paradigmático.
Landi (1997, p. 95) destaca que a metáfora e a metonímia se constituem em dois
processos responsáveis “por todo funcionamento simbólico” na teoria jakobiana. São eles que
compõem as formas de arrumação da organização linguística, seja na fala ou na escrita.
Jakobson (1995) salienta que na combinação o signo como um todo possui signos
constituintes que fazem ajustes com signos outros. Para o autor, “isso significa que qualquer
unidade lingüística serve, ao mesmo tempo, de unidade lingüística simples e /ou encontra seu
próprio contexto em uma unidade lingüística mais complexa”. Já na seleção, há possibilidade
de substituir um termo alternativo selecionado por outro que seja “equivalente ao primeiro
num aspecto e diferente em outro” (op. cit., p. 39), surgindo nessa questão os sinônimos e
antônimos, que também estão presentes nas relações substitutivas.
É na seleção que ocorrem substituições entre as unidades da língua, que é realizada
com fundamento no código, na estrutura linguística. Essas substituições podem ser
semelhantes (sinônimas) ou contrárias (antônimas), como já dissemos. A seleção é do eixo
paradigmático e implica na substituição relacional. No lugar de uma forma significante pode
aparecer outro termo, outras possibilidades de inserção de palavras, visto a riqueza da
linguagem. São os eixos metafóricos e metonímicos que se coagulam nas possibilidades de
troca que podem surgir. Na substituição – seleção – há uma oscilação entre sinônimos e
antônimos que possam entrar na cadeia paradigmática. Segundo Jakobson (1995, p. 41):
Uma dada unidade significativa pode ser substituída por outros signos mais
explícitos do mesmo código, por via de que seu significado geral se revela, ao passo
que seu sentido contextual é determinado por sua conexão com outros signos no
interior da mesma seqüência.
A substituição acontece por signos dispostos no mesmo código numa alternância de
relações entre o grupo de signos da língua. O que constitui a mensagem liga-se internamente
ao código pelos símbolos conhecidos entre os interlocutores. O limite separatório de um país a
outro, por exemplo, é restabelecido pela mensagem que contem signos conhecidos entre
pessoas que falam a mesma língua ou idioma, havendo, assim, interpretação desses símbolos.
No código é desvelado o sentido geral do signo e o sentido contextual é revelado pela relação
entre um e outro signo sequencial.
As combinações, por sua vez, provem de dois processos, que são a concorrência e a
concatenação, apresentadas abaixo:
COMBINAÇÃO
CONCORRÊNCIA
Entidade simultânea
CONCATENAÇÃO
Entidade sequencial
Na relação comunicativa, os interlocutores se esforçam por conseguir entender as
escolhas linguísticas realizadas pelo locutor e pelo receptor (quando este assume o outro papel
de emissor) nessa troca de informações. Segundo Jakobson (1995, p. 37), “quem fala
seleciona palavras e as combina em frases de acordo com o sistema sintático da língua que
utiliza [...] as frases, por sua vez, são combinadas em enunciados”. Desse modo, a
organização linguística selecionada será em unidades maiores combinadas, como as letras que
adquirem significados na palavra; a palavra, na frase; a frase, no enunciado, e assim,
sucessivamente, sendo que as unidades menores se agrupam em unidades contextuais
maiores.
O que fala não é de modo algum um agente completamente livre na sua escolha de
palavras: a seleção (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita a
partir do repertório lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem
em comum (JAKOBSON, 1995, p. 37).
Seguindo essa linha de pensamento, é possível aferirmos que as relações de
comunicação que são estabelecidas pelos indivíduos encontram seu ápice de aproximação
quando a troca envolve falante/ouvinte que possuem uma ficha representativa mental com
repertórios semelhantes da língua. As possibilidades existentes nesse fichário representacional
são várias, mas o diferencial será a escolha dos repertórios linguísticos que os interlocutores
fazem de códigos (símbolos) que lhes sejam comuns (JAKOBSON, 1995).
Devido a isso, o indivíduo, ao falar, faz uma seleção de entidades linguísticas
combinatórias para repassar a mensagem e estabelecer a comunicação. Ao fazer essa seleção,
leva em consideração o repertório linguístico existente entre ele (locutor) e o receptor. Para
que a relação comunicativa seja estabelecida é necessário, portanto, a compreensão entre os
interlocutores do significado que é atribuída a palavra dentro do “código lexical” da língua a
que pertencem.
Na escrita, a escolha do repertório não é menos trabalhosa. Há um esforço entre os
envolvidos na comunicação escrita em fazer uma seleção linguística que permita o
estabelecimento das informações transmitidas. Devido a isto, é comum verificarmos nas
falas/escritas que existem crianças que fazem trocas de diversas letras nas palavras, como l
por u, m por n e vice-versa, dentre outras trocas. De acordo com Jakobson (1995, p. 38)
“pode-se dizer que concorrência de entidades simultâneas e a concatenação de entidades
sucessivas são os dois modos segundo os quais nós, que falamos, combinamos os
constituintes lingüísticos”. O uso e escolha de uma forma e não outra está condicionada a
concorrência de elementos existentes na possibilidade linguística, que surge da cadeia latente
e se transfere e instaura na cadeia manifesta.
Essa concorrência que gera a condensação de uma forma trocada na fala é um
processo que se assemelha ao da escrita, onde há uma concorrência de elementos na estrutura
da língua que faz com que a criança selecione qual letra irá compor o espaço vazio de sua
produção, tendo como parâmetro a possibilidade que o funcionamento da língua oferece.
Cada letra utilizada pela criança que erra evidencia, assim, suas mobilizações, não
conscientes, efetivadas para chegar a combinar o código que a língua em sua estrutura permite
dentro do contexto linguístico.
Em relação à combinação e seleção, Jakobson (1995) percebeu que o emprego de
uma oclusiva velar substituída por uma oclusiva dental causa modificação na significação,
visto sua diferenciação, ainda que o restante das letras que a compõem seja igual. Exemplo
disto é-nos dado pelo próprio autor ao utilizar-se das palavras porco e porto. Notemos que
ambas seguem uma mesma sequência de letras, a não ser pela ruptura no meio da palavra ao
ser feita a troca de c por t, indiciando uma concatenação do contínuo processo combinatório
das formas que virão na sequenciação das letras, palavras. Essa mudança é motivo de distintos
significados das palavras elencadas. Vejamos um breve esboço:
Processo metonímico – combinação (concorrência
entre t e c)
POR TO
POR
CO
Processo metafórico
Seleção e substituição (t
por c)
Nesse arranjo do signo linguístico, a seleção e combinação dos significantes
dependerão da relação instaurada entre o que vem antes e o que vem depois no eixo horizontal
das relações. Ao substituirmos uma forma por outra, a significação será também diferenciada.
Por isso existe uma limitação na construção das palavras, havendo uma maior liberdade na
combinação de palavras em frase que ao serem combinadas em enunciados, ampliam-se suas
possibilidades combinatórias.
Segundo Landi (1997, p. 95), a liberdade de fazer combinação dos traços distintivos
“em um fonema e fonemas em palavras é praticamente nula: todas estão prescritas no
código”, ou seja, as possibilidades de combinações a serem utilizadas na língua já foram pelo
código estabelecido. As duas formas significantes não podem ocupar o mesmo lugar na cadeia
sintagmática. Assim, uma forma dá lugar à outra.
Para Jakobson (1995, p.38), “mesmo quando outras combinações de fonemas são
teoricamente possíveis, o que fala, via de regra, é apenas um usuário, não um criador de
palavras”, usando, assim, as formas combinatórias que já estão dispostas no código
linguístico, não podendo delas fugir. Por exemplo, a forma gráfica rrato não é possível
linguisticamente, pois o uso de rr no início de palavras não está prescrito à norma da língua,
resguardado o contexto combinatório da referida letra.
Jakobson (1995, p.38) constatou em sua investigação que os traços distintivos com
/k/, /t/ não podem aparecer fora do contexto das combinações linguísticas. Mostra que o
“traço velar aparece em combinação com outros traços concomitantes e o repertório de
combinações desses traços em fonemas como /p/,/b/, /t/, /d/, /k/, /g/ é limitado pelo código da
língua dada”.
O próprio código, como a Língua Portuguesa, limita as combinações que poderiam
ser possíveis dos sons de algumas letras com os sons que lhe precedam ou lhe sejam
subsequentes e, como declara Jakobson (1995, p. 38), são apenas uma sequência de sons
“permissíveis” usados no “estoque lexical de uma língua usada”.
A metáfora e a metonímia são fatores importantíssimos para compreensão da seleção
e combinação realizadas pelo falante/escritor, pois permitem entender que o sujeito que está
no processo de alfabetização27 e letramento28, de enquadramento e submetimento da língua,
substitua palavras relacionais da cadeia sintagmática e paradigmática que o ajudem a
encontrar, dentro das variadas possibilidades da língua, a letra-palavra que melhor completa
seu esboço textual. É na seleção (substituição) e na combinação (concorrência e
concatenação), entre um e outro sintagma, que será escolhido o que seja o mais adequado para
o momento da escrita e para seu seguimento, insurgindo, nesse ponto, o erro.
Devido a este processo combinatório e substitutivo, a criança ao produzir um erro
singular não inventa traços nem sequências de palavras, nem utiliza palavras que estejam fora
do contexto de sua possibilidade, mas utiliza o código que é delimitado pela língua, buscando
as probabilidades por ela dadas. Desse ponto de vista percebemos que o falante/escritor tem
várias possibilidades de combinar, de compor a língua, porém essa liberdade é limitada dentro
da norma organizacional do que se tem da língua, não podendo ultrapassar suas regras29.
Assim, no estoque lexical que compõe o repertório linguístico da criança são
utilizadas substituições e combinações de grafemas que seguem uma lógica permissiva na
língua, sendo destacado nesse ponto o surgimento do erro singular como parte integrante
desse funcionamento.
2.3 Milner - o equívoco do erro na língua
Milner (1987) é um dos grandes teóricos que levantou questões significativas sobre
as possibilidades da língua e o equívoco do erro. Em sua visão, os próprios gramáticos
procuram uma língua isotópica, que tenha a mesma expressão, não importando de qual lado se
observe. Este autor, contrariando esse tipo de ideia, passou a investigar esse equívoco
27
Para maior aprofundamento dessa questão, ler SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo
Horizonte, Autêntica, 1998.
28
Idem
29
Ver estrutura de padrão silábico esboçado na página 40 do capítulo anterior.
existente na língua e observou que esta possui um não sentido que é negado pela gramática ao
procurar propostas universalizáveis, na busca da padronização das normas gramaticais. Nisso,
Milner percebeu que há uma arbitrariedade da língua que foi construída, sem ser dada a
devida importância à linguagem que desliza.
Os gramáticos ensejam que os indivíduos usem as regras gramaticais sem que haja
nenhuma violação do que está prescrito gramaticalmente, abarcando um todo, como se a
língua tão somente pudesse ser controlada. Isto não é tão fácil ou possível como se imagina,
pois as possibilidades dadas pela língua podem fazer com que um falante/escritor, que já
tenha estabilizada sua estrutura na mente, deslize e utilize formatos gráficos infrequentes em
suas produções. Esse tipo de singularidade é suscetível de acontecer porque a língua tem um
leque de probabilidades de uso que está de acordo com determinada regra gramatical ou
ortográfica, podendo surgir outra forma significante que se enquadre a esse funcionamento
linguístico.
Percebemos que essa busca em unificar as diferenças existentes na língua abarca uma
tendenciosa e visível exclusão dos erros singulares, pois este está na ordem do irregular e,
portanto, indesejável é sua aparição.
Lopes (2007), assim como Milner (1987), acredita na não homogeneidade da língua;
entende que a língua é dinâmica, atualizada, mas não idêntica, onde na univocidade permeia
as diferenças de análise gramatical, de semântica, de síntese. Nesse ponto é que Milner evoca
a equivocidade. O equívoco da língua para ele está justamente nas possibilidades da língua
desveladas em identidade e diferença, que o autor concebe como ‘acidentes diversos’ que se
‘embaralham’ (1987, p. 12). Essas duas probabilidades se misturam em formas linguísticas
diversificadas, como a exemplo do autor, a homofonia e a homografia, produzindo uma
relação de não identidade em si mesma. O equívoco se forma, assim, de uma “conjunção
indevida de vários estratos” (op. cit., p. 13).
Nesse jogo linguístico, a harmonia das palavras dá lugar para o surgimento da
desarmonia, o regular dá lugar ao irregular, não podendo ser contido pelo pesquisador por este
conter um ponto de falta inevitável, no qual o “real da língua faz irrupção pelo real de uma
falta” (MILNER, 2002, p. 139). O simétrico é o regular e quando este é rompido conduz a
uma falta. Essa falta nada mais é do que o real da língua. Nesse sentido, a língua é esse espaço
de não-sentido, de falta.
Partindo do pressuposto lacaniano e dos estudos de Milner (1983), Felipeto (2007)
traz à tona, para explicação do erro singular, o equívoco atrelado ao grupo de três ordens que
juntos formam o chamado nó borromeano, que são o Real, o Simbólico e o Imaginário da
língua.
No nó borromeano, há um entrelaçamento entre as três ordens que o formam,
mantendo-se encadeados uns aos outros. Segundo Felipeto (2007), este ponto é o real da
língua; o simbólico seriam as letras que divisam o nó, e o imaginário se dá porque o real é
representado e grafado. Assim R (real), S (simbólico) e I (imaginário) estão ligados, sendo
que cada nó comporta o outro anel. Vejamos sua figura:
Nó borromeano
R
S
I
Fonte: (FELIPETO, 2007, p. 103).
Milner (1983, p.11) acredita que “cada anel, R, S, ou I, é ele mesmo como tal, Real
(enquanto é irredutível), Simbólico (enquanto faz um), Imaginário (enquanto faz elo)”.
Felipeto (2007) faz uma analogia entre essas três ordens, exemplificando como Real
o corpo da criança quando nasce; o Imaginário seria o que a criança vai ter do seu corpo e o
Simbólico se daria pelas funções que são suas e as que vão adquirindo com a mãe através de
sua voz.
Segundo Felipeto (2007) a criança passa a produzir sons que são manifestações do
corpo, como os balbucios, sendo que esses órgãos têm até esse momento funções biológicas
que depois serão revestidos pela função da fala. Para Felipeto (op. cit., p. 104) “é a mãe que,
ao dar ao imaginário a essa criança através de sua fala, vai colocar esses balbucios e sustentar
esse corpo em uma sintaxe, de modo que ele vai sendo capturado por uma estrutura que é
falada – a fala do outro”.
É nesta relação entre mãe e criança que vão se constituindo o nó entre o imaginário e
o simbólico, entre o que a criança tem do seu corpo e o que ainda vai ter com o auxílio da
mãe. Esse é um ponto importantíssimo para dar acesso à criança às regras articulatórias e
envolvê-la num jogo linguístico, pois “a fala da mãe cumpre uma função: subscrever o corpo
da criança com significantes, fazer com que essa criança vá entrando na ordem simbólica,
tornando-se um sujeito de linguagem” (FELIPETO, 2007, p. 104).
O Real vai sendo, dessa forma, aos poucos simbolizado, ainda que não o simbolize
em sua totalidade, já que “resta sempre um impossível, um indizível ou alguma coisa que diz
sempre a mais” (FELIPETO, 2007, p. 104).
Felipeto (2007, p. 103, 104) acrescenta ainda que o significante é quem dá suporte
para o simbólico, quase que sendo projetado sobre o real. “O simbólico, constituinte para o
sujeito, é o que liga e orienta as incidências imaginárias do dizer. Representando o imaginário,
temos a significação e tudo o que é da ordem do repetível”. O Real seria a arena dos sentidos,
no qual todos os sentidos submetem-se. O Real não é passível de representação e nem de
definição, não podendo ser “completamente simbolizado (nem na fala, nem na escrita) e, por
isso mesmo, não cessa de não se escrever, produzindo efeitos sobre S e I”.
Felipeto (2007, p.100) chama de erros previsíveis as combinações previstas dentro da
estrutura da língua e, com base nos estudos de Lopes (2005), aponta o erro visto dentro de
uma perspectiva de língua que não é vista como ordem homogênea, constituída por
fenômenos regulares, mas como heterogênea constituída por fenômenos irregulares. Assim
como Milner, Felipeto remete o erro a um equívoco “de uma falta irremediável que toca a
língua” (2007, p. 101).
Carvalho (1995, p.5) afirma que “o não saber- isto, é o equívoco que se faz presente
na fala da criança- somente pode ser apreendido por seus efeitos num saber, de outro lado é o
próprio equívoco que suspende este saber”.
Nesse sentido, no surgimento do erro singular impera um movimento de suspensão
da totalidade do saber. O rejeitamento desse resíduo se dá pela procura incessante da
completude da gramática. Carvalho (1995, p. 18) nos clareia essa questão ao declarar que “por
sua vez, os vários todos da língua, em conjunto, são limitados e suspensos pelo não todo, para
que o todo da língua se possa dizer, é preciso então um não todo que, suspendendo-o, garantao como todo’.
Milner (1989), como já dissemos, não concorda com a concepção de uma língua
unívoca, homogênea, apostando, assim, na sua heterogeneidade, visão esta também defendida
por Carvalho (1995). A gramática, nessa perspectiva, não seria algo fechado e completo para
representação da língua. O que está na gramática, como as alocuções, concordâncias,
ortografia, tem em torno de si um pressuposto de verdade, completude, de perfeição, de
univocidade para, a partir de todas suas formalidades, podermos decidir qual forma possível
da língua poderá ser utilizada.
Numa releitura de Milner (1989), Lopes (2005) elenca as hipóteses destacadas pelo
referido autor e que leva em consideração a necessidade de uma decisão pautada nas
possibilidades e impossibilidades da língua. Essas proposições seriam:
Quadro 09 - Possível e impossível linguístico e material
a) Possível material (P) – o dado lingüístico, o que é realizado
b) Impossível material (~P) – o que não existe enquanto dado empírico
c) Possível lingüístico (Q) – o que é aceitável na língua
d) Impossível lingüístico (~Q) – o inaceitável na língua
Fonte: LOPES, 2005, p. 76
Para melhor compreensão desses termos propomos um esboço utilizando a forma
significante sapo:
SSAPO
SAPO
possível
material
possível
material
linguístico
possível
material
impossível
linguístico
A palavra sapo segue a estrutura silábica CV existente no funcionamento da língua,
portanto este é tanto um possível material quanto linguístico. Já a palavra ssapo segue uma
estrutura inexistente na Língua Portuguesa, quando nessa posição. O surgimento dos dois s
nessa palavra é uma falta derivada dos vários usos dessa própria letra, que em pássaro, massa,
o som de s é garantido com a junção das duas letras.
O que queremos evidenciar é que o irregular e singular não surgem aleatoriamente do
regular e repetível, mas derivam de uma tensão que marca a todo tempo essa relação, tendo
uma ordem que subjaz a irregularidade, sendo esse pressuposto levantado por Milner (1989)
um importante fundamentador das questões do surgimento do erro singular.
2.4 Lemos – as posições do sujeito na língua
A estrada percorrida por teóricos que acreditam no erro como uma ocorrência
singular, e que aponta para o submetimento do sujeito ao funcionamento estruturado pela
língua, tem seu fundamento mais consistente nos estudos levantados por Lemos (1995, 1996,
1997, 1999). Essa autora se propôs a investigar os processos mobilizatórios (metafóricos e
metonímicos) desencadeados nas falas de crianças e que lhe possibilitou elencar três
trajetórias que permitem entender a mudança de posição da criança de infans para falante.
Essa qualificação em trajetórias é marcada pela relação existente entre o sujeito, o outro e a
língua.
Na primeira posição situada por Lemos (1996), a fala da criança é marcada pela fala
do outro. Neste, a criança utiliza resíduos das falas que advém de outras pessoas, sendo
submetida à fala do outro. O outro, nessa posição ocupa um papel significante, pois é o
interpretante da fala da criança.
Segundo Lemos (1996) os fragmentos das falas dos adultos entram na fala das
crianças, sendo recuperadas para a estruturação da linguagem. É na primeira posição em que a
fala/escrita da criança incorpora discursos de outros ao seu redor, de pessoas, livros 30 como
uma aderência, para constituir a sua própria alocução. O interessante é que, nessa “colagem”,
há um fator singular que permite a reelaboração dessas falas no querer dizer de cada sujeito
envolvido no processo linguístico, transformando o discurso do outro em seu próprio, à
medida que dele se apropria.
Na segunda posição, que é a relação estabelecida entre o sujeito com o próprio
funcionamento da língua, é onde, de acordo com Lemos (op. cit.), surgem os erros, sendo
marcado, nesse ponto, o constante processo inconsciente de submetimento da criança à
estrutura linguística.
As crianças utilizam a cada momento que falam, escrevem ou reescrevem suas
histórias, relações metafóricas e metonímicas, que são fatores imprescindíveis para podermos
entender o aparecimento dos erros singulares como constitutivos de significados. Os erros
singulares sinalizam movimentos realizados pelo pequeno autor como forma de submissão à
própria língua, devido a esta estar incrivelmente cheia de probabilidades de construções.
30
Bakhtin (1986, p. 123) enfatiza que o livro é um ato de fala constituinte da comunicação verbal e que tem um
sentido particularmente importante, sendo construído a partir de discussões ideológicas que envolvem o autor e a
voz de outros autores polifonicamente.
Em relação à fala na terceira posição, Lemos (2000, p. 4) destaca que a criança é
“capaz de retomá-la, reformulá-la e reconhecer a diferença entre sua fala e a fala do outro,
entre a instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de um outro lugar”.
Nessa posição, a criança se percebe enquanto falante, havendo uma escuta e
separação entre sua fala/escrita e a dos outros. É capaz, portanto de reconhecer o erro e tentar
dissipá-lo, o que mostra uma relação mais intima com a sua própria fala e o complexo
funcionamento estruturado pela língua.
A seguir, apresentamos sequências de trechos de falas expostas por Lemos em sua
pesquisa e que enfocam as três relações do sujeito na mudança de posição:
Relação do sujeito com o outro
Episódio 1: (Depois do almoço; criança (C.) sentada no cadeirão, ao lado da mãe,
(M.))
M.: Ce qué descer?
C.: qué
M.: Você qué decê?
C.: decê (Luciano 1:7)
(LEMOS, C.T.G., 2002, p. 3).
A criança repete a fala da mãe em qué e em descé. Há uma reprodução fiel da fala da
mãe inserida na fala da criança. Por outro ângulo, a mãe é quem interpreta a fala da criança ao
dizer “você qué descê”. A mãe, nesse caso é a interpretante da fala do filho.
Relação do sujeito com o funcionamento da língua
Episódio 6: (desenhando um avião)
ó o avião que a Cuca vai comprá chapéu pra mim
ó o avião que o Michel vai comprá chapéu pra Cuca
ó o avião que a Cuca vai comprá chapéu pro Michel
vai comprá casinha pra nós morá (Michel 2;7.15)
(LEMOS, 1996, p 7).
Esse episódio é revelador de uma relação instaurada entre o sujeito e o
funcionamento da língua. Na padronização, o nós pede o verbo na terceira pessoa do plural, o
que não acontece no último verso de Michel, quando fala casinha pra nós morá. Se
atentarmos para o verbo comprá usado pela criança, notaremos que houve a substituição
dessa palavra por morá na sequenciação frasal, evidenciando uma relação paradigmática
nesse erro. Não há, todavia, percepção de Michel de que o que deveria ocupar esse espaço era
morarmos, não identificando o erro na sua fala, ainda que seja corrigido por um adulto. Quem
domina nessa instância é o próprio funcionamento da língua.
Relação do sujeito com a própria fala
Episódio 12: (Em meio a um longo sermão da mãe, dirigido à criança (R.) e a sua
irmã (D.) sobre não comer fora das refeições)
D.: E iogurte, não pode comê iogurte fora das refeições?
V.:
E porta,
pode
comê
porta
fora
das
refeições?(rindo)
(Raquel 4; 3. 5)
(LEMOS, 1996, p. 13)
Nesse trecho, é possível verificar uma reelaboração da fala da criança em relação à
fala da mãe. Numa atitude de brincadeira, mas não longe de uma escuta, a criança usa a
expressão comê porta, e, sabendo que isso é impossível, sorri, revelando nesse ponto uma
relação com a sua própria fala.
Segundo Lemos (1996), essas trajetórias não devem ser vistas como estágios de
desenvolvimento que as crianças têm que obrigatoriamente seguir em sequência, como
pressupõem os cognitivistas, mas, indo além dessa concepção psicológica, a autora situa a
criança dentro de um processo de subjetivação, no qual o sucesso no processo não dependerá
tanto somente dos dados da língua que lhe são oferecidos, mas também da relação
estabelecida entre o sujeito com a fala do outro, com a própria língua e consigo mesmo
através de sua própria fala, predominando uma dessas posições em certas escritas, ora outra.
Lemos (1997) não acredita que a aquisição da linguagem seja linear, cumulativa e
homogênea. Pôde perceber como fruto de sua investigação que há uma heterogeneidade
constitutiva na fala da criança que ora pode ou não apontar evidências de conhecimento de
uma dada categoria, como foi visto por ela nas duas crianças participantes de sua tese de
doutorado. Percebeu, assim, que houve um desencontro entre as hipóteses construtivistas, que
apontam para um conhecimento que está sendo construído e a teoria gerativa, que entende o
conhecimento como uma manifestação inata. A autora procurou, dessa forma, uma maneira
“que abrisse a possibilidade de incluir essa heterogeneidade como recorte constitutivo da
empiria na aquisição da linguagem” (1997, p. 82), apontando para uma dependência existente
da fala da criança com a fala do adulto, não significando, contudo, para uma afirmação ou
negação de estágios de entendimento da língua. O que Lemos destacou em sua pesquisa não
foram as transformações ocorridas com a criança em si mesma, mas a preconizava como
falante.
Diante da empiria (fala), Lemos questiona o controle do falante sobre a língua e o
porquê de uma mesma criança que fala certo, falar outras palavras erradamente. Segundo a
autora (1997, p. 84) as falas das crianças são espelhos da fala do adulto, havendo um retorno
da interpretação da mãe na fala da criança como forma de “reinstaurar situações similares
àquelas configuradas pelos textos do adulto”. Esses espelhamentos, contudo, são recheados de
mudanças, de reelaborações e interpretações de enunciados. Nesse sentido, a criança passa a
atuar sobre a língua, tornando-se um tipo de intérprete da fala do outro sujeito e de sua própria
fala, que mesmo contendo erros, quando comparadas à fala do adulto, sinalizam para a autora
“uma mudança de posição da criança relativamente à língua e, em conseqüência, à fala do
outro”.
Lemos acredita, assim, numa heterogeneidade linguística, pois, ora a criança acerta,
ora erra, e o que aparentemente sabia, errou, constatando, assim, que o fato de conhecer a
regra não garante seu entendimento ou construção correta de uma forma significante. Há,
conforme essa autora, uma falta na língua, o que desencadeia entre uma palavra e outra um
erro, um ato falho31 ou chiste32.
Segundo Lemos (1997), a incorporação da fala do adulto a da criança e seus
possíveis erros de pronunciação já começavam a ter destaques em alguns trabalhos
(KARMILOFF- SMITH, 1986; PETERS, 1983) que situavam o erro como um indicativo
comportamental, vinculado a processos de reorganização de um saber anterior.
Na visão divergente desses autores em relação a tais processos, o erro é pressuposto
como um sinalizador do avanço do saber linguístico para ser analisado e categorizado,
perdendo-se de vista o real significado de seu surgimento. Para os autores Peters (1983) e
Karmiloff (1986), os processos que atuam como explicativos de análise dos erros são
respectivamente o endógeno e o indutivo.
Para explicar as mudança de posição e superar os processos reorganizacionais,
Lemos (1997) introduz em sua pesquisa os processos metafóricos e os metonímicos. A autora
enfatiza que a metáfora e a metonímia foram propostas por Jakobson (1995), mas ela retomou
e reelaborou esses processos numa visão lacaniana, observando como se dá “os modos de
emergência do sujeito na cadeia significante” (op. cit., p. 80).
De acordo com Lemos (1997, p. 86), os processos metonímicos e metafóricos
permitem possibilidades de generalização em suas utilizações, podendo ser usados na
literatura, na fala, entre outros, admitindo oportunidades de
31
O ato falho é quando se quer dizer uma palavra e pronuncia-se ou escreve-se outra que estava
inconscientemente prestes a emergir da cadeia latente para a manifesta, causando rubor no pronunciante ao
delatar-se a si mesmo.
32
O chiste é um lapso intencional e tende a causar risos. Segundo THÁ (1997, p. 16) “a diferença entre ambos é
que o chiste é intencional, ou seja, quem o enuncia comete o lapso de maneira proposital, enquanto que o ato
falho é um chiste espontâneo, não intencional”.
interpretar os enunciados da criança não como instanciações de categorias e
estruturas lingüísticas, mas como produto de relações tanto entre os fragmentos não
analisados e os enunciados\textos do adulto quanto entre esses fragmentos no
domínio de um mesmo enunciado da criança.
Outro ponto importante salientado por Lemos (op. cit., p. 86) para a escolha desses
processos é a “ressignificação desses fragmentos e da própria posição da criança na língua,
enfim, uma mudança estrutural do ponto de vista lingüístico e subjetivo”.
Num dos episódios analisados por Lemos (1997, p. 87), a criança representa a fala da
mãe quando esta disse “está dormindo”. A criança retorna a fala adulta ao dizer “é nananda”,
porém substitui o estão por é e na terminação do gerúndio indo por anda. Para Lemos, esse
fato aponta para uma relação de semelhança existente entre os verbos ser e estar que é
estabelecida pela substituição constituinte do processo metafórico, em que a categorização
dos processos reorganizacionais não daria conta em responder a essa questão relacional do
erro ao funcionamento e submetimento da fala da criança à língua, sendo este visto como um
dado empírico nas pesquisas da autora.
Segundo Lemos (1997, p. 87), as substituições são reveladoras de um cruzamento
entre as cadeias manifesta e latente, havendo nesse procedimento uma “solidariedade entre os
dois processos no âmbito do próprio enunciado da criança e, por outro lado, a dominância do
metafórico sobre o metonímico que se infere da relação entre o manifesto e o latente”. Isto
indica uma relação entre as falas da criança com a do outro e da língua que a fala representa.
As pesquisas de Lemos (2002) têm grande relevo para os linguistas e estudiosos da
aquisição da linguagem, sendo muitos os autores, assim como nós, que foram por elas
influenciados, fundamentando suas investigações teóricas a partir da visão singular do erro
que a autora trouxe à tona.
CAPÍTULO 3
_____________________________________________
3. O ERRO ORTOGRÁFICO: POSSIBILIDADES E IMPOSSIBILIDADES NO
FUNCIONAMENTO LINGUÍSTICO-DISCURSIVO
Questões relacionadas à escrita e também à fala têm ocupado lugar de destaque nas
discussões de estudos relacionados à aquisição da linguagem. Dentro do universo docente
ainda há uma grande quantidade de professores que referenda os erros ortográficos como
sendo causados por uma interferência da fala na escrita. Para esses, o erro ocorre devido à
criança grafar da mesma maneira que fala. Nosso estudo discute esse discurso que vem sendo
divulgado por vários autores que destacam e inserem esse e outros tipos de erros em uma de
suas categorias (CARRAHER, 1986; CAGLIARI, 1989; ZORZI, 1998; MORAIS, 1998,
2007).
Na compreensão de Vieira (2004, p. 14) a fala não se constitui fator essencial para
referenciar a escrita, já que segundo o autor “há surdos-mudos que escrevem” sem que, no
entanto, utilizem desse instrumento vocal. A incidência de erro presente nos textos de
variadas crianças, para ele, não é algo exclusivo de quem fala mal, pois erros também fazem
parte da escrita de bons falantes/escritores.
Lopes (2007) fez um breve levantamento histórico sobre a ortografia desde o século
XVIII e evidenciou que sempre existiu uma busca pelo ideal alfabético, procurando firmar a
relação entre o som e a letra gráfica.
A especificidade da fala e da escrita acaba por ser comprometida, visto ser a segunda
colocada como um substituto da primeira. Essa negação da escrita é explicada e criticada por
Gonçalves (apud LOPES, 2007) que elenca três motivos que supostamente a justificaria e que
seriam: a fala como cronologicamente prioritária; a quantidade maior de signos na fala; a fala
como detentora de uma faculdade biológica natural. Por este motivo, muitos teóricos da
Psicologia, Linguística e Filosofia tomam esses parâmetros para nortear a superiorização da
fala em detrimento à escrita e a condição da escrita estar subordinada à fala.
Lopes (2007), numa releitura de Gonçalves, diz que para esta autora a escrita ocupa
um lugar privilegiado na atualidade, visto representar a memória percorrida pela própria
língua. Se anteriormente a escrita ocupava um lugar de simplesmente representação da fala,
agora seu desempenho social é alavancado por um prestígio insubstituível de permanência de
seus signos linguísticos que são representativos da fonia/som, que se ausenta.
Ao fazer uma comparação do paralelismo entre a fonia e a grafia de Saussure,
Gonçalves (apud LOPES, 2007) afirma que há uma arbitrariedade entre esses dois pontos, não
havendo uma ligação que seja da ordem natural entre um e o outro.
Lopes (2007, p. 63) assegura também que as próprias gramáticas não seguem
padrões idênticos de esclarecimentos sobre a relação que procuram estabelecer entre o som e
a letra. Segundo a autora, dois gramáticos dão explicações diferenciadas quanto a essa
aparente afinidade. É o caso do exemplo dado por Lopes (2007) sobre a letra/som do h, que
mostra que “a inclusão do H em gramáticas e dicionários nem sempre esclarece a sua inclusão
no alfabeto da língua portuguesa”. Ao comparar o que o Curso Prático de Gramática de Terra
(1996) e a moderna gramática portuguesa de Bechara (2001) discorrem sobre a definição de
letra, Lopes (2007) percebe a distante explicitação por eles expostas. Terra diz ser a letra uma
representação do fonema e ao apresentar o grupo de letras pertencentes ao alfabeto, o h está
ali incluso, o que Lopes considera uma contradição da conceituação dada à letra por este
autor, pois o h não tem uma concretização sonora. Desta forma, Terra (1996) não reporta
nenhuma explicação sobre o uso do h nas diversas situações linguísticas.
Bechara (2001) por sua vez, além de incluir o mesmo conceito de letra, tal qual Terra
(1996), consegue avançar em suas proposições ao definir o uso do h nas situações
convencionais e tradicionais da língua, aferindo ainda ser impossível ter uma ortografia que
seja de todo ideal, sendo o h uma das letras que se pronunciam, mas não há uma
representação gráfica do fonema concernente a ele, não tendo propriedade de uma consoante,
mas sendo um símbolo que perdura pela tradicional etimologia das palavras. No Dicionário de
Linguística, Dubois (1973, p. 360) confirma em grande parte o pensamento de Bechara e
declara ainda que “as letras podem não corresponder a nenhum som efetivamente realizado”.
Segundo Vieira (2004, p.17), “utilizar-se da escrita como extensão da fala, mais
tumultua do que esclarece [...] não representando com exatidão a fala”, como foi vista na
conceituação confusa dada por Terra (1996) à letra.
Evidente que a compreensão da fala e da escrita se constitui num fator importante na
facilitação do domínio de ambas as modalidades, porém não é a sua essencial condição.
Infelizmente, o pensamento circundante nas escolas ainda é de que a oralidade é uma
referência para a escrita sem falhas, buscando uma grafia correta nas produções dos alunos.
Esse fato suscita conflitos no âmbito escolar, gerando uma repressão dos docentes ao erro.
Outra questão importante a ser refletida é que, assim como os docentes repelem o erro, as
categorias descartam o tipo de erro que está além de suas possibilidades de explicação. Não
percebem que esses erros singulares representam a inserção do errante às regras possíveis
estabelecidas no conveniente funcionamento da língua e que não deveria ser destituído de
valor. Barthes e Marty (apud CALIL et al, 2006, p. 148) a esse respeito declaram que há “uma
relação estrutural, mas não dependente entre oral/escrito” no qual “a escrita já não é uma
simples transcrição, mas produção da língua”.
Partilhamos o pensamento de alguns teóricos pertencentes à área de aquisição da
linguagem (LEMOS, 1996, 2002; CARVALHO, 1995; CALIL, 2007; LOPES, 2005) que
vêem o erro numa relação imbricada entre o sujeito e a língua.
É seguindo esse ideário que acreditamos que o erro ortográfico não está
condicionado a uma representatividade baseada simplesmente na oralidade, mas seu
surgimento indicia um sujeito que produz a língua em suas diversas e específicas tarefas
possíveis, a fim de inserir-se no funcionamento linguístico.
Neste capítulo, apresentaremos o resultado de nossas reflexões sobre a emergência
do erro ortográfico singular, observados nas produções textuais de três duplas de alunos do 2º
e 3º anos33 de duas escolas de Maceió-AL: uma pública municipal e outra particular. Os dados
tiveram a coleta realizada no período compreendido entre 1996 e 1998 e pertencem ao acervo
do banco de dados Práticas de Textualização na Escola, do Projeto Escritura, Texto & Criação
do qual fazem parte estudiosos da área de Educação e Linguagem, do Programa de PósGraduação em Educação/CEDU/UFAL. Acessando o banco de dados, fizemos uma seleção
preliminar de 216 manuscritos de criança de 2º e 3º anos, a fim de verificar as ocorrências de
erro ortográfico e singular em crianças que estivessem em processo de alfabetização. Na
triagem final de seleção de textos para análise, quatro foram escolhidos devido os dados neles
contidos apontarem para a emergência do erro singular (ABAURRE, 2002) e marcarem uma
relação do sujeito com a língua, no seu submetimento ao próprio funcionamento linguístico
(LEMOS, 2002). Todos os quatro textos foram realizados em dupla. No entanto, na escolha
das produções textuais não observamos essa questão, pois nosso olhar estava pautado sobre o
dado singular do erro e não na forma de realização textual. Ressaltamos que não coletamos os
dados contidos nessa pesquisa e por conta disso acreditamos que algumas lacunas não
poderão ser preenchidas, como, por exemplo, sabermos a idade que as crianças tinham na
época de produção, quantitativo exato de alunos das duas escolas, entre outras demandas.
Estas questões são importantes para a investigação, pois sabemos que a diferença na faixa
etária pode conduzir a uma nova interpretação. Conseguimos, contudo, resgatar dois materiais
33
Ressaltamos que estamos utilizando as nomenclaturas ano/série compatível com a lei do ciclo de 9 anos. Na
época em que foram coletados os dados textuais ainda era usado o termo série. Para facilitar a compreensão
enfatizamos que 1º ano corresponde à antiga alfabetização; 2º ano, a 1ª série; 3º ano, 2ª série; 4º ano, 3ª série e 5º
ano, 4ª série.
(constantes dos ANEXOS A e B) da época da produção textual e que apresentam a descrição
da atividade proposta presente no manuscrito 3 e uma ficha avaliativa que mostra que a dupla,
escrevente do manuscrito 4, já estava alfabetizada. Cada texto foi produzido na escola em que
as crianças estudavam, ou particular ou pública, e a coleta desses textos já tinha sido feita por
monitores do projeto ET&C que organizaram também o banco de dados.
Tendo exposto esses pontos, salientamos que nosso objetivo nesta análise é refletir
sobre ocorrências do erro ortográfico para interpretá-las sob um ponto de vista linguísticodiscursivo, especificamente sobre as possibilidades/impossibilidades no funcionamento da
língua, segundo Milner (1989).
Vejamos a tabela expositiva com informações sobre os quatro manuscritos para
visualizar o panorama geral das produções.
Tabela 1 - Manuscritos interpretados na pesquisa
MANUSCRITOS
FORMA DE
OCORRÊNCIAS
INSTITUIÇÃO
ANO DE
SÉRIE/
PRODUÇÃO
ANO
Escola particular
1998
1ª / 2º
A troca de u por l
Escola pública
1996
2ª / 3º
As formas dr e tr
3- Escola pública
1997
1ª / 2º
1998
1ª / 2º
REALIZAÇÃO
E TIPO DE
PRODUÇÃO
Realizaram em
A Aglutinação na
dragão da
dupla uma
forma gráfica
maldade”
história
“tenque”
1 - “O príncipe e o
3 - “ As treis
inventada
Realizaram em
dupla uma
reescrita
3 e 4 Realizaram
irmães uma
em dupla uma
e
bruxa” e
história
4 – Escola
4 - “A princesa
inventada
particular
2 - “A bela
Adormecida”
do lago
encantado”
Fonte: dados da pesquisa
3.1 Manuscrito 1 - A aglutinação na forma gráfica “tenque”
Manuscrito 1 - O príncipe e o dragão da maldade
Observemos o texto transcrito da dupla:
Quadro 10 - Transcrição normativa do manuscrito “O príncipe e o dragão da maldade”
O Principe e o dragão da maldade
CeR
(14-09-98)
1- Era uma vez um principe que morava em
2- um castelo. um dia ele o príncipe encontrou
3- uma bela prícesa e o principe
4- pedio a mão em casamento para a
5- princesa. e a princesa pedio a o pai
6- para se casa com o principe
7- e o paí dela disse:
8- – eu vou fazer um oferta para o pri-
9- cipe. e o rei foi falar com o principe
10- e disse:
11- se você quiser se casar com minha
12- - filha vai tenque mata o dragão da
13- maldade. e o princepe foi mata o dra14- gão cortou a bari barriga do
15- dragão e foi da maldade e o pricipe
16- foi para o castelo da princesa e o
17- rei preparou uma festa de noi18- vado e o principe se casou com a
19- princesa e viveram felizes para
20- senpre.
Fonte: dados da pesquisa
O erro ortográfico que nos dispomos a analisar está presente na composição textual
de título e história inventados por uma dupla de meninas pertencentes, na época, ao 2º ano do
ensino fundamental, no ano de 1998. Pode ser classificado, à primeira vista, como “alterações
ou erros decorrentes da possibilidade de representações múltiplas”, categoria salientada por
Zorzi (1998, p. 34). Nessa categoria, um mesmo som pode ser representado por várias letras
ou então vários sons podem representar uma mesma letra. No entanto, a forma registrada
pelas alunas, tenque em vez de tem que, nos causa um estranhamento provocado pela
sobreposição de dois processos: um de substituição de letras e outro de aglutinação de dois
termos. Observemos um trecho do texto da dupla, cujo título é “O principe e o dragão da
maldade”: “[...] e o pai dela disse: - eu vou fazer um oferta para o pri- cipe. E o rei foi falar
com o principe e disse: - se você quiser se casar com minha filha vai tenque mata o dragão da
maldade” (grifos nossos).
Observando mais detalhadamente esse trecho do texto, percebemos que ao invés da
forma tenque poderia ter surgido metaforicamente o termo ter que, que seria, na verdade, o
mais adequado na frase. Contudo, o surgimento de tenque nos faz pensar que a dupla poderia
ter pensado, também, em retirar o verbo vai para assim usar tem que, ficando materialmente
escrito na forma tenque. Estas são apenas suposições que fazemos, já que não coletamos os
dados e a data da produção textual é da década de noventa. Temos assim, um espaço de mais
de 12 anos desde a sua execução, o que nos impede de verificar qual a intenção da dupla no
ato da produção.
Partimos, dessa forma, pelo ângulo hipotético de analisar essa forma singular tenque
pela substituição e aglutinação de tem que, tendo em vista o provável esquecimento da dupla
em retirar o verbo vai.
Na Língua Portuguesa o m e o n são indicadores de som nasal, além do til sobre as
vogais, podendo causar a substituição de um pelo outro na hora de escrever uma palavra
nasalada, porque ambas estão dentro das possibilidades da língua de uso do som nasal.
Segundo Morais (1998) as vogais, os ditongos nasais representam um forte grau de
dificuldade para os aprendizes da língua, por causa das cinco posições de sinalização da
nasalidade, elencadas abaixo:
Quadro 11 - Modos de marcar a nasalidade na Língua Portuguesa
•
•
•
Modos de marcar a nasalidade na Língua Portuguesa
(“bambu)
usando o M em posição final de sílaba
(“banda)
usando o N em posição final de sílaba
(“manhã”)
• usando o til
(“minha”) /mĩa/
• usando o dígrafo 34NH
por questão de nasalização por contigüidade,
(“cama”)
pois a sílaba seguinte já é iniciada por uma
consoante nasal.
Fonte: MORAIS, 1998, p. 30
A marca de nasalidade vocálica é realizada através da utilização posterior a vogal do
m, do n e do til colocado acima da vogal. Silva (2008) apresenta a transcrição fonética das
vogais nasalizadas e enfatiza que há vogais nasais que acontecem no meio de palavras e
outras que acontecem nos finais de palavras, como exposto no quadro a seguir:
Quadro 12 - Vogais tônicas nasais
VOGAIS TÔNICAS NASAIS
Final de palavra
[ĩ] vim ['vĩ]
Meio de palavra
Cinto ['sĩtƱ]
[ẽ] (não há)
Cento ['sẽtƱ]
[ã] lã ['1ã]
Santo ['sãtƱ]
[õ] tom [' tõ]
Conto ['kõtƱ]
[ῦ] jejum [ӡe'ӡῦ]
Assunto [a'sῦtƱ]
Fonte: SILVA, 2008, p. 91
Contudo, a junção das palavras tem e que formando tenque não é uma palavra
existente no nosso vocabulário, embora siga os ditames estruturais contidos na língua. Mas
nos questionamos quanto ao que teria instigado a dupla a aglutinar as duas palavras formando
apenas uma. Será que só pelo fato de substituírem o m pelo n, por ambos indicarem som
nasal, seja a única explicação plausível para este acontecimento na escrita?
34
Morais (1998) justifica o nh como indicativo de nasalização devido em algumas regiões do Brasil
pronunciarem a vogal anterior ao dígrafo nasaladamente, deixando de pronunciar o nh.
Na concepção de Saussure (2006, p. 205) “a aglutinação consiste em que dois ou
mais termos originariamente distintos, mas que se encontram freqüentemente em sintagma no
seio da frase, se soldem numa unidade absoluta dificilmente analisável.”
A aglutinação é uma possibilidade da língua em que duas palavras se fundem para
formar uma única forma significante. Na escrita da dupla, a singularidade do erro incide sobre
a forma significante tenque, em que houve uma aglutinação efetuada na junção das palavras
tem + que. Essa forma tenque pode ser considerada como um possível linguístico, tendo em
vista as possibilidades da língua, “porém sem pertencer à norma”. (LOPES, 2005, p. 78).
De acordo com a regra normativa que estrutura a Língua Portuguesa, m e n devem
sinalizar o som nasal, sendo que o m vem antes de p e b e o n antes das demais consoantes.
Nesse sentido, o som expresso por essas duas formas significantes, poderia, a exemplo da
explicação dos que descrevem o erro, ser resolvido pela aclaração de defini-lo como uma
representação de sons idênticos e, devido a isso, haveria essa substituição de uma letra pela
outra. Mas ao aprofundarmos mais esta questão nos estudos de Jakobson (1995) apontaremos
para uma substituição e/ou aglutinação tendo em vista dois eixos da linguagem por ele
elencados como metafórico e metonímico, que também compõem as formas de arrumação da
organização linguística.
Como dissemos no capítulo anterior, Jakobson (1995) enfatiza que a combinação e a
seleção são duas formas em que o signo linguístico pode ser disposto, sendo que na seleção
ocorrem as substituições (metáfora) e na combinação (metonímia), possibilidades
combinatórias em que a concorrência de significantes resultará na inclusão de um e na
exclusão do outro.
Nesse sentido, a relação de substituição de m por n ocorrida no texto da dupla se
encontra na equivalência do som nasal executado por ambos. Na questão de possibilidade de
uso de m por n, este encontra outro ponto a favor: dentro da possibilidade da língua o n
estaria na posição correta e m ali não se encaixaria. Seguindo este modo de pensar, podemos
aferir que as duas meninas aglutinaram tem + que e substituíram o m pelo n, tendo como
referência a convenção no sistema linguístico, onde o n é quem deve ocupar esta posição na
língua. Essa estrutura é uma possibilidade na língua, tendo em vista que existem outras
palavras que lembram esta escrita, como é o caso das palavras tanque, banquete, em que o n
assume posição antes do que. De acordo com o que é estabilizado na língua, o m não poderia
entrar nessa estrutura, uma vez que a convenção exigiria a sua colocação antes de p e b.
Deparamo-nos, neste ponto, com o erro singular de um sujeito que revela sua singularidade e
seu submetimento ao funcionamento da língua.
Nesse texto é possível identificar alguns erros fonológicos (transposto para a grafia)
e categóricos ortográficos, que serão apontados no quadro a seguir:
Quadro 13 – Quantidade de ocorrências de erros das categorias
Categoria
Ocorrências
Linha
Quantidade
(fonológica) –
Othero (2005)
Apagamento da
(correspondência
regulares
e
irregulares dos
sons)
Morais
(1998)
Categoria
(alterações de
erros) Zorzi
(1998)
Regular
contextual
Omissão de
letras
01
Regular
contextual
Generalização
01
Regular
contextual
Possibilidades
de
representações
múltiplas
Pedio
4, 5
02
casa ( r ) e mata
06
20
líquida final
(r)
senpre
Categoria
Fonte: dados da pesquisa
Observando o texto, verificamos ainda que as alunas já tinham consolidado o uso do
n na língua. Exemplo disso é a escrita seguindo os padrões prescritivos linguísticos nas
grafias de principe, encontrou, casamento e princesa. Isso indica que a dupla já tinha um
conhecimento prévio do uso do n e m nasais na escrita. Então, o que faria com que as
crianças registrassem tal ocorrência de erro particular em sua composição textual, se já
haviam estabilizado as regras de n e m?
O q é um significante importante para entendermos essa questão. O que percebemos
é que a dupla registra o n e não o m nessa estrutura porque não é possível no esqueleto da
língua escrever temque. Tenque, porém, é uma possibilidade, pois antes de q se escreve n.
Essa forma pode mostrar a subjetividade e posição singular dessas alunas submetidas ao
funcionamento linguístico-discursivo. Nessa incidência, as crianças não inventam traços nem
sequências de palavras, nem utilizam vocábulos que estejam fora do contexto de sua
possibilidade linguística, mas empregam o código que é de certa forma, delimitado pela
língua, buscando a probabilidade por ela dada. No estoque lexical que compõe o repertório
linguístico da criança é utilizada a substituição/combinação de grafemas que seguem uma
lógica permissiva na língua.
O processo de deslocamento e substituição desses significantes gera uma aglutinação
das duas palavras (tem + que) que se sintetizam em uma única forma escrita tenque, fazendo
com que os erros ganhem evidência nesse jogo mobilizatório na “sucessão de cadeias cuja
estrutura é a mesma” (LEMOS, 2000, p. 7). Nesse jogo das substituições há uma
singularidade, inconsciente, por haver nesse ponto uma possibilidade de “corte” na cadeia
sintagmática e, mesmo que as falas/escritas das crianças contenham erros, estes indiciam para
a autora, uma mudança de posição frente à língua.
[...] a semelhança entre as cadeias que se sucedem e a diferença entre os termos que
nelas são substituídos criam tanto um movimento no sentido oposto, isto é, o retorno
das cadeias sobre si mesmas quanto um movimento de deriva que tende a desfazer o
sentido prestes a se constituir e impede seus possíveis efeitos referenciais (LEMOS,
2000. p. 8).
A substituição/aglutinação parece-nos revelar, assim, um efeito de retroação de
alternância do som nasal entre m/n, em tem que por tenque, no qual a forma significante que
mais se aproxima da estrutura gramatical (inconsciente e esquecida) de nossa dupla escritora é
a segunda, fazendo emergir o inesperado no lugar do/sobre o esperado, naturalmente, o
ressignificando e o instaurando, revelando, assim, uma escuta do sujeito sobre sua própria
fala/escrita.
Segundo Lemos (2000, p.16), quando o sujeito escuta sua fala está se deslocando
para a terceira posição, sendo que a “substituição/diferença não deixa de revelar uma posição
aberta, em que esperado e inesperado podem colidir e, nessa colisão, deslocar o sujeito para
uma posição de escuta”, possibilidade esta de escutar que sinaliza um ser que está, sobretudo,
sobre a sequela de sua própria fala.
Sob essa perspectiva, poderíamos dizer que as alunas estejam caminhando para a
terceira posição salientada por Lemos (2002) e Lopes (2005), pois ao escreverem, elas se
dividem na posição daquele que fala e daquele que escuta. Há na escrita da dupla uma
substituição (metáfora) de m por n e sua possibilidade combinatória (metonímia) dentro da
possibilidade linguística de realização gráfica.
Reconhecemos, assim, que as transformações ocorridas na fala/escrita das alunas
resultam dos processos metafóricos e metonímicos que são estabelecidos pelas substituições e
combinações nas relações de semelhança/diferença entre o que está manifesto nas cadeias
(sintagmática e paradigmática), sendo uma falta latente que emerge para a cadeia manifesta
(composição inabitual) na grafia da dupla.
Dessa forma, é nessa constituição de substituições resultantes da relação entre as
formas significantes tem que e tenque que apresentam estruturas similares, embora produzam
efeitos de disparidade, que se subscreve o erro singular da segunda forma. Esse erro pode
revelar a singularidade do sujeito e as possibilidades da língua, assinalando através da escrita
irregular, inconsciente, que esse sujeito “também está submetido ao funcionamento da língua”
nas atividades discursivas a que é exposto (LEMOS, 2000, p.5).
3.2 Manuscrito 2 - A troca de u por l
Manuscrito 2 - A bela Adormecida
Quadro 14 - Transcrição Normativa do manuscrito “A bela Adormecida”
A bela Adormecida
E e S - (18-09-96)
1 - o reino tava enfesta era adia do batizadu da filha da
2 - Reii e da Rainha. as fadas egaran suas farinhas
3 - maxica para daponis esemplos uma falal ela vai_
4 - ser bonita e entilizente e cantora como rouzinol
5- mas uma fada bruxa não foi com findada e
6- ficou furiosa e monta na sua fasoura maxica
7- e foio até oberço e gritou um dia você vai ispetar
a
8- mão num fuso. edeixou o Rei e a Rarinha nus
plantas
9- não choren meu Rei e minha Rainha não fis meu
dezecho
10- ela não morera apenas tormira apenas
100 anos e
11- umpriciper abeixara e ela a cordara. e
um Rei
12- tentando salva o princisa mandol
gueima dos os
13- fusor pasaran meses e a princesa
queceu e vai movien
14- do do castela e viu uma velhinhaestava
fazendo lan e
15- O príncipe chegou nu Castela e viu todo
16- Mundo dormido e supil no degral e
17- Chegou nu garto do Rei e da Rainha viu
eles na cam
18- Ma dormindo e vai nugarto da princesa
19- E peixoula e ela agordou e eles viveram
20- Felizes para sempre
Fonte: dados da pesquisa
O erro singular a que nos dispomos a analisar nesta parte é a troca do u por l que está
presente na composição textual de reescrita de uma história já pertencente ao mundo infantil,
que é A Bela Adormecida. O texto foi escrito por uma dupla de alunas pertencentes, na época,
ao 3º ano do ensino fundamental de uma escola pública, no ano de 1998. Esse tipo de erro,
contido no texto da dupla, pode ser agrupado, segundo as categorias de erros apresentados na
literatura específica, como “apoio na oralidade” (ZORZI, 1998), “transcrição da fala”
(CARRAHER, 1986), “transcrição fonética” (CAGLIARI, 1989), ou ainda como “regras
contextuais de regularidade” (MORAIS, 1998). Segundo Cagliari (1989), os erros cometidos
pelas crianças são amostras de que elas escrevem tendo como referência a fala, sendo esse
tipo de erro inserido na categoria acima delimitada pelo autor. Carraher (1986), para descrever
esse mesmo fato, utiliza-se de outro termo que tem a mesma função explicativa dada por
Zorzi (1998). De acordo com Lopes (2002) essas explicações seguem uma relação de
semelhança entre grafia e fonia que procura um modelo alfabético ideal. Há nessas categorias
uma explicação baseada na relação entre as letras e os sons, sendo as palavras da Língua
Portuguesa escritas da mesma forma como são pronunciadas ou apreendidas pelo contexto em
que aparecem, podendo aparecer erros de substituições do u pelo l ou vice-versa. Mas será
que a ocorrência desse tipo de erro só se justificaria por essa explicação? E por que sua
incidência é contínua na composição da escrita da dupla, embora indiciem que já estão em
vias de estabilização da regra?
De acordo com Cegalla (2008, p. 29) “na pronúncia normal brasileira, o l, em final
de sílaba, tem realização antes de velar do que alveolar, vocalizando-se aproximadamente
como um u: alto (aultu), mal (maúl), anel (aneul), filme (fiulme), etc”.
Percebemos que a troca de l por u ou do u por l tem sido uma afirmativa constante
dos gramáticos e dos estudiosos que categorizam os erros de que sua causa está centrada no
som, ou seja, nas questões relacionadas à transcrição fonética para a escrita. O l e o u têm
sons idênticos em alguns moldes da língua, como foi mencionado, porém, acreditamos que
sua classificação não depende totalmente da consciência fonética que a criança tenha
desenvolvida, indo além dessas questões.
Alguns pesquisadores que têm debruçado seu olhar investigativo nas questões do
funcionamento da língua fizeram seus estudos com crianças que cometiam esse mesmo tipo
de erro de troca de l por u ou u por l (CALIL, 2007) e foram além do ponto de vista da
categorização. Nesses estudos é que iremos pautar nossa posição sobre esse tipo de
alternância entre essas duas letras, reafirmando, assim, a singularidade desta particularidade
de erro que são vistas constantemente nas composições infantis.
O gênero textual ‘conto de fadas’ está presente nas práticas de contação de histórias
no âmbito escolar. Devido a este fato, seu enredo é bem familiar para as crianças, que, ao
recontá-las ou reescrevê-las, mostram conhecimento das fases pelas quais o texto se
desenrola.
Na escrita das alunas é possível detectar cerca de 50 erros ortográficos dos mais
diferentes tipos, de acordo com as categorizações levantadas pelos autores. Os erros contidos
no texto da dupla são facilmente reconhecidos e justificados nos estudos descritivos e
classificatórios do sistema ortográfico. Alguns desses erros serão exemplificados no quadro a
seguir, utilizando esse tipo de descrição:
Tabela 2 – Erros registrados no texto “A bela adormecida”
ERRO
FORMA
PADRÃO
CATEGORIA
CATEGORIA
(correspondência regulares e
irregulares dos sons) Morais
(1998)
Regularidade contextual (e – i)
Regularidade contextual (t-d)
Regularidade contextual (questão
(alterações de erros)
Zorzi (1998)
Generalização
Trocas surdas / sonoras
Junção/separação não-
Entilizente
Tormira
Inteligente
Dormira
Edeixou
E deixou
Fasoura
Vassoura
Falol
Mandol
Falou
Mandou
Irregularidade (uso do s)
Regularidade contextual (l –u)
Regularidade contextual (l – u)
Supil
Subiu
Regularidade contextual (p – b)
Generalização
Degral
Degrau
Regularidade contextual (l – u)
Generalização
segmental)
Regularidade contextual (f-v) e
convencional
Trocas surdas / sonoras
Generalização
Generalização
Fonte: dados da pesquisa
Observando o quadro, as quatro últimas palavras, falol, mandol, supil, degral,
incorrem no mesmo erro posicional de troca do u por l. As três primeiras palavras são
morfologicamente verbo, enquanto que a última degral é um substantivo. Interrogamos:
seriam esses erros um reflexo do “conhecimento lingüístico” das alunas, conforme asseveram
Moreira e Pentecorvo (1996, p. 83)?
[...] as grafias construídas pela criança refletem o seu conhecimento lingüístico,
constituído por informações fonético-fonológicas, gramaticais, semânticas e lexicais
que entram em jogo com as informações sobre letras e combinações de letras que
advêm da exposição à escrita (1996, p. 83).
Segundo Calil (2007, p. 92), “no funcionamento da língua está presente
constitutivamente o sujeito e os efeitos desta relação sobre as próprias possibilidades do
sistema e o cruzamento de seus distintos níveis (fônico, sintático, morfológico e ortográfico)”.
Nessa perspectiva salientada por Calil (op. cit.) há uma quebra com as definições sobre a
língua que a vêem como um sistema fechado, possibilitando a emersão do singular sob a
pressão da alíngua35 (falta) que promove o equívoco, “embaralhando os estratos lingüísticos e
afirmando a singularidade do sujeito dentro das possibilidades do funcionamento lingüísticodiscursivo”.
35
Buscamos em Lopes (2005, p. 13) para designar o termo alíngua, que segundo a autora, sua procedência “ vem
da retomada que Milner faz de Lacan e indica o real da língua, ou seja, a instância que marca uma
incompletude”, em que não se diz a verdade toda porque há sempre uma falta. Esta falta é que marca a alíngua.
Calil (2007, p. 84, 85) afirma ainda existir uma “relação homofônica” entre l e u,
devido haver uma proximidade fonológica entre essas duas letras, o que faz com que emirjam
escritas ortográficas, como falol, que não sejam contempladas na língua, como ainda é capaz
de causar dificuldades de ordem semântica, como “mau’ ou mal”. O autor apresenta formas
exemplificadas em que o l e o u aparecem na Língua Portuguesa e que será esboçado no
quadro a seguir:
Quadro 15 - Uso do L / U
Uso do L / U
•
nos finais de verbos em 3ª pessoa do singular no pretérito perfeito que sempre terminam em
•
“U”: “perdeU”, “abriU”, “faloU”, “aprendeU” etc.;
na presença da forma “L” ou “U” precedida de vogal e seguida de consoante (com exceção de
“H”): “aLto”, “aLbergue”, “aLfabeto”, “eLmo”, “eLdorado”, “iLmenita”, “oLfato”, “oLmo”,
“úLtimo”, “uLtra”, “úLcera”, “asfaLto”, “oLvidar”, “aUdácia”, “aUto”, “aUferível”,
•
“eUdiometria”, “eUmatia”, “oUvido” etc.;
nos finais de substantivos e adjetivos terminados com “L” ou “U”, sempre antecedidos por
vogal: “jornaL”, “pantanaL”, “maL”, “saL”, “aneL”, “vendavaL”, “pasteL”, “hostiL”,
“perniL”, “abriL”, “soL”, caracoL”, “azuL”, “bacalhaU”, “paU”, “maU”, “cacaU”, “ateneU”,
“tchaU”, “chapéU”, “pipiU”, ”floU” etc.
Fonte: CALIL, 2007, p. 84 – 85
Na escrita de algumas palavras com u e em outras com l no final, pelas alunas,
chamou-nos a atenção o registro de: supil, mandol e falol, em que a sobreposição do l está
fora dos limites exigidos pela língua. Contudo, observamos que as alunas utilizaram escritas
com a letra u que atende ao desejado pela norma padrão, que é o caso das palavras gritou e
chegou, que são verbos, evidenciando a propriedade das crianças no uso do u no final de
formas verbais da 3ª pessoa do singular do pretérito perfeito. Mas por que na escrita de alguns
verbos as meninas usaram o l no lugar da posição do u nas palavras? Seria simplesmente por
causa da questão sonora presente em palavras escritas com u e l? Por que a dupla, que
aparentemente tem a forma estabilizada do uso do u na forma verbal dessa conjugação, incide
em erros ortográficos?
Vejamos essa interpretação pautada numa releitura de Milner (1989), feita por Lopes
(2005), que elenca as hipóteses destacadas pelo referido autor, levando em consideração a
necessidade de uma decisão arrolada nas possibilidades e impossibilidades da língua. Essas
proposições seriam:
a) Possível material (P) – o dado lingüístico, o que é realizado36
b) Impossível material (~P) – o que não existe enquanto dado empírico
c) Possível lingüístico (Q) – o que é aceitável na língua
d) Impossível lingüístico (~Q) – o inaceitável na língua
(LOPES, 2005, p. 76)
Vemos no uso do l em lugar do u uma possibilidade material e linguística dessa
ocorrência, uma vez que o l pode fonologicamente, em algumas circunstâncias, ser produzido
com som do u. Esse uso é permitido na realização linguística, porém nas palavras
materialmente expostas no texto da dupla, o l não pode ser utilizado, por não existir na
gramática permissividade para a posição do l no final de verbos da 3ª pessoa do singular do
pretérito perfeito. Acerca dessas questões, Calil (2007, p. 91) declara que:
É fundamental considerar o princípio de diferencial constitutivo do funcionamento
da língua. O valor de uma forma significante gráfica e/ou fônica se dá através das
relações que mantém com outras formas e suas posições na cadeia sintagmática. É
isto que nos permite dizer que as formas “L”, “U”, “O” ou quaisquer outras não têm
valor em si mesmas, nem em uma correspondência direta entre o oral e o gráfico,
mas nas relações com o que se tem antes e o que há depois e com as posições que
estes elementos podem assumir. Para se entender estas relações não se pode
considerar o valor fônico que estas formas têm isoladamente, como, por exemplo,
uma letra do alfabeto e o valor adquirido quando aparecem no meio de uma palavra.
Para Campos (2005) as duas cadeias (sintagmáticas e paradigmáticas) são
necessárias para entender o processo de construção de sentidos e mobilizações metafóricas e
metonímicas realizadas pelas crianças em suas composições e nos deslocamentos realizados
na utilização de uma forma significante em detrimento de outra. O funcionamento da
linguagem é para Jakobson (1995) resultante também da relação preeminente estabelecida
entre os eixos metafóricos e metonímicos, pois segundo este autor, são estes responsáveis pela
organização e funcionamento da língua.
De acordo com Calil (2007, p. 94) “o jogo metafórico entre uma e outra também é
bastante preciso, já que em certas posições pode haver uma mútua concorrência” do l e do u,
sendo “este deslocamento que faz uma outra relação metafórica se estabelecer, a saber, a
forma ‘L’ ter o valor fônico /u/ em uma posição ‘isolada’”.
No entrelaçamento entre as formas u e l, levando-se em consideração a identidade
fônica por ela estabelecida, “por um deslizamento metonímico” de concorrência entre essas
duas formas significantes, a forma l entra na cadeia sintagmática, no lugar das formas que
36
Esse mesmo quadro já foi exposto em outra parte do trabalho. Porém vimos à necessidade de repeti-lo para
melhor explicar o assunto em questão.
aparentemente já estavam dominadas pela dupla, que era o uso do u no final do verbo
(CALIL, 2007, p. 94).
No entanto, a palavra degral poderia não se inserir nessa questão, por se tratar de um
substantivo feminino, porém sua escrita segue o mesmo procedimento de inserção do l no
lugar do u, emergindo nesse ponto o mesmo processo de deslizamento metonímico nessa
concorrência de qual letra utilizar. Talvez, por esta palavra não estar dentro do mesmo campo
morfológico que as outras grafias verbais, tenha feito com que o l deslizasse para a escrita das
quatro palavras, já que uma das regras gramaticais abre margem para o uso final tanto de l
como de u após as vogais, se a palavra for um substantivo ou um adjetivo.
Nesse ponto, esses erros podem ser considerados decorrentes de um escapamento do
que já se está constituído e estabilizado na língua, assemelhando-se ao que se chama de
singularidade e que tem um efeito inesperado (CALIL & FELIPETO, 2008).
3.3 Manuscritos 3 e 4 – As formas dr / tr
O texto selecionado para esta análise traz dados que nos levam a uma reflexão sobre
as irregularidades e regularidades da língua. Um dos textos pertence a uma dupla de
escreventes de uma escola pública que, em 1997, cursava o 2º ano do ensino fundamental; o
outro texto é pertencente a uma dupla de alunos também do 2º ano, mas de uma escola
particular, cujo ano de produção se deu em 1998.
Manuscrito 3 - “As treis irmães uma bruxa”
Quadro 16 - Transcrição normativa do texto “As treis irmães uma bruxa”
Texto 3
9.
J e T - 18/11/97
SaPo cipe. e o rei foi falar com o principe
10.
AS TREIS iRMÃEs UMA BRUXA
1.
ERA UMA VEIS AS TREIS iRMASiAS
2.
ELA
PASSEANDO
NO
12.
OUVÍU
Aí DESERANÃO US DREGAU ABRUXA
MÁGICO NA ESCADA E AS TREiS
A iRMASiA
ESCORREU ABRUXA COM, MESOU A
DAR RISADA?
6.
E OUViU UMA PASSOR A BRUXA
COLOCOU (o)POSÃO
7.
NOS DREGAU DE DEPOIS Botou O
calderão No FOGO
E
SAIU
MACIA SAiU DO (S)
E DERUBOU O CALD(A)ERAN.O, NA
13.
GRITOU I E A iRMASiA BEiJOU O SAPO
O SAPO L.
14.
FOI FOI FELIZ PARA SCEPRE?
iRMASIA 5.
GRiTOS
BRUXA E A BRUXA
BOTOU O FEiTiÇO
4.
SAPO
CALDERAN,O -
CASTELO
3.
O
PULANDO E 11.
ESTAVA
iRMASiA No FOGO AÍ APARISEU UM
FiM
8.
E COM . MESOU A FASER O FEiTiSO E
Jogou AS TREiS
Fonte: dados da pesquisa
Manuscrito 4 - “A princesa do lago encantado”
Quadro 17 - Transcrição normativa do texto “A princesa do lago encantado”
Texto 4
A princesa do lago encantado
1. Era uma vez uma princesa p que
2. se chamava marinadf marinadja e
e
3. ela entrou e a princesa p princesa comeso
4.
5.
6.
7.
8.
Começou a entrar na fantazia e ela encontrou
um prinse principe que se chamava
eduardo e a princesa vou to voutou
para o reino e viveran pr fli felizes
para sentre
C e MH / 15-06-1998
Escola Particular
Fonte: dados da pesquisa
Antes de iniciarmos a análise dos erros ortográficos, chamou-nos a atenção, nos dois
textos, as utilizações de riscos/rasuras efetuados pelas crianças, o que indica que as
escreventes reelaboraram significativamente o texto.
No texto 3, visualizamos a incidência de vários apagamentos, supressão (FABRE,
1987) realizados pela dupla. No título, a palavra iRMÃEs sofre um apagamento da desinência
‘s’ utilizado para indicação do plural; na sexta linha, na escrita da palavra UMA , há também
um apagamento do a, que marca a terminação do artigo indefinido feminino, passando a ser
empregado como artigo indefinido masculino; na sétima linha, na escrita de DE, há o
apagamento do d, que junto com o e, formava uma preposição; Na décima terceira e na
décima quarta a dupla resolve apagar e substituir alguns significantes, como no caso de I por E
( I E) e em SCEPRE é o s que é apagado e substituído por c.
No texto 4, há também vários apagamentos efetuados pela dupla da escola particular.
É um texto curto, baseado no gênero discursivo ‘conto de fadas’ e que apresenta várias
reelaborações. Na palavra princesa, exposta na quinta linha do texto, há um apagamento. Em
outros momentos, a dupla risca e substitui as formas significantes que pareciam não atender
ao desejo de escrita ‘correta’, o que faz com que rasure e escreva outra forma substitutiva a
primeira, como no caso de pr fli que é apagado para dar vez a grafia de felizes; comeso por
Começou, vou to por voutou e no início de prinse as possibilidades de uso do s e do c concorrem
dando surgimento da cadeia latente manifestar-se na forma significante de c em príncipe. São
reelaborações que indiciam que, ainda que o sujeito não tenha controle sobre a língua,
emergem possibilidades várias que estarão a sua disposição de escolha nas formas a serem
usadas e que ocuparão o lugar gráfico na composição.
Segundo Calil (2008), as rasuras representam um movimento intenso de escuta do
próprio autor com seu texto, permitindo-lhe refletir, repensar e reescrever sua escrita. De
acordo ainda com o referido autor, o próprio uso do rascunho na escola se reduz, muitas
vezes, há apenas fazer uma revisão do texto do aluno com objetivos de apagar o ‘erro’ que
nele está empregado, sendo rejeitado após essa revisão, evidenciado, nesse aspecto, que o
texto é visto realmente como um produto que tem que estar pronto e acabado, não importando
os percursos caminhados até sua versão final.
Sendo assim, pontuamos essa questão por acreditarmos ser relevante o
fortalecimento de que a rasura se constitui como um elemento pertencente ao processo de
escrituração, não importando o lugar social que esteja o escritor, pois seus escritos carregam
os traços da trajetória de um pequeno ‘autor’. Não avançaremos nesse tema da rasura, apenas
trouxemos à tona para exemplificar seu valor investigativo.
Observamos que, para a realização do texto 337, a professora conversou com a dupla
para que inventassem uma história. Antes, porém, seria dado um tempo para conversarem e
combinarem sobre o que iriam escrever. Após a dupla ter discutido a professora lhe deu uma
caneta38 e um papel pautado para o início da escrita. As crianças escolheram o título ‘ AS TREIS
iRMÃEs
UMA BRUXA’ e iniciaram a produção com um tempo determinado para terminar a
escrituração.
A utilização da letra bastão fica nítida na execução das palavras nesse texto, mas
também há uso da letra cursiva e até houve uma mescla das duas formas, indiciando uma
oscilação da passagem da primeira para a segunda. Outro aspecto presente nessa composição
textual, como já foi exposto, é a incidência de rasuras, o que mostra que os escreventes do
texto têm uma relação de autoria com sua produção, riscando, substituindo letras/palavras,
que dentro da possibilidade existente não se encaixariam. As dificuldades que a aprendizagem
do sistema ortográfico traz no processo de aquisição da linguagem são identificadas
visivelmente no texto da dupla escrevente através da realização de alguns erros, dos quais
alguns serão agora elencados:
37
A descrição da atividade retirada do banco de dados “Prática de Textualização na Escola” encontra-se em
anexo.
38
Calil (2008) traz um dado interessante em se usar a caneta ao invés do lápis. Ele enfatiza que o lápis traz em
torno de si o incentivo ao apagamento, sem que fiquem vestígios do que foi apagado. Por isso, segundo o autor,
principalmente em investigação de escrita, o melhor é entregar caneta as crianças, pois desta forma não terão
como apagar o que foi escrito, preservando, assim, as rasuras e modificações que tenham feito no texto.
Tabela 3 - Erros registrados no texto “ As treis irmães uma bruxa”
ERRO
FORMA
PADRÃO
CATEGORIA
CATEGORIA
(correspondência regulares e
(alterações de erros)
TREIS
Três
irregulares dos sons) Morais (1998)
-------------------------------
Zorzi (1998)
Acréscimo de letras
Acréscimo de letras e
VEIS
Vez
Correspondência Irregular (som do z)
possibilidade de
iRMASiAS
Irmãzinhas
Correspondência Irregular (som do z)
Calderão
Caldeirão
-------------------------------------
FASER
Fazer
Correspondência Irregular (som do z)
FeiTiSO
Feitiço
Correspondência Irregular (som do s)
APARISEU
Apareceu
Correspondência Irregular (som do s)
DERUBOU
Derrubou
SCEPRE
Sempre
representações múltiplas
Possibilidade de
representações múltiplas
Omissão de letras
Possibilidade de
representações múltiplas
Possibilidade de
representações múltiplas
Possibilidade de
Correspondência Fonográfica
representações múltiplas
Possibilidade de
Regular Contextual
Correspondência Irregular
representações múltiplas
Possibilidade de
(som do s)
Fonte: dados da pesquisa
representações múltiplas
O texto 4, a história inventada ‘A princesa do lago encantado’ traz marcas de uma
produção baseada no gênero ‘conto de fadas’. A dupla escreveu um texto pequeno, mas com
uma riqueza de reelaborações. As rasuras presentes nesta composição indiciam uma escuta
por parte da dupla, pois vêm geralmente seguidas de outra forma que melhor parece se
adequar as exigências dentro da possibilidade linguística. Por exemplo, em vou to a dupla risca
e imediatamente substitui essa forma por voutou, fazendo-nos perceber que nesse jogo
combinatório de palavras, metonimicamente, emerge uma concorrência entre essas duas
formas, em que a segunda se adéqua mais a exigibilidade da língua. Outro exemplo da escuta
da dupla surge na escrita de prinse que é logo substituída pela forma príncipe.
Ao observarmos uma ficha39 de avaliação das escritas das duas crianças
identificamos que ambas já estavam na fase alfabética. Porém esse fato não impede de que
surjam erros em suas escritas, pois estão adentrando no funcionamento linguístico. Vejamos
alguns desses erros:
Tabela 4 - Erros registrados no texto “A princesa do lago encantado”
FORMA
ERRO
PADRÃO
Fantazia
voutou
Viveran
fantasia
voltou
viveram
CATEGORIA
CATEGORIA
(correspondência regulares e
(alterações de erros)
irregulares dos sons) Morais (1998)
Zorzi (1998)
Possibilidade de
Correspondência Irregular (som do z)
Correspondência Fonográfica Regular
representações múltiplas
Possibilidade de
Contextual
Correspondência Fonográfica Regular
representações múltiplas
Possibilidade de
Contextual
Fonte: dados da pesquisa
representações múltiplas
Contudo, o erro singular que surge nos textos e que chama nossa atenção está na
formação da palavra dregau (texto 3) e sentre (texto 4). As formas dr e tr são permitidas
dentro da estrutura silábica, do possível linguístico. Materialmente falando, o dr e o tr
também são formas possíveis, podendo dr ser visto em palavras como padre, madre, comadre,
compadre, entre outras e tr em entrou, encontrou, entrar, entre e ventre. Estas palavras, que
fazem parte do acervo lexical das crianças e estão presentes em seu texto, indiciam uma
estabilização dessas formas na escrita da dupla.
A posição do r em dregal e do r em sentre segue uma aceitação estrutural silábica
CCV, apontando que as crianças estão escrevendo dentro das possibilidades material e
linguística. Sentre, no entanto, apresenta uma forma inesperada na construção silábica da
última sílaba, pois há nesse ponto uma substituição metafórica da letra p por t, sendo a
primeira forma que deveria ocupar este espaço no encontro consonantal.
Se observarmos a construção dessa palavra, poderemos perceber que para a forma
sempre emerge a escrita sentre. O t ocupa metaforicamente a posição do p, sendo que a
concorrência estabelecida entre m e n, faz com que a segunda forma saia da cadeia latente e
ganhe lugar na cadeia manifesta.
39
A ficha de avaliação de escrita pode ser vista em anexo.
Seguindo o funcionamento da língua, m não poderia posicionar-se antes de t. Devido a
isso, a letra que surge para ocupar esse lugar é o n, já que seguindo a norma ortográfica o n
vem antes também do t.
O dr e tr também se constituem como encontro consonantal. Cegalla (2008, p. 30)
conceitua esse encontro como “a seqüência de dois ou mais fonemas consonânticos numa
palavra”. Na palavra dregal, no entanto, esse encontro de fonemas consonantais não é
aceitável na primeira sílaba na escrita dessa palavra, mas sua forma estruturante se daria
justamente na segunda, em que ficaria degral, sendo seu correto escrito degrau.
Há na forma escrita pela dupla o chamado equívoco, tido como um dado irregular e
singular, que suspende o certo por um determinado espaço de tempo, mas que evidencia
construções proponentes dentro da própria estrutura silábica CCV, e, como também já foi
apresentado, é uma construção possível na norma linguística da sílaba. Porém, na palavra em
destaque, essa construção não poderia se dar na sílaba anterior, mas na posterior, já que a
palavra como foi escrita não corresponde a forma estabelecida socialmente.
Milner (1989, p. 55) enfatiza que os dados de uma investigação podem ser
considerados como possível ou impossível material e linguístico, não sendo um apresentado
como referência para a ausência ou aparecimento do outro. Conforme este autor “impossível
de língua não é um impossível material”, sendo que “o conjunto de dados da língua atestados
e acessíveis a observação imediata se divide entre dados materialmente possíveis e
lingüisticamente possíveis [...] e dados de língua materialmente atestados, mas
lingüisticamente impossíveis”.
Milner (1987, p.44) nos faz refletir, ainda, sobre o lugar do falante/escritor nessa
estrita relação conflituosa entre possibilidades e impossibilidades da língua ao declarar que
“aquilo que para o ser falante é lugar de impossível, é também lugar de uma proibição”.
Para Felipeto (2003, p. 30), “o possível material que a Lingüística comporta fica
entre os limites do possível e impossível de língua e apaga aquilo que constitui apenas um
possível material. Isto significa descartar o não-repetível, isto é, o singular”. Nesse sentido, há
uma exclusão do erro que está situado dentro do possível material (forma representada e
atestada) por não o separarem do possível e impossível linguístico.
Por ser o erro regular mais “uníssono”, demonstra uma maior organização de o
pesquisador projetar sua intenção no sujeito, o que faz com que experimente excluir os erros
que não atendem a seus objetivos a fim de, assim como declara Calil et al (2006, p. 144),
“recompor uma totalidade”.
Como enfatiza Carvalho (1995), a totalidade é suspensa com o surgimento do erro e
para os que acreditam na gramática como regra completa, o erro se torna um resíduo que não
se intenciona utilizar, mas descartar na busca de se ter uma consistência da língua.
Numa releitura de Milner (1987), a respeito da língua não abarcar o todo e ter um
ponto de falta, Lopes (2005) levanta os seguintes aspectos que necessitam ser reconhecidos:
- há o regular, mas também o irregular;
- há o repetível que faz rede, mas também o singular;
- há o representável, mas também o impossível de se representar, ou seja, o
equívoco;
- há o correto (para a lingüística e a gramática), mas também o incorreto;
- há o homogêneo, mas também o heterogêneo;
- há a estratificação, que pode ser desestratificada; e, enfim, que
- há a analogia, que não descarta a anomalia.
(LOPES, 2005, p. 15).
Esse movimento linguístico expresso nas formas irregulares de escrita não são
aleatórias, pois “há uma ordem subjacente às irregularidades” (FELIPETO, 2003, p.60) que o
insere dentro das possibilidades da língua e embora causem “estranheza do erro, perpassa
possibilidades da língua, inscrita numa relação de semelhança com as regularidades”
admitidas dentro da própria construção silábica (LOPES, 2005, p. 17).
Essas semelhanças podem ser vistas nas escritas inusitadas, mas não fora da
possibilidade linguística e material de dregal e sentre, perpassando que nada foge à língua.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
_______________________________________________________
Estudos que focalizam a aprendizagem das formas gráficas convencionadas pelo
sistema ortográfico da língua são os que são mais utilizados para descrever os erros
ortográficos que são produzidos pelos alunos no processo de escolarização, estabelecendo
idades e níveis sociais para suas ocorrências (LOPES & CALIL, 2002). A busca exagerada
pelo correto em detrimento do errado vem proliferando maneiras categóricas de atuação direta
do professor sobre a grafia do aluno, sem que esses erros sejam considerados dentro de um
funcionamento linguístico.
A concepção de erro que é propagada com maior destaque em relação ao surgimento
do erro fundamenta-se, geralmente, em situá-lo dentro de uma redoma discursiva de
representabilidade da fala na escrita. Assim, muitos educadores consideram, em sua prática
pedagógica, como única explicação para a incidência do erro, a relação direta entre oralidade
e grafia denominadas pela teoria descritiva do sistema ortográfico, como “transcrição da fala”,
buscando atingir diretamente esse tipo de erro através de técnicas memorizáveis de regras.
Desconsideram, assim, essas ocorrências singulares como respostas do sujeito, também
singular, às possibilidades permitidas pela própria língua.
Por isso, acreditamos que os estudos descritivos trazem uma falta significativa:
descartam qualquer tipo de erro que não possa ser categorizado ou o inscreve dentro de uma
proteção cautelosa que garanta a previsibilidade de apoio no oral, sem considerar, no entanto,
todo o processo constitutivo de sujeitos que estão se relacionando com a língua para a ela se
submeter, conforme sua exigibilidade e funcionamento.
Partilhamos do pensamento de que a assimilação das regras ou a memorização das
escritas irregulares tão somente não darão conta de amortecer o erro, uma vez que estes se
constituem em marcas de mobilizações inconscientes realizadas por alunos que estão sendo
capturados pouco a pouco por uma ordem linguística estabelecida pela própria língua e que
está caracterizada dentro de um funcionamento linguístico.
Esse trabalho teve como ideário primordial discutir questões relativas à singularidade
de formas significantes que já são descritas categoricamente, mas que, na nossa visão, não
estão vinculadas apenas a explicações de cunho classificatório, o que as descaracterizariam
dentro do funcionamento linguístico, tendo em vista todas as suas possibilidades de grafia,
seja da ordem material ou linguística.
Não descartamos, contudo, os estudos oriundos da teoria fonológica e ortográfica,
pois ambos têm sua parcela de contribuição nos estudos linguísticos do erro. No entanto, seus
estudos não avançam quando descartam e higienizam a escrita da criança que “erra” ou
quando explicam os erros como simples representação da forma acústica.
Tal fator é por nós discutido e por uma parcela de estudiosos de uma das vertentes da
aquisição da linguagem que vê nas possibilidades e impossibilidades linguísticas o surgimento
de um erro imprevisível ou singular que indicia a singularidade de um sujeito ‘autor’ de suas
produções.
Infelizmente, essa temática não é tão propagada no meio educacional. Os termos e
conceitos relacionados à Linguística encontram barreiras na área educacional, devido à
necessidade de aprofundamento. Isso se deve, porém, por conta dos próprios cursos de
Pedagogia não abrangerem em sua grade temática curricular, teóricos da linguagem como
Saussure, Milner, Jakobson, entre outros, que são estudados em cursos de Letras Vernáculas.
Partindo da visão desses teóricos, em nossa perspectiva, o erro é um ponto de acerto
da criança que segue, inconscientemente, as possibilidades dadas pela própria língua no ato de
escrever. Para nós é no dado enigmático, no diferente, no rejeitado pelas categorias do sistema
fonológico e ortográfico, no que escapa, no que sobra, no singular da fala/escrita da criança
que podemos observar o foco revelador das relações que acontecem entre a linguagem, o
sujeito e seu submetimento a língua, com fins de acompanhar o funcionamento por ela
exigido.
Tendo o professor esse entendimento, ao invés de coibir o erro ou o errante, irá, a
partir de sua aparição, perceber que o aluno está avançando nas atividades linguísticodiscursivas. O importante é que nós educadores reflitamos na singularidade dos erros
imprevisíveis e singulares presentes nos textos dos alunos e entendamos que o educando está
sendo capturado pela língua e dentro de suas próprias probabilidades está sendo inserido.
Ressaltamos que os erros nos textos dos alunos participantes desta pesquisa,
pertencentes a instituições escolares privadas e públicas, não apresentam diferenciações em
sua estrutura. Há, sim, uma marca de singularidade em cada um deles, como por exemplo, o
erro presente no texto da dupla pertencente à escola particular é a aglutinação tenque,
enquanto que a da pública é a troca do u / l. Em outra análise, o erro aparece nas formas
dregal, da escola pública e sentre, da escola particular. Estes erros, embora diferentes, são
reveladores de que o percurso trilhado por ambos é da mesma ordem: estão tentando adentrar
às possibilidades que a língua oferece. Nesse embate, mobilizam mecanismos inconscientes
de atuação dos eixos (metafóricos e metonímicos) da língua e, embora já tenham fixos na
mente a estrutura correta de seus usos (de m e n e do l e do u, do dr e tr), deslizam nesse
imaginário para alcançar o real da língua, mostrando uma singularidade, como já foi dito, de
um sujeito autor de suas escritas.
Esperamos, assim, que a presente pesquisa possa trazer significativas contribuições
para dar continuidade ao entendimento dos erros ortográficos em escrita de alunos, não se
esgotando tal temática nesse estudo, pois precisamos continuar avançando nas questões
funcionais existentes nas possibilidades e impossibilidades linguísticas nessa imbricada
relação entre o sujeito e a língua, para uma melhor compreensão do erro singular.
REFERÊNCIAS
_____________________________________________
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ANEXOS
________________________________________________
ANEXO A: FICHA DE FILMAGEM
BANCO DE DADOS
PRÁTICA DE TEXTUALIZAÇÃO NA ESCOLA
PROJETO: EQUÍVOCO, CRIAÇÃO E ERRO
DESCRIÇÃO DAS ATIVIDADES
Ficha de Filmagem nº: 12.4
Fita nº: 12
Tempo:
Atividade: Escrita em dupla de uma história inventada.
Data: 18/11/97
Escola: Escola de Ensino Fundamental Antônio Semeão Lamenha Lins
Grau de Escolaridade: 1ª Série “C”.
Turno: Matutino.
Professor Responsável: Cícera.
Condutor da Atividade: Roseclair.
Cameraman: Roseclair.
Participantes: Jônata e Thaise.
Título: “As treis irmãe uma bruxa”
DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE
1.
Material: papel pautado e caneta.
2.
Consigna:
3.
Procedimento: Foi proposta à dupla a produção de uma história inventada, designado
um tempo para discutirem sobre o que iriam escrever e depois entregue o material e orientado
a dupla a iniciarem a escrita da história.
4.
Observações:
CENTRO DE ESTUDOS PSICOPEDAGOGICOS LTDA
Escola Monteiro Lobato
Rua Ipê Roxo, 277 – Jardim do Horto
(GERAL /SS/ AVEC)
ANEXO B: AVALIAÇÃO DA ESCRITA DAS CRIANÇAS DA 1ª. SÉRIE “C”
MATUTINO
ALUNO
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
27
Arthur Lundberg
Artur Maia
Bernardo
Caio
Carine
Carlos Gilberto
Caroline
Dayana
Diego
Diogo
Eduardo
Laís
Leila
Maria Beatriz
Maria Eduarda
Mariana
Marilia Camila
Matheus Melo
Matheus Henrique
Natália
Pedro
Raianne
Suzana
Victor Barros
Victor Monteiro
Yan Pavonelli
A
B
C
D
E
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
A= NÃO SILÁBICO
B= SILÁBICO COM FALHAS NO VALOR SONORO CONVENCIONAL
C= SILÁBICO SEM FALHAS
X
X
D= SILÁBICO ALFABETICO
E= ALFABÉTICO
